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PUC - PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Igor Fediczko Silva Streaming: produção, tecnologia e campo musical Mestrado em Ciências Sociais Orientador: Professor Doutor Rafael De Paula Aguiar Araújo São Paulo, 2018

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PUC - PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Igor Fediczko Silva

Streaming: produção, tecnologia e campo

musical

Mestrado em Ciências Sociais

Orientador: Professor Doutor Rafael De Paula Aguiar Araújo

São Paulo, 2018

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PUC - PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Igor Fediczko Silva

Streaming: produção, tecnologia e campo

musical

Mestrado em Ciências Sociais

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, sob a

orientação do Prof. Dr. Rafael Araújo

Orientador: Professor Doutor Rafael De Paula Aguiar Araújo

São Paulo, 2018

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Banca Examinadora

____________________________

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Quem dera eu fosse um músico

que só tocasse os clássicos,

a platéia chorando

e eu contando os compassos.

P. leminski

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Agradecimentos

Escrevo esse primeiro parágrafo de agradecimento como a última tecla no meu computador. Finalizo esse trabalho com um agradecimento especial: agradeço à minha mãe, que acompanhou todo o trajeto de minha pesquisa, minhas aulas. Metade ao meu lado, contando para todos os amigos e parentes, e a outra metade em alma, espírito e luz. Minha guia de todos os momentos.

Só depois de minha mãe se acidentar e não estar mais perto de mim que descobri que ela contava para todas as suas amigas e amigos que o filho dela estava fazendo mestrado e "estava indo muito bem". Fui descobrir só depois o quanto este trabalho era importante para ela. Começo esse trabalho com esse agradecimento, a quem penso todos os dias. Obrigado dona Sueli.

Se pudesse, agradeceria apenas a ela, mas seria injustiça com as dezenas de pessoas ao meu lado que também me deram força, carinho, preocupação e zelo. Agradeço ao meu orientador, sempre presente, nos momentos leves e nos momentos pesados; Rafael Araújo, um sopro de genialidade em momentos em que eu precisava de um caminho para seguir.

À Alessandra, que acompanhou todo o processo, desde a folha 1 até a 101. Se mostrou empolgada quando precisava me animar e me fez companhia em todos os momentos. Ao Éric, grande amigo que, com certeza, ditou boa parte do rumo dessa pesquisa. Me apresentou pessoas essenciais, me ajudou com cada uma das entrevistas e me elucidou dúvidas conceituais que seriam interpretadas de forma diferente sem a tua visão técnica e teórica.

Ao meu pai, sempre uma inspiração e energia para continuar e querer crescer.

Agradeço ao apoio dos amigos da PUC-SP, colegas de classe que mostraram que a estrada é longa e que estávamos - e ainda estamos - todos no mesmo rumo. A todos os funcionários, em especial Katia e Rafael, que sempre me ajudaram a resolver questões internas da universidade e não me deixaram perdido com as burocracias da academia.

À professora Carmen Furtado, uma luz que me guiou durante o processo de estudos e escrita durante os anos de mestrado, assim como outros professores do curso, como Silvana Tótora, Mônica de Carvalho, Rita Alves, Vera Chaia e demais professores do programa de pós graduação em Ciências Sociais.

Agradeço de antemão a banca, querida professora Rosemary Segurado e professor Claudio Penteado.

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Agradeço também a CAPES e FUNDASP,

pela bolsa concedida e oportunidade de realizar o

curso, apoio sem o qual não seria possível.

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RESUMO

Este trabalho apresenta uma contextualização histórica da criação do mp3 e o

início da pirataria, propondo assim uma análise da relação entre a música digital, o

mp3 e a diminuição dos lucros das gravadoras. Com a música digital surgiu espaço

para a criação do modelo de streaming utilizado atualmente de forma predominante.

Com a música digital e o streaming, artistas, produtores, compositores e demais

criadores de conteúdo mudaram seu modo de fazer música dentro do campo, com

estratégias, modos de agir e diferentes maneiras de consumir e produzir música.

Com o conceito de uberização, esse novo meio de produzir mostrou aos artistas que

o streaming não é um modelo rentável economicamente para vender suas músicas e

seus álbuns, e com isso artistas procuram novas maneiras de se relacionar e

relacionar a sua obra dentro das plataformas, procurando outro tipo de ganho: as

playlists. Através de entrevistas com diferentes atores, de diferentes posições dentro

do campo musical, o presente trabalho investiga o entendimento que esses músicos,

produtores e compositores têm sobre esse novo modelo de negócio dentro dos

serviços de streaming.

Palavras-chave: campo musical, streaming, pirataria, música digital.

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ABSTRACT

This work presents a historical contextualization of the creation of mp3 and the

beginning of piracy, thus proposing an analysis of the relation between digital music,

mp3 and the reduction of profits of the record companies. With the digital music

space has arisen to create the streaming model currently used predominantly. With

digital music and streaming, artists, producers, songwriters and other creators have

changed their way of making music on the field with strategies, ways of acting and

different ways of consuming and producing music. With the uberization concept, this

new medium of production has shown artists that streaming is not an economically

profitable model to sell their music and albums, and artists are looking for new ways

to relate and relate their work within the platforms, looking for another type of gain:

the playlists. Through interviews with different actors, from different positions within

the musical field, the present work investigates the understanding that these

musicians, producers and composers have about this new business model within the

streaming services.

Keywords: musical field, streaming, piracy, digital music

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GLOSSÁRIO

Agregadores de

áudio

Programas e sistemas online que atuam como

intermediários entre o artista comum e o serviços de

streaming, como Spotify, Deezer e outros. São os

agregadores que inserem músicas no catálogo dos serviços

de streaming e extraem deles os dados para apresentar

para o artista.

Compressão de

áudio

A compressão de áudio, diferentemente da compressão de

dados, é o nome dado a um recurso que reduz o volume de

determinadas faixas de áudio, até um certo limite definido

em estúdio. Com esse recurso é criado uma espécie de

volume interno, antes do limite definido pela compressão,

que dá a impressão de uma pressão sonora maior.

Home studio Estúdios de produção e gravação de músicas montados

sem aparato profissional. Na maioria das vezes, é o mesmo

local de descanso dos músicos, ou seja, o local de trabalho

se confunde com o local de descanso.

Também pode ser usado como modelo de produto. Linha

home studio ou versão home studio de um equipamento

profissional.

IRC Internet Relay Chat é um protocolo de transferência de

dados que foi amplamente usado no início dos anos 2000,

com formação de salas temáticas de bate papo e também

conversas privadas. Com a criação das redes sociais, o IRC

foi abandonado.

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Peer-2-peer Protocolo peer-to-peer, ou simplesmente p2p, é o nome

dado à conexão feita entre um computador pessoal de um

usuário diretamente a um outro computador pessoal de

outro usuário, sem a ausência de um servidor central

intermediando essa ligação. O protocolo p2p permite a

quase total ausência de controle do que está sendo

transmitido entre dois usuários.

Tracker Servidor que funciona como um meio de contato entre dois

computadores dentro de uma rede peer-2-peer. O tracker

funciona como um banco de dados que intermedia as

informações e metadados de um torrent, ligando quem

oferece um download e quem busca um download. Existem

trackers abertos, como o The Pirate Bay, e trackers

fechados, como o Speed.cd.

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Introdução 11 Metodologia 14 Conceitos 17 Construção 19

1. O direito autoral e a pirataria 22 1.1 Como surgiu o direito autoral e a produção dos fonogramas 22 1.2 A indústria fonográfica e as majors 27 1.3 O início da pirataria e o combate das gravadoras 29 1.4 A facilidade de uso 32 1.5 Como a música digital encontrou o mp3 33 1.6 O Napster e o início do compartilhamento de arquivos 36 1.7 MP3 depois do Napster 37 1.8 O auge da música pirata 38

2. A internet 47 2.1 Redes distribuídas 47 2.2 A organização dentro das redes 51

3. Streaming: novas regras em campo 54 3.1 Bourdieu e a noção de campo musical 54 3.2 O espaço dos possíveis 58 3.3 A efemeridade e rapidez do consumo 60 3.4 A mudança de valores e o "vácuo moral" 61 3.5 Os serviços de streaming num contexto pós-pirataria 62 3.6 O Spotify e suas receitas 64 3.7 A abertura de capital do Spotify 71 3.8 O YouTube e sua posição como maior rede de áudio do mundo 74 3.9 Streaming e a apropriação do campo 74

4. Compreendendo uma nova estética 77 4.1 Como que a música é moldada por playlists 77 4.2 Agentes da música e um novo habitus 79 4.3 Quanto pagam os serviços de streaming 81 4.4 Quanto ganham as gravadoras? 90

Considerações finais 93 As consequências do streaming na parte social da música 93 As consequências do streaming na parte técnica da música 95 O streaming veio para ficar? 98

Bibliografia 103

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Introdução

A música sempre nos acompanhou. Desde o primeiro canto, em uníssono,

passando pelos cantos gregorianos e a música de coral, chegando à música

gravada. Tivemos o gramophone, o vinil, a fita k7, o cd, o iPod, tantos suportes para

um dos bens imateriais mais valiosos da humanidade. Chegamos na era do

streaming, com dezenas de milhares de execuções, a um preço inimaginável.

Estamos em tempos onde nada é definitivo e tudo cada vez mais parece efêmero. A

urgência do mercado transforma-nos em seres consumidores, ávidos por novidades,

e o streaming chegou para ficar. Depois de tentativas, investimento em vendas,

plataformas, travas, reuniões, técnicos, cientistas, manobras econômicas e tantos

dispositivos diferentes, o que a atualidade nos mostra é que o streaming encontrou

um modo funcionar de maneira economicamente sustentável.

E esse mercado, que já foi do vinil, encontrou seu auge nas milhões de cópias

do CD, discos de platina, ouro, diamante, dominou as rádios, e hoje é das playlists

dos serviços de streaming. Não é mais o rock, o jazz, o pop, a mpb, mas sim

"músicas para malhar", "sertanejo para churrasco", "fim de semana no sítio",

"relaxando à noite", entre tantos outros nomes e taxonomias que dominam os

serviços, e que buscam, assim como as rádios buscavam, novidades, nomes e

conceitos para seu mercado.

O presente trabalho busca fazer uma análise do serviço de streaming e seu

comportamento como um todo. Quem são os players atuais? Como os artistas são

remunerados? Como a pirataria ainda se encaixa? O que mudou na produção do

artista? Ainda existem as grandes gravadoras? Por que se lançam mais singles e

não se lançam tantos grandes álbuns? Essas são algumas das questões que

precisam ser levantadas, num microcosmo de uma questão maior: a valoração e

valorização da arte na era do digital.

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É preciso então buscar na gênese da produção musical novos olhares sobre a

própria música e sobre as mudanças no campo com a chegada das plataformas de

compartilhamento de músicas. O Spotify, o YouTube, o SoundCloud e tantos outros

players deram um novo norte para o mercado e para as produções, mudando não

somente, e de forma muito clara, a maneira que se consome música, mas também a

própria maneira que se produz essa música, desde as ideias no campo das

composições, passando pela técnica dos estúdios e chegando na distribuição dos

arquivos através das plataformas.

Se antes o conceito de "músicas para churrasco" era uma taxonomia privada,

agora esse termo se torna público, e o próprio artista busca encontrar um público

que clica em outros links. Tanto o consumidor mudou o seu olhar e o seu paladar

para a música, quando o artista mudou o seu pensamento para satisfazer esse

consumidor. Então, é preciso fazer uma genealogia da música, como era antes da

microtecnologia e dos computadores, como era antes da pirataria e como era antes

do streaming. Feito isso, podemos categorizar os conceitos, conhecer como os

atores sociais se estabelecem e entender um pouco da mudança no campo musical.

Com o passar dos anos, e principalmente com a popularização dos

smartphones, o nível de concentração do ouvinte sobre a obra de arte diminui. A

música em si já não basta, como disse Frank Zappa em 1991: "Suponha que você

seja um compositor desconhecido, e tenha uma ideia revolucionária. O que você vai

fazer com ela? [...] No fim, todo mundo tem essa trabalheira enorme em função de

um público que não está lá. " 1

A questão que surge é como conseguir a atenção do público, e principalmente

de um novo público online, imerso em tantos outros sons, tantas notificações, tantas

distrações ? Como entender o mercado musical atual, pós-indústria tradicional da 2

1 Frank Zappa, em "A mãe de todas as entrevistas - Zappa fala sobre música e sociedade", entrevista concedida para Florindo Volpacchio na revista Telos (1991, p. 72).

2 Marco Gomes, "um dos melhores profissionais de marketing do mundo", pela World Technology Awards, escreve um texto em 2017 onde descreve que "hackearam o seu cérebro para te viciar em seu smartphone", um pequeno artigo sobre a economia de atenção, "técnicas com o objetivo de aumentar o engajamento dos usuários com seus apps".

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música? E o que é essa nova música, tomada por troféus simbólicos dentro desse

mercado e para esse público que não presta atenção no que se está ouvindo?

O streaming, uma nova maneira de se compartilhar músicas, surge como

novo modelo de mercado, mudando também o modelo de produção. É sobre isso

que iremos tratar nas páginas a seguir, sobre não apenas uma maneira de se ouvir

música, mas também uma maneira de se produzir música. E como será descrito

mais à frente, os conceitos de habitus e campo de Pierre Bourdieu ajudam a

entender o modelo de mercado do streaming, e como esse campo musical funciona

como uma "estrutura estruturante", produzido por um modelo técnico de alta

performance e produzindo este próprio modelo, criando uma nova música mais alta,

mais curta, e talvez mais simples tecnicamente.

E se estamos falando de um novo modelo de mercado, podemos pensar na

quase total extinção dos CDs, e uma marginal produção de vinis. Um público que é

constantemente testado por empresas líderes no segmento para também definir o

seu próximo produto, com artistas igualmente testados. Através de algoritmos

digitais altamente desenvolvidos, já se sabe qual música fará sucesso para o

público, e qual música gerará buzz - um conceito americano que define que não

basta apenas ter o produto, mas é preciso falar sobre o produto.

Com esse buzz, ou essa necessidade de ter uma música comentada,

viralizada, são criadas condutas invisíveis, no conceito bourdieusiano de habitus,

onde os artistas perseguem incansavelmente o próximo hit.

O problema aqui é descobrir se com todas essas estruturas, essas regras,

essas condutas e com esses novos atores em campo, a música mudou a sua

maneira de ser produzida na sua parte íntima e na sua parte técnica depois da

internet. É possível a rede, com suas regras de mercado, mudar o método do artista,

em sua casa, compor? É possível a rede mudar os temas?

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Metodologia

Para entender como a própria música mudou é preciso estudar o espaço

social onde a música transita. Fazer uma sociologia da música, ou nas palavras de

Bourdieu, estudar o campo musical, nos leva a conhecer os atores sociais dentro

deste campo e também os seus eixos simbólicos onde cada um dos atores estão

posicionados. Ou seja, não estamos interessados em fazer uma interpretação da

música pela música e sua erudição, mas sim fazer uma interpretação da música

dentro do contexto social em que ela está inserida. Afinal, qual o sentido de uma

música? Acredito que é possível encontrar o sentido do fonograma fora da própria 3

música. E esse sentido é social.

Hoje, com o avanço da tecnologia, é possível mostrar visualmente diferentes

características técnicas de uma composição, como o volume interno de cada

música, o que é chamado no campo musical de "compressão" . Músicas antigas, 4

como Smell Like Teen Spirit, da banda Nirvana, ou Dazed and Confuzed, da banda

Led Zeppelin, consideradas músicas "pesado", são músicas com uma menor

compressão do que a maioria das músicas pop atuais.

Essa mudança de volume interno, essa compressão cada vez mais forte, é

conhecida no campo musical como guerra por volume. A disputa por uma música

que seja percebida mesmo em volumes mais baixos mostra que os produtores não

estão preocupados exatamente em produzir uma obra tecnicamente desenvolvida,

erudita, mas sim uma obra musical mais alta e comprimida, que se destaque nos

fones de ouvidos e alto falantes, em qualquer nível de volume.

3 Segundo a Abramus - Associação Brasileira dos Músicos, a diferença entre obra e fonograma é que a obra é a música com sua melodia, arranjo, harmonia. Fonograma é a fixação desta obra musical em um suporte, seja um CD, vinil ou mesmo uma plataforma digital de streaming. (https://www.abramus.org.br/noticias/10277/obra-fonograma/)

4 Em maneiras gerais, a compressão é o que faz uma música ficar "cheia" por dentro. Imagine que há uma sala, e nesta sala há um aparelho de som e uma porta. Mesmo com volumes mais altos dentro da sala, fora da porta o volume não é tão alto. Porém, sempre que se aumenta o volume, também se comprime a música, até chegar ao ponto da música distorcer dentro da sala e não se perceber claramente por trás da porta. A compressão é o volume por trás da porta.

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A guerra por volume, ou loudness war, traz danos ao próprio ouvido, faz com

que artistas busquem uma nova maneira de produzir as suas músicas, faz com os

players do mercado meçam, através de seus algoritmos, o seu conteúdo e, no final

das contas, prejudica os ouvintes como um todo.

Através dos conceitos, o presente trabalho buscará encontrar uma mudança

técnica na maneira de se produzir música, e uma maneira social de se relacionar

com a música. Essa mudança carrega um novo habitus para os atores do campo

social, fazendo com que músicos intérpretes e músicos compositores se relacionem

de maneira diferente entre si, e também com as grandes gravadoras, adquirindo

uma nova função de relacionar com os artistas e com o seu próprio catálogo.

À luz de conceitos de Bourdieu, Adorno, Ludmila Costhek Abílio, Galloway e

Benkler, procurarei mostrar como que a música encontra e faz uso da internet. Além

disso, mostrarei diversas entrevistas com diversos atores sociais em diferentes

posições no campo musical.

André Whoong e Jeff Pina são músicos que buscam propagar as suas

composições e suas produções. Com a facilidade dos home studios, também se

tornam produtores e produzem suas músicas e músicas de terceiros, na maioria

voltada para os serviços de streaming.

Maestro Billy é DJ, compositor e também produtor. Trabalhou durante 14 anos

na TV aberta, no programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo, apresentado por

Luciano Huck. Com uma diferença de ativos da TV aberta para o streaming, Billy

pode visualizar de maneira linear a diferença de faturamento entre os diferentes

modelos de divulgação de suas músicas.

Tiago Barizon e Tomás Magno também são produtores, não atuando como

músicos no campo. Trabalham com bandas, na maioria das vezes, sem contrato

com grandes gravadoras.

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Fernando Sanches, dono de um dos grandes estúdios de SP, o estúdio El

Rocha, é engenheiro de gravação e de masterização. Não atua ativamente como

produtor, mas sim como engenheiro, gravando, escolhendo sons, ouvindo os

músicos. A entrevista com Fernando mostrou a ansiedade de novas bandas, se

descobrindo em uma nova realidade.

Arthur Fitzgibbon, presidente da OneRPM Brasil, uma das agregadoras de

áudio que mantém contato direto com os serviços de streaming, serviu como uma

luz para encontrar um caminho mais sólido para o restante do trabalho. A entrevista

de Fitzgibbon, mesmo que de forma rápida, mostrou que a empresa busca

claramente um novo modelo de negócio com os artistas e produtores de conteúdo.

E, finalizando as entrevistas com o produtor musical galês Paul Ralphes, que

ocupou durante oito anos a direção artística da Universal Music, uma das majors da

música. A entrevista com Ralphes, além de bastante esclarecedora, me trouxe

passagens como "há oito anos estávamos um momento muito ruim, mas agora há

saída, e com a tecnologia as pessoas têm feito mais músicas do que em qualquer

outra época", carregado de um sotaque britânico que deixou claro para mim: não se

ganha dinheiro com streaming.

Além do trabalho de campo com diferentes atores de diferentes posições e

também à luz dos conceitos dos autores citados acima, contei com praticamente 20

anos de estudos dentro da música, como guitarrista e como apaixonado por

tecnologia. Ter diferentes caixas de som de alta fidelidade, diferentes fones de

ouvidos, home studio, e também já ter participado de inúmeras gravações, além de

ter cadastro como produtor fonográfico em uma das instituições de arrecadação de

direitos autorais no Brasil, me deu a oportunidade de conseguir traçar paralelos entre

a tecnologia e a música, e também conduzir o trabalho de uma maneira que

trouxesse resultados interessantes.

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Conceitos

Para compreendermos o universo da música digital, é preciso repetir termos

já consolidados no mundo digital, mas ainda pouco conhecidos das Ciências Sociais.

Um campo musical que posiciona seus atores também de maneira digital,

conectando consumidores de músicas, produtores, artistas e sistemas digitais que

disponibilizam um catálogo completo de nosso produto, os chamados serviços de

streaming.

Adorno, quando escreve o seu "O fetichismo na música e a regressão da

audição" em 1938, poderia apenas estudar o próprio caráter fetichista da música

ligeira, mas ao inserir "a regressão da audição" no título, Adorno está trazendo um

debate sobre um problema paralelo ao nosso, mesmo 70 anos atrás.

Mas não se faz necessário propor uma unidade artística, como Adorno fazia

ao categorizar a música ligeira e a música séria, porém se faz necessário entender

as diferenças entre os suportes para as músicas e fonogramas, seja o LP, o CD ou o

streaming. E para isso precisamos detalhar alguns conceitos como ambiência,

compressão (já citado), bits, bytes, qualidade digital, streaming, peer-to-peer, e

deixar claro, como um glossário, cada um dos termos e conceitos.

