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    Democracia, mandantes e agentes

    Fbio Wanderley Reis

    H duas dimenses a serem necessariamente consideradas num eventualesforo de apropriada reforma do Estado. A primeira corresponde produo de poder, a incrementar a eficincia do Estado ou sua capacidadegovernativa. A referncia aqui mquina do Estado, a ser lubrificada ouaperfeioada ou diretamente substituda por uma nova, gil, enxuta. Asegunda dimenso diz respeito distribuio de poder, envolvendo aquesto do poder de uns sobre outros, de democracia versus autoritarismo.

    possvel formular a distino por meio da contraposio entre a idia do

    Estado-sujeito (o Estado tem seus prprios fins e o problema realiz-los comeficcia) e a do Estado-arena (onde interesses e fins diversos provenientes dasociedade devem poder afirmar-se). Em contraste com o aspecto tcnico quetalvez predomine na primeira dimenso, a segunda envolve inequivocamenteum problema poltico: quais so os fins da ao do Estado, quemverdadeiramente os fixa? Alm da velha idia marxista do Estado comocomit-executivo, possvel evocar a respeito algo que o presidenteFernando Henrique Cardoso andou repetindo: o Estado brasileiro no foifeito para os pobres.

    A viso a contida pode ser posta em termos da aplicao ao Estadodemocrtico da teoria conhecida em ingls como principal-agent theory, emque o Estado surge como o procurador ou agente de um mandante que ,idealmente, o povo, entendido como pblico homogneo e passvel de sertomado como entidade singular. Na prtica democrtica, porm, essaidealizao se traduz num jogo em que mltiplos focos de interesses eentidades diversas, incluindo as que compem a mquina governamental mais

    ou menos complexa, tratam de se fazer presentes junto a rgos especficos dogoverno e de conseguir que eles ajam em seu proveito. Caracteriza-se, assim,a situao em que o Estado, ele prprio uma entidade plural, mostra-se como oagente de mltiplos mandantes.

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    Essa situao torna mais difcil, naturalmente, que a ao do Estado sejademocrtica no sentido de ser para o povo, ou de orientar-se em cada caso

    pela ateno para o interesse geral. Tendo de responder a demandasespecficas de setores diversos, ele se ver exposto quer ao risco de

    fragmentar-se e balcanizar-se (numa espcie de caricatura da sensibilidadedemocrtica aos diferentes interesses), quer ao de deixar-se aprisionar de vez

    por certos interesses poderosos e cair no autoritarismo. Mesmo no caso deregimes democrticos, porm, como o poder dos diversos interesses efetivamente desigual, a operao dos governos tender a envolver semprealguma assimetria ou vis em favor dos interesses poderosos. Tratando-se desociedades capitalistas, essas condies determinam especial sensibilidade

    para com os interesses empresariais, cuja capacidade de influncia se associa

    ao fato de que eles detm o comando da dinmica econmica e condicionamem larga medida, em consequncia, a prpria possibilidade de atendimento deinteresses bsicos dos demais setores: nessa medida, torna-se possvel

    pretender que o interesse empresarial venha a equivaler ao interesse pblico.A lgica geral que assim se esboa contm forte incentivo a que os

    interesses que dispem de proximidade menos natural com o Estado, porserem de partida menos providos de recursos de poder, organizem-se comoforma de compensar essa deficincia, ganhando poder e acesso ao Estado. Ahistria das sociedades capitalistas mais avanadas ao longo dos sculos XIXe XX pode ser lida como um processo no qual o embate entre a frmula idealdo governo democrtico para o povo e as realidades do poder e do Estadocomo agente de mandantes variados ganha um contedo de efetivademocratizao: em decorrncia de esforos organizacionais e institucionaisque resultam na socialdemocracia, no neocorporativismo e no estado de bem-estar, em combinao com os mecanismos da democracia eleitoral e

    parlamentar, criaram-se condies em que se neutralizava ou reduzia o vis

    social do Estado.

    Nos processos atualmente em curso, com a dinmica da globalizao eo revigoramento dos mecanismos de mercado, temos, em primeiro lugar, oenfraquecimento dos Estados como sujeitos e como focos de governanaeficiente tanto na administrao da economia como no que se refere a sua

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    capacidade de ao social e de acomodao dos conflitos internos. Masaqueles fatores produzem tambm, justamente ao ensejar o aumento dacompetio e do nmero dos que a competio aumentada tende amarginalizar, o enfraquecimento das organizaes sindicais e trabalhistas. O

    Estado portanto devolvido, na sua qualidade de agente de mandantesdiversos, ao relacionamento com um substrato poltico-social cujasdesigualdades e assimetrias se acentuam, e assim estreitado na sua condiode arena capaz de acolher interesses diferenciados.

    O resultado geral (dramatizado pela deteriorao social, a nova pobreza,

    a economia da droga, a violncia urbana), se traz problemas para a democraciasocial, ameaa colocar em risco at a democracia poltica. Em alguns casos,

    como nos Estados Unidos dos anos recentes, o Estado pode tender atransformar-se num peculiar leviat, largamente impotente (ou pronto abdicao) diante da dinmica propriamente econmica, mas presente emesmo invasor em outros aspectos: vejam-se a exploso da populaocarcerria e a grande expanso da aparelhagem policial e presidiria doEstado, parte os efeitos da guerra de Bush ao terrorismo. Mas em nosso casotemos talvez o pior dos mundos, em que a poltica social precria se combinacom um leviat de fancaria, o qual, na incapacidade de se fazer presente demaneira ubqua e adequada na represso ao crime e violncia, se transformaele prprio em coadjuvante da violncia sobre as populaes mais pobres.

    Valor Econmico, 19/11/2007