2. bassnett - historia da teoria da traducao

Upload: gustavo-brunetti

Post on 07-Jul-2018

259 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    1/28

    Capítulo

    2

    Nenhuma introdução aos Estudos de Tradução ficaria

    completa sem uma perspectiva histórica da disciplina mas

    se um único livro seria insuficiente para tão vasto em

    preendimento um único capítulo é-o ainda mais. O tempo

    e o espaço disponíveis apenas permitem observar de que

    modo algumas linhas de abordagem

    à

    tradução foram

    emergindo em diferentes períodos da cultura europeia e

    americana e de que modo têm variado o papel e a função

    da tradução. Assim por exemplo a distinção entre a tra-

    dução literal.e a tradução do sentido que data do sistema

    romano tem continuado de uma maneira ou de outra a

    ser alvo de debate até ao presente enquanto a relação en

    tre a tradução e o nacionalismo emergente explica o s i n i ~

    ficado de diferentes conceitos de cultura. A perseguição

    aos tradutores da Bíblia durante os séculos em que os es

    colásticos traduziam e retraduziam avidamente os clássi

    cos gregos e romanos constitui um elo importante n ca

    deia

    desenvolvimento do capitalismo e no declínio do

    feudalismo. Do mesmo modo

    a abordagem hermenêutica

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    2/28

    77

    r

    76

    posta

    em

    prática pelos grandes tradutores românticos in

    gleses e alemães articula-se com a alteração da concepção

    do papel do indivíduo no contexto social. Nunca é de

    mais.

    frisar que o estudo da tradução, sobretudo na vertente

    diacrónica, constitui uma parte vital

    da

    história literária

    e cultural.

    PROBLEMAS DE PERIODIZAÇÃO

    Em

    fter

    Babel

    1

    George Steiner divide a escrita sobre

    a teoria, a prática e a história da tradução em quatro perío

    dos. O primeiro estende-se, segundo ele, das declarações

    de Cícero e de Horácio sobre a tradução à publicação, em

    1791, da obra Essay on the Principies

    of

    Translation, de

    Alexandre Fraser Tytler. A característica fundamental deste

    período é a 'focalização empírica imediata', i. e., as afir

    mações e as teorias sobre a tradução brotam directamente

    da

    prática

    da

    tradução. De acordo com Steiner, o segundo

    período, que se estende até à publicação,

    em

    1946, de

    Sous l invocation de Saint Jérome,

    de Larbaud, caracte

    riza-se por ser um período de indagação teórica e herme

    nêutica e pelo desenvolvimento de uma terminologia e de

    uma metodologia próprias para a abordagem da tradução.

    O terceiro período começa com a publicação dos primei

    ros escritos sobre tradução automática nos anos quarenta

    do século XX e caracteriza-se pela aplicação da linguística

    I

    STElNER, George -   fterBabel. London: Oxford University Press, 1975,

    p. 236 ss.

    estrutural e da teoria da comunicação ao estudo da tra

    dução. O quarto período, que coexiste com o terceiro,

    tem origem nos anos sessenta e caracteriza-se por um

    regresso

    à

    indagação hermenêutica, quase metafísica, so

    bre a tradução e a interpretação ,

    em

    suma, por uma vi

    são da tradução que coloca a disciplina num amplo qua

    dro de referência que inclui um grande número de outras

    disciplinas:

    A filologia clássica e a literatura comparada, a lexicometria e a

    etnografia, a análise sociológica do discurso, a retórica formal, a

    poética e o estudo da gramática, todas se combinam para dilucidar

    o acto da tradução e o processo da 'v ida entre as línguas'.

    As divisões de Steiner, embora interessantes e lúcidas,

    ilustram, no entanto, a dificuldade de estudar diacronica

    mente a tradução, pois o seu primeiro período cobre cerca

    de mil e setecentos anos, enquanto os dois últimos se re

    duzem a uns escassos trinta anos. Os seus comentários so

    bre os recentes avanços da disciplina são muito acertados,

    mas não deixa de ser verdade que a principal característica

    do seu primeiro período também se verifica hoje em dia

    no conjunto de obras que têm origem nas observações e

    polémicas levantadas pelos tradutores, A sua divisão qua

    dripartida é, no mínimo, altamente idiossincrásica, mas

    consegue evitar um grande perigo: a periodização ou

    compartimentação

    da

    história literária.

    É

    virtualmente im

    possível dividir períodos por datas, porque, como afirma

    Lotman, a cultura humana é um sistema dinâmico. As ten

    tativas para situar estádios de desenvolvimento dentro de

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    3/28

    79

    8

    limites temporais estritos contradizem esse dinamismo.

    Um

    exemplo magnífico do tipo de dificuldades associadas

    à 'abordagem pela periodização' é o que se prende com a

    definição dos limites temporais do Renascimento.

    ainda

    um

    amplo leque de obras

    de

    referência a tentar de

    cidir

    se

    Petrarca e Chaucer foram escritores medievais ou

    renascentistas, ou se Rabelais

    era um

    espírito medieval

    post hoc

    ou se Dante foi um génio renascentista

    com

    dois

    séculos de avanço. Urna investigação da tradução nestes

    termos não seria mesmo nada proveitosa.

    Contudo,

    certos conceitos de tradução que prevale

    cem

    em

    diferentes épocas e que podem ser documentados.

    T

    R.

    Steiner

    2

    analisa

    a teoria

    da

    tradução,

    em língua

    inglesa,

    entre

    1650 e 1800,

    começando

    por

    Sir John

    Denham e acabando

    em

    William Cowper, e

    conta da

    predominância do conceito setecentista do tradutor corno

    pintor ou imitador. André Lefevere 3 compilou um con

    junto de afirmações e documentos sobre tradução onde é

    detectado o estabelecimento

    de urna tradição alemã de tra

    dução que começa em Lutero e termina

    em

    Rozenzweig,

    passando por Gottsched e Goethe, pelos irmãos Schlegel e

    Schleiermacher. Urna abordagem menos sistemática, mas

    ainda balizada por urna referência temporal peculiar, é a

    análise de

    F.

    O. Matthiesson a quatro proeminentes tradu

    tores ingleses do século XVI (Hoby, North, Florio e Phi

    2 STEINER, T R. -

    English Translation Theory 1650-1800.

    Assen; Ams

    terdam: Van Gorcum. 1975.

    3

    LEFEVERE, André -

    Translating Literature: The German Tradition.

    From Luther to Rosenzweig.

    Assen; Amsterdam:

    Van

    Gorcum, 1977.

    r

    I

    lemon Holland).4 Por outro lado, a metodologia aplicada

    por Timothy Webb no seu estudo sobre Shelley enquanto

    tradutor

    5

    envolve urna análise atenta da produção de

    um

    tradutor

    em

    relação

    com

    o resto da sua obra e

    com

    os con

    ceitos contemporâneos do papel e do estatuto da tradução.

    Os estudos deste género, que não estão submetidos a no

    ções rígidas de período, mas procuram investigar sistema

    ticamente as alterações do conceito

    de

    tradução, tendo

    em

    consideração o sistema de signos que integra urna dada

    cultura, são preciosos para o estudante de Estudos de Tra

    dução. Este é, de facto,

    um

    campo muito fértil para a fu

    tura investigação. No entanto, esses estudos de tradutores

    e traduções do passado têm-se concentrado mais na ques

    tão da

    influência

    no efeito do produto na língua de che

    gada sobre

    um dado contexto cultural, do que nos proces

    sos envolvidos na criação desse produto e sobre a teoria

    subjacente à criação. Assim, por exemplo, apesar de algu

    mas apreciações críticas sobre o significado da tradução

    no desenvolvimento do cânone literário romano, perma

    nece por fazer

    um

    estudo sistemático

    em

    língua inglesa da

    teoria romana da tradução. As alegações contidas na de

    claração de Matthiesson segundo a qual

    um

    estudo das

    traduções isabelinas é

    um

    estudo dos veículos pelos quais

    o Renascimento entrou

    em

    Inglaterra não são escoradas

    por nenhuma investigação científica das mesmas.

    4

    MATTHIESSON, F O. -

    Translation. n Elizabethan Art.

    Cambridge,

    Mass.: Harvard University Press, 1931. As citações seguintes de North e Hol

    land são tiradas deste texto.

    WEBB, Timothy -

    The Violet

    n

    the Crucible.

    London: Oxford Univer

    sity Press, 1976.

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    4/28

    80

    81

    Ao

    tentar estabelecer algumas linhas

    de

    abordagem à

    tradução, ao longo de um período que se· estende desde

    Cícero até ao presente, é preferível seguir uma estrutura

    cronológica flexível, sem proceder a divisões claramente

    delimitadas.

    Por

    isso,

    em

    vez de tentar incluir generalida

    des sobre o conceito de tradução especificamente 'renas

    centista' ou 'clássico', tentei seguir

    linhas de abordagem

    que podem, ou não, ser facilmente localizáveis num con

    texto temporaL Assim, as concepções de· 'tradução literal'

    e 'tradução do sentido' reaparecem aqui e ali com diferen

    tes graus de ênfase em consonância com diferentes con

    ceitos de língua e de comunicação. O objectivo de um ca

    pítulo como este deve ser o de levantar questões ao invés

    de lhes fornecer as respostas, e revelar áreas susceptíveis

    de futura pesquisa em vez de pretender ser uma história

    definitiva.

    OSROM NOS

    Eric Jacobsen

     

    afirma, de uma forma algo radical, que

    a tradução é

    uma

    invenção romana. Apesar do seu carác

    ter hiperbólico, a afirmação pode servir de ponto de par

    tida para tecermos algumas considerações sobre o papel e

    o estatuto de que gozava a tradução entre os romanos. As

    posições de Cícero e Horácio sobre a tradução tiveram

    grande influência em gerações sucessivas de tradutores e

    ;

    JACOBSEN, Eric -

    Translation

    -

    A Traditional eraft.

    Copenhagen:

    Nordisk Forlag, 1958.

    ambos entendem a tradução dentro do contexto alargado

    das duas funções principais do poeta: o dever humano uni

    versal de adquirir e disseminar a sabedoria, e a arte espe

    cial de fazer

    e

    dar forma ao poema.