Trabalharemos também com o conceito de uberização do trabalho, conceito

proposto por Ludmila Costhek Abílio, que refere-se ao termo como "um novo estágio

da exploração do trabalho", mudando não só a maneira em que o trabalhador é visto

perante a lei e o estatuto, mas também a maneira em que o próprio trabalhador se

identifica em seu trabalho e se posiciona no campo. Com um senso de

pertencimento ao seu próprio destino, o sistema de capital, seja o Uber, no caso de

Ludmila Costhek Abílio, ou o Spotify e YouTube, em nosso caso, surge uma forma

de controle e gerenciamento da mão de obra do trabalhador. Um novo passo nas

terceirizações que, através da sensação de pertencimento e de micro-dono de si

mesmo, misturado com as condições do trabalho, a uberização se apresenta como

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uma modernidade nas empresas digitais, ou como sugere Ludmila Abílio, as

empresas-aplicativo.

O que vimos nestas décadas é a enorme centralização do capital acompanhada por novas formas de intensificação do trabalho, extensão do tempo de trabalho e transferência de riscos e custos para os trabalhadores. [...] Complementa-se na medida em que é mais um passo na transferência de custos e responsabilidades sobre a produção. Mas é também uma forma de eliminação de empresas terceirizadas que não conseguirão bancar a concorrência com as empresas-aplicativo (ABÍLIO, 2017).

A uberização já tem a sua base formada antes da própria empresa de

transporte, vinda da diminuição dos vínculos e o aumento da extensão de jornada,

mas ela se consolida com as empresas-aplicativo no que é chamado por nós de

O-to-O, ou seja, soluções online para problemas offline . Empresas como a gigante

Uber , iFood e AirBNB são exemplos de uberização e criação de soluções online para

problemas como a necessidade do deslocamento, a necessidade de pedir comida

em sua casa e a necessidade de um local para se hospedar.

Todas essas empresas têm algo em comum: a transferência da

responsabilidade do sucesso para o usuário trabalhador e também a multidão de

consumidores vigilantes, dispostos a classificar os serviços oferecidos pelos

funcionários não registrados, ou também chamados de não-funcionários, das

empresas-aplicativo.

Principalmente nesse segundo aspecto, dos consumidores vigilantes e

classificação de produtos e serviços, que o presente trabalho sobre streaming se

apoia, com a extensão da responsabilidade do sucesso daquele que é

artista-músico-produtor de sua obra e os troféus criados por essas

empresas-aplicativo, que disponibilizam a obra para essa multidão de usuários,

prontos para compartilhar, curtir, comentar e dar um like para o artista e um centavo

para a empresa . 5

5 Sabemos que o artista também é remunerado economicamente por esse acesso, por esse like, porém é notório que o artista recebe cada vez menos pela execução de sua obra. Será discutido mais a frente a lógica e remuneração de cada serviço de streaming.

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O músico, agora responsável pelo seu próprio sucesso, está sempre

disponível para responder comentários, promover sua obra e criar estratégias

pessoais para o seu sucesso, baseado no que é aprendido com seus acertos e erros

. O engajamento e a disposição para estar sempre disponível para os seus 6

ouvintes, medidos através de algoritmos dessas empresas-aplicativo, também cria

regras invisíveis de conduta dentro do campo. É o início de uma construção de um

novo habitus no campo musical, uma estrutura que molda a maneira do artista se

relacionar com a sua própria obra.

Ainda, o fetiche criado em cima das playlists do Spotify e também no número

de inscritos em um canal de YouTube fez com que artistas se tornassem também

micro-empresários de sua própria obra, sempre disponíveis a criar estratégias,

responder clientes, analisar resultados e, principalmente, testar novos conteúdos nas

plataformas digitais, como o Spotify e YouTube , mas também nas redes sociais,

como o Facebook , Instagram e Twitter , com teasers , vídeos ao vivo, chats e outros

meios de interação e análise de resultados.

Construção

Durante a construção deste trabalho, passei por uma mudança na minha

própria maneira de consumir música. O que inicialmente seria um trabalho sobre a

maneira que a internet influenciou o modo de se produzir música, acabou se

tornando um trabalho sobre a maneira que os serviços de entrega de música digital

influenciaram e influenciam não apenas a forma de se produzir música, mas também

como se divulgar música e também consumir música.

Neste último item, ou seja, o consumo da música, tive que me adaptar

totalmente aos serviços de streaming , e mesmo a contragosto, aprendi a navegar no

6 Os aplicativos, ainda no conceito de que "hackearam o seu cérebro", avisam instantaneamente quando há um novo comentário, quando há uma crítica ou, principalmente, quando há a necessidade de se executar uma ação digital em seu catálogo. O artista vira um secretário de si mesmo, precisando atualizar de forma quase instantânea todos os seus dados digitais.

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YouTube e no Spotify como os usuários que não necessariamente produzem música

também navegam. Mudar de um artista para outro diferente artista, não ouvir um

disco até o final, misturar diferentes estéticas foram maneiras de eu entender por 7

que artistas lançam apenas singles e não albuns completos, e também por que

artistas fazem música com determinada duração e com determinada estrutura

musical.

Além disso, uma das grandes dificuldades foi tentar encontrar uma tabela

referencial de remuneração dos artistas pelos serviços de streaming . Em todos os

casos, o artista sabe quando uma música rendeu, mas não sabe o valor daquela

música. Se antes sabíamos que um CD na prateleira custa R$ 20, e que deste valor

iria uma porcentagem para o artista, hoje não se sabe o valor do play dentro do

serviço de streaming . Variáveis como a duração da faixa e o posicionamento da

música dentro do serviço fazem com que o preço não seja fixo e que o artista não

saiba o valor da sua própria obra.

Um trabalho que começou sobre a questão da pirataria, música digital e

produção, se desenvolveu com a guerra de volume e o músico dentro do estúdio

seguindo uma lógica de mercado dentro da internet e se concretizou com a

consolidação do streaming e do Spotify como um novo agente social dentro do

campo musical.

As entrevistas feitas com os diferentes agentes do campo musical foram feitas

com muita satisfação, mas também foram muito desafiadoras. Acreditar em um

conceito, mas ouvir dos entrevistados algo diferente, me fez estudar ainda mais os

detalhes do modo como consumimos música. Mas também foi muito prazeroso

terminar cada uma das entrevistas e perceber a vontade que o próprio entrevistado

tinha em conhecer um pouco mais sobre o tema. Ouvir o artista e produtor André

Whoong dizer "vou pesquisar mais sobre o assunto, sinto que deveria", ou o

produtor Tomás Magno perguntar qual era, em minha opinião, a melhor maneira de

7 É comum um álbum não apenas contar uma história conceitual e artística, mas também ter características técnicas, como um certo estúdio onde foi gravado, ou um certo timbre de guitarra. Isso faz com que um álbum tenha um contexto entre suas músicas.

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colocar músicas nos serviços de streaming me deram mais prazer na finalização do

trabalho.

No primeiro capítulo, intitulado O direito autoral e a pirataria , descrevi a

mudança da música com um suporte físico até o momento em que não há mais

suporte nenhum. Foi abordada a criação de um fonograma para a proteção dos

direitos autorais de um autor e de quem produz aquela obra, e o descarte dessa

proteção, com a criação do MP3.

Ainda no primeiro capítulo, achei muito interessante e curioso contar que a

pesquisa e programação que culminou no MP3 foi todo baseada em uma proteção

desse próprio fonograma, uma maneira para que os artistas ganhassem

digitalmente, porém a pirataria, com o Napster , grupos de IRC e demais warez se

apropriaram do formato para a divulgação e proliferação da distribuição ilegal de

músicas.

No segundo capítulo, que chamo de A internet , uso os conceitos de Galloway

e também Benkler para descrever as redes distribuídas, o protocolo P2P , e a internet

descentralizada.

No terceiro capítulo, Streaming, à luz de conceitos de Pierre Bourdieu,

mostro como que os novos players , como Spotify , YouTube , Deezer , Apple Music e

outros mudaram a relação entre os atores dentro do campo musical.

O quarto capítulo, "compreendendo uma nova estética", mostra como que

esses players, com posições dentro do campo musical, conseguiram, dentro de um

modelo de internet, adicionar um novo capítulo nessa linha do tempo da produção

musical. As playlists , o fim do álbum, o autotune e diversos recursos formais,

alterando o conteúdo das obras.

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1. O direito autoral e a pirataria

1.1 Como surgiu o direito autoral e a produção dos

fonogramas

Segundo o ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - o 8

direito autoral é "um conjunto de prerrogativas conferidas por lei à pessoa física ou

jurídica criadora da obra intelectual, para que ela possa gozar dos benefícios morais

e patrimoniais resultantes da exploração de suas criações" . Então, para o ECAD, o 9

direito autoral é uma prerrogativa legal que dá ao criador, seja ele uma pessoa física

ou uma pessoa jurídica , os benefícios imateriais, como um certo capital simbólico 10

sobre a obra e também sobre os benefícios materiais, como pagamentos pela

execução da obra, arrecadados pelo próprio ECAD.

Baseado nisso, o autor de uma música e também o intérprete são 11

protegidos por lei para que esta música, um bem imaterial, confira valores reais e

materiais ao seus chamados "proprietários". Os benefícios, sejam eles morais ou

patrimoniais, são repassados pelo ECAD, através de um número ímpar de

particularidades e burocracias, para os autores e intérpretes. Resumindo, é o ECAD

quem vistoria a execução da obra pelo Brasil afora, em diferentes esferas, e faz os

seus cálculos, descontando as suas taxas, e repassa o valor restante para os

artistas, produtores, intérpretes e autores cadastrados em seu banco de dados.

8 O ECAD é um órgão institucional privado e sem fins lucrativos, criado para controlar a arrecadação dos direitos autorais de um fonograma. É o ECAD que, de forma offline e orgânica, pesquisa, visualiza, controla e monitora quem está tocando o que e também aonde.

9 http://www.ecad.org.br/pt/direito-autoral/o-que-e-direito-autoral/Paginas/default.aspx - acessado em 10/06/2017.

10 O conceito de uma pessoa jurídica como criadora de uma obra surge com a criação de editores, que, por maneira de porcentagem, assumem autoria de uma obra, mesmo não o sendo.

11 É importante também deixar claro que o ECAD separa o artista entre autor e intérprete, mesmo ele sendo a mesma pessoa. Em todos os casos, o autor da música precisa ter a ciência da execução da obra pelo intérprete, liberando os direitos ou pedindo a arrecadação.

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A história dos direitos autorais surge no contexto dos antigos livreiros, a partir

do momento em que a literatura se materializa em grande escala em livros, e precisa

de um meio para garantir a exclusividade sobre a venda desses livros. É o direito

autoral que garante a distribuição de livros na Inglaterra do século XVI e também

garante a exclusividade para os chamados livreiros.

Na música, o direito autoral surge para garantir a propriedade do fonograma

para os seus autores. É o fonograma, ou seja, a obra musical interpretada e fixada

em um suporte, seja o LP, o CD ou streaming , que garante a este fonograma os

seus direitos autorais. É a dobradinha fonograma + ECAD que dá ao autor, ao editor,

à gravadora e todos os envolvidos na gravação desta obra a garantia de sua

propriedade intelectual.

É com a criação de um código, chamado ISRC - International Standard

Recording Code , que o direito autoral musical abriga todos os presentes em um 12

fonograma, seja o compositor, os intérpretes, o produtor fonográfico e demais 13

presentes. O ECAD, por meio da indexação do ISRC e a fiscalização da execução

pública do fonograma referente àquele ISRC, confere ao músico os "benefícios

morais e patrimoniais" pela sua obra musical.

Abaixo, uma tabela com a divisão dos valores arrecadados entre os presentes

em um fonograma:

Nome Porcentagem Função

Compositor 66% do total arrecadado

Proprietário imaterial da obra.

Intérprete 14% do total arrecadado

Cantor ou solista de uma obra.

12 O ISRC, ou International Standard Recording Code , é um código internacional que é padronizado e usado para gravar esses metadados de um fonograma, com o nome e demais dados de cada músico participante de uma música.

13 A figura do produtor fonográfico é ainda hoje controversa no campo musical. Sem ter, necessariamente, participação musical na obra, o produtor fonográfico é o responsável pelo cadastro do ISRC, e com isso, a garantia de uma parcela na autoria do fonograma. O produtor fonográfico pode ter participação financeira no fonograma, mas não é regra.

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Produtor fonográfico

14% do total arrecadado

Pessoa física ou jurídica responsável pela gravação de um fonograma

Músicos 6% do total arrecadado

Músicos participantes no fonograma. O valor de 6% é distribuído entre todos os músicos.

Fonte: ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição.

Repare que na tabela acima o produtor fonográfico - não necessariamente

uma pessoa física e não necessariamente um músico - recebe o mesmo valor

arrecado que o intérprete do fonograma.

Resumindo, a fórmula do direito autoral é iniciada com a composição,

passando pela gravação e se transformando em fonograma, fixada em um suporte -

como o LP ou o CD, com um ISRC único, reproduzida publicamente e fiscalizada por

um membro do ECAD, e por último calculada e repassada aos presentes no

fonograma. Fórmula essa que funcionou durante anos no Brasil e no mundo, com

empresas ganhando muito dinheiro dentro de milhares e milhares de obras com os

seus 14% em cada fonograma.

É de se imaginar também que, se as gravadoras ficam com uma porcentagem

do valor arrecadado pelo ECAD por serem produtoras fonográficas, cabe também à

própria gravadora inflar os seus fonogramas. Não só uma tendência natural das

artes, mas com toda essa máquina e burocracia, sempre foi interessante para quem

agenciava todo esse processo do fonograma e sua arrecadação, ter grandes

orquestras, músicos contratados e grandes produções com horas de estúdio, dias e

dias de gravações e grandes orquestras. O lucro da arrecadação sempre

compensou o valor gasto. Os anos 90 e início do século 21 foram marcados por uma

época musical onde grandes arranjos eram supervalorizados. Acústicos MTV

inflados de músicos, diversos discos por ano, coletâneas e coletâneas de um mesmo

artista.

O direito autoral funcionou como fonte de renda para a indústria fonográfica

durante décadas. Em uma época em que estava nascendo o costume de fazer

download de músicas e os tocadores de mp3 ainda não eram realidade, a música

era consumida principalmente através das rádios e da vendagem de CDs.

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Essa mensuração, de quanto e onde tocou, também era feita por outra

instituição, chamada ABPD - Associação Brasileira dos Produtores de Discos , além 14

da tradicional listagem das paradas de sucesso das rádios. Era a ABPD que emitia

os chamados certificados de ouro, platina e diamante, e a ABPD que oferecia à

programas de televisão, programas de auditório e programas de rádio esses

certificados . 15

Até 2004, os certificados de ouro, certificado de entrada na ABPD, eram

entregues para artistas que atingiam o total de 100 mil cópias vendidas. Hoje, esse

mesmo certificado é entregue para artistas que atingirem 40 mil cópias vendidas. No

caso de artistas internacionais, esse número é ainda menor. Hoje, um artista

internacional que venda 20 mil cópias de seu CD recebe um certificado ABPD. Com

a diminuição da venda de discos, naturalmente diminuiu também a necessidade de

discos vendidos para a sua qualificação como uma obra reconhecida como disco de

ouro.

Mesmo com a diminuição dos números e a flexibilização dos troféus, apenas

três artistas receberam certificados da ABDP após 2004, no famoso "Acústico MTV",

programa que realizava gravações que conquistaram prêmios e certificados: Ultraje

A Rigor, Zeca Pagodinho e Sandy e Júnior . 16

14 A ABPD - Associação Brasileira dos Produtores de Discos é uma entidade criada em 1958, e que nos anos 90 contava com a associação dos maiores produtores fonográficos do Brasil, como Sony, Universal, Warner e Som Livre. É ela quem recebe os dados de vendagem de discos e emite os certificados oficiais para a entrega dos discos de ouro, platina e diamante. Desde de 2016, a ABPD chama-se Pró-Música Brasil, e com uma nova roupagem, a Pró-Música Brasil foca o seu conteúdo em streaming digital.

15 Hoje, a ABPD ainda faz essa medição. Ela dá o título do disco e oferece a contagem, mas se um artista quiser o seu certificado, tem que pagar um valor pela impressão do certificado e receber pelos correios. Curiosamente, se um mesmo artista atinge 1 milhão de inscritos no YouTube, recebe gratuitamente um certificado em seu endereço.

16 O programa Acústico MTV, da emissora MTV, teve a sua última edição em 2012, com o artista Arnaldo Antunes. Após essa data, os CDs e lançamentos nomeados "Acústico" não tem envolvimento da emissora.

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Abaixo, a tabela comparativa de quantidade de CDs vendidos para a

conquista de cada certificado, ao longo dos anos : 17

Tipo de certificado

Até 2004 2004 - 2006 2006 - 2010 2010 - atual

Ouro 100.000 50.000 50.000 40.000

Platina 250.000 125.000 100.000 80.000

Platina duplo 500.000 250.000 200.000 160.000

Platina triplo 750.000 375.000 300.000 240.000

Diamante 1.000.000 500.000 500.000 300.000

Diamante duplo 2.000.000 1.000.000 1.000.000 600.000

Diamante triplo 3.000.000 1.500.000 1.500.000 900.000

Fonte: Pro Música Brasil.

O disco de ouro, certificado de entrada na ABPD, sofreu uma queda de 60%

de 2004 até 2010. Em seis anos o artista precisa vender 40% do que era preciso

para ganhar uma certificação de ouro.

No caso do principal prêmio, o diamante triplo, a queda foi maior. Antes era

preciso uma vendagem de tˆês milhões de cópias. Hoje, esse número é irreal e há a

necessidade de vendas de 900 mil cópias. Esses números mostram uma mudança

real tanto na estrutura econômica da indústria da música, como no eixo social dentro

do campo, tomado por atores sociais que procuram novos troféus simbólicos, como

inserção em playlists públicas, e não apenas discos de ouro emitidos pela ABPD.

17 Tabela retirada da página do Pro-Música Brasil no Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Pro-M%C3%BAsica_Brasil - Acessado em 11 de abril de 2018.

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1.2 A indústria fonográfica e as majors

Majors , ou major labels , é o nome dado às maiores gravadoras dos EUA,

sendo elas a Sony Music Entertainment , Universal Music Group , Warner Music

Group e BMG Entertainment . Em 2012, a Universal Music comprou a EMI por U$ 1,9

bilhões de dólares, adquirindo também todo o catálogo dos Beatles e Pink Floyd, e

reduzindo o grupo das majors a três gravadoras.

As majors garimpavam artistas, e em uma homologia com produtores

renomados, gravavam as obras musicais, editavam e lançavam por todo o mundo.

Até o final dos anos 90 as majors detinham quase a totalidade das músicas que

tocavam nas rádios e eram computados como os maiores vendedores de CDs.

Após o sucesso mundial de Thriller, de Michael Jackson, nos anos 80, as

gravadoras tiveram de se reinventar com a ascensão do rap. Artistas como Jay-Z,

Eminem, Dr. Dre e Cash Money estavam sob o catálogo da Universal Music , uma

das gigantes da indústria. Eram dezenas de músicas com o selo de "Parental

Advisory" , que alertavam sobre o conteúdo explícito nas músicas. 18

Nesse contexto, cresceu o nome de Doug Morris, funcionário da Atlantic

Records, que viria a fundar a Universal Music e recentemente a VEVO . Nos anos 19

90, foi um dos grandes responsáveis por encontrar no rap uma música que a

indústria apostaria suas fichas nos anos seguintes.

18 Em 1985 foi criado um conselho que futuramente se tornaria um selo que indicava conteúdo explícito, primeiramente no disco no grupo de rap NWA, de 1988, e também do músico Public Enemy, também de 1988. Com um conselho criado por esposas de políticos do senado americano, que ficaram conhecidas como "esposas de Washington", que solicitaram a RIAA e as gravadoras que incluíssem o selo Parental Advisory nos discos com letras com temas adultos. No final dos anos 80 e no início dos anos 90, o selo virou uma grife e as gravadoras sabiam que discos com o selo vendiam mais.

19 A VEVO - video evolution, é uma joint venture criada por Doug Morris e a sua Universal Music, em associação com a Warner Music e a Sony Music, com vídeos em alta qualidade de grandes artistas, hospedados no YouTube e em seu canal próprio, circulando anúncios e material publicitário. Uma tentativa de fazer as majors lucrarem com conteúdo digital, com vídeos exclusivos e protegidos contra cópia.

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Em 1992, Dr. Dre lançava o álbum The Chronic, disco controverso, com letras

homofóbicas, climas musicais pesados e um gênero musical não acostumado a

frequentar as listas de músicas mais vendidas. Porém, o sucesso inesperado de Dr.

Dre causou uma onda de raps homofóbicos e com letras fortes, como a música

Dogg Food, de The Dogg Pound, primeiro lugar nos EUA, pela Billboard. Era o

anúncio de um novo estilo musical majoritário, com uma nova maneira de se fazer

música, que vinha de guetos e gangues americanas.

Em seu livro "Como a música ficou grátis", o autor Stephen Witt mostra como

a ascensão do rap, somado ao oportunismo de Doug Morris, criou esse estilo

musical majoritário dentro da indústria fonográfica dos anos 90.

O jazz, o blues, o soul, o R&B, o rock, o funk, a música disco, o techno, o house, a música eletrônica e o rap - todos tinham raízes nos bairros pobres afro-americanos. Nos últimos tempos, as condições de vida nesses guetos tinham alcançado um nível assombroso de decadência. O tráfico de crack havia desencadeado uma epidemia de crimes [...]. Morris tinha certeza que era lá que estava o futuro (WITT, 2015, p. 46).

