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3 Tafonomia: P afonomia: P afonomia: P afonomia: P afonomia: Processos e rocessos e rocessos e rocessos e rocessos e Ambientes de F Ambientes de F Ambientes de F Ambientes de F Ambientes de Fossilização ossilização ossilização ossilização ossilização Marcello Guimarães Simões Sabrina Coelho Rodrigues Cristina Bertoni-Machado Michael Holz Tafonomia é a ciência que estuda o processo de preservação dos restos orgânicos no registro sedimentar e como esses processos afetam a qualidade do registro fóssil (Behrensmeyer et alii, 2000). O termo Tafonomia (do grego: tafos = sepultamento; nomos = leis) foi introduzido na literatura por Efremov (1940), originalmente para designar o estudo das “leis” que governam a transição dos restos orgânicos da biosfera para litosfera. De um modo geral, pode-se dizer que a Tafonomia nasceu da necessidade do paleontólogo em entender como os organismos e seus restos chegaram à rocha e quais foram os fatores e processos que atuaram na formação das concentrações fossilíferas. Rapidamente, notou-se, porém, que a passagem dos restos orgânicos da biosfera para a litosfera não podia ser descrita por “leis”, nem visualizada como ocorrendo dentro de certos padrões constantes e repetitivos. A partir daí, a Tafonomia ganhou terreno no âmbito da Geologia e Paleobiologia, especialmente após os rigorosos programas de pesquisa conduzidos por J. Weigelt e E. Wasmund, pesquisadores da chamada Escola Alemã de Actuopalentologia (vide Cadée 1991, para uma revisão histórica). Historicamente, a Tafonomia desenvolveu-se independentemente na Paleontologia de Invertebrados, Vertebrados e Paleobotânica e, de modo tardio, na Micropaleontologia e Palinologia. Atualmente, ciências relacionadas à Paleontologia, como a Arqueologia e a Paleoantropologia têm demonstrado interesse, sendo que uma das áreas com maior desenvolvimento é o da chamada Tafonomia Forense. A despeito dos enormes avanços ocorridos no campo conceitual e metodológico da Tafonomia, não existe ainda, porém, uma “Teoria Tafonômica Unificadora” (Kowalewski, 1997). A figura 3.1 resume, esquematicamente, algumas das relações entre a tafonomia e outras disciplinas paleontológicas e geológicas. A Natureza do Registro Fóssil Seilacher (1970) foi o primeiro autor a tratar os restos orgânicos como partículas sedimentares, sujeitas aos mesmos processos de transporte, seleção e concentração das partículas sedimentares clásticas, no ciclo exógeno. Seilacher (1970) empregou os termos retrato de morte (= Todesbild), para designar as tafocenoses (concentração de partículas biogênicas soterradas) ou orictocenoses (concentrações fósseis) e retrato de vida (= Lebensbild ), para designar as

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    Ambientes de FAmbientes de FAmbientes de FAmbientes de FAmbientes de Fossilizaçãoossilizaçãoossilizaçãoossilizaçãoossilização

    Marcello Guimarães SimõesSabrina Coelho RodriguesCristina Bertoni-MachadoMichael Holz

    Tafonomia é a ciência que estuda o processo depreservação dos restos orgânicos no registro sedimentare como esses processos afetam a qualidade do registrofóssil (Behrensmeyer et alii, 2000). O termo Tafonomia(do grego: tafos = sepultamento; nomos = leis) foiintroduzido na literatura por Efremov (1940),originalmente para designar o estudo das “leis” quegovernam a transição dos restos orgânicos da biosferapara litosfera. De um modo geral, pode-se dizer que aTafonomia nasceu da necessidade do paleontólogo ementender como os organismos e seus restos chegaram àrocha e quais foram os fatores e processos que atuaramna formação das concentrações fossilíferas.Rapidamente, notou-se, porém, que a passagem dosrestos orgânicos da biosfera para a litosfera não podiaser descrita por “leis”, nem visualizada como ocorrendodentro de certos padrões constantes e repetitivos. A partirdaí, a Tafonomia ganhou terreno no âmbito da Geologiae Paleobiologia, especialmente após os rigorososprogramas de pesquisa conduzidos por J. Weigelt e E.Wasmund, pesquisadores da chamada Escola Alemã deActuopalentologia (vide Cadée 1991, para uma revisãohistórica). Historicamente, a Tafonomia desenvolveu-seindependentemente na Paleontologia de Invertebrados,

    Vertebrados e Paleobotânica e, de modo tardio, naMicropaleontologia e Palinologia. Atualmente, ciênciasrelacionadas à Paleontologia, como a Arqueologia e aPaleoantropologia têm demonstrado interesse, sendoque uma das áreas com maior desenvolvimento é o dachamada Tafonomia Forense. A despeito dos enormesavanços ocorridos no campo conceitual e metodológicoda Tafonomia, não existe ainda, porém, uma “TeoriaTafonômica Unificadora” (Kowalewski, 1997). A figura3.1 resume, esquematicamente, algumas das relaçõesentre a tafonomia e outras disciplinas paleontológicase geológicas.

    A Natureza do Registro Fóssil

    Seilacher (1970) foi o primeiro autor a tratar osrestos orgânicos como partículas sedimentares, sujeitasaos mesmos processos de transporte, seleção econcentração das partículas sedimentares clásticas, nociclo exógeno. Seilacher (1970) empregou os termosretrato de morte (= Todesbild), para designar astafocenoses (concentração de partículas biogênicassoterradas) ou orictocenoses (concentrações fósseis) eretrato de vida (= Lebensbild), para designar as

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    biocenoses, ou seja, a fonte dos materiais ou restosorgânicos que irão compor as assembleias fósseis (figura3.2). Comumente, as tafocenoses representam um“retrato” distorcido e repleto de tendenciamentos,decorrentes dos diversos processos ou filtros tafonômicos(figuras 3.2 e 3.3). A meta da Paleontologia e, emespecial da Paleoecologia, é a compreensão do retratode vida, a partir da identificação e descrição dosprocessos tafonômicos, sedimentares e temporais queatuaram na gênese do registro fóssil (figura 3.3), ou seja,no retrato de morte. Portanto, o reconhecimento e aquantificação dos tendenciamentos presentes nastafocenoses (fonte de dados paleontológicos) é amotivação primária por trás dos estudos tafonômicos.

    Tendo em vista os comentários acima, éinteressante, primeiramente, entender quais são ospossíveis fatores que atuam na formação do registro fóssile como esses introduzem distorções que afetam a suaqualidade. É consenso geral entre paleontólogos egeocientistas que o registro fóssil é incompleto, poisdurante a sua formação, fatores intrínsecos (e.g.,composição e microestrutura do esqueleto) e extrínsecos(e.g., taxas de sedimentação, pH da água intersticial) atuamcontribuindo para aumentar ou diminuir as probabilidadesde preservação dos restos orgânicos. Embora incompleto,o registro fóssil é, porém, muito adequado à maioria dosrequisitos da Paleontologia, bem como, à solução deproblemas geológicos (biocorrelação) e biológicos(evolução) mais amplos (Donovan & Paul, 1998). Defato, nas últimas duas décadas (veja uma síntese emKidwell & Holland, 2002), avanços na tafonomia e

    estratigrafia em muito contribuíram para ampliar oentendimento sobre a completude do registro fóssil. Apesquisa tafonômica, nessa área esteve concentrada emquantificar as probabilidades de preservação de diferentesgrupos taxonômicos, determinar a resolução temporal eespacial dos níveis fossilíferos e no reconhecimento dasmudanças seculares dos padrões de fossilização ao longodo Fanerozoico. Por outro lado, a estratigrafia concentrou-se em elucidar questões relativas à identificação edimensão temporal dos hiatos estratigráficos, dentreoutros problemas. Esses avanços transformaram apesquisa paleontológica, particularmente no que dizrespeito às análises macroevolutivas (Kidwell & Holland,2002).

    Tendo isso em mente, a seguir serão analisadosos principais parâmetros relativos à natureza do registrofóssil. Esses parâmetros são:

    1) a completude;2) a mistura temporal;3) a mistura espacial.

    Tais parâmetros expressam a chamada qualidadedo registro fóssil (Kidwell & Flessa, 1996; Kowalewski,1997; Kidwell & Holland, 2002). Antes, porém, éconveniente tecer breves comentários sobre acompletude do registro biológico.

    Estimativas recentes sobre a biodiversidade dãoconta que apenas 10% das espécies existentes(viventes) já foram descritas (Sepkoski, 1981; Paul,1985, 1998; Foote, 2001). Notavelmente, mesmo quetodas as espécies existentes no mundo fossem descritas,

    Figura 3.1 Principaissubdivisões e eventos daTafonomia e ciências correlatas(modificado de Holz & Simões,2002).

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  • 21Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    essas representariam cerca de 3-5% de todas as espéciesque viveram ao longo do Fanerozoico. Quando sãoconsiderados os ambientes sedimentares do Recente,sabe-se que tanto esses, como os hábitos de vida dosorganismos afetam a probabilidade desses seremencontrados e estudados. É só pensar na facilidade deacesso a coleta de dados e material biológico noambiente praial, em comparação ao ambiente marinhoabissal. Portanto, o registro de espécies viventes é

    igualmente incompleto, tendencioso e ainda poucoconhecido. Além disso, nenhuma ciência está funda-mentada em um conjunto completo de informações.Os dados advindos do registro fóssil são, portanto,comparáveis ao conjunto de dados disponíveis paraqualquer outra ciência (C.R.C., Paul, Nature Debateson-line, http://www.nature.com/nature/debates/fossil/fossil_9.html#4, julho de 2008).

    Figura 3.2 Síntese das principais etapas do processo de fossilização, desde a biocenose (comunidade de vida) atéa orictocenose (concentração fossilífera). Note que os processos tafonômicos variam, segundo o ambiente (aquático versuscontinental) e os táxons considerados (invertebrados bentônicos versus vertebrados terrestres). À direita está representadaa variação hipotética na quantidade de informação fornecida pelo registro, ao longo das diferentes etapas da fossilização.Vide explicação no texto.

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  • 22 Paleontologia

    Completude refere-se à representatividade deum táxon ou grupo taxonômico no registro sedimentar.Já foi dito que táxons diferentes possuem distintasprobabilidades de preservação. Como resultado, oregistro paleontológico não é completo, comdeterminados grupos taxonômicos (e.g., moluscos)possuindo melhor representatividade do que outros (e.g.,cnidários medusoides). Esse fato é claramentedemonstrado pelo escasso registro fóssil de organismosdesprovidos de partes duras mineralizadas. Apreservação de organismos de corpo mole (e.g., faunade Ediacara, Austrália) requer condições deposicionaisparticulares, as quais são geologicamente raras,ocorrendo em intervalos de tempo muito distintos esob condições ambientais muito específicas (vide o itemPreservação Excepcional). Contrariamente, os táxonscom partes biomineralizadas estão melhor representadosno registro fóssil.