    A importância

    da

    tradução

    na

    literatura romana tem

    sido frequentemente utilizada para acusar os romanos de

    serem incapazes de

    criar

    uma literatura imaginativa pró

    pria, pelo menos até ao século I a. C. A imaginação cria

    tiva dos gregos tem sido realçada e comparada ao espírito

    mais prático dos romanos e a exaltação romana dos mo

    delos gregos tem sido tomada como prova da sua falta de

    originalidade. Contudo, o juízo de valor subjacente a este

    tipo de generalizações

    está

    errado.

    Os

    romanos percepcio

    navam-se como a continuação dos seus modelos gregos e

    os críticos literários romanos discutiam os textos gregos

    sem que a língua em que eram escritos constituísse um

    factor de inibição. O sistema literário romano estabelece

    uma hierarquia de textos e autores que transcende as fron

    teiras linguísticas e que reflecte o ideal romano de Estado,

    hierárquico e centralizado, mas com preocupações sociais,

    baseado na verdadeira lei

    da

    Razão. Cícero afirma que a

    mente domina o corpo como

    um

    rei governa os seus súb

    ditos

    ou

    um pai controla os seus filhos, mas adverte que,

    onde a Razão for dona e senhora absoluta, ela oprime e

    esmaga .7 No que respeita à tradução, o ideal seria que o

    texto original existisse para ser imitado e não para ser es

    magado pela aplicação demasiado rígida da Razão. Cícero

    7 CÍCERO

    Right

    and Wrong.

    ln Latin Literature ed. M

    Grant. Har

    mondsworth: Penguin Books, 1978, p

    42-3.

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    5/28

    8

    2

    exprime assim esta distinção: Se traduzo palavra por pa

    lavra, o resultado soará estranho, e se levado pela necessi

    dade altero algo na ordem e nas palavras, parecerá que me

    afastei da função de tradutor.

    8

    Nas suas observações so

    bre a tradução, quer Horácio quer Cícero estabelecem uma

    importante distinção entre

    tradução literal

    e

    tradução

    do

    sentido.

    O princípio subjacente de enriquecer a língua e a

    literatura nativas através da tradução fez com que a ênfase

    fosse colocada nos critérios estéticos do produto na língua

    de chegada e não nas noções mais rígidas de 'fidelidade'.

    . Horácio, na sua

    Arte Poética

    adverte contra a imitação

    excessivamente cautelosa do modelo de partida:

    Um

    tema conhecido pode ser apropriado desde que não se perca

    tempo com

    um

    tratamento vulgar

    do

    mesmo; também não deve o

    tradutor comportar-se como um escravo e verter palavra por pala

    vra, nem, ao imitar outro escritor, deve mergulhar em dificuldades

    das quais, por vergonha

    ou·

    exigência própria, dificilmente conse

    guirá libertar-se.

    9

    Se o enriquecimento do sistema literário faz parte inte

    grante da concepção romana de tradução, não é de todo

    surpreendente encontrar nela também uma preocupação

    com o enriquechnento da língua. Era tão corrente o hábito

    de decalcar ou cunhar palavras que Horácio, ao mesmo

    tempo que prevenia o futuro escritor para que evitasse

    as

    8

    cíCERO

    - De optimo genere oratorum. Loeb Classical Library. Trad. de

    H. M. Hubbell. London: Heinemann, 1959.

    9 HORÁCIO -

    On the

    rt of

    Poetry.

    n

    Classical Literary Criticismo

    Har

    mondsw{)rth: Penguin Books, 1965, p. 77-97.

    ciladas que espreitam o 'tradutor escravo', aconselhava

    também um recurso comedido

    à

    criação de novas palavras.

    Horácio comparava a cunhagem de novas palavras e o de

    clínio de outras

    à

    mudança das folhas na Primavera e no

    Outono, vendo este processo de enriquecimento àtravés da

    tradução como natural e desejável,

    desde que

    o escritor

    praticasse a moderação. Assim, para Horácio e Cícero, a

    arte do tradutor consistia numa interpretação ponderada

    do texto fonte para produzir uma versão

    na

    língua de che

    gada baseada no princípio

    non verbum de verbo sed sen-

    sum exprimere de sensu

    (exprimir não palavra por palavra,

    mas sentido por sentido) afirmando que a sua responsabi

    lidade era para com os leitores da língua de chegada.

    O conceito romano de tradução como fonte de enri

    quecimento tem ainda uma outra dimensão,

    i

    e., a prima

    zia do grego como língua de cultura e a capacidade dos ro

    manos letrados para lerem os textos na língua original.

    Tomando

    em

    conta estes factores, altera-se a posição quer

    do tradutor quer do leitor. O leitor romano, de um modo

    geral, era capaz de considerar a tradução como um meta

    texto do original. O texto traduzido era lido

    através

    do

    texto fonte, o que não acontece com um leitor monolingue

    que apenas tem acesso ao texto fonte através da sua tradu

    ção. Para os tradutores romanos a tarefa de transferir um

    texto de uma língua para outra pode ser entendida como

    um exercício de estilística comparada, uma vez que não

    lhes era exigido

    dar

    a conhecer' nem a forma nem o con

    teúdo

    per se

    e consequentemente não tinham de

    se

    sujei

    tar

    à

    estrutura

    do

    original. Porém, o bom tradutor, ciente

    de que o leitor conhecia o original, ficava condicionado

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    6/28

    85

    J ~

    4

    por esse conhecimento, pois qualquer avaliação do seu

    trabalho basear-se-ia na utilização criativa que fàzia do

    seu modelo. No seu Tratado do Sublime 10 Longinus men

    ciona

    a

    imitação e a emulação dos grandes historiadores

    e poetas do passado como uma das formas de atingir o

    sublime, e a tradução é uma forma de imitação no con

    ceito romano de produção literária.

    A tradução romana é talvez um caso ímpar, por decor

    rer de uma concepção de produção literária que segue um

    cânone de excelência que transcende fronteiras linguísti

    cas. Além disso, não se pode esquecer que, com o alarga

    mento do Império Romano, o bilinguismo e o trilinguismo

    se tomaram cada vez mais comuns, aumentando o abismo

    entre o Latim falado e o Latim literário. As ditas 'liberda

    des' dos tradutores romanos, muito citadas nos séculos

    XVII e XVIII, devem ser entendidas no contexto de

    um

    sistema global que inclui essa concepção de tradução.

    A TR DUÇÃO D BÍBLI

    Com a expansão do Cristianismo, a tradução adquiriu

    um novo papel: o de espalhar a palavra de Deus. Uma re

    ligião tão baseada num texto como é o Cristianismo pro

    10

    LONGINUS

    Essay On the Sublime.

    ln

    Classical Literary Criticismo

    Hannondsworth: Penguin Books, 1965, p. 99-156. (Em Português, foi publicada

    em 1984 uma tradução do século XVDI com texto actualizado.cr OLIVEIRA,

    Custódio José de -

    Tratado do Sublime de Dionísio Longino.

    Introdução e ac

    tualização do texto por Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa Na

    cional- Casa da Moeda, 1984). [N. T.]

    piciou aos tradutores uma missão que abarcava critérios

    tanto estéticos como doutrinários. A história da tradução

    da Bíblia representa, consequentemente, um microcosmos

    da história da cultura ocidental. O Novo Testamento co

    meçou a ser traduzido muito cedo e a célebre e contro

    versa versão de São Jerónimo, que teve muita influência

    em gerações sucessivas de tradutores, foi encomendada

    pelo Papa Dâmaso em 384 d. C. Na senda de Cícero, São

    Jerónimo declarou haver traduzido o sentido pelo sentido

    e não a palavra pela palavra, mas o problema da ténue

    fronteira entre o que constituía liberdade estilística e o que

    constituía interpretação herética haveria de permanecer

    como pedra de tropeço durante séculos.

    A tradução da Bíblia continuou a ser uma questão cen

    tral pelo século XVII adentro, tendo-se os problemas avo

    lumado com o desenvolvimento do conceito de cultura na

    cional e com o aparecimento da Reforma. A tradução

    passou a ser usada como arma nos conflitos, quer dogmá

    ticos quer políticos,

    à

    medida que os Estados nacionais co

    meçaram a emergir e a centralização da Igreja começou a .

    enfraquecer, o que,

    em

    termos linguísticos, se evidenciou

    pelo declínio do Latim como língua universal.

     

    Há um vasto conjunto de bibliografia sobre a história da tradução da Bí

    blia. A obra de Eugene Nida,

    Towards a Science o Translating

    (Leiden:

    E. J.

    BriU

    1964) inclui uma extensa lista bibliográfica. Há outras obras em Inglês que

    fazem úteis introduções ao tema: BRUCE, F F The English Bible A History

    ofTranslations

    (London: Lutterworth Press, 1961); PARTRIDGE,

    A.

    C.

    En-

    glish Biblical Translation

    (London: André Deutsch, 1973); SCHWARZ,

    W.

    Principles and Problems o Biblical Translation: Some Reformation Controver-

    sies and their Background

    (Cambridge: Cambridge University Press, 1955);

    ROBINSON,

    H.

    Wheeler

    (ed.) - The Bible in its Ancient and English Versions

    (Oxford: The Clarendon Press, 1940).

    http:///reader/full/universal.llhttp:///reader/full/universal.llhttp:///reader/full/universal.ll

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    7/28

    86

    87

    A primeira tradução integral da Bíblia para o Inglês foi

    produzida por Wycliffe entre 1380 e 1384 e marcou o

    n í ~

    cio de um período pródigo em traduções da Bíblia para o

    Inglês, associado à mudança de atitude, própria do movi

    mento da Reforma então

    em

    formação, face ao papel do

    texto escrito no âmbito da igreja. John Wycliffe (c. 1330

    -84), o notável teólogo de Oxford, avançou a teoria do

    'domínio da graça', segundo a qual o homem se reporta

    directamente a Deus e à lei de Deus (que Wycliffe enten

    dia como sendo não a lei canónica, mas os ensinamentos

    da Bíblia). Se a teoria de Wycliffe pressupunha que a Bí

    blia se aplicava a toda a vida humana, consequentemente

    todos deveriam ter acesso a esse texto fundamental numa

    língua que todos pudessem entender, i e.,

    em

    vernáculo.

    As opiniões de Wycliffe, que atraíram um círculo de se

    guidores, foram atacadas como heréticas e ele e o seu

    grupo foram denunciados como lolardos*, mas a obra que

    ele iniciou continuou a florescer depois da sua morte e o

    seu discípulo John Purvey reviu a primeira edição algum

    tempo antes de 1408 (ano do primeiro manuscrito datado).