Com disputas por espaço e poder, em uma indústria que ainda não conhecia

a pirataria, os jornais divulgaram a morte de um dos expoentes dessa nova

tendência musical, o rapper Shakur Tupac, em 7 de setembro de 1996, em um farol

de trânsito de Las Vegas. Após sua morte, a gravadora lançou o álbum recém

produzido por Tupac, que em seu lançamento figurou na primeira posição das

paradas, o que rendeu ainda outros seis álbuns póstumos de Tupac, fazendo com o

que o rapper rendesse mais ao mercado de forma póstuma do que em sua vida.

A morte de Tupac, as músicas com conteúdo explícito, o selo de Parental

Advisory , Dr. Dre e outros rappers fizeram a indústria musical conhecer os seus

anos mais rentáveis de sua história. Estamos falando de fábricas que construíam

filiais de fabricação de CDs pelos Estados Unidos inteiro pois era mais barato

construir uma fábrica e alocar trabalhadores em diferentes regiões dos EUA do que

pagar o sistema de distribuição por todo o país. Já não havia mais capacidade de

operação para produzir toda a demanda, e a operação crescia a cada disco lançado.

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O custo de cada CD fabricado beirava U$ 1 (um dólar), e o usuários compravam

lançamentos semanais, criando uma margem exorbitante de lucro para as majors.

A morte de Tupac foi, sem dúvidas, uma tragédia sem sentido, mas também uma ótima estratégia para sua carreira. As vendas de seu catálogo dispararam, e quando The 7 Day Theory foi lançado, em novembro, o álbum foi direto para o primeiro lugar das paradas. Mais 6 álbuns póstumos de Tupac seriam lançados, vendendo mais para a Interscope em sua morte do que em sua vida. (WITT, 2015, p 74)

Todo esse contexto viria a ser inviável economicamente com o uso pessoal

dos smartphones, onde o suporte material para a música se torna um gadget , e o

CD se torna obsoleto.

1.3 O início da pirataria e o combate das gravadoras

Em fábricas americanas, o controle de produção era rígido, e os lançamentos

de grandes artistas contavam com uma fiscalização quase policialesca para que

nenhum CD saísse de uma fábrica pelas mãos de um funcionário da linha de

produção, e para que nenhum CD fosse copiado clandestinamente. A justificativa,

além de econômica, era a necessidade de um lançamento mundial combinado.

Porém, com a criação dos gravadores de CD caseiros, um CD furtado de uma

fábrica antes de seu lançamento significava milhares de CDs em um ou mais

estados dos EUA.

Nesse contexto, surgiu em 1994 o nome de Dell Glover, um funcionário da

Polygram em sua filial em Kings Mountain, na Carolina do Norte, que era

responsável por embalar os lançamentos e incinerar os CDs sobressalentes. Como

a fiscalização era rígida em cima do número de CDs por caixa, Glover tinha a

oportunidade de levar CDs sobressalentes ao incinerador, e ao invés de

descartá-los, simplesmente os colocar atrás de sua fivela de cinto, para que

passasse ileso pela fiscalização dos seguranças da fábrica . 20

20 Dell Glover conta que na fábrica da Polygram onde trabalhava, na Carolina do Norte, existia um rígido controle na saída dos funcionários, com detector de metais, a fim de procurar CDs escondidos em suas malas. Glover conta que sempre soube do perigo de ser demitido e até preso,

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Ao total, Glover conta em entrevistas que pirateou mais de três mil CDs, até

ser descoberto pelo FBI e punido com três meses de prisão, enquadrado pela

operação Fastlink, uma operação secreta da divisão de crimes digitais do FBI . 21

Após alguns álbuns serem comercializados ilegalmente antes de seu

lançamento previsto, estava declarada a guerra das gravadoras contra a pirataria. O

lançamento oficial era desmontado, a aura da música inédita era perdida, e a

arrecadação dos direitos autorais era comprometida.

Mesmo assim, com a internet a pirataria se proliferou, criando mais fôlego

principalmente após a criação do protocolo de P2P , fazendo que os lançamentos 22

fossem vazados cada vez mais longe da data oficial. A internet, junto do vazamento

ilegal de CDs das fábricas por dezenas de funcionários como Dell Glover pelos EUA,

fez a música ser disponibilizada de forma nunca antes vista. Pela primeira vez, nos

anos 90, a paixão de ouvir música não era necessariamente comprar discos nas

prateleiras de lojas, mas também pesquisar, procurar e baixar músicas na internet.

Para corresponder ao investimento nas mega produções, com dezenas de músicos

e milhares e milhares de dólares em publicidade, a pirataria precisaria ser

combatida.

Algumas ações foram tomadas e o vazamento ilegal de músicas não foi

apenas criminalizado, como punido. Em 2008, por exemplo, um blogueiro chamado

Kevin Cogill, ex-funcionário da Universal Music, disponibilizou nove músicas do

álbum da banda Guns N'Roses, Chinese Democracy, chegando ao ponto de um

agente pessoal do vocalista Axl Rose ir até a casa de Kevin para tentar descobrir a

mas que sempre continuou fazendo por conta do preço obtido pelas vendas piratas de CDs gravados por ele mesmo.

21 A operação Fastlink foi uma operação em conjunto do FBI, Departamento de Justiça dos EUA, e a CCIPS - Departamento de Crimes Computacionais e Propriedade Intelectual da Interpol, que investigou e julgou dezenas de cidadãos comuns por baixar e compartilhar arquivos de música, jogos e programas piratas.

22 O protocolo peer-to-peer fez com que os usuários se tornassem servidores. Não havia mais um servidor centralizado, onde todos buscavam a pirataria daquele endereço, mas sim milhares de micro-servidores ao longo de todo o globo, com usuários comuns baixando e servindo a pirataria.

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fonte do vazamento. Após investigação e julgamento, em 2009 Kevin foi condenado

a dois meses de prisão domiciliar, e em acordo com a promotoria pública dos EUA,

se comprometeu a aparecer em campanhas antipirataria . 23

Porém, hoje fica claro notar que não houve maneira de combater a pirataria, e

mesmo com as campanhas para que não se fizesse o download ilegal de músicas, o

resultado não foi efetivo no sentido de usuários pararem de copiar CDs. A internet

suprimiu as consecutivas tentativas de se continuar com a produção e vendagem de

CDs e também arrecadação massiva através dos escritórios e produtores

fonográficos. Vimos nessa época o início da criação de um nova maneira de

interação dos atores sociais dentro do campo musical. Por um lado, as gravadoras

precisam lucrar com o investimento em artistas e música em geral. Por outro, artistas

sempre quiseram distribuir a sua música para aumentar a sua divulgação. E no

meio, piratas que distribuem música mesmo sem lucro aparente.

Rip videos and circumvent the copy protection mechanism in DVDs is offered by a network of online volunteers: hackers doing so for political or commercial reasons (or just for fun), all with the support of the network of expressions of mutual recognition and validation from the fan and online user community at large—Robin Hoods of the contemporary age. In other words, a distributed network of technical affordances developers intersects with a distributed network of social norms development and a culture of recognition and respect to form a system of counter-power (BENKLER, 2011, p. 745). 24

Essa situação do "Robin Hood da era contemporânea", como cita Benkler, se

tornou uma disputa entre o artista self-made, que faz tudo sozinho e aposta em si e

23 Kevin foi condenado a dois meses, o blogueiro foi preso, e foi decidido judicialmente que ele cumpriria prisão domiciliar e como parte da pena teria que estrelar uma campanha da RIAA (Recording Industry Association of America) contra pirataria. No entanto, a campanha nunca foi realizada. (http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1230532-7085,00-BLOGUEIRO+E+CONDENADO+POR+VAZAMENTO+DE+MUSICAS+DOS+GUNS+N+ROSES.html)

24 Copiar vídeos e burlar o mecanismo de proteção contra cópia em DVDs é feito por uma rede de voluntários online: hackers que o fazem por razões políticas ou comerciais (ou apenas por diversão), todos com o apoio da rede e com expressões de reconhecimento mútuo e validação dos fãs e comunidade de usuários em geral - Robin Hoods da era contemporânea. Em outras palavras, uma rede distribuída de desenvolvedores técnicos de recursos interage com uma rede distribuída de desenvolvimento de normas sociais e uma cultura de reconhecimento e respeito para formar um sistema de contra-poder.

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na sua capacidade de criar, um microempresário de si mesmo, criando, organizando

e distribuindo para essa rede de usuários, e, na outra ponta, gravadoras e mercado

fonográfico, que ao invés de criar mecanismos anti-pirataria, investem na facilidade

de uso e padronização dos gostos, confiando na força de seus poucos artistas e

tentando retomar um tempo perdido em estratégias que não geraram o lucro

desejado.

1.4 A facilidade de uso

Duas características básicas trouxeram um desafio para as artes e para os

artistas nesse novo campo: a facilidade cada vez maior em operar todos os

equipamentos para a gravação de uma música, e a rapidez na distribuição, através

da internet e suas aplicações próprias para enviar e receber arquivos.

Com essas duas características, um paradoxo se instala. A arte precisa

sobreviver em um contexto de globalização, onde a obra imaterial perde o valor que

o mercado daria anos atrás. E, obviamente, sem o mesmo valor atribuído pelo

mercado, o artista também perde o seu valor material. Então, o artista se posiciona

em um campo onde a facilidade de uso e acesso da música tira a possibilidade

técnica de criação de mais músicas.

Nesse contexto, seria por conta deste círculo que as músicas estariam

ficando mais simples, mais comuns, mais regredidas tecnicamente?

Por um lado, se facilita tanto a criação, o uso e o acesso, por outro, diminui a

remuneração, dificultando socialmente a criação, o uso e o acesso, visto que o

artista precisa se dividir em suas multitarefas como produtor de si mesmo.

A solução, tanto para o próprio artista quanto para as gravadoras, é diminuir o

custo das gravações e fonogramas, diminuindo a quantidade de integrantes das

bandas, o tamanho físico dos estúdios, a quantidade de equipamentos em um

estúdio, e até o duração das próprias músicas. O mercado, que sempre conferiu

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valor material a música, não tem mais controle sobre a quantidade de bits e bytes

que circulam pelos smartphones , e o valor não é mais quantificado como era antes.

1.5 Como a música digital encontrou o mp3

O cientista e professor de psicoacústica da Technical University of Munich ,

faculdade alemã, Eberhard Zwicker, descobriu que duas notas musicais, separadas

por meio tom de distância, são fáceis de distinguir . Porém, ao aproximar a distância 25

tonal entre duas notas musicais, a distinção entre elas é perceptível apenas por

ouvidos mais treinados, principalmente quando a nota mais grave tem um volume

maior que a nota mais aguda. A percepção comum entre duas notas se dá na

maioria das vezes entre notas com meio tom ou mais de distância.

Além disso, Zwicker também descobriu que o ouvido humano distingue

claramente dois cliques rítmicos se estiverem em uma distância de um segundo,

porém quanto menor a distância entre os cliques rítmicos, e se maior for a

intensidade de um dos cliques, mais difícil a percepção de que são dois cliques, e

não apenas um, para os mesmos ouvidos não treinados. Ou seja, batidas complexas

de bateria continuam sendo complexas para ouvidos não treinados.

O que Zwicker chamou de "mascaramento psicoacústico" nos faz perceber

que os ouvidos humanos não ouvem exatamente o que é a realidade musical. O que

é muitas vezes escrito e posto em uma partitura musical nem sempre é percebido

por ouvintes em uma sala de concerto.

No final dos anos 90 foi lançado oficialmente o mp3 , formato digital de áudio

que usa dessas descobertas de Eberhard Zwicker sobre psicoacústica, removendo

faixas de frequência que o ouvido humano não percebe, removendo frequência

semelhantes de dois instrumentos sobrepostos, removendo batidas e cliques que

sucedem tempos fortes e também removendo batidas que antecedem tempos fortes.

25 Estamos falando de distâncias comuns na música popular. Escalas repetidas em diversas músicas, com notas como dó, dó sustenido, ré, ré sustenido e assim por diante.

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Basicamente, o que o algoritmo do mp3 faz é supor que o ouvido humano não

irá ouvir certos sons e removê-los do formato final, ignorando o fato de que, em

muitos casos, poderíamos "treinar" nossos ouvidos para perceber essas notas, sons

e frequências.

A criação do mp3 surgiu com o pesquisador alemão Karlheinz Brandenburg,

que inicia seus estudos sobre compressão digital de áudio e psicoacústica no final

dos anos 80. Durante muitos anos, Brandenburg dedicou seus estudos em

transformar uma música com alta fidelidade em uma pequena quantidade de dados,

quando em 1989 defende sua tese sobre psicoacústica, recebe o título de Ph.D e

consegue também um financiamento da AT&T, empresa de telecomunicações

americana.

Mais tarde, já com título de Ph.D e financiamento empresarial, o engenheiro e

pesquisador monta uma equipe, formada com alguns outros cientistas e

engenheiros, para criar um algoritmo capaz de diminuir em até doze vezes o

tamanho original do arquivo de áudio de uma música.

Em 1990, na cidade de Estocolmo, foi realizado um concurso de

apresentação de soluções para música digital. Mediado pelo grupo MPEG, Moving

Picture Experts Groups , o concurso foi agendado para que Brandenburg e outros 26

pesquisadores pudessem apresentar uma solução para a música digital. Com o

início do mercado do DVD, se fazia necessário o incentivo a pesquisas também para

a música digital, pois a indústria cinematográfica precisava inserir áudios de seus

filmes dentro da mídia DVD, e se fazia cada vez mais necessário otimizar o tempo

de gravação e o espaço digital das mídias físicas, surgindo a necessidade de mais

armazenamento.

26 O MPEG é um grupo "de desenvolvimento de padrões para compressão, descompressão, processamento e representação de imagens, vídeos e sua combinação", segundo o site do grupo, que pode ser acessado pelo endereço https://mpeg.chiariglione.org/who-we-are.

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No concurso, supostamente por decisões políticas, e não só técnicas, foi

exigido em um acordo com a AT&T, patrocinadora, que para aceitar o algoritmo de

Brandenburg como um dos vencedores, seria necessário incorporar em sua

tecnologia e seu algoritmo, algumas outras tecnologias paralelas de outros

concorrentes. Originalmente, de catorze participantes no concurso de Estocolmo,

houveram três “vencedores”, que ficaram famosos posteriormente com os seguintes

nomes: o MPEG Layer I, o MPEG Layer II e o MPEG Layer III.

Entre todos os participantes, foram três grupos os de cientistas que deram

aos ouvidos treinados do MPEG as melhores soluções para compressão digital de

áudio. E o MPEG Layer III, hoje conhecido como mp3 , foi a solução apresentada por

Brandenburg.

Então, apesar do nome mp3 sugerir que é a terceira versão de um projeto, ou

a atualização de uma tecnologia, na verdade o nome mp3 significa a terceira equipe

de desenvolvimento de compressão de áudio que foi homologada pelo instituto

Moving Picture Experts Group .

Assim é criado o nome do mp3 , um projeto alemão batizado com o nome de

um grupo de homologação.

Curiosamente, o inventor do mp3 sempre foi contra a pirataria. A intenção de

Brandenburg era apenas diminuir o tamanho da música digital, como uma maneira

técnica de facilitar para o próprio mercado e para a própria indústria e otimizar a

produção e também maximizar os lucros, e não a distribuição ilegal da música pelas

redes digitais. E com os a criação do Napster e a proliferação do compartilhamento

de músicas, foi criado um novo modelo de mp3 , protegido contra cópias e que exigia

senha para reprodução . 27

Com a descoberta de Eberhard Zwicker sobre o mascaramento psicoacústico,

os estudos de Brandenburg e o desenvolvimento gradual da cópia caseira de CDs,

27 Estamos falando de uma época onde era exigido senhas para cópias de arquivos.

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tanto os lançamentos de raps das paradas de sucesso dos anos 90, quanto os

outros gêneros, somados à criação do Napster em 1999, vimos o mp3 e a pirataria

digital nascerem, crescerem e ganharem relevância, amparados por cientistas e

pesquisadores que eram contra a pirataria e viam na música digital uma maneira de

fortalecer o mercado da indústria fonográfica. A pirataria tinha se tornado um

fenômeno social, onde engenheiros de som, executivos, operários de fábricas de

CDs e usuários consumidores tinham cada um o seu papel.

1.6 O Napster e o início do compartilhamento de arquivos

Em 1999, o programador Shawn Fanning criou um software para

compartilhamento de arquivos via protocolo peer-to-peer chamado Napster . O

programa era simples, oferecia uma interface de busca que encontrava músicas

através da leitura de metadados gravados nos arquivos de extensão .mp3 , e 28

através de um computador pessoal com usuário e senha, o Napster baixava em

uma biblioteca pré-configurada e oferecia arquivos dessa mesma biblioteca

pré-configurada para os usuários da rede.

Como os arquivos já eram trocados via canais de rede IRC , a diferença foi 29

apenas oferecer esses arquivos de forma automatizada por um programa que fazia

uma varredura em sua biblioteca.

Durante anos, Shawn Fanning e gigantes da música e da indústria fonográfica

travaram disputas judiciais, tentando barrar os servidores e penalizar Shawn Fanning

pelo compartilhamento de músicas. O caso emblemático foi o da banda Metallica,

28 Cada arquivo mp3 contém uma série de metadados, ou seja, dados sobre o próprio arquivo. Nesses metadados são encontradas informações sobre o artista, o compositor, o nome da música e até a letra da música. Por conta dessa quantidade de informações, os buscadores, inclusive o Napster, encontram músicas por palavras chave.

29 O IRC, ou Internet Relay Chat, é um protocolo, como o P2P e o http, criado exclusivamente para conversas e chats. Através de programas que leem esse protocolo, usuários se organizavam em salas - ou canais - e conversavam sobre diferentes assuntos. Durante anos, o IRC funcionou como uma pré rede social, com versões virtuais de usuários reais.

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que entrou com um processo no ano de 2000, alegando violação de direitos autorais,

e que o compartilhamento de músicas é moral e legalmente errado.

O problema foi depois da música "I Disappear", criada para o filme "Missão

Impossível 2", tocar nas rádios americanas antes mesmo de ser lançada. Lars

Ulrich, baterista do Metallica, afirmou que um dos grandes problemas era o Napster

disponibilizar essas músicas sem antes consultar a banda . 30

1.7 MP3 depois do Napster

No final do processo, o MP3 venceu.

Apesar de o Napster ter sido condenado a retirar os seus servidores do ar , o 31

termo “mp3 ” deixou de ser um termo técnico que representava um dos concorrentes

do comitê do MPEG, e acabou se tornando o sinônimo de música pirata na internet.

No início dos anos 2000, uma pesquisa interna dentro do instituto Fraunhofer

mostrou que o termo “mp3” havia sido mais pesquisado do que a palavra “sexo”.

As pessoas não estavam interessadas em saber detalhes técnicos da

compressão de áudio, e como Karlheinz Brandenburg conseguiu executar a

compressão de 12:1, mas sim saber onde encontrar música grátis. O interesse por

mp3 não era pela ciência de dados, mas sim como que se achava música pirata.

Antes do próprio Napster era difícil piratear músicas. Precisaria ter um

conhecimento mínimo de servidores de áudio, saber conectar a um cliente de FTP

com usuário e senha, usar o chat IRC. Após o Napster , uma busca simples no

30 Entrevista retirada do site americano Blabber Mounth. http://www.blabbermouth.net/news/lars-ulrich-admits-delivering-names-of-napster-users-was-maybe-not-the-smartest-pr-move-of-all-time/ (acessado em 4 de fevereiro de 2018).

31 Há uma diferença entre se retirar o servidor de um software do ar, como foi o caso do Napster, e de se proibir o uso. Mesmo sem estar no ar, o Napster continua a funcionar, pois é um software peer-to-peer, precisando de outros computadores, e não de um servidor central. O que foi proibido são os novos downloads do software.

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buscador Yahoo por "nome do artista" + "mp3" respondia com dezenas de álbuns

pirateados deste artista.

E por mais que o criador do MP3 , Brandenburg, tivesse a intenção de

monetizar a música digital ao criar o formato, ficou inviável negar que mp3 tinha se

tornado sinônimo de música grátis. Em todas as suas palestras e entrevistas,

Brandenburg dizia “não roubem músicas“, mas não adiantou: o mp3 tornou a música

acessível a quem tinha internet e o CD virou uma propriedade física apenas.

1.8 O auge da música pirata

Em 10 de maio de 2002, o grupo pirata Scene , em que Dell Glover,

funcionário da Universal na fábrica da Carolina do Norte fazia parte, fez o vazamento

do álbum The Eminem Show, um mês antes do seu lançamento oficial. Dentre as

mais de 500 mil cópias que a fábrica produzia e embalava em 24h, uma dessas

cópias foi o suficiente para Eminem e sua produção modificarem a estratégia de

lançamento de seu disco, em 2002.

A turnê de The Eminem Show, planejada para junho de 2002, teve que ser

remarcada, por conta do vazamento do álbum, ainda não lançado oficialmente.

Algumas rádios americanas já tinham as músicas por conta do vazamento ilegal, e o

programa de rádio Opie and Anthony tocou o álbum na íntegra no dia 17 de maio, 27

dias antes do seu lançamento oficial.

Mesmo com o vazamento prematuro do álbum, The Eminem Show foi o CD

mais vendido no ano e Eminem se tornou o rapper que mais vendeu álbuns até

aquela data.

Esse movimento rapper, somado à proliferação da música digital, mostrou

que uma das soluções para as quedas, até então oficialmente de 30%, da vendagem

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de CDs, seria a criação de uma loja digital de venda de músicas, com um catálogo

vasto, incluindo a moda do momento, que eram os rappers. Foi assim que Steve

Jobs, criador do iPod, encontrou Doug Morris, CEO da Universal Music.