    Estimativas recentes (Kidwell & Holland, 2002)mostram que cerca de 50% das espécies de coraisescleractíneos, 75% de equinoides e 90% de moluscosencontrados vivos possuem representantes mortos nastanatocenoses locais (tanatocenose = assembleia demortos, vide figuras 3.2 e 3.3) (Kidwell & Flessa 1996).Obviamente, porém, os processos operantes nosambientes sedimentares diminuem ou reduzem aprobabilidade de preservação de determinados táxons,como indicado por Valentine (1989). Esse autordemonstrou que 80% das espécies viventes de moluscosconchíferos, atualmente encontradas na província daCalifórnia estão preservadas nas rochas locais dopleistocênico. Em outras palavras, do Pleistoceno parao Holoceno houve uma perda de aproximadamente20% na representatividade de elementos desse grupo.

    É importante observar ainda que, em geral, paraos grupos taxonômicos providos de partesbiomineralizadas, as perdas durante o processo defossilização são relativamente previsíveis (Kidwell &Holland, 2002) e, atualmente, bem conhecidas. Dadosmuito recentes, disponíveis para os moluscos bivalves(Valentine et alii, 2006) mostram, por exemplo, que ostáxons faltantes no registro fóssil, não representam umaamostra aleatória dentro desse grupo. Por exemplo, dos1.292 taxa (gêneros e subgêneros) de moluscosviventes, 308 taxa não têm representantes no registrofóssil. Esses taxa faltantes apresentam, pelo menos, duasdas condições a seguir: possuem conchas muitopequenas (em torno de 1 cm) e de fácil dissolução(aragoníticas), são parasitas ou comensais, ou vivem emáreas marinhas profundas (abaixo dos 200 metros), tendo

    distribuição geográfica restrita (Valentine et alii, 2006).De fato, comumente, os organismos com partes durasde pequenas dimensões estão mais susceptíveis adestruição (física, química e/ou biológica) (Cooper etalii, 2006). Da mesma forma, esqueletos compostos poraragonita são preferencialmente destruídos pordissolução, se comparados aos de calcita. O tamanhodas populações também exerce influência, estando ostáxons com populações grandes melhor representadosno registro (Kidwell & Flessa, 1996).

    Mistura temporal (=time-averaging ou temporalmixing) refere-se à mistura de partículas bioclásticas(restos esqueletais) de diferentes idades (horas a milhõesde anos) em uma única acumulação. Trata-se de umfenômeno comum e inerente ao registro sedimentar eque não pode ser removido ou eliminado pelas estra-tégias de coleta e análise dos dados paleontológicos(Kowalewski et alii, 1998). O fenômeno resulta dabioturbação dos sedimentos, da compactação, masprincipalmente do retrabalhamento dos substratos poragentes hidráulicos, tais como as tempestades e ondas,sob regime de baixa taxa de sedimentação. De fato, namaioria dos ambientes sedimentares, o retrabalhamentoe a deposição de sedimentos, por eventos de alta energia,como as tempestades (ambiente marinho) e inundações(ambiente fluvial) não ocorrem periodica-mente, ou seja,no dia-a-dia. Esses são eventos episódicos no tempo.Portanto, normalmente, as taxas de sedimentação sãorelativamente mais baixas do que o tempo de vida dosindivíduos de uma dada população. Em outras palavras,as taxas de sedimentação do dia-a-dia não são, em geral,suficientemente altas, para individualizar camadascontendo as diferentes gerações que já existiram, deuma dada população, pois para que isso ocorresse seriamnecessários soterramentos contínuos, individualizandoas diferentes gerações, em estratos únicos. Obviamente,como essas condições não existem nos ambientessedimentares, as tanatocenoses compreendem, emgeral, acumulações de restos esqueletais de indivíduosde diferentes gerações, que nunca conviveram juntos(Kowalewski et alii, 1998; Olszewski, 2004). Em casosextremos, quando condições de baixa taxa desedimentação prevalecem por períodos prolongados detempo, coincidindo com mudanças ambientais, restosesqueletais de organismos de diferentes ambientespoderão estar misturados, em um único estratosedimentar ou concentração fossilífera (Simões &Kowalewski, 1998). Tais estratos compreendemregistros temporal e ambientalmente condensados(Simões & Kowalewski, 1998). O aumento na

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  • 23Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    durabilidade dos esqueletos, em razão da robustez, sócontribui para ampliar a possibilidade de ocorrência damistura temporal, já que os esqueletos mais duráveispoderão permanecer por mais tempo nas superfíciesdeposicionais ou sobreviver aos inúmeros episódios deretrabalhamento e soterramento.

    A pesquisa tafonômica da década de 1990 procuroutratar o problema da mistura temporal a fundo (veja umasíntese das escalas de tempo de acumulação paraassembleias de invertebrados, vertebrados e plantas emKidwell & Behrensmeyer, 1993a,b,c). Como resultado,sabe-se hoje que, para as acumulações de conchas demoluscos, braquiópodes e foraminíferos, em ambientesmarinhos, plataformais, do Recente, a mistura temporalenvolvida é da ordem de centenas a milhares de anos(e.g., Caroll et alii, 2003; Barbour-Wood et alii, 2006).Padrão temporal semelhante é apresentado pelasconcentrações de ossos de vertebrados em sistemasfluviais. Os depósitos sedimentares gerados em sistemasfluviais contêm os principais registros de vertebrados

    fósseis. Neles também são verificadas as maioresmisturas temporais. O retrabalhamento dos ossosdepositados nos canais fluviais e nas planícies deinundação gera acúmulos de ossos com mistura temporalda ordem de 1 000 a 100 000 anos (Behrens-meyer, 1982;Behrensmeyer & Hook, 1992). Estudos indicam que ébaixa a probabilidade de haver registros desedimentações, nesse intervalo de tempo de 100 a 104

    anos. Concentrações de ossos encontradas emsedimentos de canal fluvial indicam mistura temporal daordem de 102 a 103 anos. Portanto, para serem fossilizados,os restos de vertebrados devem sobreviver aoretrabalhamento e outros fatores tafonômicos dedestruição por intervalos prolongados de tempo. Noscanais fluviais, a quantidade de tempo envolvida numatafocenose dependerá do grau de erosão da planície e dataxa de sedimentação nas barras. Behrensmeyer (1982)exemplifica da seguinte maneira: se o canal apresentauma profundidade de 2 metros e os depósitos das barrasapresentam uma taxa de acumulação de 0,5 m/1 000

    Figura 3.3 Representação esquemática do processo de fossilização, destacando os principais “filtros” que atuamnas diversas fases, partindo da comunidade de vida até a coleta. A redução do tamanho dos círculos no esquema represen-ta a perda de informação paleobiológica ao longo do processo (modificado de Behrensmeyer et alii, 2000).

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    anos (típico de depósitos fluviais, vide referências emBehrensmeyer, 1982), então a assembleia fóssilrepresentará, pelo menos 4 000 anos. Em contraste aoverificado no caso dos invertebrados conchíferos evertebrados, as acumulações de órgãos vegetais frágeis,tais como as folhas, por exemplo, apresentam misturatemporal de meses a anos, apenas.

    A despeito das sérias implicações paleoecoló-gicas do fenômeno de mistura temporal, um aspectoimportante que tem sido demonstrado pelos resultadosdas pesquisas recentes, nessa área de investigação, é ode que as tafocenoses contendo mistura temporal, daordem de centenas a milhares de anos são dominadaspor indivíduos pertencentes às classes de idades maisrecentes, sendo os mais antigos, numericamente menosrepresentativos (figura 3.4) (Kidwell, 2002). Esseaspecto é, até certo ponto, previsível, pois a destruiçãoe alteração dos materiais biológicos ocorrem durante afase de acumulação desses. Portanto, os materiais maisantigos têm maior probablidade de serem expostos aosagentes de destruição tafonômica do que os recém-incorporados aos sedimentos. Quanto maior a suscep-tibilidade à destruição e eliminação, menor a possibi-lidade de se juntar à tanatocenose. Por esse motivo, oselementos biológicos mais antigos contribuem poucopara a formação da acumulação bioclástica final(Kowalewski et alii, 1998; Olszewski, 2004).

    Mistura espacial ou condensação ambientaldiz respeito à mistura de partículas biogênicas deorganismos que ocupam diferentes ambientessedimentares em uma única acumulação bioclástica.Assim como o fenômeno de mistura temporal, a misturaespacial confunde e dificulta a habilidade dos paleon-tólogos de reconstruir e interpretar as antigas comunidadese paleoambientes. Por essa razão, o estudo tafonômico esedimentar/estratigráfico deve, obrigatoriamente, precederà análise paleoecológica. O aumento da robustez doesqueleto biomineralizado de muitos grupos taxonômicosao longo do Fanerozoico, além de torná-los maissusceptíveis à mistura temporal, contribuiu também paratorná-los mais propensos ao transporte eretrabalhamento, após a morte. Ou seja, tafocenosescontendo restos esqueletais muito robustos e duráveistendem a apresentar baixa resolução espacial. Emcontraste, os restos de organismos com partesesqueletais delgadas e frágeis estão menos sujeitos aotransporte ou a permanecerem por prolongados períodosde tempo na interface água/sedimento. Do mesmomodo, organismo com corpo mole ou mesmo os icnofósseisestão, em geral, preservados in situ, apresentando altaresolução espacial. Obviamente, não apenas a durabilidadeirá influenciar, pois o transporte das partículas bioclásticasdependerá também de outros fatores, tais como, a forma,

    Figura 3.4 Estrutura da mistura temporal de concentração de conchas de braquiópodes da plataforma continentalbrasileira. Note que a mistura temporal é da ordem de 3 500 anos (idade da concha mais antiga na amostra). Observe,porém, que a maior parte dos espécimes pertence às idades mais novas, em torno de 0 (recém-mortos) a 500 anos(modificado de Carroll et alii, 2003).

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  • 25Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    a densidade, o peso da partícula e a energia do meio(competência do agente de transporte), dentre outros.Além disso, o modo de vida e o comportamento dosorganismos também têm influência, já que os restosesqueletais de organismos bentônicos, escavadoresprofundos, estão menos propensos ao transporte, do queos de organismos bentônicos de epifauna. Por exemplo,conchas espessas e duráveis de braquiópodesrhychonelliformes, tais como as verificadas na espécieBouchardia rosea são acumuladas a dezenas dequilômetros do seu hábitat original (Simões et alii, 2007),mas conchas frágeis e delgadas de braquiópodeslingulídeos dificilmente são encontradas a muitosquilômetros do local de vida ou de morte dessesinvertebrados (Kowalewski, 1996). Esse exemplo éinteressante, pois ilustra como os fatores intrínsecos (e.g.,espessura e durabilidade das conchas) podem influenciara mistura espacial dos restos esqueléticos, de elementosde um mesmo grupo taxonômico (Brachiopoda), vivendoem um mesmo ambiente sedimentar (marinho raso).