    A segunda Bíblia wycliffiteana contém um Prólogo

    geral, composto entre 1395 e 1396, e o décimo quinto ca

    pítulo do Prólogo descreve os quatro estádios do processo

    de tradução:

    1

    um esforço de colaboração para reunir velhas Bí

    blias e comentários para estabelecer o autêntico

    texto fonte latino;

    • Grupo herético do século XIV constituído pelos seguidores de Valter

    LoI

    lard que proclamava a inutilidade dos sacramentos, a indivisibilidade da Igreja

    e a independência do povo em relação aos reis e em relação ao papa. [N.

    T.]

    2) a comparação das versões;

    3) o aconselhamento junto de velhos gramáticos e

    velhos teólogos sobre palavras difíceis e sentidos

    complexos; e

    4) o traduzir o mais claramente possível a 'f rase'

    (i.

    e.,

    o sentido), sendo a tradução revista por um grupo

    de colaboradores.

    A função política da tradução - tomar acessível o texto

    integral da Bíblia - determinou uma definição de priori

    dades por parte dos tradutores: no Prefácio, Purvey afirma

    claramente que o tradutor deve traduzir 'a partir da frase'

    (sentido) e não apenas a partir das palavras, para que a

    frase seja tão clara ou esclarecedora em Inglês como em

    Latim e não se afaste da letra . O que se pretendia era uma

    versão inteligível, idiomática: um texto que puqesse ser

    utilizado por

    um

    leigo. O alcance da sua importância pode

    medir-se pelo facto de terem sido feitas 150 cópias da ver

    são revista de Purvey mesmo depois da proibição,

    em

    Ju

    lho de 1408, sob pena de excomunhão, da circulação de

    traduções sem a aprovação dos conselhos diocesanos ou

    provinciais. A lamentação de K.nyghton, o Cronista, de

    que

    a

    pérola do Evangelho é deitada fora e esmagada pe

    los pés dos porcos foi certamente contrariada pelo inte

    resse generalizado nas versões wycliffiteanas.

    No século XVI a história da tradução da Bíblia adqui

    riu novas dimensões com o advento da imprensa. A seguir

    às versões wycliffiteanas a grande tradução inglesa foi a

    do Novo Testamento, da autoria de William Tyndale (1494

    -1536) e impressa

    em 1525. A sua proclamada intenção, ao

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    8/28

    89

    8

    traduzir, era também a de oferecer uma versão o mais

    clara possível aos leigos

    e,

    quando morreu na fogueira em

    1536, já havia traduzido o Novo Testamento a partir do

    Grego e partes do Antigo Testamento a partir do Hebraico.

    O século XVI testemunhou a tradução da Bíblia para

    um grande número de línguas europeias, quer na versão pro

    testante quer na versão católica romana. Em 1482, o Penta

    teuco havia sido impresso em Bolonha e a Bíblia hebraica

    integral apareceu em 1488; Erasmo, o grande humanista

    holandês, publicou o primeiro Novo Testamento Grego

    em 1516, em Basileia. Esta versão viria a servir de base

    à

    tradução alemã de Martinho Lutero, em 1522. Apareceram

    traduções dinamarquesas do Novo Testamento em 1529 e

    de novo em 1550; em sueco, entre 1526 e 1541, e a Bíblia .

    checa apareceu entre 1579 e 1593. Continuaram a apare

    cer traduções e versões revistas de traduções

    feitas em

    Inglês, Holandês, Alemão e Francês. Erasmo resumiu bem

    o espírito evangelizador da tradução da Bíblia ao afirmar:

    Desejaria que todas as mulheres lessem os evangelhos e as epís

    tolas de São Paulo e queria, por Deus, que fossem traduzidos para

    as línguas de todos os homens para que assim pudessem ser lidos

    e conhecidos, não só pelos Escoceses e Irlandeses, mas também

    pelos Turcos e os Sarracenos Queria, por Deus, que o lavrador

    entoasse um texto das escrituras ao varal do arado. E que o te

    celão, arrimado ao seu tear, com eles vencesse o tédio do tempo.

    E que o caminhante com eles aliviasse o cansaço da jornada. Em

    suma, queria que toda a comunicação entre cristãos se fizesse pe

    las escrituras, pois, de certo modo, nós somos aquilo que são as

    falas do nosso quotidiano. 12

    2 ERASMO -

    Novum lnstrumentum

    Basle: Froben, 1516 (Trad. Inglesa

    de W. Tyndale,

    em

    1529).

    William Tindale, fazendo-se eco de Erasmo, atacou a

    hipocrisia das autoridades eclesiásticas que proibiam os

    leigos de lerem a BílJlia nas suas línguas nativas a bem das

    suas almas, mas aceitavam o uso do vernáculo em histó

    rias e fábulas de amor, libertinagem e devassidão tão sór

    didas quanto se possa imaginar, para corromperem as

    mentes dos jovens .

    A história da tradução bíblica no século XVI está inti

    mamente ligada ao aparecimento do Protestantismo na

    Europa.

    À

    queima pública do Novo Testamento, traduzido

    por Tyndale em 1526, seguiu-se uma rápida sucessão de

    versões da Bíblia: a de Coverdale (1535), a Grande Bíblia

    (1539) e a Bíblia de Genebra, em 1560. A Bíblia de Co

    verdale também foi banida, mas já não havia como lutar

    contra a maré da tradução da Bíblia, valendo-se cada nova

    versão do trabalho de tradutores anteriores, apropriando,

    emendando, revendo e corrigindo.

    Não seria decerto incorrer numa generalização absurda

    sugerir que os objectivos dos tradutores quinhentistas da

    Bíblia podem ser distribuídos por três categorias:

    1

    Esclarecer erros encontrados em versões anteriores

    devido a manuscritos deficientes na língua fonte ou

    à incompetência linguística.

    2) Produzir um estilo vernáculo acessível e estetica

    mente satisfatório.

    3) Esclarecer questões dogmáticas e reduzir o carácter

    de metatexto com que as escrituras eram interpreta

    das e reapresentadas aos leigos.

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    9/28

    91

    0

    Na sua Carta Circular Sobre a Tradução de 1530,

    Martinho Lutero coloca de tal forma a ênfase na segunda

    categoria que usa os verbos ubersetzen (traduzir) e ver-

    deutschen (germanizar) quase indiscriminadamente. Lu

    tero também aponta para a importância da relação entre o

    estilo e o sentido:

    A

    gramática serve para a declinação, a

    conjugação e a construção de frases, mas no discurso de

    vem considerar-se o sentido e o assunto, não a gramática,

    porque a gramática não deve sobrepor-se ao

    sentido. 13

    Embora valorizassem a fluidez e a inteligibilidade do

    texto traduzido como critérios importantes, os tradutores

    renascentistas

    da

    Bíblia preocuparam-se também com a

    transmissão de uma mensagem literalmente precisa. Numa

    época em que a escolha de um pronome podia significar a

    diferença entre a vida e a condenação

    à

    morte por heresia,

    a precisão assumia uma importância central. Ainda assim,

    e porque a tradução da Bíblia foi um elemento constitutivo

    da valorização crescente do estatuto das línguas vernáculas,

    a questão do estilo continuava a ser vital. Lutero acon

    selhava os futuros tradutores a recorrerem aos provérbios

    e expressões vernáculas, quando ajustados ao Novo Testa

    mento; por outras palavras, aconselhava a juntar

    à

    riqueza

    de imagens do texto fonte as potencialidades da tradição

    vernácula. E, uma vez que a Bíblia é, por si s6, um texto

    que cada leitor individual tem de reinterpretar quando o lê,

    as sucessivas traduções tentam atenuar as dúvidas de ex

    13

    LUTERO, Martinho -

    Table Talks

    1532. Ambas as citações, de Erasmo

    e Lutero, foram extraídas de

    Babel

    IX

    1),

    1970, um número especial consa

    grado

    à

    tradução de textos religiosos.

    l'fJm'

    pressão e oferecer aos leitorés um texto de confiança. No

    Prefácio

    à

    Bíblia do Rei Jaime, de 1611, intitulado Dos

    Tradutores ao Leitor , pergunta-se: Será que o reino de

    Deus é feito de palavras ou de sílabas? A tarefa do tradu

    tor não era apenas linguística, mas também doutrinária,

    por direito pr6prio, pois o tradutor da Bíblia do século

    XVI (frequentemente an6nimo) era um líder radical na

    luta pela aceleração do progresso espiritual do homem. O

    fen6meno da colaboração na tradução da Bíblia represen

    tou ainda outra faceta significativa dessa luta.

    o

    PAPEL EDUCATIVO DA BÍBLIA E O VERNÁCULO

    O papel educativo

    da

    tradução das Escrituras vem de

    muito antes dos séculos XV e XVI, e os primeiros co

    mentários em vernáculo inseridos nos manuscritos latinos

    constituíram uma preciosa fonte de informação sobre o

    desenvolvimento das línguas europeias. No que rt; speita

    ao Inglês, por exemplo, os Evangelhos Lindisfarne (trans

    critos c. 700 d. C.) continham, no século X, inserida nas

    entrelinhas, uma tradução literal do original latino no dia

    lecto de Northumbria. Estas glosas subordinavam critérios

    de excelência estilística ao método literal, cabendo con

    tudo na designação de traduções por envolverem um pro

    cesso de transferência interlinguística. Porém, o sistema

    das glosas constituía apenas um dos aspectos da tradução

    nos séculos que testemunharam a emergência de diferen

    tes línguas europeias na forma escrita. No século IX, o rei

    Alfredo (no seu reinado de 871 a 899), que havia tradu

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    10/28

    93

    2

    zido (ou mandado traduzir) um conjunto de textos latinos,

    declarou que o objectivo dessas traduções era ajudar o

    povo inglês a recuperar dos efeitos devastadores das inva

    sões dinamarquesas, que tinham destroçado os antigos

    centros de ensino monásticos, desmoralizado e dividido o

    reino. No Prefácio à sua tradução da Cura Pastoralis (um

    manual para párocos), Alfredo apela a uma renovação

    do ensino através de um acesso mais alargado aos tex

    tos por meio da sua tradução para as línguas vernáculas,

    reclamando ao mesmo tempo para a língua inglesa o esta

    tuto de língua literária por direito próprio. Ao referir-se

    à

    forma como os romanos traduziram textos para seu pró

    prio benefício, como fizeram todas as outras nações cris

    tãs , Alfredo afirma: parece-me preferível, se concorda

    rem, que também traduzamos alguns dos livros que todos

    os homens devem ler para a língua que todos entende

    mos .I4 Ao traduzir a Cura Pastoralis Alfredo alega ter

    traduzido o texto hwilum word be worde hwilum andgiet

    of

    andgiete (umas vezes palavra por palavra, outras vezes

    sentido por sentido), o que se revela um facto deveras in

    teressante, pois pressupõe que a função do produto final é

    que determinava o processo de tradução e não qualquer

    norma de procedimento pré-estabelecida. A tradução era

    entendida como tendo um papel moral e didáctico a de

    sempenhar, com uma clara componente política, muito

    distante do papel estritamente instrumental no estudo da

    retórica, que também lhe era cometido na mesma época.