Morris acreditava que uma das funções da Universal era fazer o que é

chamado de caça talentos. Buscar artistas ainda não conhecidos, mas que tinham

potencial de venda baseado em sua viralização local, medida por DJs locais e

vendas de pequenos selos. Já Steve Jobs sempre foi cético quanto a essa visão,

chegando a dizer em uma entrevista para a revista BusinessWeek, em 1998 que "é

muito difícil criar produtos usando grupos foco. Muitas vezes, as pessoas não sabem

o que elas querem até que você mostre a elas".

Porém, Morris e Jobs fizeram um acordo. O que hoje ficou conhecido pelas

músicas digitais de 99 centavos foi definido pelo CEO da Universal e pelo CEO da

Apple. Músicas vendidas individualmente por 99 centavos de dólar, para serem

ouvidas no iPod ou em qualquer dispositivo ou computador. Desses 99 centavos,

70% eram repassados a Universal, desde que a gravadora deixasse disponível todo

o seu catálogo, incluindo Eminem e demais rappers, na recém lançada loja virtual

iTunes Store. Era a popularização do iPod, que aceitava apenas músicas importadas

do seu programa oficial, o próprio iTunes. Uma venda casada que ainda hoje não é

bem recebida por usuários . 32

A junção da loja virtual iTunes Store, do reprodutor de músicas iPod e do

catálogo da Universal fez com que as empresas se tornassem as primeiras a

monetizar a música de forma digital e em grande escala. Em alguns meses, os

números mostraram que 1% do faturamento da Universal vinha da vendagem digital,

e mesmo sendo um número ainda baixo, ali no ano de 2002 já ficou claro que era

certo o futuro na música digital e que era cada vez mais necessário disponibilizar um

catálogo inteiro de músicas para incentivar o usuário a consumi-lo.

32 Uma das maiores reclamações dos usuários é a dificuldade em inserir e remover músicas. Há poucos anos, não só inserir novas músicas era possível apenas através do iTunes, como remover músicas também. Hoje, com os aplicativos de streaming, essa realidade mudou.

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Mesmo assim, a iTunes Store não disponibilizava antes os lançamentos dos

artistas. Um novo CD aparecia simultaneamente com o download na loja digital.

Talvez por isso, com a proliferação dos sistemas peer-to-peer e a criação do torrent,

sempre foi mais comum baixar músicas piratas e colocar nos tocadores, seja o iPod

ou similares.

Se a pirataria nunca foi um grande problema para Steve Jobs e a Apple, ainda

era um incômodo para a Universal e outras gravadoras. A Apple não se interessava

em combater os piratas, e sim em fazer cada vez mais pessoas consumirem os seus

produtos, fortalecendo a sua marca. Mas essa receita não funcionava para as

gravadoras. Não havia lado bom na pirataria, e a solução era não apenas incentivar

a compra de música legal pela iTunes Store, mas também criminalizar o

compartilhamento ilegal de músicas por redes peer-to-peer .

Com isso, se iniciou uma época de processos a consumidores finais, que ao

baixar uma música, se tornavam um ramo na cadeia de distribuição de download

ilegal de músicas. Era assim que o peer-to-peer funcionava, com usuários sendo

servidores, e com isso, cidadãos comuns, com pouco ou nenhum conhecimento de

informática foram processados pelas majors , em uma operação batizada de Hubcap .

Logo no início, mais de 260 pessoas foram indiciadas por colaborar com o crime

digital - o compartilhamento de músicas.

A RIAA exigia o pagamento de até 150 mil dólares em danos morais e materiais por cada música compartilhada. Embora a associação tivesse tentado estabelecer um paralelo moral entre piratear uma música e roubar um CD físico, a realidade jurídica se mostrou cem mil vezes maior: era uma multa de 1 milhão de dólares por roubar um produto de uma loja (WITT, 2016, p. 145).

O valor alto se deve ao fato de que os programas de época, como eMule ,

Limeware e Kazaa herdaram uma característica do Napster bastante popular: ao 33

criar uma conta, a sua biblioteca inteira de músicas se tornava um ramo da rede

peer-to-peer . E, ao encontrar um único endereço IP de um usuário que baixou uma

33 Outros programas semelhantes ao Napster ficaram famosos após o primeiro bloqueio ao programa. Limeware e Kazaa são alguns deles. Normalmente, o software era criado, fazia sucesso, e após algum processo, era retirado do ar, surgindo outro software e assim por diante.

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música, o FBI encontrou neste IP dezenas ou mesmo centenas de músicas

disponíveis para toda a rede.

Com ordem legal para disponibilização do endereço físico de um usuário, os

provedores de internet recebiam a solicitação, via uma lista de IPs, e transformavam

usuários comuns, mães de família, idosos e todo o tipo de titulares dessas contas

em possíveis criminosos digitais. Dentre os casos, um dos mais famosos foi o de

uma criança de 12 anos, chamada Brianna LaHara, condenada a pagar 2 mil dólares

por baixar a música tema de uma série infantil chamada Family Matters.

O curioso é que dentre os incriminados, pode-se dizer que a maioria não

conhecia nenhum dos grupos piratas, como o Scene ou o RNS , que vazavam CDs

das fábricas e disputavam uma batalha virtual pela disponibilização de uma música

inédita na internet. Essa disputa nada interessava ao usuário final, que apenas

queria consumir música.

A indústria musical, ainda sem vislumbrar a solução do streaming de áudio,

acreditava que a solução era criminalizar esse usuário final.

Os processos eram muitos, da banda Metallica, da cantora Madonna, e

também da própria RIAA - Recording Industry Association of America . O Napster 34

se popularizou por ter lançamentos de discos antes mesmo dos discos serem

disponibilizados para vendas nas lojas, e a indústria musical perdia a cada dia mais

de sua receita com vendas de CDs.

Foi com o Napster que a pirataria de músicas se difundiu na internet. Com o

seu protocolo peer-to-peer , ou seja, sem um servidor central para armazenar os

arquivos, não havia maneira de apagar uma música do Napster . Os lançamentos

34 A RIAA - Recording Industry Association of America é uma associação que representa as gravadoras americanas. Assim como a Pró-Música Brasil, a RIAA também emite certificados de vendagem dos discos internacionais, com certificados de ouro, platina e diamante.

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estavam todos lá, a velocidade de downloads era sempre a mais alta possível , e 35

não havia quedas de servidor.

A solução, depois de a indústria ver os seus lucros diminuindo, era

desmoralizar o download de músicas. A briga não era apenas física e digital, mas

também ideológica: "não baixem música, é crime".

Porém, em 2004 surgiu um site que se tornaria referência em áudio de alta

qualidade, o Oink's Pink Palace , criado por Allan Elis. Um site de torrent fechado 36

que hospedaria apenas música em alta qualidade, com uma curadoria por amantes

de música. Inicialmente, o Oink's Pink Palace era hospedado no próprio computador

pessoal de Ellis, desenvolvido por Ellis e com curadoria de conteúdo feita por Ellis.

Mas em pouco tempo, o site se tornou um sucesso, com milhares de usuários

subindo e baixando todo o tipo de música.

Ao contrário do Pirate Bay, que atuava sobretudo como um repositório de links com controle limitado de qualidade e pouca supervisão, o Oink seria um arquivo digital com curadoria e uma ênfase obsessiva em codificações em alta qualidade. (WITT, 2016, p. 155)

Os requisitos para subir uma música no site Oink's Pink Palace eram

enormes, e a necessidade de uma qualidade técnica se repete atualmente nos

serviços de streaming atual. Basicamente, Allan Elis cultivou uma exigência digital

que hoje é usada pelo mercado como algo obrigatório para se distribuir música. Se

Brandenburg criou um sistema quase sem perda de qualidade de dados, foi Allan

Elis e seu Oink's Pink Palace que implementaram online.

35 Uma das características do protocolo peer-to-peer é a velocidade de sua conexão. Por não contar com um servidor central, o P2P depende dos diversos nós que estão na rede. Os arquivos são divididos em diversos fragmentos, chamados chunks, e baixados de dezenas de computadores ao mesmo tempo. O software fica responsável por unificar esses chunks, através dos metadados, assim que o arquivo for inteiramente baixado. Essas características, dos chunks, metadados e servidor descentralizado, faz do P2P o protocolo mais famoso para download de mídia em geral.

36 Basicamente, existem trackers fechados e abertos. Os sites de downloads de torrents fechados são protegidos por login e senha e, quase sempre, só aceitam novos usuários mediante convite de algum usuário registrado. Isso protege a qualidade dos sites e garante um ecossistema entre os usuários.

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No site, na seção "sobre nós", o próprio Elis tinha escrito "sei que grande parte deste material já está disponível em algum lugar, mas faremos tudo de novo, e desta vez vamos fazer do jeito certo". Em 2006 o site chegou a hospedar um milhão de torrents , distribuídos entre dezenas de milhares de membros apaixonados por música e dispostos a inserir todo um acervo de músicas já gravadas, disponíveis em um site criado por estudante de 21 anos de idade.

Entre os usuários do site, Trent Reznor, vocalista da banda Nine Inch Nails ,

que anos depois chegou a declarar que era um usuário ativo do site:

No final das contas, o que fez da OiNK um ótimo lugar foi como se fosse se ali fosse a maior loja de discos do mundo. Quase tudo o que você poderia imaginar estava lá, e estava lá no formato que você queria. [...] Não há o equivalente a isso no varejo agora. O tipo do iTunes parece Sam Goody para mim. Eu não me sinto bem quando vou lá. Estou cansado de ver o rosto de John Mayer aparecer. Eu sinto que estou sendo empurrado quando visito lá, e não acho que o produto deles seja ótimo. [...] Eu não estou dizendo que eu acho que a OiNK é moralmente correta, mas eu sei que ela existia porque preenchia um vazio do que as pessoas queriam. (http://www.vulture.com/2007/10/trent_reznor_and_saul_williams.html)

O que Trent Reznor e centenas de milhares de usuários mostraram é que a

música não precisaria apenas estar online, mas precisaria estar online, em boa

qualidade e com um engajamento de seus usuários, que estavam mostrando os

seus perfis e os seus gostos musicais. O site Oink's Pink Palace era uma

comunidade social online de distribuição de conteúdo musical de alta qualidade, com

opiniões de seus membros sobre o conteúdo, com informações sendo distribuídas

diariamente e, principalmente, expandindo um conteúdo que antes era de difícil

acesso fora da internet. O que Castells chama de "comunidades virtuais"

(CASTELLS, 2001, p. 49),

Apesar disso, essas comunidades trabalham com base em duas características fundamentais comuns. A primeira é o valor da comunicação livre, horizontal. A prática de comunidades virtuais sintetiza a prática da livre expressão global, numa era dominada por conglomerados de mídia e burocracias governamentais censoras. [...] O segundo valor compartilhado que surge das comunidades virtuais é o que eu chamaria formação autônoma de redes. Isto é, a possibilidade dada a qualquer pessoa de encontrar a sua própria destinação na internet, e, não a encontrando, de criar e divulgar a sua própria informação, induzindo assim a formação de uma rede. (CASTELLS, 2001, p. 49)

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No mesmo trecho, Castells também explana que as comunidades virtuais

"assentam também as bases para a formação autônoma de redes como um

instrumento de organização, ação coletiva e construção de significado" (CASTELLS,

2001, p. 49). Não é de se espantar que o Spotify hoje, com os seus perfis de

usuários, likes e playlists teve início de forma embrionária com Oink's Pink Palace .

Em 2007, Allan Elis foi preso por crime digital e também lavagem de dinheiro 37

. Os servidores foram tirados do ar e o site nunca mais retornou. Dois dias depois da

exclusão do site, usuários do Oink's criaram um site semelhante, chamado What.CD,

com a mesma proposta e que em seu auge chegou a hospedar mais torrents que

Oink's Pink Palace. Em 2016, após nove anos de vida, os servidores do What.CD

foram apreendidos e o site também foi fechado.

Após a criação do mp3 , a popularização de sites de torrents , os trackers

fecha dos e os programas de downloads de músicas, como o Napster , alguns artistas

buscaram uma estratégia de divulgação e uma estratégia de mercado através do

vazamento de sua própria música. Na maioria das vezes, artistas independentes,

não ligados a gravadoras viam na distribuição de seu próprio conteúdo uma maneira

de promover shows e promover a própria banda, porém artistas de grande porte,

como o rapper Lil Wayne e a banda inglesa Radiohead também viram no vazamento

de sua música uma maneira de divulgação.

O rapper americano Lil Wayne viu boa parte do material de um de seus

álbuns de maior sucesso, The Carter III, vazado em uma mixtape de um DJ

chamado The Empire, que em entrevista disse que "Wayne precisa olhar dentro de

seu círculo e entender que essas gravações são vazadas por alguém que senta

37 A promotoria divulgou que em 3 anos, Elis recebeu mais de 200 mil libras pelo PayPal, e acusação era de que a rede de usuários era uma maneira de enriquecimento de Allan Elis. Porém, os custos de servidor eram altíssimos e não havia nenhuma prova de enriquecimento, já que os custos de servidor sempre foram divulgados pelo próprio Elis no site.

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perto dele" . Essa fita se chamava The Drought Over Over 2 (The Carter 3 38

Sessions) e foi lançada em junho de 2007.

Ao comentar os vazamentos, Lil Wayne disse que não conhecia The Empire,

porém o resultado disso é que os vazamentos ajudaram no sucesso que foi The

Carter III, como descreve o artigo do site genius.com.

From a commercial perspective, the leaks ended up benefiting the album’s finished product. The final songs appealed to a wider range of listeners; Wayne and his team were able to refine particular nuances in his artistry for the official release. 39

The Carter III foi lançado em 2008, um ano após a mixtape de The Empire. O

single Lollipop é até hoje um dos maiores sucessos de Wayne, ficando cinco

semanas seguidas na lista das principais músicas da Billboard. O single talvez não

seria possível se não fossem os vazamentos de The Empire, e foi uma das primeiras

vezes na história da indústria musical que um artista se beneficia de vazamentos de

suas músicas. Se antes do vazamento Lil Wayne era um dos maiores rappers dos

anos 2000, após os vazamentos ele alcançou um status de estrela da música

mundial, expandiu o seu estilo musical junto de sua produção e o seu álbum The

Carter III tornou-se uma das maiores conquistas de sua carreira.

Também em 2007 a banda inglesa Radiohead finalizaria o seu sétimo álbum.

Ainda sem nome, havia muita mística envolvendo as gravações, já que a banda

tinha rompido há pouco tempo o seu contrato com uma das maiores gravadoras do

mundo, a EMI. Em outubro de 2007, a banda lançou o álbum In Rainbows .

38 http://www.xxlmag.com/xxl-magazine/2008/12/the-empires-strikes-back-at-lil-wayne-i-got-your-records-from-somebody-that-sits-next-to-you-on-your-bus/

39 "De uma perspectiva comercial, o vazamento ajudou a beneficiar o álbum em sua gravação final. As músicas alcançaram um número maior de ouvintes; Wayne e sua equipe foram capazes de refinar nuances em sua obra para o lançamento oficial" - Matéria para o site genius.com, acessado em 25 de maio de 2018 e disponível em <https://genius.com/a/how-leaks-changed-lil-waynes-tha-carter-iii-and-his-career>.

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Com uma estratégia inédita no mundo da música, o Radiohead disponibilizou

através de seu site oficial o álbum, através de uma estratégia "pague o quanto

quiser". Lançado alguns meses antes da versão física - estratégia usada pela

maioria dos artistas atuais, era comum entrar no site, selecionar "0,00" e fazer o

download gratuito do álbum. A estratégia de marketing e promoção de seu In

Rainbows fez o mundo da música discutir amplamente o valor real de um álbum e

quais seriam as vantagens econômicas e simbólicas de uma estratégia como essa.

In Rainbows , um dos principais álbuns do Radiohead, ganhou dois prêmios

Grammy no ano seguinte e teve a sua versão física em primeiro lugar na Billboard

americana, vendendo mais de tˆes milhões de cópias no primeiro ano.

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2. A internet

2.1 Redes distribuídas

Em seu livro "Protocol - How Control Exists after Decentralization", o professor

de mídia, cultura e comunicação na New York University, Alexander Galloway

detalha os diferentes tipos de redes e protocolos na internet, e como esses

protocolos funcionam para distribuir conteúdo de uma maneira algoritmizada, "uma

proibição para uma estrutura cuja forma de aparência pode ser qualquer número de

diagramas ou formas diferentes":

The Internet system could not be more different. It follows a contrary organizational design. The Internet is based not on directionality nor on toughness, but on flexibility and adaptability. Normal military protocol serves to hierarchize, to prioritize, while the newer network protocols of the Internet serve to distribute. [...] Protocol works in this new terrain of the distributed network. I attempt to show that protocol is not by nature horizontal or vertical, but that protocol is an algorithm, a proscription for structure whose form of appearance may be any number of different diagrams or shapes 40

(GALLOWAY, 2004, p. 30).

Ao citar os tipos de redes centralizadas e descentralizadas, Galloway usa

para os exemplos de redes centralizadas o panóptico de Foucault de "Vigiar e Punir"

- exemplo clássico de rede com um ponto central , e também o sistema judiciário 41

americano, onde a Suprema Corte tem sempre a palavra final para as questões

legais. para os exemplos de uma rede centralizada. Para as redes descentralizadas,

"o diagrama mais comum de redes", o autor cita o sistema de aviação, com

diferentes pontos centrais por todo o país, chamados de "hubs".

40 "A internet não poderia ter um sistema mais diferente. Segue-se um desenho organizacional contrário. O sistema da internet não se baseia na direcionalidade nem na tenacidade, mas na flexibilidade e adaptabilidade. O protocolo militar normal serve para hierarquizar e priorizar, enquanto os protocolos de rede mais recentes da internet servem para distribuir. [...] O protocolo funciona nesse novo terreno da rede distribuída. Eu tento mostrar que o protocolo não é, por natureza, horizontal ou vertical, mas esse protocolo é um algoritmo, uma proscrição para uma estrutura cuja forma pode ser qualquer número de diagramas ou formas diferentes."

41 Em "Vigiar e Punir", de 1975, Michel Foucault resgata o conceito de panoptismo de Jeremy Bentham, onde um ponto central é responsável por todo o monitoramento de uma rede.

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Esses dois tipos de redes, centralizadas e descentralizadas, são comumente

conhecidas na história da internet brasileira. Desde as salas de bate-papo dos

sistemas de BBS - bulletin board system nos anos 90, passando pelos provedores 42

de internet discada nos anos 2000 e até os atuais servidores de rede, estamos

acostumados a navegar entre redes descentralizadas e ter contato com outros nós

dentro dessas redes sempre sob intermédio de provedores de serviço.

Porém, também nos importa o terceiro modelo de rede descrito por Alexander

Galloway, as redes distribuídas. Citando o exemplo do rizoma de Gilles Deleuze e

Félix Guattari, as redes distribuídas contêm nós que começam em qualquer ponto,

terminam em qualquer ponto, tem qualquer direção, velocidade e se conectam a

qualquer outro nó e sempre sem hierarquia ou subordinação. O protocolo p2p , com

seus seeds e leechers , são exemplos de transformação de um usuário comum da

internet em um nó de uma rede distribuída.

De nada adiantaria existir uma rede distribuída, a ausência de hubs centrais,

a comunicação com diversos computadores ao mesmo tempo e todas as demais

vantagens que a internet e o protocolo p2p trouxeram aos usuários, se a conexão

entre dois computadores fosse sempre exclusiva e sem a possibilidade de se criar

um algoritmo para calcular diferentes velocidades de conexão entre diferentes

usuários e desfrutar dessas velocidades.

Imagine que um usuário precisa transmitir ou fazer download de um pacote,

seja uma música, um filme ou qualquer outro tipo de arquivo, e esse pacote está

disponível no computador de outras dezenas de milhares de computadores pelo

mundo. Imagine que um usuário baixe o disco "In Rainbows", da banda inglesa

Radiohead, que não só disponibilizou o disco para download gratuito, mas também

42 o BBS, ou bulletin board system, era uma maneira de se conectar a um computador central e ter contato com outros usuários também conectados a esse computador central. "A internet antes da internet", o BBS foi muito usado entre os anos 70 e 90.

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incentivou os usuários a compartilharem o seu disco . Agora, imagine que o usuário 43

que deseja fazer o download, chamado leecher A , conecta a outro usuário na rede,

em uma localização distante, chamado de seeder B . O seu computador A faz uma

requisição para o computador B , em uma localização distante, estabelece uma

conexão e começa a fazer o download do disco completo.

O grande problema é que essa conexão estabelecida entre leecher A e

seeder B está influenciada por condições tanto de A quanto de B . Se o seeder B

resolve simplesmente desligar o computador, ou então a sua conexão fica instável, o

leecher A não finaliza a sua transferência. A combinação de usuários um a um

encontra problemas quando uma das duas pontas se desconecta da rede.

Com isto em mente, o programador Bram Cohen criou em 2001 um novo

protocolo, baseado em redes p2p , chamado protocolo BitTorrent , onde a conexão do

leecher A nunca será com apenas um seeder , mas sim com uma comunidade

distribuída de diferentes seeders, que atuam como micro servidores de fragmentos

de um pacote para os diferentes usuários na rede. Esse processo recebeu o nome

de chunks .