    Finalmente, com o intuito de consolidar osconceitos apresentados até aqui, em especial os relativosà qualidade do registro fóssil é conveniente tentarresponder ao seguinte questionamento: Quem, porexemplo, possui melhor registro fóssil, os moluscosprovidos de partes biomineralizadas (e.g., conchas) ouos órgãos vegetais frágeis, tais como, as flores? Essaquestão é instigante e deve remeter o leitor a raciocinarsobre os possíveis fatores intrínsecos (relativos aosfósseis) e extrínsecos (relativos aos ambientessedimentares) que estão envolvidos na formação doregistro fóssil. A resposta rápida e intuitiva parecefavorecer aos moluscos, pois esses organismos possuemconchas calcárias, as quais são resistentes e passíveis demelhor preservação. Já os restos vegetais, em especialas flores, são estruturas frágeis e delicadas, sendodestruídas rapidamente no ciclo exógeno. De fato, osórgãos vegetais têm, em geral, baixo potencial depreservação (exceto troncos, pólens e esporos)(Greenwood, 1991; Kowalewski, 1997), especialmentese comparados aos elementos que compõem osesqueletos dos vertebrados e invertebrados conchíferos.Porém, a resposta não é assim tão simples quanto parece,pois o fato das conchas calcárias serem robustas e maisduráveis, na interface água/sedimento, aumenta aschances de mistura temporal e espacial dessas partículas.Consequentemente, embora mais completo, o registrofóssil dos moluscos tende a apresentar grande mistura

    temporal e espacial. Já a preservação de órgãos frágeis,como as flores, implica em condições ambientais muitoespecíficas, envolvendo o rápido soterramento, compouca ou nenhuma exposição na interface água/sedimento. Portanto, embora sejam raros os depósitosque contêm esses fósseis, o que torna o seu registromuito incompleto, tais ocorrências possuem elevadaresolução espacial e temporal (Kowalewski, 1997)(figura 3.5), possuindo, portanto, melhor qualidade doregistro.

    Para concluir, a seguir são listadas algumasgeneralizações importantes, referentes à natureza doregistro fóssil:

    a) organismos providos de partes duras biomineralizadastêm maior potencial de preservação;

    b) preservação dos restos orgânicos é favorecida porrápido soterramento, especialmente por sedimentosfinos (pouca turbulência), na ausência de organismosdecompositores;

    c) perda de informação por processos tafonômicos, noambiente marinho raso, resulta, tipicamente, da frag-mentação, dissolução e bioerosão;

    d) perda de informação por processos tafonômicos, noambiente continental, terrestre e fluvial, resulta,caracteristicamente, do transporte, desarticulação,retrabalhamento e quebra (fratura), por agentes hidráu-licos (água) e biológicos (predação, carnivoria, pisoteio);

    e) organismos com distribuição vertical (temporal) ehorizontal (geográfica) restrita tem menor probabilidadede preservação.

    O Processo de Fossilização: Da Biosferaà Litosfera

    O entendimento dos processos que levam àpreservação dos elementos das antigas biotas é melhorvisualizado através dos diversos estágios que conduzemà fossilização. Esses estágios estão representados nas figuras3.2 e 3.3. A assembleia contendo os elementos vivos édenominada de biocenose (Bio=vida, cenon=comunidade;assembleia de vida) e os seus elementos mortos irãocompor a tanatocenose (Tanato = morte, ceno =comunidade; assembleia de morte). Vários processostafonômicos (descritos mais adiante) irão agir para formara tafocenose (Tapho = sepultamento, ceno = comunidade;assembleia de restos soterrados) e, finalmente a oric-tocenose (Oricto=fóssil, ceno=comunidade; assembleia

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  • 26 Paleontologia

    fóssil que o paleontólogo encontra no jazigo fossilífero).O processo de fossilização tem início com os processosnecrológicos, envolvendo a morte e a decomposição(necrólise) dos organismos, seguindo os processosbioestratinômicos , incluindo, por exemplo, adesarticulação, o transporte/retrabalhamento dosrestos esqueletais e o soterramento final. Por último,atuam os processos diagenéticos (fossildiagênese).Em geral, predominam na fase bioestratinômica dapreservação os processos biológicos e físicos (e.g.,fragmentação) e, em menor grau, os químicos. Após osoterramento, têm início os processos físico-químicosrelativos a diagênese. Finalmente, nessa fase estãoincluídas também as alterações produzidas pelosprocessos tectônicos que soerguem os estratos rochosos,expondo-os à superfície terrestre (figura 3.1).

    A. Processos Necrológicos

    A primeira fase do processo de fossilizaçãoenvolve a morte e a decomposição dos tecidos deconexão orgânica, por ação bacteriana. É importantelembrar aqui, entretanto, que a morte isoladamente nãoé, necessariamente, pré-condição para que os restosesqueletais dos organismos sejam incorporados aossedimentos e, finalmente, preservados. Basta lembrarque alguns grupos vegetais perdem suas partes atravésde mecanismos fisiológicos. Folhas, por exemplo,podem ser descartadas durante o outono, ou aindadesconectadas durante fortes tempestades, assim comoos frutos e as sementes. Determinados invertebradosproduzem ecdise (muda), durante o desenvolvimentoontogenético. As mudas podem ser incorporadas aoregistro fóssil, caso bem conhecido para os trilobites.

    Figura 3.5 Modelo tafonômico recíproco, modificado de Kowalewski (1997). Explicação no texto.

    GustavoRealce

    GustavoRealce

  • 27Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    Obviamente, as mudas não representam indivíduosmortos. Mamíferos, por exemplo, perdem naturalmenteos dentes. Portanto, tanto os vegetais, como os animaispodem, em vida, perder partes de seus esqueletos asquais poderão ser incorporadas aos sedimentos sem que,necessariamente, a morte desses indivíduos tenhaocorrido. Contudo, na grande maioria dos casos, a mortecompreende o início do processo de fossilização.

    Na natureza são reconhecidos, basicamente, doistipos de morte, ou seja:

    a) morte seletiva;

    b) morte não seletiva.

    A morte seletiva, como o próprio nome sugere, éaquela que afeta, com maior probabilidade, determinadasfaixas de idades de uma dada população. As causasdecorrem, em geral, de fatores como o envelhecimento,

    as doenças e a predação. A morte seletiva é dita mortenatural, afetando os indivíduos mais jovens ou os maisidosos de uma dada população. A concentraçãofossilífera resultante deste processo irá apresentardominantemente os elementos das classes de idadesmais susceptíveis ao fenômeno (e.g., jovens, senis), eum estudo estatístico das classes de tamanho (idades)irá apresentar uma distribuição bimodal, mais ou menosacentuada (figura 3.6). Porém, todo cuidado notratamento dos dados deverá ser tomado, pois estespadrões podem ser resultantes, também, de transporteseletivo dos restos esqueletais (= partículas bioclásticas).

    O outro tipo de morte é a não seletiva oucatastrófica, que ocorre quando algum evento de grandemagnitude (e.g., enchentes descomunais, tempestades,secas, marés vermelhas, erupções vulcânicas) atinge

    Figura 3.6 Padrões de classes de tamanho (desenvolvimento ontogenético), decorrentes de morte não seletiva(catastrófica) e de morte seletiva (natural), modificado de Shipman (1981). Notar o padrão de estrutura populacional preser-vada no caso de morte não seletiva e a bimodalidade, no caso de morte seletiva.

    GustavoRealce

  • 28 Paleontologia

    grande parte da população, indistintamente. Neste caso,as classes de idade irão apresentar uma distribuição quereflete mais ou menos fielmente a estruturapopulacional original, mantendo as proporções entrejuvenis, adultos e senis (figura 3.6).

    Os estágios ontogenéticos (a idade) dos elementospresentes em uma dada tafocenose pode ser estimadautilizando-se critérios específicos para os diferentestáxons estudados. Para os invertebrados, por exemplo,são empregadas feições como o tamanho, o númerode enrolamentos (espiras) ou de linhas de crescimentoda concha. Já para os vertebrados utilizam-se feiçõescomo o desgaste dentário, a sinostose e o tamanho dosossos.

    Após a morte ou o descarte das partes esqueletais,segue-se à decomposição (necrólise), por ação bac-teriana e de outros organismos necrófagos ou decom-positores. Esse processo é muito importante na históriade preservação de qualquer organismo, pois é nessa etapaque ocorrerá, em maior ou menor grau, o consumo dostecidos de conexão orgânica, favorecendo a desar-ticulação das partes esqueletais. A decomposição é umprocesso contínuo que leva de horas a anos para seprocessar, dependendo das condições ambientais. Aolongo dos diferentes estágios de decomposição,alterações físicas irão ocorrer com os indivíduos mortos.As características morfológicas dos organismos(invertebrados versus vertebrados), os diferentes hábitosde vida (infauna versus epifauna), os distintos ambientesde morte e decomposição (marinho versus continentaldesértico) exercem influência no processo de necrólise.

    Para exemplificar esse processo, a seguir seráconsiderado um vertebrado terrestre, que permanecerána superfície do solo, por um prolongado período detempo (um ano), sem recobrimento por sedimentos.Nesse caso, tipicamente, a decomposição tem inícioem até três dias após a morte do organismo. Nesseperíodo, externamente o organismo não aparenta aindaqualquer alteração física importante, mas internamenteas bactérias que estavam presentes no trato intestinal,durante a vida do animal, começam a digerir os órgãosinternos, particularmente o intestino. Com adecomposição dos tecidos, as enzimas digestivaspresentes no intestino alcançam outras cavidades docorpo, contribuindo para sua decomposição. Nointervalo de 4 a 10 dias após a morte, tem início aprodução de gases intestinais (metano, gás sulfídrico)por bactérias anaeróbias (figura 3.7). Esse fato éextremamente importante do ponto de vista tafonômico,

    porque no caso de vertebrados aquáticos ou que após amorte são transportados para os ambientes aquosos, aprodução de gases intestinais contribui para a flutuaçãoe transporte. Esse assunto será retomado mais adiante.Prosseguindo, a produção de gases cria pressão interna,forçando os fluidos para fora das células e vasossanguíneos e outras cavidades do corpo. O cheiroproduzido pelos gases atrai insetos. Já entre 10 e 20dias, há o consumo e rompimento dos tecidos e escapedos gases. Concomitantemente, há perda de grandesvolumes de fluidos corpóreos, os quais são absorvidospelo solo ao redor. Alguns insetos se alimentam dessematerial ou dos tecidos. Nessa fase, a carcaça perdevolume, colapsa e torna-se achatada. A atividadebacteriana segue, juntamente com a ação dos insetos.No período de 20 a 50 dias após a morte, todos os tecidosmoles serão removidos, havendo ressecamento dacarcaça e, a partir daí, até 360 dias após a morte, adecomposição irá se processar de maneira muito lenta.Se presentes alguns elementos tais como pelos ecabelos irão desaparecer, restando apenas os ossos. Esseprocesso de remoção dos tecidos moles é denominadode esqueletonização.

    Em razão da rápida decomposição, somente emcasos excepcionais os tecidos moles ficarão preservados(vide preservação excepcional: fossil-lagerstätten, maisadiante). Assim, em geral, somente as partes duras dosorganismos são aquelas que têm maiores chances depreservação, pois em sua composição química existemgrandes quantidades de elementos inorgânicos. Aspartes duras formam, normalmente, os esqueletos dosorganismos, podendo ser interno ou endoesqueleto oexterno o exoesqueleto. Os principais componentesorgânicos presentes nas partes duras são as Proteínas(Colágeno, Queratina, Espongina, Conquiolina,Mucinas, Condrina), Lipídios (ou biomoléculasinsolúveis, Cutina, Ceras) e Glicídios (ou carboidratos,Quitina, Tectina, Celulose, Lignina).