    14

    ALFREDO - Prefácio a

    Pastoral Care

    de Gregório.

    ln

    BROOK, G.

    L

    -

      nIntroduction to Old English.

    Manchester: Manchester University Press, 1955.

    o conceito de tradução como exercício de escrita e

    como meio de desenvolver o estilo oratório era uma im

    portante componente do sistema educativo medieval ba

    seado no estudo das Sete Artes Liberais. Este sistema, na

    forma em que foi legado por teorizadores romanos como

    Quintiliano (século

    I d.

    C.), cuja Institutio Ora to ria foi um

    texto seminal, estabelecia duas áreas de estudo: o Trivium

    (gramática, retórica e dialéctica) e o

    Quadrivium

    (aritmé

    tica, geometria, música e astronomia), formando o Tri-

    vium a base do conhecimento filosófico.I

    Quintiliano acentuou a utilidade da paráfrase como

    meio de ajudar o estudante quer na análise das estruturas

    quer na aplicação prática de formas de ornamentação e de

    síntese. A paráfrase é então, receitada como parte de um

    conjunto de exercícios em dois estádios distintos: a pará

    frase inicial directamente colada ao texto, e um segundo

    estádio, mais complexo, em que o escritor acrescenta algo

    do seu estilo pessoal. Quintiliano defende estes exercícios

    a par da tradução e, na verdade, as duas actividades não

    são claramente diferenciadas uma vez que ambas têm o

    mesmo fim em vista: o desenvolvimento da ciência ora

    tória. Quintiliano recomenda a tradução do Orego para o

    Latim, como variante da paráfrase dos textos originais

    latinos para ampliar e desenvolver o poder imaginativo.

    dp estudante.

    15

    Cf. JACOBSEN, E.

    Op. ito

    para mais detalhes sobre o papel das tra

    duções no sistema medieval de treino

    em

    retórica. Ver t ~ é CURTIUS, E.

    European Literature and the Latin Middle Ages.

    London: Routledge Kegan

    Paul, 1953.

    http:///reader/full/filos%E3%A6%A9co.I5http:///reader/full/filos%E3%A6%A9co.I5http:///reader/full/filos%E3%A6%A9co.I5

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    11/28

    95

    4

    A defesa da tradução como exercício estilístico, por

    parte de Quintiliano, pressupunha obviamente a tradução

    de originais gregos para Latim e o Latim foi a língua do

    sistema educativo em toda a Europa durante séculos. Po-

    rém, o aparecimento de literaturas nas línguas vernáculas

    a partir do século X conduziu a nova mudança no papel

    da

    tradução. Alfredo tinha exaltado a sua importância como

    meio de fomentar a comunicação e, na sua perspectiva, ela

    envolvia a criação de

    um

    texto vernáculo. Como

    em

    toda

    a Europa começaram a aparecer literaturas com pouca ou

    nenhuma tradição escrita própria que pudesse alimentá

    -las, as obras produzidas noutros contextos culturais eram

    traduzidas, adaptadas e absorvidas

    em

    grande escala. A

    tradição adquiriu uma dimensão adicional quando os es

    critores puseram o seu talento ao serviço da tradução

    como meio

    de

    elevar o prestígio

    da

    sua própria língua ver

    nácula. Assim, o modelo romano de enriquecimento pela

    tradução tomou uma nova forma.

    o seu útil artigo sobre divulgação e tradução, Gian

    franco Folena sugere que a tradução medieval pode ser

    descrita como

    vertical

    referindo-se à tradução para ver

    náculo a partir

    de

    uma língua fonte de especial prestígio e

    valor (por exemplo, o Latim) ou horizontal aquela em que

    ambas as línguas, a de partida e a de chegada, têm

    um

    va

    lor similar (por exemplo, do Provençal para o Italiano,

    do

    Normando-Francês para o Inglês).16 Porém, esta distinção

    16

    FOLENA, Gianfranco - 'Volgarizzare' e 'tradurre': idea e tenninologia

    della traduzione deI Medio Evo italiano e romanzo aIl'umanesimo europeu . ln

    a Traduzione Saggi e Studi.

    Trieste: Edizioni LINT, 1973,

    p.

    57-120.

    'r

    de Folena não é nova: Roger Bacon (c. 1214-92) estava

    bem ciente das diferenças entre traduzir para o Latim a

    partir de línguas antigas e traduzir textos contemporâneos

    para vernáculo; o mesmo acontecia com Dante (1265

    -1321), e ambos se referem tradução quando falam dos

    critérios morais e estéticos das obras de arte e das obras de

    conhecimento geral. Bacon, por exemplo, debate o pro

    blema da

    perda em

    tradução e

    da

    sua contrapartida, a cu

    nhagem, tal como Horácio havia feito séculos antes. Por

    seu lado, Dante centra-se mais na importância

    da acessi-

    bilidade

    que a tradução proporciona. Ambos partilham, no

    entanto, a ideia de que a tradução é muito mais do que um

    exercício de estilística comparada.

    A distinção entre tradução

    horizontal

    e tradução

    verti-

    cal

    é útil, porque mostra como a tradução podia ser asso

    ciada a dois sistemas literários coexistentes, mas distintos.

    São no entanto muitas, e diferentes, as linhas de desenvol

    vimento existentes na tradução literária até ao princípio do

    século XV e a distinção apresentada por Folena apenas

    faz luz sobre uma pequena área. E enquanto a abordagem

    vertical se

    divide

    em

    dois tipos diferentes - a glosa inter

    linear ou tradução literal, oposta ao método ciceroniano da

    tradução do sentido, elaborado no conceito de paráfrase de

    Quintiliano - a abordagem horizontal envolve questões

    complexas como a

    da imitatio

    e a do empréstimo. O ele

    vado estatuto da imita io no cânone medieval significava

    que a originalidade não era muito premiada e o talento de

    um

    autor consistia

    em

    tratar

    de

    maneira diferente ideias e

    temas estabelecidos. Raramente é clara e discernível a li

    http:///reader/full/Ingl%EA%B3%A9.16http:///reader/full/Ingl%EA%B3%A9.16

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    12/28

    96

    97

    nha de fronteira entre a situação em que um autor se con

    siderava tradutor de outro texto e aquela

    em

    que um autor

    fazia uso de material traduzido, plagiado de outros textos.

    No conjunto da obra de um único escritor, como Chaucer

    (c. 1340-1400) por exemplo, encontra-se

    um

    leque de tex

    tos que inclui traduções reconhecidas, adaptações livres,

    empréstimos propositados, reescritas e correspondências

    muito próximas. E, muito embora alguns teorizadores,

    como Dante e João de Trevisa (1326-1412), levantem a

    questão da ex ctidão

    em

    tradução, essa noção depende da

    capacidade do tradutor para ler e compreender o original e

    não assenta na subordinação do tradutor a esse texto na

    língua fonte. A tradução, seja a vertical seja a horizontal,

    é vista como uma técnica, inextricavelmente ligada a mo

    dos de leitura e interpretação do texto original, que é em

    si mesmo uma fonte de material que o escritor pode usar

    da forma que melhor entender.

    OS PRIMEIROS TEORIZ DORES

    A seguir à invenção da imprensa no século XV o pa

    pel da tradução sofreu significativas mudanças, o que não

    deixou de ficar a dever-se ao grande aumento do volume

    das traduções produzidas. Ao mesmo tempo, foram feitas

    também algumas tentativas de formulação de uma teoria

    da tradução. A função da tradução mudou, tal como mu

    dou a função do próprio ensino. À medida que as grandes

    viagens dos descobrimentos rasgavam os horizontes para

    além da Europa, iam sendo construídos relógios e instru

    mentos cada vez mais sofisticados para medir o tempo e o

    espaço, os quais, juntamente com a teoria copemiciana do

    universo, afectaram os conceitos de cultura e sociedade e

    alteraram radicalmente as perspectivas.

    Um

    dos primeiros escritores a formular uma teoria da

    tradução foi o humanista francês Etienne Dolet (1509

    -1546), julgado e executado por heresia por traduzir mal

    um dos Diálogos de Platão, num sentido que implicava

    descrença na imortalidade. Em 1540, Dolet publicou

    um

    pequeno esboço de princípios de tradução intitulado

    La

    m niere de bien tr duire d une l ngue en utre

    [

    ma

    neira de bem traduzir de uma língua para outra] e estabe

    leceu cinco princípios para o tradutor:

    1) O tradutor deve entender completamente o sentido

    e o significado expressos pelo autor original, em

    bora tenha toda a liberdade para clarificar os aspec

    tos mais obscuros.

    2) O tradutor deve ter um conhecimento perfeito tanto

    da língua

    de

    partida como

    da

    língua de chegada.

    3) O tradutor deve evitar as traduções

    à

    letra.

    4) O tradutor deve usar uma linguagem de utilização

    corrente.

    5) O tradutor deve escolher e ordenar as palavras de

    forma apropriada à produção do tom correcto.

    Os princípios assim preconizados e hierarquizados por

    Dolet acentuam a importância da compreensão do texto de

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    13/28

    99

    8

    partida como requisito fundamental. O tradutor é muito

    mais do que

    um

    linguista competente e a tradução envolve

    uma

    aproximação ao texto de partida

    com

    conhecimento

    de causa e

    com

    sensibilidade, bem como a percepção do

    lugar que a tradução pretende ocupar no sistema da língua

    de chegada.

    George Chapman (1559-1634), o grande tradutor de

    Homero, corroborou as ideias de Dolet. Na dedicatória da

    sua obra

    Seven Books

    (1598), Chapman declara que:

    l7

    o trabalho.

    de um

    tradutO.r

    talentO.sO.

    e digno. cO.nsiste em O.bservar

    as frases, figuras e fO.rmas do. discurso. prO.pO.stas pelo. autO.r O

    seu

    verdadeirQsentidO. e elevação., e adO.rná-Ias CO.m figuras e fO.rmas

    de

    retórica, ajustadas

    ao.