Os chunks , ou fragmentos, permitem que um mesmo usuário leecher A faça a

conexão com dezenas de computadores na rede, fazendo com que a conexão

virtualmente dependa apenas do computador A , e nunca de algum servidor. Além

disso, o protocolo BitTorrent fez com que um pacote de dados fique mais veloz e

mais estruturado conforme a rede distribua as suas informações, já que enquanto o

usuário A é leecher de chunks que ainda estão por baixar, ele, ao mesmo tempo,

vira seeder os chunks já baixados. Os usuários se tornam servidores e aumentam a

velocidade de transmissão a cada minuto dentro da rede, criando um sistema onde

43 Um dos casos clássicos de banda que disponibilizou o seu disco de forma gratuita é o Radiohead e o lançamento do In Rainbows em 2007. A banda criou uma página própria para o disco em seu site com uma mensagem "faça o download e pague o quanto quiser". Na época, diversas empresas tentavam calcular o número de download pago do disco, e a banda lançou um comunicado dizendo que era "impossível fontes externas calcularem o número exato de vendas". O disco foi lançado digitalmente em outubro de 2007, para download pago ou gratuito, e fisicamente em dezembro.

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maior fosse o interesse por um lançamento, maior era a sua velocidade de

transmissão a cada minuto . 44

É o protocolo BitTorrent que deu à rede a clara noção de que para ter

sucesso na venda digital de discos, a indústria fonográfica teria que criar uma

diferente cultura para os seus usuários, tanto para os consumidores de música

quanto para os produtores de música.

Com o novo protocolo, diversos sites se tornaram trackers , repositórios

públicos ou privados de arquivos com extensão .torrent que continham informações

sobre o arquivo a ser baixado. Entre esses sites, o mais popular se tornou o sueco

The Pirate Bay , o maior catálogo de material pirata do mundo, autodenominado "o

tracker BitTorrent mais resiliente da galáxia", que hoje conta com diversos domínios

e continua sendo grande repositório de downloads de músicas, filmes, softwares e

diversos tipos de mídia, conectando seeders e leechers .

Nenhum arquivo torrent é salvo no servidor. Isso significa que nenhum material protegido por direitos autorais e / ou ilegal é armazenado por nós. Portanto, não é possível responsabilizar as pessoas por trás do The Pirate Bay pelo material que está sendo espalhado usando o site. (https://thepiratebay.org/about)

Em 2004, a Dreamworks entrou com um processo contra o The Pirate Bay por

disponibilizar cópias do filme Shrek 2 . A resposta da equipe, de forma irônica, dizia

que "talvez vocês não saibam, mas a Suécia não é um estado dos Estados Unidos

da América", e continuavam dizendo que "as leis americanas não se aplicam aqui",

finalizando com "vocês são uns babacas". Em 2009, os criadores do site foram

presos por violação de direitos autorais.

44 Mesmo de forma não-centralizada, ainda há um ponto em comum com os downloads tradicionais: os trackers. Pequenos arquivos de metadados, contendo informações sobre os chunks, e também nome, tamanho, ano e demais informações que são armazenados em algum tipo de servidor - ou diversos servidores.

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2.2 A organização dentro das redes

Hoje, com mais de 100 milhões de brasileiros conectados à internet,

conseguimos ter uma maior visão do que simboliza uma sociedade conectada, uma

economia conectada e um momento onde pessoas compartilham seus gostos,

vontades e desejos, através de sites, aplicativos, programas e redes sociais.

Em seu texto, "Networks of Power, Degrees of Freedom", Yochai Benkler cita

sobre o medo de que tudo que fizéssemos online ficaria visível para as corporações.

[...] Produced hopes and fears. The latter range from the creation of a much more thoroughly instantiated surveillance society, where everything we do is visible to the state and/or to one or more major corporate behemoths 45

(BENKLER, 2011, p. 724).

Estamos tentando entender um momento histórico onde as relações sociais

são mediadas por computadores e, naturalmente, a relação do usuário com a

música é mediada por smartphones e computadores e a relação de quem faz a

música também é mediada por celulares e computadores. Precisamos entender

esse jogo, re-alinhar expectativas e compreender que a produção é definida por

atores conectados e também pelas ferramentas que esses atores têm à sua

disposição: os home studios . 46

As redes de poder, como chama Benkler, afetam o comportamento dos atores

na sociedade, e para estar, participar ou pertencer de uma rede ou um sistema, as

configurações e também os resultados precisam ser afetados pelo sistema. Então,

45[...] Produziu esperança e medos. Estes últimos vão desde a criação de uma sociedade de vigilância muito mais complexa, onde tudo o que fazemos é visível para o Estado e/ou para um ou mais corporações gigantes.

46 A expansão da internet e o aumento de velocidade tem muito a ver com a popularização dos home studios. Linhas profissionais de equipamentos foram lançadas em versões home studio. A própria empresa gigante do ramo de gravações, a AVID, criou um produto especial para esse público de entrada. Chamado de Pro Tools First, o produto tem limitações técnicas e se destina a um público que está criando músicas em casa.

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uma das características de uma rede de poder, seja centralizada ou descentralizada,

é que a própria rede afeta as regras de seus atores.

An entity is in or “out of” a system to the extent that its behaviors, outcomes, or configurations are affected by the dynamics of that system. [...] Freedom for any given individual in a network is the extent to which that person can behave or attain a preferred or wanted outcome, given the sources of power that can effectively be brought to bear on that person’s behaviors (including influencing what he or she believes or prefers), outcomes, or configurations in that network (BENKLER, 2011, p. 725). 47

Dentro de uma rede, um ator social tem o seu poder medido e a sua posição

determinada a partir do momento em que também é determinada a influência de

comportamento, de suas ações e de suas estratégias sobre outros atores. Como um

ator obtém resultados e como outros atores mimetizam essas estratégias para

obtenção de resultados, criando configurações próprias e percepções é o que

determina o poder da rede que mostra para toda a rede quem são os donos dos

troféus simbólicos.

Com isso, é comum notar atores criando estratégias e compartilhando, e

outros atores copiando ações, horários, textos e toda uma divulgação. Em seu blog

especial para artistas, o Spotify deixa claro: dicas para a sua música se tornar um

sucesso nas redes sociais.

We can describe and measure the degree of power of a given individual or other actor (a node) in a network as the extent to which that node can influence the probability that another (or second) node will behave, obtain outcomes, or inhabit configurations that are consistent with the perceptions, preferences, principles, or policies of the power-exercising node (BENKLER, 48

2011, p. 727).

47 Uma entidade está dentro ou fora um sistema na medida em que seus comportamentos, resultados ou configurações são afetados pelas dinâmicas desse sistema. [...] A liberdade para qualquer indivíduo em uma rede é a medida em que essa pessoa pode se comportar ou obter um resultado desejado, dadas as fontes de poder que podem efetivamente ser aplicadas aos comportamentos dessa pessoa (incluindo influenciar o que ele ou ela prefere), resultados ou configurações nessa rede.

48 Podemos descrever e medir o grau de poder de um determinado indivíduo ou ator em uma rede como a extensão em que esse ator pode influenciar a probabilidade de outro ator se comportar, obter resultados ou habitar configurações que são consistentes com as percepções, preferências, princípios ou políticas do ator de exercício de poder.

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Um dos fundadores do The Pirate Bay , Peter Sunde, declarou em uma

palestra no evento Brain Bar Budapest em junho de 2017 que "a internet nasceu 49

para ser descentralizada, mas foi centralizado tudo no poder de poucas

companhias", e nos últimos anos, todos os serviços e sites foram comprados pelas

cinco principais empresas do planeta . 50

Nós, como o povo, perdemos a internet para a sociedade capitalista. Nós tivemos uma pequena abertura para uma internet descentralizada, mas perdemos por sermos inocentes. Estas companhias tentam soar como boas ao fazer isso, que elas estão 'lhe dando' algo (SUNDE, Peter. Palestra realizada em junho de 2017).

Os hábitos de consumo são gravados em servidores e big datas , e através de

ciência de dados, os detentores desses dados criam estratégias de mercado

baseados em nosso consumo, seja as viagens feitas pelos serviços de mobilidade

ou, em nosso caso, as músicas consumidas pelos serviços de streaming . Segundo

Sunde, a ciência de dados e big data é como o tabaco, nos viciando e fazendo com

que não consigamos nos distanciar.

O que isso representa a longo prazo é como fumar. Big data tabaco são realmente similares neste aspecto. Antes, não era visível o quão prejudicial era o tabaco, mas agora sabemos que ele causa câncer. Nós não sabemos o que o big data pode representar, mas agora o conhecemos. Estamos fumando toda a nossa vida em produtos de big data e não conseguimos mais largar(SUNDE, Peter. Palestra realizada em junho de 2017).

49 Brain Bar é um dos principais festivais de tecnologia da Europa, com ciclos de palestras e lançamentos. O evento ocorre anualmente em Budapeste e conta com dezenas de especialistas em tecnologia. 50 Google, Microsoft, Facebook, Amazon e Apple.

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3. Streaming : novas regras em campo

3.1 Bourdieu e a noção de campo musical

Em seu trabalho "As Regras da Arte", Pierre Bourdieu detalha os seus

conceitos de campo , habitus e illusio , que serão revisitados aqui. O autor francês se

refere à literatura, mas os seus conceitos se encaixam perfeitamente na discussão

musical. Bourdieu levanta a discussão sobre a illusio do campo da arte e sobre a

construção de valor da própria obra de arte, com uma realidade de interesses

absolutos em que artistas, produtores, técnicos e até mesmo usuários consumidores

participam de um jogo que, com a chegada do streaming , tem as suas regras

mudadas.

O campo é uma rede de relações objetivas (de dominação ou subordinação, de complementaridade ou de antagonismo etc.) entre posições - por exemplo, a que corresponde a um gênero como o romance ou a uma subcategoria tal como o romance mundano, ou, de outro ponto de vista, a que localiza uma revista, um salão ou um cenáculo como locais de reunião de um grupo de produtores. Cada posição é objetivamente definida por sua relação objetiva com outras posições ou, em outros termos, pelo sistema das propriedades pertinentes, isto é, eficientes, que permitem situá-la com relação a todas as outras na estrutura da distribuição global das propriedades (BOURDIEU, 1992).

Estamos diante de um campo em que jogadores não se declaram jogadores e

em que produtos muitas vezes não são assumidos como produtos. Ou, como diz o

autor, "um universo tão pouco institucionalizado [...], que não se deixam apreender

senão através das propriedades de seus ocupantes" (BOURDIEU, 1996).

O campo , como apresentou Pierre Bourdieu, é uma rede de relações

objetivas entre atores sociais e suas posições sociais, que são relacionais e

definidas por tautologia, ou seja, um agente é o que o outro não é, e o outro agente

é o que esse não é. O campo social é estruturado em polaridades e só tem

significado no desmedido do seu contrário, e conforme esse campo muda, conforme

as regras ditadas por seus dominantes, precisamos não apenas repensar aquilo que

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os usuários demonstram preferir, através de métricas e ciência de dados , mas 51

também desses outros agentes do campo, envolvidos em diferentes habitus que

influenciam diretamente o modo de se fazer música com as novas tecnologias.

A illusio do campo da música na lógica do streaming fez com que os próprios

artistas procurassem alternativas para se projetar no campo, onde o próprio campo

ofereceu novas maneiras de dar projeção a esses agentes. Ou, como ressalta

Bourdieu, há um "investimento no jogo que tira os agentes da indiferença, os inclina

e dispõe a operar as distinções pertinentes do ponto de vista da lógica do campo".

Essa "lógica do campo", que Bourdieu conceitua tão bem em seu As Regras

da Arte , mostra a necessidade dos atores sociais de irem atrás de reconhecimento

nesse campo, esquecendo regras anteriores e se baseando na lógica dos troféus

simbólicos criados por uma illusio forjada por dominantes - em nosso caso, os

serviços de streaming .

A illusio - a crença coletiva no jogo e no valor sagrado de suas apostas é a um só tempo a condição e o produto do funcionamento mesmo do jogo; é ela que está no princípio do poder de consagração que permite aos artistas consagrados constituir certos produtos, pelo milagre da assinatura, em objetos consagrados. (BOURDIEU, 1992)

Dentro desse jogo, onde, entre tantos agentes, há o artista e o produtor, ou

seja, aquele que cria e aquele que grava o que foi criado, quem sempre ofereceu

matéria-prima para a criação de um capital simbólico ao produtor é o artista. Desde o

início das leis do direito autoral, passando pelos grandes álbuns, pelo rap e pela

música pop, quem sempre ofereceu essas condições foi o artista. É o artista quem

passa horas para a criação de novas músicas. Em suma, sem artista, não há

produtor.

51 A ciência de dados, termo muito utilizado atualmente, é uma maneira de estruturar bancos de dados de forma que informações aparentemente irrelevantes, como em nosso caso um aumento de volume em uma determinada música, se tornem dados úteis para criar anúncios, idéias e poder influenciar a tomada de decisões. Com a importância da vida digital, dados são cada vez mais coletados de forma detalhada, com uma criação de inteligência sobre as ações dos usuários.

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Porém, a partir do momento em que o campo apresenta novas regras ao

artista, e a partir do momento em que o artista encontra condições para gravar as

suas próprias músicas em casa e em seu próprio home studio , o capital social do

produtor é rebaixado a uma figura que produziu, no passado, grandes álbuns, e que

agora, como crítico, é capaz de avaliar algumas poucas obras através de blogs,

programas de entretenimento e realitys shows musicais . 52

O campo mudou os eixos de suas posições sociais, ressignificou o status dos

seus agentes e conferiu um novo capital a agentes que antes não contavam com

esse capital. Investigar o habitus de cada um desses agentes é entender um pouco

mais das regras da arte. O campo musical é o espaço legítimo de investigação da

criação de cada um desses valores sociais.

Neste espaço, hoje dominado por duas gigantes, a Spotify e o YouTube , os

agentes articulam meios, métodos, maneiras e recursos para obter troféus

simbólicos legítimos, criados para " reproduzir continuamente a crença no jogo, o

interesse pelo jogo e pelas apostas" (BOURDIEU, pg 258).

Os artistas fazem das redes e mídias sociais - assim como todo agente faz do

campo social - um espaço de estratégias. Disponibilizam apenas trechos de músicas

em determinados horários, em determinadas plataformas, e outros trechos em

outros dias e outros horários, outras plataformas. Criam músicas que servem como

atenção para outra determinada música, e disponibilizam uma música para atrair

cliques para uma determinada playlist. Uma rede de métricas e dimensões que

mapeiam a sua posição no campo. Esse espaço de estratégias faz com que um

novo habitus seja criado, uma necessidade moderna de aparecer nas redes sociais,

onde as "determinações externas sempre se exercem por intermédio das forças

específicas do campo" (BOURDIEU, 1996, p. 262).

52 O programa "Ídolos", do SBT, criado em 2006, tinha como jurados os produtores Thomas Roth, Arnaldo Saccomani, Cynthia Zamorano e Carlos Eduardo Miranda, todos produtores musicais. O programa "X Factor Brasil", da Bandeirantes, tinha Rick Bonadio, famoso produtor.

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O troféu não é mais o álbum, como antes do streaming e da música digital. Os

discos de ouro da ABPD não são mais buscados e exibidos em programas de

televisão. O objetivo é a própria música de maneira individualizada, o sucesso, o hit

do momento estar nas playlists das plataformas. A playlist é a nova estratégia do

campo, compreendida por agentes que mudaram a sua posição social dentro de um

status determinado por setor dominante, como os donos dos serviços de streaming ,

e que apresentaram novas regras de produção e de consumo, gerando uma

modificação no habitus da classe.

Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência

produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro (BOURDIEU, 2009, p. 87).

Habitus , como qualificação do campo social, dá ao músico o status de

músico. É o costume e maneira de interagir com outros agentes que o incorpora

dentro de uma trajetória, dentro de um espaço abstrato, e que permite uma ação que

é regida por essa orquestra sem maestro, e no nosso caso, produzida sem um

produtor. A figura do produtor vem sumindo, e o habitus de artista nas redes digitais

não só o obriga, dentro desse espaço abstrato, a saber o que é música, mas a saber

o que são as redes, como se relacionar em rede. Ser um microempresário de si

mesmo, como disse Ludmila Costhek Abílio. O artista precisa assumir novas funções

e procurar o seu público de maneira distinta da maneira que procurava há anos. O

que Pierre Bourdieu chamava de "retradução que se trata de determinações sociais

que operam através do habitus", hoje pode ser facilmente traduzido nessa

necessidade de estar online o tempo todo, respondendo todos os fãs e possíveis fãs,

em um campo formado por antigos agentes com novos habitus, que foi naturalmente

assimilado em um momento de expansão e mudança do próprio campo.

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3.2 O espaço dos possíveis

Além da visão de um campo modificado, com um novo habitus, é possível

assumir que há uma mudança estética na música?

Cada tomada de posição (temática, estilística etc.) define-se (objetivamente e, por vezes, intencionalmente) com relação ao universo das tomadas de posição e com relação à problemática como o espaço dos possíveis que aí se acham indicados ou sugeridos. [...] Daí se segue, por exemplo, que o sentido e o valor de uma tomada de posição (um gênero artístico, obra particular etc.) mudam automaticamente, mesmo quando ela permanece idêntica, quando muda o universo das opções substituíveis simultaneamente oferecidas à escolha dos produtores e dos consumidores (BOURDIEU, 1996, pg 263).

O que Bourdieu nos mostra é que as decisões estéticas são definidas de

acordo com o universo de tomadas de posição dentro do campo. A própria obra de

arte, dentro do seu contexto, muda e modifica também o seu universo de opções. Ou

seja, quando um artista, com uma nova obra, se diz "mais maduro", muitas vezes

está declarando de forma não intencional que agora ele conhece mais as regras do

campo, entre essas regras, o hábito de consumo de seus consumidores.

A tecnologia e a possibilidade da atualização das intenções dos agentes do

campo fez com que esses mesmos agentes, que antes estavam autorizados a olhar,

admirar e aplaudir o trabalho do produtor, agora podem também comprar programas

de gravação de baixo custo, montar home studios , testar as suas músicas e lançar

álbuns através de plataformas como OneRPM e Tratore . 53

Nota-se tal sucesso dos serviços de streaming , principalmente YouTube e

Spotify , com suas centenas de milhares de usuários, onde músicos aceitam e jogam

regras estabelecidas pelos novos players . Porém, ainda existe algo a ser

pesquisado: se serviços como YouTube ou mesmo o Spotify remuneram tão pouco

os seus artistas, por que aceitar esse jogo? Por que traçar estratégias? O habitus

53 OneRPM se diz "uma empresa de música e tecnologia que ajuda artistas, gravadoras, editoras, criadores e proprietários de conteúdo a obterem sucesso."

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está revestido e vislumbrado por ganhos e troféus como as playlists, os likes dados

pelos usuários e também por seu público inscrito . A verdade é que apenas quem 54

está no campo consegue entender claramente os valores simbólicos das curtidas, do

número de visualizações, de uma conta verificada, de um vídeo promovido. Os

músicos fazem parte de um novo campo, consolidado por novas regras, e " essa

consolidação envolve novas lógicas que contam com a terceirização da execução do

controle sobre o trabalho das empresas para um multidão de consumidores

vigilantes" (ABÍLIO, 2017).

Através desses pequenos ganhos, dessas pequenas conquistas, como um

comentário em um vídeo, um número possível de curtidas, ou uma conta verificada -

mesmo sabendo que só você pode ser você -, é que surge a possibilidade para que

os usuários, e aqui representados por artistas e músicos, acreditem que é possível

chegar nas maiores conquistas, como as receitas maiores ou êxito do capital

econômico. Por isso, não basta a illusio do valor de um determinado troféu, mas é

preciso existir a illusio da possibilidade de todos os agentes do campo alcançarem

esse troféu.

Já sabemos que há conquistas médias, e que também há a illusio do alcance

das maiores conquistas, e é através dessas condições em que o artista é o primeiro

a aceitar as condições de legitimação de dominação, como os valores baixos pagos

aos artistas, ou o domínio das playlists e o empobrecimento do lançamento de novos

álbuns. Ou seja, somos nós, usuários, que legitimamos os artistas a não lançar um

álbum completo, mas sim apenas uma ou duas músicas, e ficamos felizes por ouvir

determinada música em uma determinada playlist , buscada por determinado artista,

através de uma illusio da conquista de um troféu de médio porte. O sucesso

simbólico de uma música dentro da plataforma digital é estruturado por um novo

54 No YouTube, os usuários que sobem os vídeos e áudios pedem para que os usuários que assistem se inscrevam em seus canais. Há um algoritmo, não detalhado pela empresa, em que a somatória do número de inscritos, com o número de visualizações de um conteúdo, com o engajamento em likes, resulta na receita daquele conteúdo. O valor pago não se dá apenas por visualização, mas também pelo engajamento dos usuários na própria plataforma.

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habitus do agente, ao mesmo tempo que estrutura e legitima a busca por um

sucesso econômico de uma conquista maior.

3.3 A efemeridade e rapidez do consumo

Não se imaginaria que com a internet os limites de nossas fronteiras culturais

seriam as nossas próprias escolhas. Acreditávamos que as nossas escolhas ainda

se dariam de acordo com o caminho traçado ao longo de uma cronologia. Mas hoje

conhecemos arte de todos os lugares do mundo, assistimos filmes de todos os

lugares, piratas, não piratas, ouvimos músicas de qualquer artista, visualizamos

receitas antes desconhecidas. A pirataria era um serviço feito por pessoas físicas,

com endereço, e era possível prender quem tentava copiar digitalmente um CD.

Com a criação do mp3 e a digitalização da música e, principalmente, a

distribuição digital da música, foi preciso serem criadas novas formas de

relacionamento entre quem produz e quem consome música. E por produção

podemos considerar os compositores, os engenheiros de som, os produtores, o

artista e a própria indústria como um todo. Para manter a sua influência econômica,

a indústria precisou aprender o que é o mp3 , precisou entender a pirataria e mudar a

própria música em sua essência.