    B. Processos Bioestratinômicos

    Após a necrólise ou concomitantemente a essa,seguem-se os processos bioestratinômicos. Comumente,a modificação pós-morte dos restos esqueletais é funçãode sua susceptibilidade à ação desses processos e do tempode exposição a estes. Os processos bioestratinômicosatuam principalmente sobre as partes duras dos orga-nismos. O transporte e reorientação, a desarticulação(separação dos restos esqueletais, após a necrólise), a

    GustavoRealce

    GustavoRealce

  • 29Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    fragmentação (quebra dos elementos esqueletais), acorrosão (combinação de abrasão mecânica e corrosãobiogeoquímica das partes biomineralizadas) e ointemperismo (no caso de ossos expostos na superfíciedo solo) compõem o principal conjunto de processosbioestratinômicos que agem sobre os restos esqueletais.Normalmente, esses processos ocorrem em sequência,

    com a reorientação e desarticulação ocorrendo rapida-mente após a morte do organismo, seguindo a frag-mentação e corrosão, isso se os restos esqueletaissofrerem prolongada exposição na interface água/sedimento ou na superfície do solo (Brett & Baird, 1986;Martin, 1999; Holz & Simões, 2002).

    Figura 3.7 Diferentes estágios de decomposição de Cottus scorpuis (peixe-escorpião), sob condições de águascalmas, anóxicas, na ausência de necrófagos. Os estágios A a D levam cerca de 4 dias, com água a 18°C. Note em A e B oinchaço decorrente da produção de gases e o rompimento dos tecidos em C e D. Após 3 meses (E) todos os tecidos molesforam consumidos, restando apenas os ossos junto ao substrato, modificado de Cadée (1991).

    GustavoRealce

  • 30 Paleontologia

    Desarticulação, transporte e soterramento eminvertebrados

    A tabela 3.1 sintetiza algumas das principaisfeições bioestratinômicas observadas nas assembleiasde invertebrados marinhos e seu possível significadotafonômico e paleoambiental. Desarticulação doselementos esqueletais em invertebrados depende, emgrande parte, do tipo de esqueleto apresentado (e.g.,univálvio, biválvio, multielemento, tabela 3.2), daenergia do meio e das taxas de sedimentação. Emboraagentes biológicos possam causar desarticulação dosrestos esqueletais, esta feição resulta, normalmente, deprocessos físicos, especialmente o transporte e

    retrabalhamento. No ambiente marinho, a desarti-culação diminui com o decréscimo da energia do meio,tanto que, nos ambientes de plataforma aberta, aproporção de valvas articuladas de moluscos bivalvesé maior, do que nos hábitats de águas rasas (Henderson& Frey, 1986). Já o soterramento rápido, as condiçõesde anoxia e a baixa energia do meio, parecem ser osresponsáveis pela ocorrência de restos esqueletaisarticulados. Speyer & Brett (1986) e Brett & Seilacher(1991) destacam que espécimes articulados parecemocorrer preferencialmente nos ambientes carac-terizados, frequentemente, por soterramentocatastrófico ou por baixas temperaturas e anoxia. Taiscondições inibem ou diminuem a ação de organismos

    Tabela 3.1 Relações entre as feições bioestratinômicas de concentrações

    fossilíferas marinhas e seu possível significado paleoambiental

  • 31Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    necrófagos da infauna ou epifauna e o curto período detempo entre a morte e o soterramento impede que ascarapaças dos invertebrados se desarticulem.

    O transporte seletivo de carapaças de inverte-brados marinhos dependerá do tamanho, forma edensidade do esqueleto e da energia do agentetransportador. Transporte acentuado (dezenas de metros/

    quilômetros) de conchas está associado aos eventos dealta energia (tempestades), quando os animaisbentônicos da infauna, de ambientes de águas rasas sãoexumados e transportados por correntes de tempestadese, posteriormente, redepositados em ambientesplataformais, especialmente as conchas pequenas edelgadas.

    Tabela 3.2 Classificação dos diferentes tipos de esqueleto de invertebrados,segundo Speyer & Brett (1988)

  • 32 Paleontologia

    A fragmentação pode ter origem física(hidráulica), química (corrosão) ou biológica (predação).Ondas e correntes atuando sobre substratos duros (e.g.,areia, cascalho) são os agentes mais efetivos nafragmentação das carapaças de organismos marinhos.Por outro lado, em condições de correntes turbulentas,conchas pequenas e finas podem ser colocadas emsuspensão, sendo transportadas “flutuando” acima dosubstrato. Consequentemente, o grau de fragmentaçãoexibido por estas conchas é menor do que o apresentadopelas conchas maiores e pesadas, as quais sãotransportadas junto ao substrato, sofrendo atrito com ofundo e com outros bioclastos.

    Em determinados ambientes sedimentares,como a plataforma continental, abaixo do nível de basede ondas de tempestades, invertebrados da infaunapodem ser soterrados vivos. De fato, invertebradosmarinhos preservados em posição de vida (in situ) e,portanto, sem transporte e reorientação, são excelentesindicadores de sedimentação rápida (episódica), semsignificativo distúrbio junto ao fundo. Contrariamente,inversão completa do exoesqueleto de corais, porexemplo, reflete a atuação de fortes ondas e correntesjunto ao fundo, sugerindo a ocorrência de eventos detempestade. No Brasil, exemplos desse tipo depreservação ocorrem com os biválvios da FormaçãoPiauí (Carbonífero) (Anelli et alii, 1998) e os conuláriosda Formação Ponta Grossa (Devoniano) (Simões et alii,2000; Rodrigues et alii, 2003).

    Desarticulação, transporte e soterramento emvertebrados

    A sequência ou ordem de desarticulação é umimportante fator na análise da história tafonômica deum vertebrado, porque fornece subsídios importantespara o entendimento dos processos e eventos ocorridosno período pós-morte/pré-soterramento. Os interessadospoderão recorrer a Bertoni-Machado (2008), para umarevisão dos processos tafonômicos em vertebradoscontinentais. A sequência de desarticulação doesqueleto vertebrado dependerá da anatomia corporal,do clima (pode ocorrer mumificação) e do tempodecorrido entre a morte e o soterramento. Emvertebrados, a sequência normal de desarticulação(Toots, 1965) é a seguinte:

    a) desconexão do crânio;

    b) desencaixe da mandíbula;

    c) desconexão das cinturas pélvica e escapular;

    d) desconexão dos membros em ossos isolados;

    e) desencaixe das costelas;

    f) desarticulação da coluna vertebral.

    Em vertebrados terrestres, sob clima árido, estasequência é prejudicada devido à mumificação(preservação parcial das partes moles por desidratação)das carcaças. Fatores adicionais, como a ação denecrófagos e, no caso de vertebrados terrestres, opisoteio (trampling), podem contribuir também para adesarticulação esqueletal (figura 3.2).

    De acordo com a transportabilidade hidráulica,Voorhies (1969) classificou os elementos esqueletaisdos vertebrados em três grupos, conhecidos por Gruposde Voorhies. No Grupo I, encontram-se os elementosremovidos quase que imediatamente, sendo compostospor falanges, carpais e tarsais e ossos porosos como oesterno e as vertebrais sacrais. No Grupo II, estão osrestos removidos por saltação e rolamento, como osfêmures, úmeros, tíbias, fíbulas e costelas. Por fim, noGrupo III, estão os restos que compõem os chamados“depósitos residuais”, incluindo elementos pesados epouco transportáveis, como o crânio e a mandíbula.Segundo Behrensmeyer (1975), as diferentes proporçõesde elementos dos Grupos de Voorhies, numa assembleiafóssil, podem fornecer evidências da proximidade dosfósseis da tanatocenose original e, por conseguinte, doshábitats onde estes animais viviam. Além dos fatorescitados anteriormente, quando há transporte hidráulico,há uma certa reorientação dos ossos, a qual, para os ossoslongos, será com a epífise maior voltada contra acorrente e as mandíbulas com a convexidade voltadapara cima (Behrensmeyer, 1990).

    O transporte biogênico, por predadores e/ounecrófagos, de elementos ósseos pode ser diferenciadodo transporte hidráulico quando não se observar umaseparação dos ossos em grupos de Voorhies e, muitasvezes, os ossos aparecem de uma maneira caótica, ouseja, sem nenhuma orientação preferencial (videBertoni-Machado & Holz, 2006, para um exemplo daatuação de necrófagos na gênese de assembleias devertebrados triássicos do Rio Grande do Sul).

    No caso de vertebrados, uma possibilidade depreservação de esqueletos inteiros, tanto em sistemasdeposicionais continentais, quanto marinhos, envolveo transporte de carcaças articuladas (= carcaças d’água)(figura 3.7). É sabido que a desarticulação de umorganismo e o transporte sofrido por seus restos estãointimamente relacionados, uma vez que muitas vezeso transporte se inicia quando a desarticulação ainda não

  • 33Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    terminou. Torna-se importante salientar, então, quenem sempre o alto grau de articulação de uma carapaçaimplica necessariamente na ausência de transporte.Muitas vezes, carcaças inchadas pelos gases daputrefação (figura 3.7), que ainda não tiveram os tecidosrompidos e se encontram cheias de gás no seu interior,o que diminui a densidade, são incorporadas pela cargado canal e podem ser transportadas por longas distânciasantes que os gases escapem e a carcaça afunde. Esseprocesso é bastante importante de ser observado, já quemuitas vezes organismos são encontrados longe do seuverdadeiro hábitat e caso o transporte não seja levadoem consideração, o paleontólogo poderá interpretarerroneamente a presença deste grupo, numdeterminado ambiente, levando a graves problemas nasreconstituições paleoecológicas. Identificar aschamadas carcaças d’água pode ser feito quando oesqueleto articulado apresentar um modo caótico nadisposição dos ossos, sem a curvatura cervical observadaem elementos articulados que foram soterrados, semterem sido transportados, já que, quando os gasesintestinais escapam, o organismo afunda e a preservaçãoocorre do jeito que a carcaça se acomodou junto aofundo do corpo d’água (figura 3.7).

    Os restos de vertebrados são, a princípio,resistentes à fragmentação, porque um osso é umelemento com certa elasticidade, devido à sua estruturainterna (canais, osso esponjoso), sendo capaz de absorvercertos impactos. Contudo, ossos apresentam sinaisevidentes de fragmentação nos casos de acúmulosmuito transportados, retrabalhados e concentrados aolongo de um grande período de tempo. Um exemplodeste tipo de concentração fossilífera é o registro demesossaurídeos nas rochas da Formação Irati (Permiano)da Bacia do Paraná. Em muitos casos, ocorrem acúmulosde ossos desarticulados e fragmentados, produto da açãode ondas sobre as carcaças de animais mortos, duranteeventos de alta energia, como tempestades (Holz &Soares, 1995; Soares, 2003).

    Desarticulação, transporte e soterramento emplantas vasculares

    O registro fóssil de plantas vasculares é, em geral,composto por órgãos isolados. Somente sob condiçõesparticulares de preservação, órgãos ainda em conexãoorgânica (articulados) são preservados. Em outraspalavras, desarticulação é um dos processostafonômicos que mais afeta os restos macroscópicos deplantas vasculares.