    O.riginal,

    na

    língua

    para

    a qual traduz: se

    ria para mim mO.tivO.

    de

    CO.ntentamento ter atingido. tai s qualidades

    nas minhas

    O.bras.

    Chapman elabora

    um

    pouco mais a sua teoria na

    Epístola

    ao Leitor

    da sua tradução de

    A Ilíada. Na

    Epístola, Chap

    man afirma que um tradutor deve:

    1) Evitar traduções à letra.

    2) Tentar atingir o espír ito do original.

    3) Evitar perdas excessivas, apoiando-se numa sólida

    investigação de outras versões e glosas.

    A doutrina platónica sobre a inspiração

    divina da

    poesia também se repercutiu claramente no tradutor, pois

    17 SHEPHERD, R. Heme (ed.) - Chapman s Homer. London: Chatto

    Windus. 1875.

    que se julgava possível que o espírito ou o

    tom

    do ori

    ginal fosse recriado noutro contexto cultural. O tradutor

    procura, então, operar uma

    transmigração do texto ori

    ginal, que ele aborda ao duplo nível técnico e metafísico,

    equiparando-se ao autor,

    com

    deveres e responsabilida

    des

    para com

    o autor original e para

    com

    o leitor.

    o

    REN SCIMENTO

    Ao falar de Dolet no seu estudo sobre os grandes tra

    dutores franceses, Edmond Cary acentua a importância da

    tradução no século XVI:

    A batalha

    i

    tradução. manteve-se acesa durante toda a épO.ca

    de

    DO.let. Afinal, a RefO.rma fO.i sO.bretudO. uma disputa entre tradutO.

    res. A tradução. tO.mO.u-se um assunto

    de

    Estado. e um assunto

    de

    Religião.. A

    SO.rbO.nne

    e O rei estavam igualmente preO.cupadO.s

    CO.m

    ela. PO.etas e

    prO.sadO.res

    debateram a questão.; a O.bra

    Défense

    et fUustration e la Langue Française,

    de

    JO.achim du Bellay,

    O.r

    ganiza-se

    à vO.lta

    de prO.blemas relaciO.nados

    CO.m

    a traduçãO..

    ls

    Num

    ambiénte assim,

    em

    que a vida de

    um

    tradutor de

    pendia do modo como traduzisse uma frase, não é de ad

    mirar que as fronteiras do conflito fossem traçadas

    com

    muita veemência. O tom agressivamente afirmativo da

    Epístola

    de Chapman ou do panfleto de Dolet está pre

    18 CARY, E. - Les Grands Traducteurs Français. Geneve: Librairie de

    l Université, 1963, p. 7-8. Este livro contém um facsímile do panfleto 1540 ori

    ginal de Dolet, a maniere de bien tradu r d une langue en autre.

    http:///reader/full/talentO.sOhttp:///reader/full/talentO.sO

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    14/28

    100

    101

    sente na obra e nas afirmações de grande número de tra

    dutores da época. Uma importante característica do pe

    ríodo (que se reflecte também no número de traduções da

    Bíblia que actualizavam a linguagem das versões anterio

    res sem necessariamente fazerem grandes mudanças na

    interpretação) é a afirmação do presente através do uso da

    linguagem e do estilo contemporâneos. O estudo de Ma

    thiesson sobre os tradutores isabelinos apresenta uma sé

    rie de exemplos que atestam o modo como se manifesta a

    afirmação do indivíduo no seu tempo. Nota, por exemplo,

    a frequente substituição do discurso indirecto pelo dis

    curso directo na tradução de Plutarco realizada por North

    (1579),

    um

    artifício que confere imediatismo e vitalidade ao

    texto, e cita exemplos em que North usa uma vigorosa lin

    guagem contemporânea. Assim, na versão de N orth, diz-se

    que Pompeu lançou realmente todas as achas na fogueira

    para conseguir ser escolhido como ditador V, p. 30-1) e

    que António decidiu que o corpo de César deveria ser

    honradamente enterrado e não à socapa (VI, p. 200).

    Na poesia, os ajustamentos feitos ao texto original por

    tão eminentes tradutores como Wyatt (1503-42) e Surrey

    (c. 1517-47) levaram alguns críticos a descreverem por

    vezes as suas traduções como 'adaptações', mas essa dis

    tinção pode induzir em erro. Uma análise das traduções de

    Petrarca realizadas por Wyatt, por exemplo, revela uma fi

    delidade não às palavras em si mesmas nem às estruturas

    frásicas, mas a uma ideia do significado do poema na sua

    relação com os seus leitores. Por outras palavras, o poema

    é entendido como um artefacto de um sistema cultural par

    ticular, e a única tradução fiel possível consiste em dar-lhe

    uma função similar no sistema cultural de chegada. Por

    exemplo, Wyatt pega no célebre soneto de Petrarca sobre

    os acontecimentos de 1348 relativos à morte do cardeal

    Giovanni Colonna e de Laura que começa:

    Rotta

    e

    l'aIta coIonna e I verde Iauro

    Che facean ombra aI mio stanco pensero; (CCLXIX)

    (Quebrou-se a alta coluna (Collona) e o verde louro (Laura)

    Que cobriam com a sua sombra o meu cansado pensamento.)

    e transforma-o em :

    The pillar perished is whearto I Ient;

    (CCXXXVI)

    The strongest staye

    of

    myne unquiet mynde:

    (Pereceu o pilar sobre o qual eu

    Apoiava o meu inquieto espírito:)

    óbvio que Wyatt usa aqui o processo de tradução para

    fazer algo mais· do que traduzir à letra os versos de Pe

    trarca ou recapturar a qualidade elegíaca do original. A

    tradução de Wyatt enfatiza o

    Eu

    e também a força e o

    apoio do que se perdeu. Tenha

    ou

    não validade a teoria

    que defende ter sido este soneto escrito em comemora

    ção da queda de Cromwell,

    em

    1540, é inequívoco que

    o tradutor optou por uma voz que garante impacto ime

    diato nos leitores contemporâneos, por ser

    uma

    voz do

    seu tempo.

    A actualização dos textos através da tradução, por meio

    de acréscimos, omissões ou alterações propositadas, é ela

    ramentevisível

    na

    obra de Philemon Holland (1552-1637),··

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    15/28

    102

    103

    r

    o 'tradutor-mor'. Ao traduzir Tito Lívio, Holland declarou

    que o seu objectivo era garantir que Tito Lívio "oferecesse

    o seu pensamento

    em

    Inglês, se não com o mesmo grau

    de eloquência, pelo menos tão sinceramente quanto

    em

    Latim" e alegou não ter usado "nenhuma frase afectada,

    mas ... um estilo parco e popular". Foi a procura desse es

    tilo que o levou a introduzir alterações tais como utilizar a

    terminologia do seu tempo para certas palavras-chave ro

    manas. Assim, por exemplo, patres

    t

    plebs devêm Lords

    ou Nobles and Commons; comitium é traduzido por com-

    mon hall High coun Parliament; praetor

    toma-se

    Lord

    Chiefe Justice ou Lord Govemour of the City. Outras ve

    zes, tentando clarificar passagens e referências obscuras,

    insere frases explicativas e, acima de tudo, denuncia o seu

    convicto nacionalismo. No Prefácio ao Leitor da sua tra

    dução de Plínio, Holland ataca aqueles críticos que pro

    testam contra a vulgarização dos clássicos latinos e co

    menta que eles "não honram a pátria e a língua materna

    como deviam", caso contrário ansiariam por "triunfar so

    bre os Romanos subjugando a sua literatura sob a ponta da

    pena inglesa" como vingança pela conquista romana da

    Bretanha consumada no passado pela espada.

    Na Europa renascentista a tradução desempenhou um

    papel de importância central. Como afmna George Steiner:

    Num tempo de inovação explosiva, e entre uma ameaça real de ex

    cessos e desordem, a tradução absorveu, formou e orientou os ele

    mentos básicos essenciais. Foi, no verdadeiro sentido

    do

    termo, a

    matéria-prima da imaginação. Além disso, estabeleceu urna lógica

    de relação entre passado e presente, e entre diferentes línguas e

    tradições em vias de separação sob a pressão do nacionalismo e do

    conflito religioso. 9

    A tradução não foi, de modo nenhum, uma actividade

    secundária; foi antes uma actividade primária, exercendo

    um poder modelador da vida intelectual da época e, por

    vezes, a figura do tradutor parece quase mais a do activista

    revolucionário do que a do servo de um autor ou texto

    original.

    o SÉ ULO XVII

    Em

    meados do século XVII os efeitos da Contra-Re

    forma, o conflito entre a monarquia absoluta e o emer

    gente sistema parlamentar, e o alargamento do fosso entre

    o tradicional Humanismo Cristão e a ciência, todos con

    duziram a modificações radicais na teoria da literatura e,

    logo, no papel da tradução. As tentativas de Descartes

    (1596-1650) para formular um método de raciocínio indu

    tivo reflectiram-se na preocupação dos críticos literários

    para estabelecer regras de produção estética. Na tentativa

    de encontrar modelos, os escritores viraram-se para os

    mestres da antiguidade, vendo na imitação

    um meio de

    instrução. Em França, a tradução dos clássicos aumentou

    consideravelmente entre 1625 e 1660, a grande época do

    classicismo francês e do florescimento do teatro francês

    baseado nas unidades de Aristóteles. Por sua vez, os escri

    19

    STEINER, George -

    Op

    cit. p. 247.

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    16/28

    10504

    ,-

    tores e teorizadores franceses foram entusiasticamente tra

    duzidos para Inglês.

    A ênfase nas regras e nos modelos na Inglaterra deste

    período não significava, porém, que a arte fosse enten

    dida como mera capacidade de imitação. Arte significava

    ordem, ao estilo elegante e harmonioso da Natureza, o ta

    lento inato que transcendia qualquer definição e, contudo,

    definia a forma acabada. Sir John Denham (1615-69),

    cuja teoria d tradução - expressa no seu poema To Sir

    Richard Fanshawe upon his Translation of Pastor Fido

    (1648) e no Prefácio à sua tradução de

    The Destruction

    of roy (1656) (ver infra - contempla quer o aspecto for

    mal (Arte) quer o espírito (Natureza) d obra, desaconse

    lha o tradutor

    de

    poesia a recorrer ao método da tradução

    literal:

    Pois não é sua tarefa traduzir Língua para Língua, mas Poesia

    para Poesia; e a Poesia

    é

    de um espírito tão subtil que, ao verter

    -se de uma Língua para outra, tudo se evaporará; e se um novo es

    pírito .não entrar na transfusão, não restará mais do que um Caput

    mortuum.