Com produções cada vez mais baratas e arrecadação cada vez mais fluida, o

mercado e as gravadoras já não tem mais controle das audições de suas obras, e o

próprio artista começa a tentar criar as suas próprias métricas de controle e sucesso,

através de seus compartilhamentos nas redes sociais, contador de downloads e

visualizações de análise de dados em suas aplicações virtuais: microempresários de

sua obra.

Com isso, surge uma necessidade de buscar o novo. Novos artistas surgem,

gravações caseiras são disponibilizadas no YouTube , distribuição de músicas por

links. O artista e a própria gravadora mudam o seu pensamento, precisam fazer mais

rápido e mais. Precisa valer a pena, e o custo tem que ser baixo.

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Com os home studios atuais, é possível gravar um álbum com R$ 2 mil R$ 3

mil reais investidos em equipamentos, e é natural que aconteça um fenômeno: os

artistas estão fugindo das mega gravações. Se no seu álbum de maior sucesso,

Noel Gallagher e o Oasis contam com orquestra e diversas guitarras, como visto em

seu disco "What's The Story Morning Glory", de 1995, em seu último álbum, de 2015,

"Chasing Yesterday", não se ouve um violino sequer.

No Brasil, se Caetano Veloso experimentou diversas formações, músicos de

apoio, metais e muito mais em diversos discos dos anos 90, a sua banda atual, "Cê",

é composta por três músicos e os fonogramas são gravados também de forma

simples e minimalista. O mesmo exemplo ocorre com diversos artistas, nacionais e

internacionais, onde suas mega produções se transformaram em gravações simples

e sem o recurso de inúmeros e inúmeros músicos de apoio.

A internet mudou não só a maneira em que se ouve música, mas também a

maneira em que se faz música. Os casos não são absolutos, naturalmente, com

diversos e diversos discos grandiosos - tratando do tamanho de bandas -, mas é

muito mais comum encontrar bandas menores, com arranjos mais simples para seus

álbuns.

3.4 A mudança de valores e o "vácuo moral"

Se antes era proibido e antiético baixar músicas, o contexto pós-revolução

microeletrônica criou uma espécie de "vácuo moral", onde não se sabe mais se é

errado ou certo baixar músicas, e a própria internet, como instituição, toma o lugar

das gravadoras e distribuidoras de música. Podemos dizer que existem dois tipos de

consumidores de música nesse contexto.

O primeiro tipo não sabe qual a legislação que vigora no âmbito da internet e

das músicas, não sabe se o que está fazendo é certo ou errado. Esse primeiro tipo é

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o caso de Brianna LaHara, condenada na operação Hubcap . Consumidores que

querem ouvir música.

Já o segundo tipo sabe que é ilegal fazer downloads de músicas e mesmo

assim ainda o faz, numa espécie de desafio às leis ou à própria ética. O usuário, de

forma ativa, busca a música, encontra os caminhos para esse desafio, compartilha e

faz parte de uma comunidade online. Estamos falando de usuários como Allan Elis,

Dell Gloover, entre outros.

Porém, em ambos os casos, para ambos os tipos de usuários, o artista

começa a perceber que a solução é fornecer a sua própria música online, pois a

distribuição nos termos clássicos demora para entregar a música ao usuário. No

início da segunda década dos anos 2000, ficou cada vez mais comum os próprios

artistas, através de serviços de upload de arquivos, disponibilizarem as suas

músicas. E, ao fazê-lo, é suprimida a parte burocrática e operacional da gravadora,

que se situava entre o estúdio e o usuário final. Agora, o próprio artista faz parte da

criação, da gravação e da distribuição, e se o seu fonograma for disponibilizado

pelos meios clássicos, não há ônus e nem ilegalidade.

Com isso, o número de usuários que migram do primeiro tipo, onde não

sabiam a legalidade dos downloads , para o segundo tipo, onde sabem, e mesmo

assim ainda o fazem, aumenta, e as próprias gravadoras precisam encontrar uma

solução, visto que a criminalização dos downloads ilegais falhou.

3.5 Os serviços de streaming num contexto pós-pirataria

Com as receitas em queda, as vendas de CDs cada vez mais baixas, junto à

criação de novas tecnologias, foi encontrada uma nova forma de consumir - e

consequentemente vender - música: o streaming . E na internet, diferente do que

uma corrente acredita, que não há o controle do uso, podemos encontrar algoritmos

e formas de criar métricas de acesso e hábitos de consumo dos usuários. Com

ferramentas e serviços cada vez mais desenvolvidos, a indústria encontrou uma

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maneira viável de driblar a pirataria e controlar o uso e desgaste de cada tecnologia.

A biopolítica, cada vez mais praticada por meio de smartphones , smartwatches e

outros dispositivos, oferece ao mercado o controle de nossas ações, desafiando

nossas necessidades e ditando o consumo, através de regras, protocolos e

condutas. Como diz Sérgio Amadeu:

A nova fase da biopolítica não passa apenas pela garantia da disciplina dos corpos, da saúde posicionada para o trabalho adequado à reprodução do capital, agora ela passa pelo incentivo à ultra individualização, pela necessidade de que os indivíduos sejam acompanhados e parametrizados em suas variações de humor, de perspectiva e de objetivos (AMADEU, 2011).

No final da primeira década dos anos 2000 foi lançado no Japão um novo

serviço de dados móveis, o conhecido 4G, onde a velocidade alcançada pelos

dispositivos móveis é consideravelmente maior que a tecnologia anterior. Com o 4G

foi possível realizar chamadas de vídeo pelo celular, baixar grande quantidade de

dados, ter uma conexão estável e com velocidade. No contexto do 4G que é lançado

um dos primeiros serviços de streaming atuais: o Spotify .

O streaming é uma tecnologia criada para que se reproduza conteúdo em

vídeo ou um áudio sem precisar fazer o download completo para o dispositivo, seja

um computador ou um celular. É possível ouvir músicas sem que essas músicas

ocupem espaço no celular. São armazenados apenas metadados, como pequenas

informações de ficha técnica, nome, tamanho da música, e ao procurar e reproduzir

uma música, todo o conteúdo é reproduzido remotamente.

Como o usuário não é proprietário da plataforma física, seja o CD ou o LP, e

sim apenas proprietário de um usuário e senha do serviço online, a música é

também transformada em um serviço, deixando de ser um produto. São criadas

listas e mais listas de artistas. A facilidade de ter uma biblioteca inteira de artistas a

sua disposição é muito atraente, e a indústria encontra uma maneira de retirar o

usuário dos downloads ilegais: ofertando um número incontável de opções, por um

preço fixo.

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O artista continua oferecendo a sua música pela internet, não dependendo

das lojas e mídia tradicional, e o usuário pode encontrar o artista por um sistema

online, também não dependendo das lojas e mídias tradicionais. Surge um cardápio,

com todas as opções possíveis para o usuário final, onde ele seleciona por

categorias, momentos, climas e quaisquer outras taxonomias criadas de acordo com

o algoritmo dos serviços de streaming e prontos para oferecer esse serviço e

transformar o próprio usuário em produto.

3.6 O Spotify e suas receitas

O Spotify, maior dos serviços de streaming especializado em música , 55

divulga o seu balanço de tempos em tempos. É possível saber, ainda que de forma

não detalhada, o número de usuários e, através de contas com dados externos, o

valor pago por música tocada a cada um dos artistas cadastrados no Spotify . É com

esses dados que vamos analisar o Spotify como o símbolo dos serviços de

streaming .

Em dados de junho de 2017, o Spotify chegou a 140 milhões de usuários,

sendo 50 milhões de usuários pagantes do plano de assinatura do serviço e outros

90 milhões de usuários gratuitos no seu serviço mensal de assinatura . Em 2018, 56 57

o número de usuários do Spotify aumentou para 159 milhões, sendo que 87 milhões

são usuários pagantes. O crescimento de usuários pagos de 2017 para 2018 foi de

10%, subindo dos 35% em 2017, para 45% em 2018. Com isso, o valor do próprio

repasse por play foi aumentado.

55 O Spotify é o maior serviço de streaming de música, com cerca de 140 milhões de usuários, mas o site de vídeos YouTube continua sendo o maior serviço de streaming existente, com cerca de 1 bilhão de usuários.

56 O site oferece um plano gratuito para os seus usuários, onde algumas funcionalidades são restritas, como ouvir um disco na ordem em que foi lançado, ou ouvir as músicas sem propagandas entre uma faixa e outra.

57 Dados divulgados pela própria empresa, disponibilizados pelo infografista http://www.informationisbeautiful.net/visualizations/spotify-apple-music-tidal-music-streaming-services-royalty-rates-compared/

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A conta que se faz é que o Spotify pagava $0.0038 dólar em 2017 e $0.0043

dólar em 2018 por cada audição de música. O artista precisa de 229 audições para

ganhar $1 no serviço de streaming . Isso significa que para chegar ao montante de

um salário mínimo, o artista precisa de cerca algo em torno de 80 mil audições. E

com cerca de 30 milhões de músicas em seu catálogo, isso custa, para o Spotify, $

194 milhões (cento e noventa e quatro milhões de dólares) por mês pagos em

remunerações para artistas.

Esses números ainda confundem a indústria como um todo. Pois, se o

streaming veio para ficar no que se diz ao formato e a facilidade de uso, ainda não

se consolidou o suporte, seja pelo Spotify , pelo falido Rdio ou por um futuro a ser

descoberto. O Spotify divulgou no ano de 2015 um prejuízo de 184 milhões de

euros, segundo a sua contabilidade oficial, e, além disso, ainda não agrada os

músicos, deixando ainda mais confuso o algoritmo de pagamento e qual a conta.

Ao ser questionado sobre o fato do Spotify não ser uma empresa

economicamente sustentável, Paul Ralphes comentou qual seria a solução:

Não é só um problema da música, mas sim do mundo digital. Empresas têm dívida mas tem um valor muito alto. Acho que os serviços de streaming só vão conseguir gerar lucro quando houver um acordo padrão de pagamento de direitos autorais, sem precisar de negociação a cada ano. Quando a indústria tiver um modelo mais fácil de negociação, será mais fácil de gerar lucro. Todos estão brigando por suas contas, e não por um acordo padrão (RALPHES, Paul. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva, em junho de 2018).

Outra informação importante sobre o Spotify é a falta de contrato direto com

os artistas. No Brasil, há algumas empresas que terceirizam o trabalho e fazem a

ponte entre o artista e a plataforma, se conectando ao Spotify para disponibilizar as

músicas. As "agregadoras", como são denominadas, viraram alternativa às antigas

gravadoras da indústria fonográfica, cuidando do fonograma como um todo e dos

dados analíticosde consumo das músicas dos artistas.

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No Brasil, as maiores são a gigante OneRPM , a antiga Tratore e a CD Baby .

Outros nomes são conhecidos, como Believe , iMusica , The Orchand , RouteNote e

TuneCore . Como os serviços são, na maioria das vezes, parecidos, e no final do

processo sempre se resume em disponibilizar o catálogo do artista nas diferentes

plataformas digitais, a grande diferença entre as agregadoras musicais se baseia no

preço cobrado para o artista. Como o Spotify não conta com uma API pública para 58

desenvolvedores , ainda é necessário a contratação de uma agregadora.

If you’re not signed to a label or distributor, we have deals in place with companies who can deliver your music to us and collect royalties for you. These are called aggregators. These services handle the licensing and distribution of your music and also pay you royalties when your fans stream your music on Spotify. There’s usually a small fee or percentage cut involved. Each service is unique, so be sure to do a little homework before picking one (Spotify For Artists). 59

A OneRPM , ou One Revolution People Music , é uma empresa nova-iorquina

com escritórios em São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Cidade do México,

Bogotá, Nashville e Nova Iorque, com mais de 35 mil artistas cadastrados em seu

sistema, e que pode disponibilizar a sua própria música para mais de dez serviços

diferentes, como Spotify , Apple Music , Deezer , Napster , entre outros. No caso do

Spotify , a OneRPM explica em seu acordo público com artistas e selos que repassa

70% do total arrecadado, retendo 30% da receita, conforme item 7 do documento:

70% (setenta por cento) da receita líquida resultante da administração e exploração de todos os direitos dos fonogramas e demais direitos relacionados a eles fornecidos pelo proprietário à ONErpm (incluindo, mas não limitando aos autorais, textos e imagens) via lojas premium e lojas de telefonia como listadas no site sob todos os formatos (streaming, download, ringtones, p.ex); - Contrato de distribuição de música

. - OneRPM https://onerpm.com.br/legal/agreement 60

58 API, ou Application Programming Interface , é a maneira que dois computadores conversam entre si para gerar uma interface de usuário para aplicações e softwares . É através de APIs públicas que programas se conectam a redes, como Facebook, ou a sistemas, como a bolsa de valores, Spotify , serviços do Google, entre outros. Sem uma API, não há como oferecer dados para um usuário.

59 Se você não está conectado a um selo ou distribuidor, temos acordos com empresas que podem nos enviar suas músicas e cobrar royalties para você. Estes são chamados de agregadores. Esses serviços lidam com o licenciamento e a distribuição de suas músicas e também pagam royalties quando seus fãs transmitem suas músicas no Spotify . Geralmente, há uma pequena taxa ou porcentagem envolvida. Cada serviço é único, por isso certifique-se de fazer um pouco de lição de casa antes de escolher um. (https://artists.spotify.com/faq/popular#how-do-i-get-my-music-on-spotify)

60 Disponível em https://onerpm.com.br/legal/agreement.

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A Tratore , com a sua sub-marca Fonomatic, cobra uma taxa de inscrição por

música, além da porcentagem. Conhecida como uma rede de distribuição física, a

empresa paulistana fundada em 2002 carrega o título de "maior rede de distribuição

de música independente", com centenas de pontos de distribuição pelo Brasil.

Recentemente, a empresa se tornou uma agregadora musical, e distribui também as

músicas independentes de forma digital, pelo preço de R$ 50 por música no formato

digital, ou R$ 240 por música no formato físico + digital.

A CD Baby foi fundada em Oregon - US há mais de 20 anos, e inicialmente

trabalhava com distribuição física de CDs. Hoje, a empresa é a maior distribuidora

digital global de música independente, com centenas de milhares de artistas

cadastrados. A empresa cobra uma taxa única por inclusão de música nas

plataformas, variando de 40 reais por música e 100 reais por álbum completo.

No site da CD Baby, há três perguntas direcionada para responder os artistas:

"como coloco minha música no Spotify ?", "como o Spotify paga?" e "por que usar a

CD Baby para colocar a minha música no Spotify?". Basicamente, a empresa

promete uma assessoria operacional para criar o seu cadastro e adquirir a sua conta

como artista no Spotify. 61

"Você receberá uma taxa de streaming pelo uso da gravação sonora quando

suas músicas forem reproduzidas. Quanto mais sua música é tocada, mais dinheiro você ganha. Se você escreve música autoral, cada execução por streaming gerará também direitos de edição que não são coletados por associações de direitos como ABRAMUS e UBC. A fim de coletar os direitos de composição, você vai precisar de uma editora ou de um administrador de direitos de edição que atue em seu nome. Inscreva-se no CD Baby Pro Publishing para receber tudo o que lhe é devido" - CD Baby - https://pt.members.cdbaby.com/get-on-spotify.aspx

Além disso,

A CD Baby é a maior distribuidora digital de música independente no mundo. Entregaremos suas músicas rapidamente ao Spotify, ao mesmo tempo em que forneceremos metadados robustos e inspeção manual de todas as faixas, para que o

61 Apesar do artista não fazer a manutenção de seu catálogo digital diretamente no Spotify, artistas podem ter acesso a plataforma chamada "Spotify for Artists", com conteúdo exclusivo para artistas, estatísticas de acesso, mudança de fotos de perfil do artista e compartilhamento de status e histórias para fãs. O site pode ser acessado em artists.spotify.com.

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Spotify tenha todas as informações que precisa para garantir pagamentos adequados aos detentores de direitos. Como um cliente da CD Baby, você também obtém a verificação instantânea como artista no Spotify e acesso aos detalhados relatórios de tendências da plataforma; atualizados diariamente em sua conta de membro da CD Baby. A CD Baby também distribuirá sua música para mais de 100 outras plataformas de música digital e ajudará com a monetização de sua música no YouTube, licenciamento de sincronização, marketing digital de música, e muito mais. Há 20 anos pagamos artistas todas as segunda-feiras, e não cobramos taxas anuais!

Tendo em vista que o relacionamento com os artistas é feito também via

agregadoras, e que o artista não tem contato com a plataforma do Spotify para subir

suas músicas, é importante destacar o papel das empresas agregadoras como

intermediadoras dos serviços de entrega de músicas ao usuário final.

Em maio de 2018 tive a oportunidade de fazer uma entrevista com Arthur

Fitzgibbon, presidente da OneRPM Brasil, que pode mostrar a visão da empresa

sobre novos artistas, playlists , estilos musicais e sobre a relação entre artista e a

OneRPM . Ao ser perguntado sobre a preferência da agregadora sobre algum estilo

musical, a resposta foi clara quanto aos estilos musicais, porém diferente quanto aos

próprios artistas e nomes:

P: Arthur, a OneRPM tem preferência por algum estilo ou gênero musical? AF: Não há uma preferência por estilo ou gosto musical, trabalhamos todos os estilos e todos eles possuem a mesma possibilidade de atenção e dedicação. P: Há prioridade para algum tipo de artista, seja ele independente ou de mainstream? AF: Sim, temos uma estrutura de matriz de priorização de conteúdo onde estudamos entre muitas variáveis que artista será prioridade. Dessa maneira temos um equilíbrio muito bom entre artistas de todos os tamanhos, onde todos tem boas chances de obter um posicionamento muito bom durante o lançamento.

Com a mudança de taxonomia dos estilos e gêneros musicais para playlists e

singles é natural que a priorização de conteúdo seja de acordo com nomes, e não

com estilos.

Ao ser perguntado sobre o percentual retido pela agregadora, os valores

padrões do site se mantiveram. Artistas recebem 70% do valor repassado pelo

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Spotify , conforme contrato de distribuição de música disponível no site da OneRPM 62

.

P: Qual é o percentual de contrato padrão cobrado pela OneRPM ao subir uma música para o Spotify ? AF: Existem dois tipos de contratos e esse percentual pode variar entre 70% e 85% de repasse para o artista/selo.

P: Existe uma diferença de porcentagem para um single ou um disco inteiro? Ou seja, existe como fazer algum tipo de pacote ou desconto para discos inteiros ou número maiores de músicas? AF: Não existe diferencial de repasse entre single ou álbum, pois o consumo da música sempre acaba sendo individual.

P: Existem percentuais diferentes cobrados e retidos pela OneRPM para diferentes músicas ou estilos ou artistas? Por exemplo, para funks é cobra cerca de 70%, para mpb é cobrado cerca de 85%? AF: Não existe percentual diferente para estilos diferentes de música. Mantém a regra de contratos diferentes para os tipo de envolvimentos e marketing apenas, que podem variar entre 70% e 85%.

Porém, seria natural imaginar que a OneRPM , uma agregadora entre diversas

outras agregadoras, se adequaria ao mercado para priorizar certos artistas e tentar

lançar outros artistas como exclusividade ou lançamento. Por isso, perguntei se

existem artistas que são exceções nesse valor de 70% de repasse e se existe

alguma área da empresa que busca procurar artistas para priorizar o conteúdo.

P: Existem artistas exceções? Artistas que não são cobrados? AF: Sim, existem exceções. P: Existe alguma área de caça talentos dentro da OneRPM? AF: Sim, existe e é um trabalho feito diariamente.

62 "70% (setenta por cento) da receita líquida resultante da administração e exploração de todos os direitos dos fonogramas e demais direitos relacionados a eles fornecidos pelo proprietário à One (incluindo, mas não limitando aos autorais, textos e imagens) via lojas Premium e lojas de telefonia como listadas no site sob todos os formatos (streaming, download, ringtones , p.ex);" - https://onerpm.com.br/legal/agreement

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A empresa atua como uma distribuidora de conteúdo e avisa ao Spotify quem

são os artistas que devem ser priorizados. A minha última pergunta foi sobre

qualificação de música.

P: A OneRPM tem algum serviço de qualificação de música e produção do artista? AF: Nós não nos envolvemos na produção artística.

Conforme explanado com o conceito de uberização e os artistas trabalhando

a sua obra dentro do Spotify , é natural que os artistas tenham que se dedicar para

conseguir a atenção do público. E mesmo buscando essa atenção, a própria

agregadora também tem um trabalho, segundo o presidente da OneRPM Brasil, que

faz uma curadoria de conteúdo e prioriza determinados artistas, conforme variáveis

internas. Um artista pode ser priorizado, mas não de acordo com o seu gênero ou

estilo, mas sim de acordo com uma matriz de priorização de conteúdo.

Mesmo com toda a divulgação das agregadoras, mesmo com o trabalho de

marketing entre as diversas agregadoras para oferecer o melhor contrato para o

artista, o trabalho de uma empresa que faz o upload e gerencia as músicas de um

artista online muitas vezes ainda não é conhecido. André Whoong, ao ser

perguntado sobre qual a agregadora que usava, ficou em dúvida sobre qual era o

assunto.

Eu não sei se entendi a sua pergunta. Agregadora é OneRPM né? Eu uso a OneRPM. Tenho contrato com a Rosa Flamingo, com um contrato de artista, e a gente divide a grana que entra, com algo em torno de 20, 30% para eles e 70, 80 para mim. Não lembro. (WHOONG, André. Entrevista concedida para Igor Fediczko Silva, em junho de 2018)

A função da agregadora ainda não está totalmente clara para os artistas, que

se preocupam mais com as estatísticas que a agregadora oferece do que com a

remuneração de sua música propriamente dita.