    De fato, uma vasta quantidade de biomassa éperdida pelas plantas vasculares através de mecanismosintrínsecos ou extrínsecos. Conforme já comentado, essa“produção” de partes esqueletais não necessariamenteimplica na morte do vegetal produtor. Dentre osintrínsecos, os mecanismos fisiológicos, tais como aabscissão, durante o crescimento ou sazonalidadeclimática, a perda da casca (súber) durante o crescimentovolumétrico e a dispersão de órgãos reprodutivos sedestacam como os principais processos de produção departes vegetais. Já os mecanismos extrínsecos,envolvem a perda de partes vegetais em decorrênciade fatores abióticos (físicos), tais como furacões,vendavais e chuvas torrenciais. Em todos esses casos,grande quantidade de matéria orgânica vegetal édisponibilizada, em um curto intervalo de tempo(geologicamente instantâneo).

    Uma vez disponibilizados, a degradação dosórgãos vegetais, sob condições subaéreas, ocorrerá naseguinte sequência: protoplasma, celulose, lignina,cutícula e esporopolenina. Além disso, a matériavegetal carbonizada (por incêndios, por exemplo) éresistente à decomposição (Scott & Collinson, 1983).Restos vegetais permanecendo sob as camadassuperficiais do solo irão ser decompostos por bactérias,fungos e invertebrados, dentre outros. Essa degradaçãofaz parte da reciclagem de matéria orgânica e avelocidade com que se processa dependerá dascondições climáticas, da natureza do substrato (argilosoversus arenoso) e das características intrínsecas do órgãovegetal. Uma vez que no meio subaéreo os órgãosvegetais serão decompostos, o acesso a um corpo deágua e sua posterior incorporação aos sedimentosaumentam o potencial de preservação desse grupo. Oacesso aos ambientes aquáticos se dá pelo transporteeólico ou pela incorporação de restos vegetais deelementos que vivem às margens dos corpos de água,por distintos processos, tais como: queda direta,escorregamentos e erosão das margens dos rios,soterramento, durante cheias. Uma vez no corpo deágua os órgãos vegetais podem flutuar e sertransportados pelas correntes a longas distâncias. Aflutuabilidade de determinados órgãos vegetais, comofolhas, por exemplo, depende da morfologia, espessurada cutícula, número de estômatos, grau de lignificação,fragmentação e degradação prévias, além dacompetência do agente de transporte. É importanteobservar, contudo, que assim como no meio subaéreo,no aquático, os restos vegetais estarão tambémsusceptíveis à degradação química e biológica. Ferguson

  • 34 Paleontologia

    (1985) notou que órgãos de espécies vegetais nutritivassão decompostos primeiros.

    A rápida incorporação (soterramento) dos ór-gãos vegetais no substrato é condição primordial parapreservação desses. Portanto, fatores como as taxas desedimentação, os tipos de sedimentos envolvidos e ohábito de vida das plantas vasculares terão papel im-portante durante o processo de fossilização. Osoterramento poderá se dar em intervalos geologica-mente instantâneos ou durante prolongados períodosde tempo. A preservação de vegetais in situ (na posiçãode vida) ou no ambiente de vida está associado, emgeral, a eventos geológicos episódicos, como os fluxosde massa e enchentes. Nesses casos, os órgãos vegetaisda copa das árvores são perdidos, mas raízes e troncossão preservados. No caso das estruturas radiculares, osórgãos vegetais que estão profundamente implantadosno substrato possuem maior potencial de preservação.Por outro lado, a sedimentação por partículas finas (ar-gilosas) são mais favoráveis à preservação de órgãosvegetais, em decorrência da porosidade limitada e mai-or plasticidade desses sedimentos (Ferguson, 1985).

    Transporte, decantação e soterramento emmicrofósseis (ênfase em foraminíferos)

    A tafonomia de microfósseis, exceto às formasplanctônicas, é menos estudada do que a dos grupos deorganismos acima apresentados. Em geral, as análisestratam, principalmente, das questões referentes aotransporte, a velocidade de decantação e a dissoluçãodas carapaças. Sínteses importantes sobre a tafonomiade microfósseis (ênfase em planctônicos) aparecem emHemleben et alii (1989); Molina (1990, 1996), Martin(1999); Martin et alii (1999), Molina (2002) e Martinez(2007).

    Os processos tafonômicos (bioestratinômicos ediagenéticos) que afetam as carapaças dos micro-organismos não são, em sua essência, distintos daquelesque atuam sobre os esqueletos de organismos de maiorporte. Contudo, em decorrência de seu tamanho pequeno,existem algumas particularidades importantes. Porexemplo, a dissolução é um dos principais processosque afetam tais partículas.

    Em decorrência de suas pequenas dimensões,testas de microfósseis calcários, particularmenteforaminíferos, são muito susceptíveis ao transporteapós a morte (Martin, 1999). Sob condições de águasrasas, plataformais de alta energia, bem como nos

    estuários e planícies de maré, as testas de foraminíferossão colo-cadas em suspensão na coluna de água etransportadas. Experimentos de transportabilidade comtestas de foraminíferos bentônicos (veja uma sínteseem Martin, 1999), mostram que, em geral, a forma datesta, a orientação inicial no substrato e a natureza desseinfluenciam o comportamento da partícula, durante otransporte. A velocidade tracional da corrente pode variarde 1-22 cm/s–1, sendo que sob tais condições omovimento das testas irá variar de rolamento asuspensão. Quando em suspensão as testas estão sujeitasao transporte lateral. Nas águas oceânicas superficiais,a velocidade de deriva necroplantônica pode variar de0,5 a 3,2 km/hora, transportando lateralmente as testasde foraminíferos planctônicos por longas distâncias(Molina, 1996).

    Outro fator que influencia a tafonomia das testasde foraminíferos é o seu comportamento dedecantação. Em geral, o peso, a densidade, o tamanhoe a forma da partícula exercem grande influência nopadrão de decantação das partículas bioclásticas.Dentre as principais formas de testas, as planares, commuitas câmaras são as que exibem menor velocidadede decantação. Isso quer dizer que, tais partículaspodem permanecer na coluna de água por maiortempo, estando, desse modo, sujeitas ao transporte(vide Simões et alii, 2007, para um efeito similar comconchas de braquiópodes). Do mesmo modo, ascarapaças de foraminíferos mortos, contendo aindarestos do citoplasma tendem a decantar maislentamente, do que aquelas completamente vazias(Molina, 1996), pois as que ainda contêm protoplasmanão são facilmente preenchidas. Estudos develocidade e comportamento de decantação de testasde espécies de Globigerinoides, uma forma planctônica,mostram que as carapaças vazias de G. ruber, com pesoaproximado de 5 g, decantam a uma velocidade deaproximadamente 320 metros/dia, enquanto que as deG. truncatulinoides, com peso de cerca de 50 g,decantam 1 400 metros/ dia. Desse modo, a maior partedas carapaças de foraminíferos planctônicos leva de 3a 12 dias para atingir a profundidade de 3 800 metros.Em outras palavras, em decorrência do tempo deresidência na coluna de água e as velocidades dascorrentes marinhas, as carapaças de foraminíferosplanctônicos estão sujeitas a acentuado transporte,após a morte, gerando assembleias alóctones. Essassão identificadas pela acentuada seleção granulo-métrica das carapaças (Molina, 1996). Além do

  • 35Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    transporte, a bioturbação é outro fator de mistura dastestas de foraminíferos nos sedimentos.

    Além do transporte, as carapaças de foraminíferose outros micro-organismos estão sujeitas também àabrasão e bioerosão. A bioerosão em foraminíferos écausada, principalmente, por bactérias endolíticas,fungos, algas e esponjas, dentre outros. Assim como nocaso dos macroinvertebrados, o processo de bioerosãopode começar em vida, seguindo a biodegradação, apósa morte. Diferentes tipos de perfurações (horizontais,verticais) são produzidas por esse processo, o que facilitatambém a ação da dissolução das carapaças.

    A dissolução é um dos principais agentes dedestruição das carapaças de micro-organismos (videThunell & Honjo, 1981 e Malmgren, 1987, para escalasde susceptibilidade à dissolução em foraminíferos atuaise fósseis, respectivamente), em razão de seu pequenotamanho, tanto que, nos foraminíferos planctônicos ascarapaças juvenis são dissolvidas mais rapidamente, doque a dos indivíduos adultos. Obviamente, o processode dissolução depende da estabilidade dos constituintesminerais da carapaça (mineralogia e microestrutura dacarapaça), frente aos fatores do ambiente desedimentação (concentração de CO2, pH, temperatura,pressão, teor de matéria orgânica do substrato, etc.). Sobcondições de pH ácido, como os encontrados nosambientes de mangues e estuários, ou nos substratosricos em matéria orgânica, as carapaças de foraminíferospodem ser dissolvidas em apenas um dia (Molina, 1996;Martinez, 2007). Um aspecto muito importante é o deque, comumente, a dissolução provoca o rebaixamentodas estruturas proeminentes das carapaças (erosãoquímica) ou mesmo a fratura dessa, à moda do que ocorrecom a abrasão. Porém, nesse caso, o processo é químicoe não físico (mecânico). Em geral, as carapaças comfeições de dissolução apresentam superfície externa,com textura granular, onde se observa a indivi-dualização dos minerais de carbonato de cálcio. Alémdisso, as carapaças exibem alteração de cor. Abaixo daprofundidade de compensação do carbonato de cálcio(3 000 a 4 000 metros), os fundos abissais são consti-tuídos, maiormente, por micro-organismos de esqueletosilicoso, em decorrência da dissolução do carbonato decálcio. Se, de um lado, o tamanho pequeno das testasde foraminíferos contribui, sob condições apropriadas,para sua rápida dissolução, por outro, ele favorecetambém o seu rápido recobrimento e inclusão nossedimentos. Esse fato, aliado a durabilidade dedeterminadas testas, assegura um alto potencial depreservação para as carapaças desses microfósseis.

    C. Outros Processos Bioestratinômicos

    Abrasão refere-se ao desgaste mecânico daspartículas bioclásticas ocorrendo, primeiramente,naquelas que permanecem expostas à interface água/sedimento, por prolongados períodos de tempo, sobcondições de alta energia (figura 3.8). Em condições deáguas muito rasas, agitadas, a abrasão é o principal agentefísico de desgaste dos esqueletos de invertebrados (Brett& Baird, 1986; Simões et alii, 2007). Experimentos emlaboratório demonstram que areia grossa, mal selecionada,é um importante agente abrasivo, desgastando edestruindo conchas de bivalves (Driscoll & Weltin, 1973)e braquiópodes (Torello, 2004), em poucas horas. Poroutro lado, o processo de abrasão não atua tãointensamente nos ambientes de águas mais profundas,de fundo argiloso, onde a bioerosão e a dissolução são osprincipais agentes de destruição dos bioclastos (Driscoll,1970; Driscoll & Weltin, 1973). Geralmente, o desgastede feições anatômicas proeminentes dos esqueletos deinvertebrados (e.g., umbo, carena, ornamentação, daconcha de biválvios e braquiópodes) são bons indicadoresde abrasão (Simões et alii, 2007), mas conforme já referido,tanto a abrasão mecânica, quanto à dissolução podemproduzir feições tafonômicas semelhantes nos bioclastos.A distinção entre ambos os processos, entretanto, se dá,em geral, pela textura superficial do bioclasto, que épolida nos que sofreram abrasão e granular, nos quesofreram dissolução (figura 3.8).