    20 

    Denham defende um conceito de tradução que vê o

    tradutor e o autor original como iguais, operando em con

    textos sociais e temporais claramente diferenciados. Para

    Denham, o tradutor tem o dever de extrair do texto de

    partida aquilo que considera ser o núcleo essencial d obra

    e reproduzir ou recriar a obra na língua de chegada.

    20

    As citações de Sir John Denham, Abraham Cowley e John Dryden são

    retiradas

    de

    textos reimpressos na obra citada de

    T R

    Steiner.

    . Abraham Cowley (1618-67) vai mais longe e no seu

    'Prefácio' às

    Odes Pindáricas

    (1656) ousa afirm:lr que ti

    rou, deixou de fora e acrescentou o que quis nas suas tra

    duções, com o intuito de dar a conhecer ao leitor não tanto

    o que o autor original disse precisamente, mas antes o seu

    modo e forma

    de

    dizer . Cowley defende o seu modo de

    traduzir, repudiando os críticos que (como Dryden) o clas

    sificam como 'imi tação'; e

    T

    R Steiner afirma que o pre

    fácio de Cowley foi tomado como o manifesto dos tradu

    tores libertinos dos finais do século XVII .

    No seu importante Prefácio às Cartas de Ovídio (1680),

    John Dryden (1631-1700) tentou resolver os problemas da

    tradução, formulando três tipos básicos:

    1

    Metáfrase,

    que seria verter um autor palavra por pa

    lavra, ou verso por verso, de uma língua para outra;

    2 Paráfrase, ou tradução

    em

    sentido lato; o conceito

    ciceroniano de tradução do sentido;

    3 Imitação,

    em que o tradutor pode abandonar o texto

    original quando entender.

    Destes três tipos, Dryden elege o segundo como o

    mais equilibrado, desde que o tradutor respeite certos cri

    térios: para traduzir poesia, o tradutor tem de ser poeta,

    deve dominar as duas línguas e entender quer as caracte

    rísticas quer o 'espírito' do autor original, além

    de

    se ajus

    tar aos cânones estéticos da sua época. Dryden recorre à

    metáfora do tradutor-pintor de retratos, que tantas vezes

    haveria de reaparecer no século XVIII, dizendo que o pin

    http:///reader/full/mortuum.20http:///reader/full/mortuum.20http:///reader/full/mortuum.20

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    17/28

    107

    06

    tor tem o dever de fazer com que o seu retrato se pareça

    com o original.

    Na sua

    Dedication

    o

    the Aeneis

    (1697), Dryden afirma

    ter enveredado pelo caminho que ele próprio traçou e ter

    seguido "entre os dois extremos da paráfrase e da tradução

    literal", mas, seguindo os modelos franceses, actualiza a

    língua do texto original: "Fiz os possíveis para pôr Virgí

    lio a falar um Inglês que o próprio tivesse falado se tivesse

    nascido

    em

    Inglaterra na época presente". Vejamos um

    exemplo de Virgílio vertido por Dryden, os primeiros ver

    sos do discurso de Dido descrevendo os seus sentimentos

    para com Eneias na linguagem decorosa de uma heroína

    contemporânea:

    My

    dearest Anna! What new dreams affright

    My

    labouring soul! What visions

    of

    the night

    Disturb

    y

    guiet, and distract

    y

    breast

    With strange ideas

    of

    our Trojan guest.

    21 

    As ideias de Dryden sobre tradução foram seguidas de

    perto por Alexander Pope (1688-1744), que defende a

    mesma via intermédia, acentuando uma leitura atenta do

    original para detectar as minúcias do estilo e da forma e

    manter aceso o 'fogo' do poema.

    21 DRYDEN, J. The Aeneid IV. London: Oxford University Press, 1961,

    p 212

    SÉCULO XV

    Subjacente ao conceito de tradução defendido por

    Dryden e Pope encontra-se outro elemento que transcende

    a questão do debate entre excesso de fidelidade e liber

    dade excessiva, que é a questão do dever moral do tradu

    tor para com o seu leitor contemporâneo. O impulso para

    clarificar e tomar acessível a essência de um texto condu

    ziu a um elevado número de reformulações de textos anti

    gos para os adequar aos padrões contemporâneos de lin

    guagem e de gosto. Daí a célebre reestruturação dos textos

    de Skakespeare e as traduções/adaptações de Racine. Na

    sua obra

    Life

    o

    Pope

    (1779-80), Johnson (1709-84), ao

    debater a questão dos acréscimos a um texto através da

    tradução, comenta que isso é certamente desejável se o

    texto ganhar em elegância e nada lhe for retirado. Afirma

    ainda que "o objectivo de um escritor é ser lido", alegando

    que Pope escreveu para o seu tempo e para o seu povo.

    O direito do indivíduo a ser o destinatário de uma men

    sagem na sua própria língua e no seu próprio ambiente

    cultural é

    um

    elemento importante do conceito setecen

    tista de tradução e está ligado à mudança do conceito de

    'originalidade' .

    Para exemplificar o modo particular como Pope verteu

    Homero, compare-se a sua tradução do seguinte passo

    um episódio do Livro 22 de A Ilíada

    -

    com a versão de

    Chapman. A Andrómaca de Pope sofre e desespera ao

    passo que a de Chapman surge como uma guerreira por di

    reito próprio. Chapman utiliza verbos directos, o que con

    http:///reader/full/guest.21http:///reader/full/guest.21http:///reader/full/guest.21

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    18/28

    108

    109

    fere à cena qualidade dramática; por outro lado, as estru

    turas latinizantes que Pope utiliza reforçam a agonia da

    expectativa, conduzindo, em crescendo, ao momento

    em

    que o horror se torna visível. E mesmo esse horror é apre

    sentado de modo bastante diferente - em Pope, o 'Heitor

    divinizado' contrasta com a descrição mais longa da de

    gradação do herói que Chapman nos oferece.

    22  

    She spoke; and furious, with distracted Pace,

    Fears in her Heart and Anguish in her Face,

    Files through the Dome, (the maids her steps pursue)

    And mounts the walls, and sends around her view.

    Too soon her Eyes the kilIing Object found,

    The god-like Hector dragg' d along the ground.

    A sudden Darkness shades her swimming Eyes:

    She faints, she falIs; her Breath, her colour flies. (Pope)

    Thus fury-like she went,

    Two women, as she will'd, at hand; and made her quick ascent

    Up to the tower and press

    of

    men, her spirit in uproar. Round

    She cast her greedy eye, and saw her Hector slain, and bound

    T

    Achilles chariot, manlessly dragg' d to the Grecian fleet,

    Black night strook through her, under her trance took away her feet.

    (Chapman)

    o conceito, vigente no século XVIII, do tradutor como

    pintor ou imitador com um dever moral quer para com o

    autor original quer para com o leitor da tradução estava

    bastante generalizado, mas sofreu uma série de alterações

    22 POPE, A. -

    The I liad 01 Homer,

    ed. Maynard Mack. London: Methuen,

    1967 Chapman s Homer,

    op

    cito

    T

    significativas à medida que se alteraram também os mo

    dos de codificar e descrever os processos da criação lite

    rária. Goethe (1749-1832) defendia que toda e qualquer li

    teratura deve passar por três fases de tradução, embora,

    sendo essas fases recorrentes, possa acontecer que ocor

    ram todas ao mesmo tempo num determinado sistema lin

    guístico. A primeira época familiariza-nos com os países

    estrangeiros nos nossos próprios termos . Goethe cita a

    Bíblia alemã de Lutero como exemplo desta tendência. O

    segundo modo é o da apropriação através da substituição

    e da reprodução, em que o tradutor absorve o sentido da

    obra estrangeira, mas o reproduz nos seus próprios termos

    e, neste caso, Goethe cita Wieland e a tradição francesa

    (uma tradição muito depreciada pelos teorizadores ale

    mães). O terceiro modo, que considera o mais elevado, é

    o que procura uma perfeita identidade entre o texto na lín

    gua de partida e o texto na língua de chegada: atingir esse

    objectivo implica a criação de um novo 'modo', fundindo

    aquilo que torna único o original com uma forma e estru

    tura novas. Goethe cita a obra de Voss que traduziu Ho

    mero, como exemplo do tradutor que atingiu este tão

    apreciado terceiro nível. Goethe postula um novo conceito

    de 'originalidade' em tradução a par da existência de es

    truturas profundas universais que o tradutor deve empe

    nhar-se em descobrir. O problema desta abordagem é que

    ela se aproxima perigosamente de uma teoria da intradu

    zibilidade.

    Mais perto do fim do século XVIII, em 1791, Alexan

    der Fraser Tytler publicou um volume intitulado The Prin-

    cipies o Translation, o primeiro estudo sistemático, em

    http:///reader/full/oferece.22http:///reader/full/oferece.22http:///reader/full/oferece.22

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    19/28

    111

    10

    língua inglesa, sobre os processos de tradução.

    23 

    Tytler es

    tabeleceu três princípios básicos:

    1) A tradução deve fazer uma transcrição completa

    da

    ideia da obra original.

    2) O estilo e o modo da escrita devem ser do mesmo

    carácter dos do original.

    3) A tradução deve ter toda a naturalidade

    da

    compo

    sição original.

    Tytler reage contra a influência de Dryden, alegando

    que o conceito de 'paráfrase' levou a traduções exagera

    damente livres, embora reconheça que parte do dever do

    tradutor consiste em clarificar as ambiguidades do origi

    nal mesmo quando isso acarreta omissão ou adição. Tytler

    recorre à comparação setecentista do tradutor/pintor, mas

    com uma diferença: o tradutor não pode usar as mesmas

    cores do original, devendo, não obstante, imprimir ao seu

    retrato a mesma força e o mesmo efeito . O tradutor deve

    esforçar-se para adoptar a própria alma do seu autor, que

    deve falar através dos seus órgãos .

    Então, de Dryden a Tytler, a teoria da tradução preo

    cupou-se com o problema de recriar o espírito, a alma ou

    a natureza essenciais da obra de arte. Porém, a dicotomia,

    antes assumida sem dificuldade, entre a estrutura formal e

    23 A obra de Tytler surgiu logo depois da u b l i ~ a ç ã o

    em

    1789, de The Four

    Gospels de George CampbelI,

    da

    qual o volume I contém um estudo sobre a

    teoria e a história das traduções das Escrituras. A obra de Tytler aparece com um

    útil artigo introdutório da autoria

    de

    J.