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3.7 A abertura de capital do Spotify

Em 28 de fevereiro de 2018, o Spotify pediu registro para listagem na Bolsa

de Valores de NY, se tornando uma empresa de capital aberto. A empresa teve a

sua operação avaliada em U$ 1 bilhão de dólares, com uma receita estimada de €

4,09 bilhões em 2017 e com um prejuízo operacional de € 378 milhões em 2017 . 63

Em abril, o Spotify finalmente teve a sua abertura concretizada, com um valor de

mercado perto de U$ 26 bilhões de dólares.

Para que o processo fosse autorizado, a empresa precisou abrir informações

sobre a sua operação, dados que agora são públicos e que revelam perfis de

consumo . Os três países em que a empresa tem a maior atuação no mercado de 64

entrega de música digital são, respectivamente, Reino Unido, com 59% do mercado,

Brasil, com 42% do mercado e EUA, com 41% do mercado . 65

Até dezembro de 2017, a América Latina inteira representava 21% da base

inteira do serviço. Com esses dados, é compreensível entender por que um dos

maiores serviços de streaming do Brasil investe tanto em curadoria de playlists ,

anúncios em mídia física e mídia digital, e também por que tem prioridade em certos

lançamentos de artistas, faixas e álbuns.

As playlists , troféus simbólicos que artistas buscam diariamente, representam

31% de todo o consumo dos usuários. Resumidamente, a cada três vezes que um

usuário ouve uma música, um dos plays é feito através de playlists temáticas. É

perceptível porque há um trabalho intenso de curadoria das playlists e porque a

63 Como o Spotify é uma empresa Sueca, os seus dados operacionais são divulgados em euros. 64 O documento está disponível no site da Comissão de Títulos e Câmbio dos Estados Unidos. <https://www.sec.gov/Archives/edgar/data/1639920/000119312518063434/d494294df1.htm#rom494294_6> 65 Os dados são divulgados pelo próprio Spotify e são referentes ao ano de 2016.

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equipe de pesquisa e desenvolvimento do Spotify aumenta, buscando mais fluidez e

inteligência de dados na assertividade das playlists .

Spotify Playlists are the Driving Force Behind Music Discovery and Demand Creation on our Service. As our Service has grown, our challenge has been to connect millions of Users—all with distinct listening preferences—with a large catalog of over 35 million tracks as of December 31, 2017. Spotify has become an essential partner to both aspiring and established artists by enabling their music to be discovered. Our playlists have become a key discovery tool for Users to find new artists and new music from their favorite artists. Given the success of our playlists in driving music discovery, they have become one of the primary tools that labels, artists, and managers use in order to boost artists and measure success. Many of our Users also rely on Spotify to help soundtrack their day, through editorially-curated playlists like RapCaviar or personalized machine-generated playlists like Discover Weekly, Daily Mix, or Release Radar. We now program approximately 31% of all listening on Spotify across these and other playlists, compared to less than 20% two years ago. (Spotify Technology S.A. Registration Statement, 2017)

A empresa divulgou um total de 35 milhões de faixas em seu catálogo no ano

de 2017. As playlists funcionam como uma "força motriz por trás da descoberta

musical e criação de demanda em nossos serviços". Como "criação de demanda",

fica entendida a relação que a empresa faz entre a criação das playlists e a busca de

um público que não sabe o que ouvir, aliado a artistas que precisam divulgar a sua

música.

Com isso em mente, foi criado o Spotify For Artists , um serviço personalizado

da empresa que direciona artistas para ações de marketing para crescer dentro da

plataforma. Segundo a empresa, o SFA é a página do artista dentro da plataforma. É

onde o artista informa datas de turnê, atualiza playlists , comenta os lançamentos e

insere informações de biografia e fotos. Para lidar com todo esse aprendizado, o

Spotify criou a página For Artists, com guias, manuais, vídeos e perguntas

frequentes, orientando os artistas da plataforma para quais as melhores práticas

digitais.

Com um artigo chamado "o que fazer e o que não fazer nas mídias sociais", a

equipe do Spotify dá dicas de sucesso nas redes sociais, como a escolha de uma

plataforma, tamanho de textos, atualização de conteúdo, posicionamento informal

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dentro das redes, entre outras dicas. A equipe do Spotify cria uma linha de conteúdo,

informa essa linha de conteúdo para os artistas e aguarda que os artistas sigam

aquela linha de conteúdo.

Em uma série de vídeos dentro do Spotify For Artists chamada The Game

Plan , artistas ensinam em vídeo como se comportar dentro da plataforma. "The

Follow Button" é um vídeo que mostra a importância de conquistar seguidores dentro

da plataforma; "Releasing Your Music" dá dicas sobre maneiras inovadoras de

lançar músicas atualmente; "Promoting Your Work" conta sobre o processo de

divulgar a música após o lançamento. A série de vídeos The Game Plan funciona

como um manual para ser inovador e fazer sucesso dentro da plataforma.

Ao ser perguntado sobre o uso profissional do Spotify , André Whoong cita o

Spotify For Artists.

Comecei a fazer músicas esporadicamente, em pausas, pois eu tenho visto que o Spotify é a nova rádio. um termômetro para as grandes gravadoras, e elas tem uma importância. Para mim tem sido bom, pois a OneRPM sobe minhas músicas, e diversas vezes elas entram em playlists, pois como uso o Spotify For Artists, dá para ver quem está te ouvindo. Quantas pessoas, idade, e isso para mim é maravilhoso. (WHOONG, André. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

O Spotify se consolida como um dos maiores sistemas de entrega de música

digital, uma empresa aplicativo gigante, com artistas trabalhando dentro da

plataforma e usando suas estatísticas para criar conteúdo direcionado e

segmentado.

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3.8 O YouTube e sua posição como maior rede de áudio

do mundo

O YouTube é hoje a maior plataforma de áudio do mundo. Com mais de um

bilhão de usuários , sendo a maioria de 18 a 34 anos, o YouTube é uma plataforma 66

de conteúdo que atinge mais do que qualquer canal de TV a cabo dos EUA e do

Brasil. Já pagou mais de U$ 2 bi para criadores de conteúdo , incluindo canais de 67

TV profissionais, que tem o conteúdo ao vivo pelo YouTube . 68

É comum notar que a maioria dos artistas contam com seu próprio canal no

YouTube . Esses canais têm por muitas vezes, o mesmo conteúdo do Spotify , e

mesmo assim os seus criadores e produtores atualizam e mantém os canais

atualizados. Se faz necessário estar presente nas diferentes redes. É o artista que

precisa ir até o público, através das diferentes redes, e não o contrário.

3.9 Streaming e a apropriação do campo

O streaming , principalmente na figura do YouTube e Spotify , se apropriaram

de uma posição dentro do campo musical que antes era dividida entre vários outros

actantes no processo de produção e divulgação da música. Hoje, entre vários outros

serviços de entrega de música, pode-se dizer que é através dessas duas

plataformas que se consome música no Brasil.

No processo de criação desse novo hábito de consumo, se popularizou, de

forma mais majoritária no Spotify , mas também em outros serviços, o consumo das

músicas por playlists . São as listas de reprodução, tanto criadas pelos usuários

quanto as criadas por editorias institucionais, que exibem músicas de forma variada

para as centenas de milhares de usuários das redes.

66 Números divulgados pelo próprio YouTube, na sua página especial para imprensa. (https://www.youtube.com/intl/pt-BR/yt/about/press/)

67 Dados divulgados pelo Google na página sobre pagamento do YouTube (https://www.youtube.com/intl/pt-BR/yt/about/press/)

68 O SBT conta com um canal próprio no YouTube, passando a sua programação principal ao vivo, como telejornais, novelas e programas de variedades.

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Dentro dos serviços, as playlists criadas por usuários podem ser criadas tanto

por usuários do plano gratuito quanto por usuários do plano de assinatura mensal. O

usuário adiciona novas músicas a uma playlist criada, insere uma descrição

personalizada e tem a possibilidade de compartilhar essa playlist entre amigos, ou

para divulgação . As playlists criadas pelo próprio serviço funcionam como uma 69

curadoria algoritmizada daquilo que tem a maior chance de retenção de usuários na

plataforma . 70

Em junho de 2018 fiz uma comparação entre duas playlists, a "Top Brasil",

presente no Spotify , e a "Hits do momento", presente no Apple Music . As dez

primeiras músicas da playlist do Spotify estavam em ordem diferente, mas também

nas músicas iniciais da playlist do Apple Music . A playlist é a nova rádio, 71

personalizada de acordo com o humor do momento do usuário e sem propagandas,

caso o usuário adquira um plano mensal de assinatura de um dos serviços.

Essas playlists funcionam como "troféus simbólicos", como diria Bourdieu.

Participar de uma playlist equivale a tocar em uma rádio, com a diferença que o

número de playlists supera o número de rádios. Mas como tocar em uma playlist?

P: Como que você troca favores para colocar música dentro de uma 72

playlist? FS: Então, isso eu não sei, isso ainda é um mistério. Tem um amigo meu que tem um selo lá fora que me passou um canal, mas eu só vejo gente que tem

69 Atualmente, bandas criam playlists de forma conjunta, onde todos os músicos envolvidos no processo divulgam a mesma playlist, aumentando a extensão do compartilhamento das músicas de uma forma viral não-orgânica e criando uma nova forma de divulgação de sua música. Os próprios serviços de streaming mostram a quantidade de visualizações de uma playlist, criando mais uma métrica para que os artistas mensurem os seus resultados e criem novas estratégias baseadas nesses números.

70 Vale notar que o YouTube , o principal serviço de entrega de música, não tem playlists editoriais com curadoria própria. O sistema identifica, através de ciência de dados, quais as músicas tocadas no momento e por aquele perfil de usuário, e reproduz sempre na sequência essas tendências de conteúdo.

71 Um dado interessante sobre a playlist Top Brasil e demais playlists de sucessos atuais é que não há uma música superior a 3'30" (três minutos e trinta). Os solos instrumentais, introduções extensas e pontes são cada vez mais escassos.

72 Fernando Sanches cita que já tocou em festivais de rádios para estar na grade de programação. A dúvida é se o streaming também tem um certo tipo de troca de favores para que artistas médios estejam em playlists disputadas.

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uma boa relação com alguma distribuidora, ou uma gravadora, que consegue colocar música nessas playlists selecionadas. Eu conheço gente que tem uma boa relação com a OneRPM que está sempre nessas playlists, por exemplo. P: Você acha que a OneRPM coloca música nessas playlists? FS: Eu acho que sim. O disco da minha banda que estou gravando agora, o selo tem uma boa relação com eles, e a gente acabou saindo em algumas playlists por causa desse selo, e a banda existe desde de 2001, e nunca saiu em lugar nenhum, e agora o selo conseguiu fazer isso. Eu tenho um amigo que tem um selo que todas as bandas dele estão playlist, e o selo dele não tem nem cinco anos. E eu tenho um outro amigo que tem selo há 20 anos, e nenhuma banda sai em playlist. Alguma coisa tem, alguma troca de favor, algum interesse que tem nesse mercado de streaming. É ser muito inocente achar que eles ouvem todas as faixas que estão lá e decidem o que vai sair em playlist. (SANCHES, F. 2018. [9 de maio, 2018]. São Paulo. Entrevista concedida a Igor Silva.)

Artistas divulgam e comemoram quando suas músicas participam de playlists

selecionadas, e os serviços de streaming , através de ciência de dados, têm a

possibilidade não apenas de filtrar um determinado público, como segmentar de

maneira muito mais precisa qual o tipo de propaganda ideal para os diversos perfis

de público, transformando usuários em consumidores através de conversões. 73

Também são as playlists que motivam os artistas a trabalharem o marketing e

a divulgação de sua obra e seus singles , fazendo com que o conceito de uberização

de Ludmila Costhek Abílio encontre nos serviços como Spotify e Youtube e seus

usuários verdadeiros operários do streaming , com estratégias, planejamento de

73 As conexões com redes sociais, no caso do Spotify, Deezer e o Facebook, as conexões com os perfis do Google , no caso do YouTube , e as conexões com o id Apple, no caso do Apple Music , fazem com que os serviços de streaming tenham dados demográficos segmentados sobre cada usuário. O cruzamento de dados demográficos, como interesses sociais e políticos, com o histórico de busca e audições dentro dos serviços, faz com que as propagandas e anúncios estejam cada vez mais refinados no que é chamado de "conversão de usuário". É a conversão de usuário que transforma um usuário de internet em um consumidor real.

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ações, suporte aos visitantes e até investidores , sempre em busca de um número 74

maior de plays . 75

É cada vez mais comum jornalistas, estudiosos do campo musical e os

próprios artistas dizerem que o streaming é o formato de música que veio para ficar,

e que o streaming du rará muito tempo. Consumir música majoritariamente pelo

streaming faz com que o suporte material da música, como o CD e o LP se tornem

souvenirs vendidos em shows e guardados como material de colecionadores e

apaixonados por um determinado artista. Não se compra um CD ou um LP para

conhecer uma banda, não se compra um CD ou um LP por conta de um sucesso.

São os fãs, cada vez mais, que compram - e guardam - os CDs e LPs de suas

bandas favoritas.

4. Compreendendo uma nova estética

4.1 Como que a música é moldada por playlists

Com a descrição histórica do avanço tecnológico dos suportes que

reproduzem música, é possível estabelecer uma linha do tempo e notar a diferença

no modo de se produzir música. Passando pela criação do mp3 e da música digital,

e também dos sites de downloads de música, como o The Pirate Bay ou Oink's , e

também pelos programas como Napster , até os próprios artistas que liberaram o

download de suas músicas, como o Radiohead, hoje conhecemos um modo

diferente de se divulgar músicas.

Grandes rádios não são prioridade para os artistas, programas de televisão

tem o seu público cada vez mais segmentado. A música se torna, a cada dia mais,

74 Não é raro encontrar artistas que investem em divulgação paga de sua própria obra. Vídeos patrocinados no Facebook, postagens e fotos patrocinadas no Instagram funcionam como estratégia de divulgação de sua obra.

75 Ainda na entrevista concedida por Fernando Sanches, o produtor comentou que entre os amigos, nenhum conseguia pagar a mensalidade do Spotify com o que arrecada dentro da plataforma.

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uma música feita por ciências de dados. Um híbrido , como disse Fernando 76

Sanches.

P: Além da questão da fórmula, existem os estilos musicais, que mudaram muito. Você consegue perceber que existem algumas músicas que você não sabe se é rap, se é pop, se é funk. FS: Ah, isso a gente comenta muito. Criaram um híbrido que você não sabe o que é, isso que chamam de sertanejo hoje em dia, ele é meio funk, meio axé, meio música pop eletrônica. É um híbrido de tudo que agrada as pessoas, e sempre tem participação. Hoje em dia toda a música tem participação, sempre tem o featuring alguém, acho que por causa do streaming. Ele linca mais no streaming . Veja a música da Pitty que saiu agora, é ela, a Tácia Reis e a Emmily Barreto do Far From Alasca . Dessa faixa, a Pitty já conseguiu englobar mais dois searches. A pessoa vai procurar rock alternativo, Far From Alasca, e vai linkar com a Pitty. Foi uma sacada comercial boa. (SANCHES, F. 2018. [9 de maio, 2018]. São Paulo. Entrevista concedida a Igor Silva.)

As playlists se tornaram uma nova maneira de segmentar a música e os

próprios artistas buscam essas playlists e trabalham a sua estratégia baseado no

conteúdo das playlists . A construção da identidade de uma nova sonoridade,

baseada em playlists , e não em estilos, faz com que os próprios usuários construam

uma identidade baseada em " moods ", ou "humores", ou "climas". Os serviços de

streaming estão oferecendo uma música híbrida pois o próprio consumidor está em

processo de descobrimento de uma identidade musical.

De fato, são os adolescentes que estão no processo de descobrir a

sua identidade, de fazer experiências com ela, de descobrir quem realmente são ou gostariam de ser, oferecendo assim um fascinante campo de pesquisa para a compreensão da construção e da experimentação da identidade (CASTELLS, 2003. p. 99).

Em maio de 2018, a playlist "Top Brasil" contava com mais de três milhões e

300 mil seguidores no Spotify. "Acoustic Love" com mais de um milhão e 300 mil

seguidores, e "Esquenta Sertanejo" com mais de três milhões e 100 mil seguidores.

São milhões de pessoas que não procuram mais por álbuns completos e não estão

necessariamente procurando por artistas, mas sim inseridos em playlists com

76 Dentro da seção playlists funk, três playlists são "funknejo", "pagofunk" e "brega funk".

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curadoria dos serviços de streaming, que trocam as músicas semanalmente. Uma

maneira diferente de se ouvir rádio.

Na playlist Top Brasil, artistas de rap Rashid e Rincón Sapienza se misturam

com artistas sertanejo, como Fernando e Sorocaba, e também com artistas pop,

como Anitta. Não há um gênero, mas sim um algoritmo de cálculo de visualizações,

baseado em gostos e probabilidade de aumento de uma taxa de retenção do usuário

dentro do aplicativo, aumentando o número de anúncios e, consequentemente,

planos pagos por usuários.

4.2 Agentes da música e um novo habitus

Os artistas funcionam, como vimos, sob uma ótica de playlists , busca de

troféus e mudança de produção. Novos padrões de comportamento e uma nova

maneira de interagir com o campo musical, que foi ressignificado. O artista se sente

um funcionário do Spotify ? O artista se sente um funcionário do YouTube ?

Com a diminuição das bandas, o espaço de socialização cada vez mais

escasso e o mundo do trabalho tomando o espaço do social, é cada vez mais

comum artistas diminuírem instrumentos como baterias e guitarras de seus discos,

dando espaço para baterias eletrônicas e teclados. Os estúdios muitas vezes são

contratados para gravação desses instrumentos, como baterias e guitarras, e os

artistas gravam seus próprios loops , seus próprios teclados, como mostrou 77

Fernando Sanches.

P: É raríssimo então gravar um teclado aqui? FS: Sim, acontece pouco. (Gravar) um disco inteiro é cada vez mais raro. Geralmente (o estúdio) é usado mais para instrumentos barulhentos, como bateria, ou músicos bons que tocam juntos uma sessão ao vivo. As vezes quando sugiro de gravar uma linha de teclado, acontece muito dos músicos falarem: "pode deixar que a gente grava teclado em casa".

77 Os loops são sequências digitais de bateria ou percussão, usadas para acompanhamento e para gravar as harmonias, como teclados e guitarras.

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Por conta dessa mudança de costume dentro do processo de composição, e

também por conta da diminuição da interação social entre os artistas, Fernando

Sanches afirma que a procura por produtores, dispostos a oferecer o que ele chama

de "material humano", aumentou nos últimos anos.

FS: A tecnologia te possibilitou hoje em dia a ter um equipamento caseiro que te dá a possibilidade de ter um resultado profissional. Na minha época era muito grande o degrau que existia entre uma gravação caseira e uma gravação feita em um estúdio profissional. Isso caiu muito. Acho que esse é um dos motivos em que as pessoas também me procuram mais as vezes do que o estúdio. A tecnologia nivelou muito os resultados possíveis. [...] Hoje em dia qualquer laptop tem 10x mais possibilidades, até mesmo um celular, que tem mais possibilidades do que o meu primeiro estúdio. P: E fica muito mais barato. FS: Fica muito mais barato. E isso mudou, pois as pessoas procuram material humano para fazer um disco. Todo mundo sabe gravar em casa, e chegam uns demos muito bons, e o pessoal vem atrás de material humano por causa disso. [...] Vem procurar a pessoa que tem a criatividade e o conhecimento diferente do que é o padrão ensinado em escola. Isso me abre mais possibilidade para produzir as bandas, pois as bandas chegam aqui já querendo deixar na minha mão.

Não apenas a maneira de se produzir música mudou, como a maneira de se

consumir música e também a maneira de se divulgar música. A banda paulista 5 a

seco lançou um disco inteiro pelo YouTube . Antes de gravá-lo, divulgou suas 13

músicas, uma a uma, com vídeos especiais, em datas especiais. Após a gravação

do álbum, divulgou, em seu canal oficial, o disco completo.

O YouTube se consolidou como o principal canal de consumo de música no

mundo. A IFPI (International Federation of the Phonographic Industry) publicou em

2017 um relatório de consumo, chamado "Music Consumer Insight Report" , onde 78

mostra que 46% de todo o consumo de música na internet vem do YouTube . Por 79

isso, os próprios artistas se preocupam em colocar a sua música disponível na

plataforma.

78 Disponível em <http://www.ifpi.org/downloads/Music-Consumer-Insight-Report-2017.pdf> 79 O mesmo relatório mostra que cerca de 85% dos 2 bilhões de usuários da plataforma

consomem música.

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P: E muitos artistas colocam o próprio disco no YouTube . FS: A maioria das bandas que eu trabalho, eles mesmos colocam o disco no YouTube. É uma preocupação do próprio artista. E eu não sabia disso. Para nós que passamos o dia mexendo no computador, o Spotify é muito simples e muito prático, mas para o cara que é da firma, o cara que trabalha no RH de uma multinacional, ele não está preocupado em dar search, ele quer colocar no YouTube e deixar tocando, e aquilo vai linkando coisas. Ele não quer pensar muito para ouvir música. Então, acho que o YouTube é super forte. (SANCHES, F. 2018. [9 de maio, 2018]. São Paulo. Entrevista concedida a Igor Silva.)

