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Lulismo, identidade e cálculo racional
Fábio Wanderley Reis
A reiteração da resiliência do apoio popular a Lula, trazida pela pesquisa DataFolha posterior à tragédia de Congonhas, suscitou a retomada,na imprensa, da indagação de como cabe vê-la. Uma reflexão mais amplasobre as questões envolvidas será talvez de ajuda.
Um antigo tema da política é o do papel cumprido por fatores“instrumentais”, envolvendo o cálculo relativo à busca de interesses, e por fatores de identidade, bem como as relações entre uns e outros. A clássicavisão marxista da participação dos trabalhadores na implantaçãorevolucionária do socialismo, que se pretendia “realista”, salientavadeterminada forma de se mesclarem os dois conjuntos de fatores: as condiçõesestruturais propícias criadas pelo desenvolvimento do capitalismo, incluída a
proximidade física resultante da concentração espacial do trabalho nas
fábricas, permitiria eventualmente aos trabalhadores alcançarem a“consciência de classe”, da qual proviria a redefinição da identidade coletivaem correspondência com a percepção dos interesses compartilhados pelosmembros da classe. Nessas condições, cada trabalhador, à parte nobresdisposições morais ou solidárias (mesmo se concebida a classe comofornecendo novo foco relevante de solidariedade), seria supostamente levado aagir de modo “racional” (isto é, movido pelo interesse próprio) em prol dointeresse coletivo da classe.
Essa perspectiva já contém claramente a idéia de que elementos denatureza intelectual ou cognitiva fazem a intermediação entre o plano dascondições materiais e o plano das atitudes ou disposições políticas, e a visãodo proletário que se torna “consciente” pode ser contraposta, com especialnitidez, à da “idiotia da vida rural” de que falava o “Manifesto Comunista”.
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Em discussões acadêmicas posteriores do tema da participação política, aoacesso à “consciência de classe” como modelo analítico se contrapõe omodelo dito da “centralidade”, em que se sustenta que a participação, em suasdiferentes formas, se intensifica ao nos deslocarmos rumo a posições vistas
como mais “centrais” na sociedade (posição socioeconômica mais alta,maiores educação e informação, maior experiência urbana, melhor inserção narede de contatos sociais, ou o que outros chamariam hoje de “capital social”).Um aspecto irônico silenciado pela literatura pertinente é o de que, nessaóptica, a “consciência de classe” capaz de projetar-se na defesa políticaeficiente dos interesses tenderia a ocorrer antes nos níveis mais altos daestrutura social. É patente a afinidade disso com o fato de a “opinião pública”e as mobilizações estrepitosas serem, no Brasil desigual, sobretudo fenômenos
das classes média e alta.
De toda maneira, algo importante é sugerido por observações comoessas: as identidades coletivas podem ser de tipos diversos, e seu significado
político irá variar, em particular, em correspondência com os ingredientesintelectuais que as acompanham. Sem dúvida, isso não é tudo. Mesmo no quese refere a ativistas políticos ou militantes supostamente informados esofisticados, a história dos partidos socialistas, por exemplo, mostra que arelevância de fenômenos de identidade pode dar-se de modo a comprometer,em vez de incentivar, a orientação ou disposição revolucionária: o aconchegodo partido e o sentimento de participação significativa no processo político
podem redundar em que, do ponto de vista da identidade, prevaleça a soluçãotrazida a problemas de identidade pessoal, com o partido presumidamentecontestador se transformando num instrumento de integração social efavorecendo a acomodação socialdemocrática que setores radicais vêem comolhos críticos. Isso se mostra relevante, de forma peculiar, diante docomponente ingênuo contido em certa ênfase recente, e supostamente
progressista, no que alguns chamam de “política de identidades”: a identidade pode ser conformista ou passiva, e não há política de identidade se aidentidade não se torna o foco ou ponto de referência da busca estratégica e aomenos potencialmente conflituosa de objetivos próprios (mesmo secompartilhados coletivamente), ou da “afirmação de si” que alguns analistasressaltam para a própria definição dos interesses.
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Naturalmente, se vamos ao plano dos simples eleitores, particularmentenas condições da desigualdade brasileira, o tema geral ganha em importância.É claro que o processo eleitoral envolve disputas de interesses, e interesses
materiais. Mas o cálculo de interesses do eleitorado popular não pode ser senão desinformado e tosco, além de submetido a urgências, e não há comonegar a importância de coisas como o programa Bolsa Família, em vez dasmediações complicadas envolvidas na avaliação de políticas econômicas esociais ambiciosas e orientadas para o futuro. E, como parte do quadro geral,dada a precariedade das condições intelectuais desse eleitorado, muito seresolve no plano das imagens e do apelo a identidades indigentementedefinidas de “pobre” ou de categorias análogas.
Tudo isso redunda em que o realismo impõe contar com o populismo, esuas identificações singelas, como fatalidade no futuro visível – com o méritoinédito, pelo menos, de trazer a questão social à disputa eleitoral daPresidência. A pergunta é então a de qual populismo, se haverá algum melhor do que os outros, talvez mais autêntico e consistente nas imagens, e que possaeventualmente servir de lastro à construção partidária em que programasambiciosos possam ter respaldo. Creio que o lulismo, com todas asdeficiências de Lula, passa melhor no teste da autenticidade do que outrosexperimentos populistas reais que temos vivido, ou imagináveis pelo quetemos diante de nós, e representa, assim, matéria-prima potencialmenteimportante. Quanto à construção institucional, está bem claro que ela não podedepender de Lula.
Valor Econômico, 13/8/2007
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