    F.

    Huntsman no vol. 13 de Amsterdam

    Classics in Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, B V., 1978.

    o espírito inerente torna-se mais difícil de deteiminar à

    medida que gradualmente os escritores se virnram para o

    debate acerca das teorias

    da

    Imaginação, longe da anterior

    ênfase no papel moral do artista e daquilo que Coleridge

    descreveu como a cópia dolorosa cujo resultado seriam

    apenas máscaras, não formas respirando vida .24 

    o

    ROM NTISMO

    Na sua importante obra de referência sobre o Roman

    tismo europeu, Le romantisme dans la littérature euro-

    péenne (1948), Paul van Tieghem descreve o movimento

    como

    uma

    crise da consciência europeia . 5 Embora a

    crise se anuncie muito antes, no século XVIII, o alcance

    da reacção contra o racionalismo e a harmonia formal (os

    ideais neo-clássicos) começou a desenhar-se com nitidez

    na última década desse século

    em

    conjunção com as ondas

    de choque, cada vez mais amplas, que se seguiram à

    Revolução Francesa de 1789. A rejeição do racionalismo

    reforçou a função vital da imaginação e a mundividência

    individualista do poeta como um ideal a um tempo met;a-,

    físico e revolucionário. A afirmação do individualismo

    trouxe a noção de liberdade criadora tornando o poeta

    num criador quase místico, cuja função era fazer a poesia

    24 COLERIDGE, S. T. -

      On

    Poetry and Art . Biographia Literaria

    n

    Oxford: Clarendon Press, 1907.

    25 TIEGHEM, Paul van -   eRomantisme dans la littérature européenne.

    Paris: Albin Michel, 1948.

    http:///reader/full/tradu%E7%A3%AF.23http:///reader/full/tradu%E7%A3%AF.23http:///reader/full/vida%22.24http:///reader/full/tradu%E7%A3%AF.23http:///reader/full/vida%22.24

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    20/28

    112

    113

    que recriaria o universo de novo, como defendia Shelley

    em The Defense Poesy 1820).

    As distinções de Goethe entre tipos de tradução e es

    tádios numa hierarquia de avaliação estética apontam para

    uma mudança de atitude relativamente à tradução, resul

    tante de uma reavaliação do papel da poesia e da criativi

    dade. Em Inglaterra, Coleridge (1772-1834) esboçava em

    Biographia Literaria (1817) a sua teoria da distinção en

    tre Fantasia e Imaginação, afirmando que a Imaginação é

    a força orgânica e criativa suprema, comparada com o me

    canismo sem vida da Fantasia.· Esta teoria apresenta afini

    dades com a teoria

    da

    oposição entre a forma mecânica

    e a forma orgânica, concebida pelo teorizador e tradutor

    alemão August Wilhelm Schlegel (1767-1845) na sua

    obra

    Vorlesungen uber dramatische Kunst und Literatur

    (1809), traduzida para Inglês

    em

    1813. Quer a teoria in

    glesa quer a alemã levantam a questão de como definir a

    tradução: actividade mecânica ou actividade criadora?

    No

    debate romântico sobre a natureza da tradução é visível a

    atitude ambígua de um grande número de escritores e tra

    dutores. A. W Schlegel defendia que todos os actos de

    fala e de escrita são actos· de tradução, porque é da natu

    reza da comunicação descodificar e interpretar as mensa

    gens recebidas, e sublinhava ainda que a forma do origi

    nal deveria manter-se (por exemplo, ele próprio manteve

    nas suas traduções a

    terza rima

    de Dante). Entretanto,

    Friedrich Schlegel (1772-1829) concebia a tradução como

    uma categoria do pensamento e não como uma actividade

    ligada apenas à língua e à literatura.

    o ideal de um grandioso espírito modelador que trans

    cende o mundo contingente e recria o universo conduziu a

    uma reavaliação do papel do poeta ao longo dos tempos e

    à premência de descobrir grandes indivlduos do passado

    que tivessem partilhado a mesma noção de criatividade.

    A ideia de que, em todas as épocas, os escritores se teriam

    envolvido no processo de repetir o que Blake designou por

    o

    Corpo Divino

    em

    Cada Homem resultou num vasto

    número de traduções, tais como as traduções de Shake

    speare (1797-1833) de Schlegel e Tieck, as versões de

    Schlegel e de Cary da

    Divina Commedia

    (1805-14) e a

    vasta corrente multidireccional de traduções de obras crí

    ticas e literárias contemporâneas

    em

    todas as línguas eu

    ropeias. Na verdade, nesta época foram traduzidos tantos

    textos com um efeito seminal na língua de chegada (como

    aconteceu com os autores alemães

    em

    Inglês e vice-versa,

    com Scott e Byron em Francês e Italiano, etc.) que os crí

    ticos têm tido dificuldade em distinguir entre estudos so

    bre a influência e estudos sobre a tradução propriamente

    dita. A ênfase no impacto da tradução na cultura de che

    gada operou de facto uma mudança de interesses, que se

    afastaram dos processos

    da

    tradução. Além disso, no prin

    cípio do século XIX podem determinar-se duas tendências

    em conflito. Uma exalta a tradução como categoria do

    pensamento, sendo o tradutor considerado, por direito, um

    génio criador em contacto com o génio do original e

    nri-

    quecendo a língua e a literatura para as quais traduz. A ou

    tra encara a tradução em termos da função mais mecânica

    de 'tornar conhecido' um texto ou um autor.

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    21/28

      4

    5

    A preeminência da Imaginação oposta à Fantasia con

    duz implicitamente ao pressuposto de que a tradução tem

    de ser inspirada por uma força criadora superior para ser

    mais do que uma actividade do quotidiano destituída do

    espírito modelador original, o que levanta um outro

    pro.,.

    blema: o problema do sentido. Se a poesia for entendida

    como uma entidade distinta da língua, como é que pode

    ser traduzida se não se partir do princípio de que o tradu

    tor é capaz de ler entre as palavras do original e, portanto,

    é capaz de reproduzir o texto-por-detrás-do-texto, aquilo a

    que Mallarmé chamaria mais tarde o texto do silêncio e

    dos espaços?

    No seu estudo sobre Shelley e a tradução, Timothy

    Webb·mostra como a ambiguidade do papel do tradutor se

    reflecte

    n

    própria escrita do poeta. Tendo como fontes as

    obras de Shelley e a do seu biógrafo, Medwin, Webb de

    monstra que Shelley encarava a tradução como uma acti

    vidade menor, como uma forma de preencher os interstí

    cios da inspiração , e afirma que, aparentemente, Shelley

    oscilava entre a tradução de obras admiradas pelas suas

    ideias e a t r ~ u ç ã o de obras admiradas pelas suas virtudes

    literárias. Esta oscilação é significativa, pois, em certo sen

    tido, segue a hierarquia da tradução postulada por Goethe

    e põe a descoberto o problema que a tradução colocou no

    estabelecimento de uma estética romântica. Mais impor

    tante ainda, com a retirada do interesse pelos processos

    formais da tradução, a noção de intraduzibilidade levaria

    a uma ênfase exagerada na precisão técnica e ao conse

    quente pedantismo das traduções dos finais do século XIX.

    o pressuposto de que o sentido se encontra por detrás e

    nos interstícios da língua criou um impasse ao tradutor.

    Eram apenas duas as saídas para esta difícil situação:

    1

    A utilização da tradução literal, concentrando..:se na

    língua imediata da mensagem; ou

    2) A utilização de uma língua artificial derivada da

    língua do texto original, p'or meio da qual as emo

    ções especiais do original pudessem ser transmitidas

    através da sensação de estranheza por ela provocada.

    o PÓS ROMANTISMO

    Friedrich Schleiermacher (1768-1834) propôs a cria

    ção de um sub-sistema linguístico próprio para ser utili

    zado apenas na literatura traduzida; por seu lado, Dante

    Gabriel Rossetti (1828-82) defendeu a subserviência do

    tradutor às founas e à língua do original. As duas propos

    tas representam tentativas de lidar com as dificuldades que

    Shelley tão expressivamente descreve em The Defense o

    Poesy

    quando adverte:

    É tão insensato fundir uma violeta

    no

    cadinho à procura do prin

    cípio formal

    d su

    cor e do seu cheiro como tentar transfundir

    noutra língua as criações de um poeta. A planta tem de brotar de

    novo d semente, ou não dará flor - e este

    é

    o peso d maldição de

    Babel,26

    26

    SHELLEY, Percy Bysshe -

    The Defence o Poesy. ln Complete Works.

    V.

    London: Ernest Benn, 1965, p. 109-43.

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    22/28

    117

    16

    A teoria de Schleiermacher de uma língua própria para

    a tradução foi apoiada por diversos tradutores ingleses do

    século XIX, como

    F. W.

    Newman, Carlyle e William Morris.

    Newman declarou que o tradutor deve manter, sempre que

    possível, todas as peculiaridades do original, "cuidando de

    o deixar o mais estrangeiro possível".

    7

    A função da pecu

    liaridade é explicada por

    G. A.

    Simcox na recensão à tra

    dução· realizada por Morris de The Story of the Volsungs

    nd

    Niblungs (1870) onde declara que

    o

    estranho Inglês

    arcaico da tradução com a dose certa de sabor estrangeiro"

    muito contribuiu para "disfarçar as discrepâncias e as im

    perfeições do original".28 

    William Morris (1834-96) traduziu

    um

    elevado nú

    mero de textos, incluindo as sagas escandinavas, a Odis-

    seia de Homero, a Eneida de Vergílio, os romances fran

    ceses medievais, etc., e granjeou um considerável aplauso

    da crítica. Sobre a sua tradução da Odisseia Oscar Wilde

    escreveu que se tratava de "uma verdadeira obra de arte,

    uma transferência não apenas de l íngua para língua,. mas

    de poesia para poesia". Apontou, porém, que "o novo es

    pírito acrescentado na transfusão" era mais escandinavo

    do que grego e esta opinião ilustra bem as expectativas

    que um leitor do século XIX tinha relativamente a uma

    tradução. As traduções de Morris são deliberada e cons

    27

    NEWMAN,

    F W.