    Restos ósseos resistem melhor frente aos agentesde abrasão, a não ser quando pré-fossilizados. Ossos deanimais recém-mortos são, em sua maioria, elementospouco densos, passíveis de flutuar, apresentando, comojá dito, certa elasticidade. Quando pré-fossilizados (e.g.,durante a fase eo-diagenética em um horizonte de solo)e retrabalhados por eventos posteriores de erosão etransporte, os ossos já perderam sua elasticidade originale aumentaram sua densidade, vindo a sofrer maiordesgaste e fragmentação (Reif, 1971; Behrensmeyer,1975). Cook (1995) observa, entretanto, que acumulaçõesde vertebrados em sistemas fluviais de alta energia sãocaracterizadas por ossos fragmentados e com muitaabrasão, resultantes de vários ciclos de retrabalhamento,ao contrário de ambientes de baixa energia, onde osossos encontrados são menos fragmentados e com poucoou nenhum sinal de abrasão.

    Bioerosão envolve diversos processoscorrosivos, causados por agentes biológicos que levam a

  • 36 Paleontologia

    degradação das partes duras esqueletais, de indivíduosvivos ou mortos. O processo é particularmente severonos ambientes marinhos plataformais, onde fungos,esponjas e anelídeos frequentemente causamperfurações nas carapaças de carbonato de cálcio (figura3.8). Em muitos casos, como o descrito para braquiópodesda plataforma continental brasileira, o processo pode

    iniciar em vida. A bioerosão pode contribuir tambémpara a fragmentação dos bioclastos, por aumentar afragilidade desses. Não é incomum observar bioclastosfragmentados, tendo a superfície da fratura, como áreascorrespondentes às galerias ocupadas por organismosparasitas ou co-mensais.

    Figura 3.8 Diferentes estágios de alteração tafonômica de um mesmo bioclasto (conchas de braquiópodes,Bouchardia rosea). Em A, B e C, concha recém-morta, sem alterações. Em D, concha fragmentada pela ação de organis-mos durofágos (quebra facilitada por agentes biológicos). Já em E e F, as conchas mostram abrasão, pela ação deagentes mecânicos (hidráulicos), enquanto em G e H, por agentes químicos, dissolução. Note que em ambos os gruposde conchas, as alterações produziram o rebaixamento (erosão) das estruturas mais proeminentes das conchas (bico,umbo, dentes), porém, por processos distintos. De I a N, conchas com bioerosão (perfuradas) e incrustação. Escalagráfica (5 mm).

  • 37Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    Dissolução refere-se ao desgaste químico dosrestos esqueletais (figura 3.8), podendo estar associada àatividade das águas intersticiais, de organismos, no casode bioerosão, ou das águas subterrâneas e superficiais(intemperismo). Sob condições de águas não saturadasem carbonatos ou de pH baixo, os restos esqueletaiscarbonáticos tendem a se dissolver (Brett & Baird, 1986;Speyer & Brett, 1988). No ambiente marinho, conchase outros bioclastos aragoníticos, são passíveis de rápidadissolução ou neomorfismo para calcita (forma maisestável do carbonato de cálcio). Nos oceanos adissolução depende fundamentalmente do conteúdo deCO2, o qual aumenta com as altas pressões e baixatemperatura. Desse modo, a partir de determinadasprofundidades abaixo da profundidade de compensaçãodo carbonato de cálcio, que é variável no tempo e noespaço, os esqueletos carbonáticos se dissolvem,sobretudo dos micro-organismos planctônicos. Entreesses as conchas dos moluscos pterópodes se dissolvemao atingir 3 000 metros, enquanto que as testas dosforaminíferos calcíticos são dissolvidas a partir de 4 000a 5 000 metros de profundidade, nas médias e baixaslatitudes (Molina, 1996).

    O termo corrosão é empregado para as feiçõesde desgaste originadas conjuntamente pelos processosde abrasão, bioerosão ou dissolução. Na prática, o graude corrosão apresentado pelos restos esqueletais estádiretamente relacionado com o tempo de exposição nainterface água/sedimento. Brett & Baird (1986) ilustra-ram, por exemplo, corais rugosa exibindo corrosão di-ferencial entre a porção superior e inferior do corallum.Normalmente, a porção superior do corallum apresen-ta-se intensamente corroída, em decorrência de suaexposição na interface água/sedimento. Biválvios,gastrópodes ou braquiópodes com conchas exibindocorrosão ao longo de toda superfície indicam prolonga-da exposição no fundo, porém, com frequente retraba-lhamento, expondo toda a superfície das conchas aosprocessos de desgaste físico, químico e biológico. Bio-clastos intensamente incrustados permitem identificarmúltiplos episódios de colonização das conchas, possi-bilitando o reconhecimento de sucessões ecológicasnas comunidades de organismos incrustantes (Roland etalii, 2004, 2006).

    O intemperismo pré-fossilização é umprocesso muito importante para os restos de vertebrados,englobando o conjunto de processos físico-químicospelos quais os ossos expostos passam quando estão nasuperfície do solo. Quando expostos à ação dos fatores

    climáticos, os ossos se decompõem e sua destruiçãofaz parte do ciclo natural de reciclagem de nutrientespelo solo. A chance de um osso virar um fóssil depen-derá da intensidade dos processos destrutivos e da sortede ser soterrado antes da completa destruição. Beh-rensmeyer (1978) propôs os seguintes estágios deintemperismo:

    a) estágio 0: a superfície do osso não apresenta sinaisde rachaduras nem de lascas. Geralmente os ossos estãofrescos, com restos de tecidos nas cavidades e pele ourestos de ligamentos e músculos recobrindo a superfíciedo osso;

    b) estágio 1: ossos começam a apresentar rachaduras,normalmente paralelas a estrutura fibrosa do osso (e.g.,longitudinalmente em ossos longos). As superfíciesarticulares podem apresentar rachaduras em mosaico,bem como o próprio osso. Gordura, pele e outros tecidospoderão estar ausentes;

    c) estágio 2: as camadas mais superficiais dos ossoscomeçam a soltar lascas, associadas a rachaduras e nolimite dos ossos, ao longo das rachaduras, pequenas lascasde ossos podem se soltar. Lascas mais profundas começama se formar até a parte mais superficial dos ossos estartoda rachada. Pequenos pedaços remanescentes deligamentos, cartilagem e pele podem estar presentes;

    d) estágio 3: a superfície óssea é caracterizada porpedaços intemperizados, homogêneos e ásperos de ossocompacto, resultando numa superfície fibrosa, nestesfragmentos todas as camadas externas e concêntricasde osso foram removidas e, gradualmente, toda asuperfície do osso assume esta característica. Ointemperismo não ultrapassa os primeiros 1-1,5 mm dasuperfície do osso e as fibras ósseas ainda se encontramfirmemente ligadas umas às outras. Tecidos moles sãoraros neste estágio;

    e) estágio 4: a superfície do osso se apresenta com umatextura fibrosa, ocorrem grandes e pequenas lascas quepodem se soltar quando o osso é movido e até as cavidadesmais internas já se encontram intemperizadas;

    f) estágio 5: o osso se desintegra no local, com grandeslascas se soltando e sendo facilmente quebrados quandomovido. A forma original do osso pode ser difícil deidentificar.

    As tabelas 3.1, 3.3 e 3.4 apresentam sínteses dasimplicações tafonômicas de alguns dos processos acimadiscutidos.

  • 38 Paleontologia

    Tabela 3.3 Implicações tafonômicas dos processos físicos, químicos ebiológicos de destruição dos restos esqueletais

    Tabela 3.4 Resumo das principais características tafonômicas nos diferentesambientes fluviais (modificado de Holz & Simões, 2005)

  • 39Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    Soterramento Final e Diagênese

    Certamente, o soterramento final é um passodecisivo para que os restos orgânicos fiquem preservadosno registro geológico. Os restos esqueletais mortos ouem decomposição presentes no substrato estão sujeitos,conforme visto acima, a uma série de processos(biológicos, físicos e químicos) destrutivos. A camadado substrato que incorpora os restos orgânicos e onde osfenômenos de destruição das partículas biolclásticas seprocessam é denominada de Zona TafonomicamenteAtiva (do inglês TAZ = Taphonomically Active Zone,Davies et alii, 1989). A ZTA corresponde, em parte, ainterface água/sedimento, mas sua profundidade évariável, dependendo do tipo de sedimento, daporosidade e capilaridade, das condições geoquímicaslocais (pH da água intersticial), da presença de organismos

    bioturbadores e microbianos, dentre outros fatores. Umapartícula bioclástica residindo na ZTA terá poucaschances de se fossilizar. Para que isto ocorra, osoterramento deve retirar essa partícula da ZTA,transferindo-a para a Zona ou Profundidade deSoterramento Final (do inglês DFB = Depth of FinalBurial) (figura 3.9).

    Nos ambientes marinhos siliciclásticos, porexemplo, a destruição de conchas carbonáticas, como ados moluscos bentônicos, parece ocorrer nas camadasmais superiores da ZTA, correspondente à interfaceágua/sedimento. Para as testas de foraminíferos, poroutro lado, a ZTA corresponde aos primeiros 10 cm dosubstrato, na maioria dos ambientes marinhos (rasos ouprofundos) (Walker & Goldstein, 1999). Vide tabela 3.5para a composição mineralógica dos principais gruposde organismos marinhos.

    Figura 3.9 Fundo marinho raso, oxigenado, mostrando a distribuição da interface água-sedimento, da zonatafonomicamente ativa (ZTA) e da zona de soterramento final (ZSF). Observe que o limite ZTA-ZSF é dado pela ausênciade organismos bioturbadores. Enquanto permanece na ZTA, a concha de gastrópode (A) permanece sujeita à destruição,por fatores físicos (retrabalhamento), biológicos (ataque de durofagos) ou químicos (dissolução pela água intersticialdos sedimentos). Seu potencial de preservação é ampliado, quando a concha de gastrópode (B) é “sequestrada”(retirada da ZTA), por aumento na taxa de sedimentação.

  • 40 Paleontologia

    Tabela 3.5 Composição mineralógica do esqueleto dos principais tipos deorganismos, de acordo com Mendes (1988)

    Uma vez atingida, a ZSF tem início a atuaçãomais efetiva dos processos diagenéticos. No capítuloFOSSILDIAGÊNESE dessa obra, a diagênese dos fós-seis é apresentada em detalhe. Portanto, essa questãoserá abordada aqui de maneira breve. Três são as fasesdiagenéticas principais, ou seja: sindiagênese,anadiagênese e telodiagênese (vide Choquette &Pray, 1970, para os estágios diagenéticos, em rochascarbonáticas). A sindiagênese corresponde ao iníciodos processos diagenéticos e, nessa fase, ocorrem mo-dificações importantes na geoquímica das águasintersticiais, que tendem ao caráter redutor e pH emtorno de 9. As modificações (dissolução) que ocorremdurante essa fase se processam no substrato a profundi-dades que variam de 1 a 10 metros, numa escala de

    tempo da ordem de 1 000 a 100 000 anos. A permine-ralização é um tipo de fossilização que ocorre duranteessa fase. A anadiagênese se processa nas rochas soter-radas a 10 e 10 000 metros de profundidade. Sua dura-ção absoluta oscila entre 106 e 107 anos. Além da per-mineralização, os principais processos que ocorrem nessafase são a cimentação, recristalização (= neomor-fismo) e substituição (= metasomatismo). Finalmen-te, a telodiagênese envolve os processos de diagenéti-cos inicialmente produzidos durante a fase desoerguimento tectônico e posterior intemperismo e ero-são das rochas expostas à superfície terrestre. As altera-ções físico-químicas se processam, nas rochas, desde asuperfície até aproximadamente 5 000 metros de pro-fundidade, numa escala de tempo de dias a 1 000 x 106

    anos.