    -

    Homeric Translation in Theory and Practice 1861.

    ln

    Essays by Mathew Arnold.

    London: Oxford University Press, 1914,

    p.

    313-77.

    28 SIMCOX, G. A. - recensão in Academy II, Agosto 1890, p. 278-9. Esta

    citação bem eomo o comentário de Oscar Wilde foram tirados de FAULKNER,

    P.

    (ed.) -

    William Morris. The CriticaI Heritage.

    London: Routledge Kegan

    Paul,1973.

    cientemente arcaicas, pejadas de peculiaridades linguís

    ticas, a ponto de se tomarem difíceis de ler, chegando

    mesmo a ser obscuras. Não se fazem concessões ao leitor,

    de quem se espera que se depare com a obra tal como ela

    é, enfrentando, através da estranheza do texto traduzido, a

    "estrangeireza" da sociedade que originalmente produziu

    o texto. A estranheza· do estilo de Morris pode ver-se no

    seguinte trecho, tirado do Livro VI da Eneida:

    What God, O Palinure, did snatch thee so away

    From us thy friends and drown thee dead amidst the watery way?

    Speak out For Seer

    p o l l o ~

    found no guileful prophet erst,

    By this one answer in my soul a Iying hope hath nursed;

    Who sang

    of

    thee safe from the deep and gaining field and fold

    Of

    fair Ausonia: suchwise he his plíghted word doth

    hold 29

    A

    ÉPOCA

    VITORIANA

    A necessidade de transportar através do tempo e do

    espaço o carácter remoto do original é uma preocupa

    ção recorrente dos tradutores vitorianos. Thomas Carlyle

    (1795-1881), que, nas suas traduções do Alemão, utilizou

    elaboradas estruturas dessa língua, louvou a profusão das

    traduções alemãs, argumentando que os alemães estuda

    vam as outras nações "interpretando o seu espírito, o que

    merece mais frequente imitação", a fim de se poder par

    ticipar de "todo e qualquer valor ou beleza" que outra

    29 MORRIS,

    W - The Aeneid V

    Boston: Robert Bros., 1876, p. 146.

    http:///reader/full/original%22.28http:///reader/full/original%22.28

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    23/28

    119

    8

    nação tenha produzido.

    3

    Do mesmo modo, no Prefácio

    às suas traduções dos Primeiros Poetas Italianos (1861),

    Dante Gabriel Rossetti (1828-82) declarou que Verdadei

    ramente, o único motivo para transferir poesia para outra

    língua deve ser o de dotar outra nação,

    na

    medida do pos

    sível, de mais

    um

    domínio de beleza ,3l observando, no

    entanto, que os originais eram frequentemente obscuros e

    imperfeitos.

    O que ressalta deste conceito de tradução partilhado

    por Schleiermacher, Carlyle e os Pré-rafaelitas é, portanto,

    um interessante paradoxo. Por

    um

    lado, há

    um

    imenso res

    peito pelo original, tocando quase

    as

    raias

    da

    veneração,

    mas esse respeito baseia-se na garantia de qualidade de

    cada escritor. Por outras palavras, o tradutor convida o lei

    tor intelectual, culto, a partilhar o que ele julga ser uma

    experiência enriquecedora, seja em termos morais ou es

    téticos. Além disso, o texto original é entendido como pro

    priedade, como

    um

    objecto dotado de beleza a ser adicio

    nado a uma colecção, sem nenhuma concessão ao gosto

    ou às expectativas da vida da época. Por outro lado, ao

    produzirem conscientemente traduções arcaicas destina

    das a serem lidas por uma minoria, os tradutores rejeitam

    implicitamente o ideal

    da

    literacia universal. O leitor inte

    lectual representava uma minoria muito pequena do pú

    blico leitor em crescente expansão ao longo desse século

    3

    CARLYLE, Thomas -

    The State German Literature.

    ln

    Criticai and

    Miscellaneous Essays.

    London: Chapman Hall, 1905, Vol I, p. 55.

    31

    ROSSETTI, Dante Gabriel - Prefácio às suas traduções dos Primeiros

    Poetas Italianos, in

    Poems and Translations 1850-1870.

    London: Oxford Uni

    versity Press, 1968, p 175-9.

    e, portanto, estavam lançadas as fundações para uma no

    ção de tradução enquanto interesse de uma minoria.

    Na

    sua primeira lição

    On Translating Homer

    Mathew

    Arnold (1822-68) aconselha o leitor comum a confiar nos

    intelectuais, pois só eles podem ajuizar se uma tradução

    produz aproximadamente o efeito do original, e oferece

    aos futuros tradutores os seguintes conselhos:

    Que o tradutor não coilfie, então, na sua ideia do qu e os antigos

    gregos teriam

    pensa

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    24/28

    121

    20

    cultura e de educação incorporada nesta atitude contri

    buiu, ironicamente, para a desvalorização da tradução.

    Pois se a tradução era entendida como um instrumento,

    como um meio de levar o leitor do texto traduzido

    aotexto

    na língua de partida,

    no original

    então, a excelência do

    estilo e o próprio talento do tradutor para a escrita eram

    certamente de somenos importância. Henry Wadsworth

    Longfellow (1807-81) acrescentou à questão do papel do

    tradutor uma outra dimensão, que veio restringir a função

    do tradutor ainda mais do que o havia feito a proposta de

    Arnold. A propósito da sua tradução da Divina Comedia

    de Dante, e justificando a sua decisão de a traduzir em

    verso branco, Longfellow declarou:

    o único mérito do meu livro é que ele diz exactamente o que

    Dante diz e não aquilo que o tradutor imagina que Dante teria dito

    se tivesse sido inglês. Por outras palavras, imprimindo ritmo

    à

    tra

    dução, esforcei-me

    por

    tomá-la tão literal quanto uma tradução de

    prosa

      Na

    tradução de Dante é preciso renunciar a algo. Poderá

    ser à bela rima que floresce

    em

    cada verso como a madressilva que

    adorna a sebe? Tem de ser,

    com

    vista à preservação de algo mais

    precioso do que a rima, nomeadamente, a fidelidade, a verdade

    a vida da sebe propriamente dita A tarefa do tradutor é transfe

    rir o que o autor diz, não explicar o que ele quer dizer; essa é a ta

    refa do comentador. O problema do tradutor é o que o autor diz e

    o modo como o diz.

    33

    .

    A extraordinária concepção de tradução defendida por

    Longfellow leva ao extremo a posição literalista. Para ele,

    33

    LONGFELLOW, Henry Wadsworth. pud William 1. De Sua - Dante

    imo English.

    ChapeI Hill: University

    ofNorth

    Carolina Press, 1964, p. 65.

    a rima é um mero ornamento, a borda floral da sebe, e é

    distinta da vida ou da verdade do poema. O tradutor é re

    legado para a posição de técnico, nem poeta nem comen

    tador, com uma tarefa claramente definida, mas severa

    mente limitada.

    Em contraposição perfeita com esta visão de Longfel

    low, Edward Fitzgerald (1809-63), mais conhecido pela

    sua versão de

    The Rubaiyat ofOinar Khayyam

    (1858), de

    clarou que um texto tem de viver a todo o custo com uma

    transfusão da nossa pior Seiva se não fopnos capazes de

    reter a melhor do Original . Foi Fitzgerald o autor da cé

    lebre afirmação de que é melhor ter um pardal vivo do que

    uma águia embalsamada. Por outras palavras, ao invés de

    tentar levar o leitor do texto de chegada ao original

    na

    lín

    gua de partida, a obra de Fitzgerald procura trazer uma

    versão do texto original para a cultura de chegada como

    uma entidade viva .embora a sua opinião algo extrema so

    bre a menoridade do texto original, citada na Introdução

    (ver

    supra

    p 23), seja indicadora de uma atitude displi

    cente que demonstra uma outra forma de elitismo. A linha

    individualista romântica conduziu,

    em

    tradutores como

    Fitzgerald, àquilo que Eugene Nida descreve como espí

    rito exclusivista , onde o tradutor aparece como um mer

    cador talentoso ofereceIldo mercadorias exóticas a uns

    quantos iluminados.

    As principais correntes sobre a tipologia das traduções

    no extenso período que vai do capitalismo industrial e da

    expansão colonial à Guerra Mundial podem classificar

    -se, em termos gerais,

    da

    seguinte maneira:

  • 8/18/2019 2. Bassnett - Historia Da Teoria Da Traducao

    25/28

    122

    123

    1)

    A tradução como actividade académica, em que a

    preeminência do texto de partida é pressuposta de

    facto sobre qualquer versão na língua de chegada.

    2) A tradução como modo de motivar o leitor inteli

    gente a voltar ao texto original.

    r

    3) A tradução como meio de ajudar o leitor da língua

    de chegada a tomar-se naquilo que Schleiermacher

    denomina o melhor leitor do original, através de

    uma deliberada e engenhosa estrangeireza do texto

    traduzido.

    4 A tradução como meio através do qual o tradutor,

    que se vê a si próprio como Aladino na caverna en

    cantada (imagem de Rossetti), oferece ao leitor

    da

    língua de chegada a sua opção pragmática.

    5) A tradução como meio pelo qual o tradutor procura

    elevar o estatuto do texto original pois que lhe é

    atribuído um estatuto cultural inferior.

    Destas cinco categorias, depreende-se que os tipos (1)

    e (2) tenderiam a produzir traduções muito literais, talvez

    mesmo pedantes, acessíveis apenas a uma minoria letrada

    e os tipos (4) e (5) conduziriam a traduções muito mais li

    vres, que, dado o processo ecléctico de tratar o original,

    poderiam alterar completamente o texto de partida. A ter

    ceira categoria, talvez a mais interessante e típica de todas,

    tenderia a produzir traduções cheias de arcaísmos formais

    e linguísticos. Foi este o método que foi tão veementemente

    atacado por Arnold quando cunhou o verbo newmanizar,a

    partir de F W Newman, expoente máximo deste tipo de

    tradução.

    OS

    ARCAÍSMOS

    J

    M. Cohen pensa que a teoria vitoriana d tradução

    estava alicerçada num erro fundamental (a utilização de

    uma linguagem falsamente antiga para veicular a distância

    no tempo e no espaç034), e cjue o pedantismo e a utilização

    de arcaísmos por muitos tradutores só pode ter contribuído

    para colocar a tradução

    à margem das outras ~ c t i v i d d e s

    literárias e para o seu continuado declínio de estatuto. O

    método de traduzir de Fitzgerald