  • 41Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    Classificação das ConcentraçõesFossilíferas

    Não existe ainda na literatura consenso comrelação aos critérios a serem utilizados na identificaçãoe na classificação das concentrações fossilíferas. Aclassificação das concentrações fossilíferas pode sermeramente descritiva ou estar fundamentada emcritérios genéticos, combinando feições tafonômicas,com outras sedimentológicas e estratigráficas, porexemplo. Algumas classificações levam em conta ahistória e o tempo de acumulação, como critério dedistinção.

    O termo assembleia fóssil tem sido empregadopara designar qualquer acumulação relativamente densade partes duras esqueletais, a despeito de suacomposição taxonômica, estado de preservação ou graude modificação pós-morte. Podem representaracumulações geradas em um breve ou prolongadoperíodo de tempo. Uma assembleia fóssil pode conterelementos transportados ou autóctones. Assembleiaautóctone (Kidwell et alii, 1986) é composta por fósseisderivados de uma comunidade local e preservados emposição de vida. Assembleia parautóctone (Kidwellet alii, 1986) é formada por espécimes autóctones quenão foram transportados para fora de seu hábitat original.Finalmente, assembleia alóctone é composta porespécimes transportados para fora de seu hábitat de vida(Kidwell et alii, 1986).

    Atualmente existe tendência em utilizar asclassificações genéticas, pois estas são fundamentadas,principalmente, na análise detalhada das feiçõesbioestratinômicas e diagenéticas dos fósseis e nascaracterísticas sedimentológicas e estratigráficas dosdepósitos fossilíferos.

    A. Concentrações Fossilíferas emSistemas Marinhos

    No ambiente marinho, ondas de tempo bom,ondas de tempestades, fluxos de tempestade, correntesunidirecionais ou oscilatórias de longa duração eprodutividade biológica são considerados os principaisprocessos responsáveis pela gênese das concentraçõesfossilíferas. As concentrações fossilíferas resultantesdestes processos podem ser agrupadas em diversos tipos(Fürsich & Oschmann, 1993) (figura 3.10), cujasprincipais feições são descritas a seguir:

    a) concentrações geradas por ondas de tempo bom:concentrações suportadas por bioclastos, exibindo baixograu de seleção. Bioclastos fragmentados, desarticulados,com alto grau de abrasão são dominantes, ocorrendo emassociação com outros elementos esqueletais nãofragmentados. Estes, entretanto, são raros. Bioclastosencrustados e bioerodidos podem estar presentes. Emseção, os bioclastos podem estar dispostos na matriz coma convexidade volta para cima (e.g., biválvios). Em planta,os bioclastos podem apresentar distribuição bimodal, aqual é caracteristicamente formada por ondas, o queestaria de acordo com os altos valores de abrasão efragmentação dos bioclastos. Em muitos casos, a baixaseleção da matriz e dos bioclastos pode indicardeposição em um ambiente intermarés (shoreface);

    b) concentrações geradas por ondas de tempesta-de: a principal diferença entre estas concentrações eaquelas geradas por ondas de tempo bom diz respeito amelhor qualidade de preservação dos bioclastos nasconcentrações formadas por ondas de tempestade. Taisconcentrações exibem base erosiva, gradação e algumaseleção dos bioclastos (e.g., mistura de conchas fragmen-tadas e completas). Em planta e seção, os bioclastosestão distribuídos caoticamente na matriz. Bioclastosarticulados (e.g., conchas de biválvios) são comuns, es-ses, porém, não exibem sinais de abrasão, bioerosão eencrustação. A ocorrência frequente de conchas articu-ladas fechadas de invertebrados da infauna, nestas con-centrações, indica exumação, reorientação e rápidosoterramento de animais ainda vivos, o que é melhorexplicado por ondas de tempestades (Fürsich &Oschmann, 1993; Simões et alii, 1996);

    c) concentrações geradas por fluxos de tempestade:concentrações suportadas pelos bioclastos (e.g.,coquinas), com base erosiva e gradação descontínua.Em seção, os bioclastos estão caoticamente distribuídosna matriz, com a convexidade voltada para cima ou parabaixo, aninhados ou empacotados, às vezes exibindoalto índice de fragmentação e abrasão ou contendomistura de bioclastos bem preservados (Fürsich &Oschmann, 1986, 1993; Simões et alii, 1996). A principaldiferença entre tais concentrações e as geradas por ondasde tempestade diz respeito a natureza da matriz que, nocaso das concentrações formadas por fluxos detempestade, é indicativa de transporte;

    d) resíduos (Lags) transgressivos: concentraçõescontendo bioclastos fragmentados ou não, desarticulados,

    GustavoRealce

  • 42 Paleontologia

    exibindo intensa bioerosão e encrustação. Em planta, osbioclastos estão caoticamente distribuídos, embora, emseção, estes possam estar horizontalmente arranjados,de acordo com o plano de acamamento. O alto grau deretrabalhamento e a intensa ocorrência de bioerosão eencrustação indicam que os elementos esqueletaissofreram prolongada exposição e transporte na interfaceágua/sedimento, durante períodos de omissão ou erosãodo fundo. Tais concentrações registrariam longosperíodos de tempos;

    e) concentrações condensadas: concentraçõescontendo bioclastos bem preservados em associaçãocom outros exibindo intensa fragmentação, bioerosão e

    encrustação. Cimentação diagenética precoce (e.g.,hardground) é comum. Associadamente podem ocorrertambém concreções retrabalhadas. Elementos esqueletaisexibindo histórias tafonômicas distintas (e.g., mistura debioclastos bem preservados e bioclastos incrustados,fragmentados, vide Simões & Kowalewski, 1998)indicam a complexidade destas concentrações, sendoque o longo intervalo de tempo decorrido na sua gêneseé evidenciado não apenas pela presença das concreçõesretrabalhadas, como pela ocorrência de hardgrounds;

    f) concentrações “primariamente” biogênicas:concentrações suportadas por bioclastos ou não,contendo alta porcentagem de fósseis preservados em

    Figura 3.10 Distribuição ao longo de gradiente batimétrico, águas rasas/profundas, dos proceossosconcentradores de material bioclástico e seus respectivos produtos sedimentares (acumulações biogênicas), modificadode Fürsich & Oschmann (1993).

  • 43Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    posição de vida, normalmente, incluindo invertebradosda epifauna, tais como: biválvios gregários, braquiópodese corais. A presença de conchas fragmentadas é reduzida,embora conchas encrustadas sejam comuns. A presençade fósseis da epifauna preservados em posição de vidaindica pouco ou nenhum distúrbio de fundo, durante agênese destas concentrações.

    A figura 3.10 fornece uma ideia da distribuiçãobatimétrica e ambiental das concentrações descritasacima.

    B. Concentrações Fossilíferas emSistemas Continentais

    A preservação de restos orgânicos pode ocorrerno meio subaéreo e subaquoso, embora o último sejamuito mais efetivo neste sentido. Fósseis já foramreportados em sedimentos eólicos e tufos subaéreos,além de ocorrências em fendas cársticas (Schönfeld,1911; Walker, 1973; Boy, 1977; Graham, 1981). Asprincipais ocorrências de invertebrados e vertebrados,nos sistemas continentais, porém, estão associadas aosambientes de origem fluvial (vide Bertoni-Machado,2008), lacustrina ou de ambiente costeiro. Restos demacrofósseis vegetais são comumente encontrados noambiente fluvial, deltaico e lacustrino (Greenwood,1991).

    Ocorrências em sistema fluvial

    Os depósitos aluviais são bastante represen-tativos no registro estratigráfico e, embora os rios hámuito tempo sejam reconhecidos como agenteserosivos e transportadores de sedimentos, sua funçãocomo sítio de preservação e acumulação de restosorgânicos foi bastante negligenciada (Bertoni-Machado,2008).

    Rios ocorrem sobre amplas áreas continentais eem qualquer contexto climático e os distintos tipos desistemas fluviais (reto, entrelaçado, anastomosado emeandrante), variam significativamente as suas carac-terísticas, sendo fatores como o relevo e a descarga agen-tes controladores da capacidade e competência do sis-tema fluvial, refletidos, principalmente, no tipo de se-dimento transportado e na morfologia do canal.Tetrápodes terrestres dependem de água para viver,portanto é natural encontrá-los próximo a corpos d’água,sejam esses grandes rios ou lagos de planície de inun-dação, portanto, espera-se que sejam encontrados res-tos fósseis de organismos pretéritos em sedimentosaluviais.

    Carcaças de vertebrados e restos vegetais podemser incorporados à carga do canal (figura 3.11) e enca-lhar nos meandros do sistema de canais (aporte de res-tos biogênicos, figura 3.11 B e C), sendo posteriormen-

    Figura 3.11 Seção mostrando os diferentes depósitos fluviais, em sistema de canal meandrante e a trajetóriatafonômica dos restos de vertebrados, modificado de Behrensmeyer (1982).

  • 44 Paleontologia

    te recobertos pela sedimentação. Esqueletos de verte-brados, nesse caso, podem ser preservados relativamen-te inteiros e articulados. Os restos na planície de inun-dação (figura 3.11A) podem ser soterrados nas épocasde cheia, quando ocorrem rompimentos de diques einundação da planície. A migração lateral, característi-ca dos sistemas meandrantes, pode erodir depósitospreexistentes (figura 3.11A”), mobilizando restos pré-fossilizados, dentro do horizonte de solo (figura 3.11A’)e na planície de inundação (figura 3.11A). Dessa forma,ossos e fragmentos vegetais são incorporados à cargano canal (figura 3.11D), onde se misturam com ossosmais recentes, provenientes de animais recém-mortose ainda sujeitos a necrólise e desarticulação. Pelo ex-posto, pode-se dizer, portanto, que o modo de preserva-ção dos fósseis em sistemas fluviais é controlado pelodesenvolvimento das fácies de canal e planície de inun-dação, como resumido na tabela 3.4. O leitor interessa-do poderá recorrer a Kotzian & Simões (2006), para umaanálise detalhada de tafonomia e invertebrados em sis-tema fluvial meandrante, tendo o Rio Touro Passo, RS,como exemplo.

    Já os vegetais, em geral, são raros em depósitosresiduais de canal, de rios meandrantes, embora, órgãosvegetais de grande porte, como troncos, possam acu-mular nesses depósitos (Greenwood, 1991). Restos ve-getais são preservados também nos sedimentos das bar-ras em pontal, incluindo folhas, flores e troncos. Depó-sitos de rompimento de diques marginais podemrecobrir os solos das planícies de inundação, preservan-do assim, paleosolos contendo estruturas radiculares.As planícies de inundação e ambientes correlatos (me-andros abandonados), são sazonalmente inundadas, re-cebendo o aporte de clásticos finos. Onde a planíciepermanece alagada a maior parte do ano, restos vege-tais podem são soterrados e podem apresentar excelen-te preservação (Spicier, 1989). Se houver desenvolvi-mento luxuriante da vegetação, então, nesses ambien-tes haverá condições para formação de turfeiras.

    Ocorrências em sistema lacustre

    Existem vários tipos de lagos (lagos pantanosos,lagos temporários), mas os mais efetivos para preserva-ção dos restos esqueletais, são os lagos eutróficos (=ricos em nutrientes), já que o acúmulo de sedimentosapropélico favorece a conservação. As sucessões sedi-mentares geradas em ambiente lacustre são, em geral,mais uniformes na espessura e continuidade lateral das

    camadas. Em outras palavras, os depósitos lacustres sãotabulares, em seção, e finamente laminados.

    Restos vegetais representados por troncos, fo-lhas, sementes, frutos e, mais raramente, por flores, alémde conchas de biválvios e outros moluscos (e.g.,gastrópodes dulcícolas ou terrestre), bem como de crus-táceos, são comuns nos sedimentos lacustres. Troncos evertebrados podem ser transportados para dentro do siste-ma lacustre pelas correntes dos rios e constituírem regis-tros alóctones. Existe consenso de que, no caso das plan-tas vasculares, o registro nos sedimentos lacustreslaminados, o qual é representado principalmente porfolhas, é dominado por indivíduos da flora local(Greenwood, 1991).

    A questão do tempo envolvido na formação des-tas concentrações fossilíferas lacustres pode, em algunscasos, ser resolvido com bastante acuracidade. Depósi-tos várvicos permitem determinar, em casos extremos,até o ano da morte de determinado organismo (Wilson,1987). Outra maneira de resolver a representatividadetemporal média destas ocorrências é utilizar-se de taxasde sedimentação de lagos holocênicos, extrapolando osdados, posteriormente. Empregando esse procedimen-to, a maioria das ocorrências fossilíferas, em leitos comcentímetros a decímetros de espessura, aponta um perí-odo de tempo médio de deposição, da ordem de 103

    anos (Webb & Webb, 1988), a despeito do problema daocorrência de eventos esporádicos (tempestades, cor-rentes de turbidez). Esses eventos mobilizam, em mui-to pouco tempo, grande quantidade de sedimento, im-pedindo o amplo emprego do cálculo de taxas médiasde sedimentação.

    Ocorrências em sistemas costeiros

    Os sistemas ditos transicionais, como estuários,deltas e lagunas, são dominados, em maior ou menorgrau, pela ação dos processos marinhos (e.g., ondas, ma-rés, correntes) que constituem poderosos agentes deretrabalhamento. Os sedimentos que melhor preservamorganismos vindos dos ambientes continentais, parti-cularmente órgãos vegetais, são os deltaicos, especial-mente, os dos deltas dominados pelos processos fluvi-ais. Deltas de maré e aqueles dominados por ondas nãosão propícios para preservação, a não ser na forma dedepósitos intensamente retrabalhados e com amploacúmulo de esqueletos de gerações muito distintas(mistura temporal).

  • 45Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    são particularmente comuns em determinados ambientessedimentares, como o marinho, plataformal e o lacustre.Em geral, a preservação excepcional dos organismos estáassociada à ausência de organismos decompositores,devido à anoxia do substrato, à hipersalinidade e aorápido soterramento da matéria orgânica. Além disso, emdeterminados ambientes, como o marinho, por exemplo,a presença de esteiras microbianas, junto ao fundo éimportante para a preservação das partes moles, porpromover a rápida mineralização dos tecidos (Briggs,2001). As ocorrências em âmbar, lagos de asfalto e gelo,etc., são consideradas como armadilhas de preservação,envolvendo ambientes muito específicos (Seilacher etalii, 1985). Importante lembrar que os depósitos deKonservat-lagerstätten poderão conter elementostransportados, como é o caso do Folhelho Burgess e doCalcário Solnhofen, misturados a outros elementospreservados in situ.

    No Brasil, certamente, muitas das con-centrações fossilíferas da Formação Santana(Cretáceo), da Bacia do Araripe, contendo umadiversificada fauna de peixes, vertebrados terrestrese semiaquáticos, insetos e vegetais, dentre outrosfósseis excepcionalmente bem preservados, cons-tituem exemplos de fossillagerstätten. Outrosexemplos importantes são as concentraçõesfossilíferas da Formação Santa Maria (Triássico),Bacia do Paraná, no Estado do Rio Grande do Sul eas acumulações de restos de mamíferos paleocênicosda Bacia de São José de Itaboraí, no Estado do Riode Janeiro.

    Implicações em Sistemática dosProcessos de Fossilização

    Através do processo de fossilização, especial-mente da fase de fossildiagênese, alterações morfológicaspodem ser produzidas nos elementos esqueletais. Esseaspecto pode afetar diretamente a identificação dasespécies, por vezes levando ao reconhecimento detáxons inválidos. O termo tafotáxon foi introduzido naliteratura paleontológica por Lucas (2001), em alusãoaos taxa erigidos com base em caracteres morfológicosque são fruto de alterações produzidas pelo processo defossilização. Embora o uso do termo tafotáxon seja novo,a questão da distinção entre os caracteres morfológicosque têm origem realmente biológica daqueles que sãoresultados do processo de fossilização há muito preocupaos paleontólogos. No Brasil, por exemplo, Rocha-

    Acúmulos de invertebrados são frequentesnesses sistemas, entretanto, restos de vertebradossão raros. Existem também poucas ocorrências devertebrados fósseis em sedimentos estuarinos oude plataforma, uma das mais conhecidas, é,possivelmente, a de messosaurídeos da FormaçãoIrati (Permiano) da Bacia do Paraná (Boy, 1977;Holz & Soares, 1995; Soares, 2003).

    Preservação Excepcional:Fossil-Lagerstätten

    Seilacher (1970, p. 34) empregou o termo fossil-lagerstätten para designar “um corpo rochoso quecontém, devido à qualidade e quantidade, um númeroincomum de informações paleontológicas”. Seilacheret alii (1985) distinguiram, basicamente, dois tipos defóssil-lagerstätten:

    a) ocorrências por concentração (Konzentrat-lagerstätten);

    b) ocorrências por conservação (Konservat-lagerstätten).

    O termo fossil-lagerstätten se popularizou naliteratura tafonômica e hoje esses depósitos sãosimplesmente denominados lagerstätten (singularlagerstätte). O primeiro tipo de lagerstätten caracteriza-se por concentrações contendo partes duras,desarticuladas, concentradas por algum agente exógeno,representando mistura de biotas de tempos diferentes.O segundo tipo representa concentrações caracterizadaspor decomposição incompleta das proteínas,preservando substâncias orgânicas não mineralizadas(e.g., quitina) e esqueletos completos, sendo que váriosfatores podem impedir sua decomposição (e.g.,sedimento sapropélico, armadilhas de conservaçãocomo turfeiras ou âmbar, fluxos de massas). Nesse tipode depósito, os fósseis estão excepcionalmente bempreservados e as condições tafonômicas de preservaçãosão muito particulares. O conhecimento disponívelsobre a natureza e os processos de preservação,envolvidos em tais depósitos, provêm dos estudos dasocorrências fósseis do Folhelho Burgess (Cambriano),Canadá, e da Fauna de Ediacara (Neoproterozoico),Austrália, conduzidos por autores, tais como D. Briggs,P. Allison, S. C. Morris e J. Gehling. Mais recentemente,Brigss (2001) e Bottjer et alii (2002) apresentaramsínteses sobre conhecimento das principais ocorrênciasde lagerstätten do mundo (vide tabela 3.6).

    Os depósitos do tipo Konservat-lagerstätten são,normalmente, formados por eventos catastróficos,associados ao soterramento instantâneo. Esses depósitos

    GustavoRealce

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  • 46 Paleontologia

    Campos (1970) demonstrou que a diversidade da faunamarinha de Taió (Formação Rio Bonito, Permianoinferior, Bacia do Paraná, Estado de Santa Catarina) eramenor, do que a suposta por Reed (1930) e Kegel &Costa (1951). Isto porque Rocha-Campos (1970)constatou que as sete espécies de pectinídeos atribuídasao gênero Heteropecten (=Aviculopecten), por autoresprévios, eram variantes intraespecíficas de Aviculopectencatharinae, sendo que as alterações na ornamentação dasvalvas eram fruto, em geral, do processo de fossilização(moldes compostos, vide Rocha-Campos, 1966).

    Em um dos casos melhor estudados, noBrasil, Holz & Schultz (1998) constataram aocorrência de alterações morfológicas e diagenéticassignificativas em ossos da paleoherpetofauna doMeso-Triássico do Gondwana sul-brasileiro. Neste

    caso, os fósseis apresentam um tipo de fossilizaçãoonde a permineralização foi seguida pela açãodeslocadora de carbonato de cálcio (calcita) (Holz& Schultz, 1998). As soluções permineralizantespenetraram no tecido ósseo, durante a fase eo-diagenética ou sindiagenética, preenchendo oscanais e os poros do tecido ósseo, posteriormente,expandindo a estrutura óssea, devido à intensacristalização da calcita, levando a alterações, emvolume, da ordem de 100%. Concomitante, com aexpansão diagenética, a apatita da estrutura internado osso sofreu corrosão, tendo como resultado finalum ”osso” fóssil muito inchado e constituído nãomais de apatita, mas dominantemente de calcita. Essaalteração diagenética levou a erros taxonômicos,apresentando espécies e gêneros não naturais, masgerados diageneticamente (Holz & Schultz, 1998).

    Tabela 3.6 Algumas das principais ocorrências mundiais de depósitos do tipoLagerstätten. Idades em milhões de anos. Compilado de diversos autores (e.g.,

    Seilacher et alii, 1985; Brigss, 2001; Botjer et alii, 2002)

  • 47Capítulo 3 – Tafonomia: Processos e Ambientes de Fossilização

    Reconhecer as variações morfológicas decorren-tes do processo de fossilização é, portanto, fundamen-tal para os estudos de cunho sistemático, para que asdescrições de novas espécies na paleontologia evitema validação de táxons artificiais, o que causa, por exem-plo, uma falsa ideia de diversidade da fauna. Dentre osestudos que ressaltam o papel da fossilização na altera-ção de caracteres morfológicos, o aspecto mais impor-tante é o de que os autores fundamentam suas observa-ções em coleções numerosas (Macnaughton & Pickerill,2003; Simões et alii, 2003). Nesses casos, consequente-mente, a identificação do maior espectro possível devariações morfológicas, decorrentes de alterações tafo-nômicas fica mais evidente, especialmente quando osexemplares vêm de intervalos estratigráficos distintose, por vezes, com histórias tafonômicas diferentes.