4.3 Quanto pagam os serviços de streaming

Definitivamente, não há uma resposta concreta ou uma tabela de valores

sobre o quanto um serviço de streaming paga por play, por música, por álbum ou

EP. O valor é dividido dentro de um algoritmo proprietário, que não tem o código

aberto e não é divulgado. O que se pode dizer é que há uma suposição de valor, e

que tanto o Spotify , quanto o YouTube , quanto os demais serviços de streaming

pagam os seus usuários de acordo com regras internas não divulgadas.

Recentemente, o músico texano Dawid Lowery, dono de um selo de música

independente nos EUA, postou em seu blog os valores remunerados pelos serviços

de streaming para as bandas e músicas lançadas pelo seu selo. Os valores,

segundo Lowery, são variáveis.

There is no openness or transparency from either Spotify or YouTube

on what type of revenue artists can expect to earn and under what specific conditions. So until these services provide openness and transparency to musicians and creators, “sharing” this type of data is going to be the best we’re going to be able to do. (LOWERY, Dawid. Texas, 2015. Retirado de 80

<https://thetrichordist.com/2014/11/12/the-streaming-price-bible-spotify-youtube-and-what-1-million-plays-means-to-you/>)

 

80 "Não há abertura e nem transparência tanto do Spotify quanto do Youtube sobre o modelo de repasse que os artistas podem esperar receber e sobre quais condições específicas. Então, enquanto esses serviços não fornecem abertura ou transparência para músicos e criadores de conteúdo, divulgar esse tipo de informação se torna o que podemos fazer de melhor".

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Diferente da padronização de preços dos CDs, Dawid mostra que vídeos

diferentes, com conteúdo diferente, recebem valores diferentes. Em uma tabela de

2014, com comparação entre cinco vídeos em que seu selo detém 100% dos

direitos, os valores são variáveis . 81

Quantidade de visualizações Total arrecadado Por play

2,023,295 $3,611.84 $0.00179

1,140,384 $2,155.69 $0.00189

415,341 $624.54 $0.00150

240,499 $371.47 $0.00154

221,078 $313.47 $0.00142

Total de visualizações Total arrecadado Média por play

4,040,597 $7,077.01 $0.00175

De acordo com a tabela acima, disponibilizada por David Lowery em 2012 , o 82

YouTube pagava cerca de $ 1.750,00 (um mil, setecentos e cinquenta) dólares a

cada um milhão de visualizações. No ano de 2016, quatro anos após, o mesmo

David Lowery divulgou que a sua receita por play foi de $0.00069, precisando de

dois milhões e meio de visualizações para atingir os mesmos $ 1.750,00 dólares . 83

Esses são dados variáveis, e diversas amostragem irão resultar em dados

diferentes. A grande questão aqui é que um músico de pequeno ou médio porte não

81 Os valores são variáveis de acordo com taxa de retenção de usuário, quantidade de minutos assistido, quantidade de pessoas que se inscreveram ou fizeram login no Facebook por consequência do conteúdo do vídeo, quantidade de cliques dentro do anúncio do vídeo, entre outras variáveis.

82 Segundo o próprio David Lowery, "este conjunto de dados representa uma gravadora independente com um catálogo de 150 álbuns com um total de 115 mil visualizações" <https://thetrichordist.com/2017/01/16/updated-streaming-price-bible-w-2016-rates-spotify-apple-music-youtube-tidal-amazon-pandora-etc>

83 Em meus vídeos pessoas, com o meu canal pessoal - ainda que amador, os resultados são ainda menores. Com média de R$ 0.0008 por play , eu precisaria de um milhão de visualizações para receber R$ 800,000 reais do YouTube . Hoje, o meu vídeo mais acessado tem 4 mil visualizações, com um total de 11 mil minutos assistidos, e rendeu R$ 1,00, segundo o próprio painel administrativo do YouTube.

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tem capacidade de chegar a um milhão de visualizações, e por consequência, não

tem como ser remunerado por seu trabalho no YouTube . Estamos todos trabalhando

para as empresas-aplicativo, em uma adaptação do conceito de uberização de

Ludmila Costhek Abílio.

O Spotify remunera um valor mais alto por play para o usuário. Com um

sistema de anúncios e também um sistema de assinaturas, a plataforma de entrega

de música digital paga cerca de $ 0.00437 por play , que significaria cerca de R$

0.01748 por play . Porém, seguindo o mesmo modelo de algoritmo do YouTube , os

valores são variáveis, também dependendo da quantidade de minutos visualizados

por play, quantidade de inscrições por determinada faixa, entre outros aspectos que

levam em conta não apenas o tempo de retenção do usuário dentro da plataforma,

mas principal a conversão daquele usuário em um cliente do sistema de assinaturas

e também dos anúncios da plataforma. Estamos lidando com algoritmos que

trabalham dados de forma que usuários precisam ser convertidos em clientes.

Dentre os serviços disponíveis no mercado, o serviço que melhor remunera

seus artistas é o Tidal , criado pelo rapper Jay-Z e com a promessa de ser o serviço

de streaming com a melhor qualidade de áudio. Com 4.2 milhões de usuários, cerca

de 3% do total do Spotify, o serviço paga cerca de $ 0.0125 por play .

Afinal, o artista trabalha para os serviços de entrega de música digital ou são

os serviços que trabalham para o artista?

Já ficou claro que os serviços não demonstram transparência no processo de

pagamento por execução, e mesmo assim, muitos artistas não se importam com a

falta de transparência. Além disso, os serviços exibem relatórios com um valor muito

baixo por música tocada, e mesmo assim os artistas também não se parecem se

importar.

Se o artista não recebe o tanto quanto deveria pela execução de sua obra, e

continua criando estratégias, quem que está trabalhando para quem? Ao ser

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questionado, André Whoong diz que é o Spotify quem trabalha para os artistas. Uma

percepção de que a função dos serviços não é de remunerar, e sim apenas de criar

valor simbólico.

Eu sinto que eles trabalham para mim, pois a partir do momento que eu coloco ali, já está no mundo. Eu recebo pouco em troca em questão de dinheiro, é pouquíssimo, mas é alguma coisa e não dá para reclamar. Mas o que eu ganho em troca do Spotify é as pessoas me ouvirem, pois as pessoas estão lá. É como se fosse uma casa de shows, que me permite que entre lá e faça a minha apresentação, e quem gostar de mim vai me seguir. (WHOONG, André. Entrevista concedida para Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

Essa visão da criação de um terreno simbólico é demonstrada por Bourdieu,

que escreveu que esse é "um mundo econômico às avessas: o artista só pode

triunfar no terreno simbólico perdendo no terreno econômico (a curto prazo), e

inversamente (a longo prazo)" (Bourdieu, 1996. p. 95).

Esse "mundo econômico às avessas", como expressou Bourdieu, mostra que

artistas e produtores, mesmo conectados em suas redes, mesmo sendo, muitas

vezes, dono de seus próprios canais e gerente de sua própria imagem, não possuem

ligação com a parte econômica dos serviços de entrega de música. Não há um

entrevistado que soube responder qual é o valor pago pelos serviços pela execução

de sua música.

André Whoong expressou que "não tenho a mínima ideia, nunca me

preocupei". Já o produtor Jeff Pina, "não tenho essa informação agora, preciso

procurar". Fernando Sanchez disse que "não sei, não faço a menor ideia. Não sei se

é mais alto para a Ivete Sangalo do que para mim". Tomas Magno disse "sobre

remuneração, não tenho os números. Sei que é ínfimo, e a depender do tamanho da

banda, o que era pouco vira nada".

Ao ser questionado sobre a visão de trabalhar para a plataforma, Maestro

Billy disse que acredita que não é uma relação unilateral, e sim uma relação

"ganha-ganha":

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O streaming deu para o músico a possibilidade de alcançar muito mais ouvintes, e o músico agrega valor ao streaming pois ele está levando mais gente para os serviços. É uma relação ganha-ganha, onde você tem uma base de ouvintes muito grande, e por outro lado o serviço precisa do seu conteúdo para estar lá dentro. Todo mundo ganha. (BILLY, Maestro. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em julho de 2018)

A visão de André Whoong e Maestro Billy mostram que os artistas estão

preocupados com a sua imagem dentro das plataformas, criando estratégias e

buscando um novo espaço dentro de um novo player. Uma "crença coletiva no jogo",

como disse Bourdieu.

A crença coletiva no jogo (illusio) e no valor sagrado de suas apostas é a um só tempo a condição e o produto do funcionamento mesmo do jogo; é ela que está no princípio do poder de consagração que permite aos artistas consagrados constituir certos produtos, pelo milagre da assinatura, em objetos consagrados (BOURDIEU, As Regras da Arte. 2018).

Na atual condição do artista dentro do campo musical atual, a imagem se

torna predominante, às vezes maior que a própria troca material, tudo "é uma

questão de adaptação, e hoje em dia infelizmente é desse jeito", como disse Billy.

Jeff Pina, ao ser perguntado sobre essa condição de estar dentro do jogo, nas

palavras de Bourdieu, mostrou que o produtor também faz parte dessa crença

coletiva, criando um habitus onde precisa ouvir playlists para se reconhecer dentro

do campo:

Toda pessoa que me procura acha que eu sou o responsável de dar o like e visualização dos artistas. De certa maneira, sou também. Fico olhando os canais, ouvindo música em playlists. É um trabalho estar antenado com as coisas, e por mais que a pessoa tenha uma visão criativa e uma musicalidade, ela não tem a vivência do mercado. (PINA, Jeff. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

A tendência é que o próprio Spotify , junto aos artistas, esteja construindo a

sua condição material para se sustentar. E as plataformas de streaming não vão

remunerar os artistas enquanto elas também não forem suficientes

economicamente. Como conclui Billy, "se o próprio Spotify não está ganhando

dinheiro, por que os artistas deveriam ganhar?".

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E se o artista não se vê como um empregado da plataforma, quando que essa

plataforma remunera o conteúdo do artista? É notório que tanto o Spotify quanto os

diversos serviços de remuneração para usuários têm valores variados de acordo

com o seu próprio algoritmo. O Spotify calcula a remuneração de acordo com uma

série de condições, como onde a música foi tocada, por quanto tempo foi tocada,

quantidade de playlists e outros fatores, não divulgados pela plataforma.

A grande diferença nos termos de remuneração da música na era do

streaming em relação pré-streaming é a receita a longo prazo. O discurso das

empresas de streaming é que cada play será monetizado, e que isso gera um valor

maior ao longo da vida de um álbum. Isso, em oposição ao pagamento único por um

CD ou um vinil significaria um valor maior para o artista.

Porém, a curva de interesse de consumo de um álbum na era do streaming é

semelhante a curva de interesse de um álbum antes da existência do streaming . E

com mais facilidade de acesso para os artistas, a oferta é ainda menor, e os álbuns

desaparecem no catálogo de milhões de músicas dentro das plataformas. Ou seja, a

longo prazo, um álbum ou uma faixa deixa de ser ouvida e, consequentemente,

deixa de ser remunerada.

Então, a cauda longa no consumo do streaming simplesmente não existe . O 84

artista deixa de ser ouvido assim que a sua música deixa de aparecer em playlists . O

valor do play é consideravelmente menor do que o valor de um CD, e o artista

recebe menos pela venda da sua música.

Conquanto, a monetização permanente de um catálogo trouxe ao artista uma

diminuição do preço de sua música em comparação a venda de um CD. O Spotify , o

Napster , o Deezer , o YouTube e todos os serviços de streaming criaram o algoritmo

de cálculo de preço de um stream e dão manutenção de acordo suas próprias

regras, sem divulgar ao artista qual é o valor pago pelo play de uma música.

84 A cauda longa nesse caso representa uma grande quantidade de músicas distribuída em um período de tempo, onde o artista receberia um valor maior por disponibilizar todo o seu catálogo nos serviços, sendo remunerado por cada um dos plays de um longo período de tempo.

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Na teoria, o valor de um play seria calculado pela quantidade total de

reproduções em um mês, dividido pelo número total de usuários pagos da

plataforma. Esse resultado, do um total de reproduções pelo total de usuários, traria

um valor médio do preço por reprodução. Descontando o preço da operação,

desconsiderando os anunciantes, sobra um valor extremamente reduzido por cada

play . E esse valor é inacessível aos usuários.

Keep in mind, streaming is a fixed cap market. So it does not matter how

much the market grows in actual consumption, the revenue is capped by the amount of revenue earned by the hosting provider. If consumption doubles, but revenues stay flat, every stream is worth half of what it was previously. (Spotify’s Big Lie, Streaming 85

Habits Mirror Purchasing Habits, The Trichodist)

O que o site The Trichodist está explicando é que o limite do mercado de

streaming é fixado pela quantidade de usuários, e quanto mais o serviço tem

sucesso em usabilidade, menor é o valor pago aos artistas contidos dentro da

plataforma. Se uma banda aumenta o número de streams , não necessariamente vai

aumentar o valor recebido no final do mês.

A banda Vulfpeck divulgou no dia 11 de março de 2014 que a plataforma

pagava $0.005 a cada stream de suas músicas. A divulgação do valor arrecadado

pela banda surgiu no lançamento da turnê intitulada "Sleepify". A banda americana

criou um álbum de dez músicas, todas com 31 segundos de absoluto silêncio. Além 86

disso, pediram em suas redes sociais para que os fãs dormissem ouvindo o álbum 87

Sleepify no repeat . Assim, os fãs não iriam consumir banda de seus celulares e iriam

"tornar o sono produtivo para a banda", segundo palavras da própria Vulfpeck.

85 "Tenha em mente que o streaming é um mercado com limite fixo. Não importa o quanto o mercado cresce em consumo real, a receita dos serviços de streaming é limitada pela quantidade de receita obtida pelo serviço. Se o consumo dobra, mas as receitas permanecem estáveis, cada stream vale metade do que era anteriormente." <https://thetrichordist.com/2018/04/24/spotifys-big-lie-streaming-habits-mirror-purchasing-habits/> 86 Diversas fontes divergem sobre o assunto, porém os serviços de streaming só pagam um conteúdo se ele for visualizado durante mais de 30 segundos. 87 A banda criou um vídeo de divulgação, explicando a história e pedindo para os fãs dormirem ouvindo o álbum Sleepify. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=KXvncV79LXk>

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A cada audição inteira do álbum, com duração de cinco minutos, a banda

ganharia $0.05. Em uma hora, o álbum Sleepify era reproduzido 12 vezes, gerando

uma receita de $0.60 centavos de dólar, o que significa que em uma noite de sono

de oito horas, o álbum era reproduzido 96 vezes, gerando $4.80 dólares para a

banda por noite. Em dois meses, Vulfpack e seu álbum Sleepify foi reproduzido

cerca de 120.000 vezes, gerando uma receita de $20.000,00 para a banda. 88

Após os dois meses, a história se propagou de tal maneira que o próprio

Spotify removeu o álbum da plataforma, com uma declaração de que "foi uma

jogada esperta, porém nós preferimos os álbuns anteriores da Vulpeck",

disponibilizada por um dos diretores do Spotify para o site digiday.com . 89

Um ano antes, em 2013, o próprio Spotify divulgou em seu site dedicado aos

artistas que o valor pago por cada stream variava entre $0.006 e $0.0084. Com 90

uma série de gráficos, a própria empresa divulgou que um álbum de uma banda

independente poderia arrecadar até $3,300 mensais, de acordo com as estatísticas

da empresa.

O diretor de serviços para artistas, Mark Williamson, disse ao jornal inglês The

Guardian que "essas são as taxas que estamos monetizando agora, com 24 milhões

de usuários. Se o Spotify atingir 140 milhões de usuários e 40 milhões de

assinantes, aumentaremos nossos pagamentos em cinco vezes". Hoje, em 2018, o

Spotify conta com 170 milhões de usuários, sendo que 75 milhões são usuários

pagos. Os dados foram divulgados pela própria empresa para os seus acionistas em

31 de março de 2018 . 91

88 Segundo a própria banda Vulfpack, em suas redes sociais. 89 Disponível em <https://digiday.com/media/band-hacking-band-creates-silent-spotify-album-fund-tour/> 90 <https://artists.spotify.com> 91 <https://investors.spotify.com/financials/press-release-details/2018/Spotify-Technology-SA-Announces-Financial-Results-for-First-Quarter-2018/default.aspx>

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Porém, o site americano The Trichordist divulgou uma tabela de receita 92

referente ao ano de 2017, baseada em um selo independente, com cerca de 200

álbuns disponibilizados no Spotify e com uma média de 200 milhões de streams

durante todo o ano de 2017. Segundo o site, o valor médio pago por stream foi de

$0.00397, uma queda de 9% em relação ao ano de 2016, que teve um valor médio

de $0.00437, e uma queda de cerca de 35% em relação ao ano de 2013, quando

Mark Williansom declarou que o valor pago aos artistas iria aumentar. Segundo o

site The Trichodist , essa redução é natural.

We’re already seeing this trend as we noted earlier this year that Spotify per stream rates appear to be dropping steadily by about 8% per year. This is likely a combination of both the growth of consumption and the slowing of revenue across both subscriptions and advertising. (Spotify’s Big Lie, Streaming Habits Mirror Purchasing 93

Habits, The Trichodist)

Esse valor baixo difere um pouco do divulgado pelo próprio Maestro Billy, que

informou um valor ainda menor pago pela plataforma.

Os serviços de streaming não falam quanto eles pagam, mas eu sei quanto eu recebo de todas as plataformas através de uma tabela de ganhos. O Spotify me pagou 0.00175 por play dentro da plataforma a cada execução de no mínimo de 30 segundos. (BILLY, Maestro. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

Os valores divulgados pela banda Vulfpack, pelo próprio Spotify em 2013,

pelo site The Trichordist durante os anos de 2017 e 2018, e pelo artista Maestro

Billy, mostram que os valores pagos pela plataforma são variáveis de acordo com o

tempo, com o artista e, possivelmente, com o tipo de conteúdo tocado. Essa

informação é sigilosa, o algoritmo não é divulgado e em todas as declarações

públicas da empresa, os números sempre são relativos ao total gasto com direitos

autorais com uma somatória de artistas que não representam as bandas menores e

muito menos os artistas brasileiros.

92 <https://thetrichordist.com/2018/01/15/2017-streaming-price-bible-spotify-per-stream-rates-drop-9-apple-music-gains-marketshare-of-both-plays-and-overall-revenue/> 93 "Já observamos essa tendência, conforme observamos no início do ano, de que as taxas do Spotify por stream parecem estar caindo continuamente em cerca de 8% ao ano. É provável que isso seja uma combinação do crescimento do consumo e da redução da receita nas assinaturas e na publicidade." <https://thetrichordist.com/2018/04/24/spotifys-big-lie-streaming-habits-mirror-purchasing-habits/>

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4.4 Quanto ganham as gravadoras?

O streaming não é um meio lucrativo para o artista, e o streaming não é

economicamente sustentável por si só. Então, quem é que ganha com o streaming ?

André Barcinski, jornalista e crítico musical, em recente entrevista para a

revista Vice, disse que "A música sobrevive, mas a indústria da música acabou. As

gravadoras, como as conhecemos, acabaram. Elas agora estão tentando faturar de

outras formas, cuidando de outros aspectos da vida dos artistas" . 94

A verdade é que a indústria da música como conhecemos realmente acabou,

é fácil de se notar. O campo musical teve os seus eixos sociais alterados, os players

se tornaram empresas-aplicativo e definem o que foi, é e será ouvido através de

humores e playlists de humor.

Porém, sabemos que nenhum dos serviços de streaming - incluindo o próprio

YouTube - não são conhecidos por serem lucrativos. O Spotify continua, ano após

ano, fechando suas contas com um saldo negativo . Outros serviços de streaming 95

também, e o YouTube continua procurando soluções para atrair criadores de

conteúdo, patrocinadores, e tentar ser uma empresa economicamente sustentável.

A partir de 2018, somente canais com um mínimo de mil inscritos e no mínimo

quatro mil horas de conteúdo assistido nos últimos 12 meses são considerados

94 André Barcinski, para a série "Estudando a cena", do site e revista Vice, em outubro de 2017. Diponível em <https://www.vice.com/pt_br/article/8x8ep3/streaming-estudando-cena-6-natura-musical>. 95 Segundo os seus próprios dados, divulgados para a bolsa de valores, a empresa teve um prejuízo de € 235 milhões de euros em 2015, € 349 milhões em 2016 e € 378 milhões em 2017. Apesar disso, seu valor de mercado continua crescendo. <https://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/03/01/o-spotify-entrou-na-bolsa-e-varios-de-seus-segredos-foram-revelados.htm>

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válidos para receberem anúncios e assim serem parte do programa de parceiros de

conteúdo da empresa . 96

Mas, se os serviços de streaming não são lucrativos, se os artistas não

ganham das plataformas, quem está lucrando com esse novo modelo de consumo?

Qual é a "outra forma" que André Barcinski fala?

Com uma média de 70% a 80% de arrecadação destinada a direitos autorais,

os serviços de streaming criaram um novo modelo de faturamento para as grandes

gravadoras. Se antes os maiores clientes da EMI, Universal, Sony e Warner eram as

lojas de varejo, como Americanas, WalMart, ou Fnac, hoje os clientes principais das

gravadoras é o Spotify , o YouTube , o Deezer , a Apple Music .

As gravadoras transferiram seus lucros para a venda de direitos autorais para

os serviços de streaming e praticamente acabaram com a produção de CDs físicos,

transporte e frete, logística, como citou Paul Ralphes.

Antes, o maior cliente das gravadoras eram lojas, como FNAC, Lojas Americanas. E, com o tempo, entrou a Apple e o iTunes. E não há mais físico, e sim só digital. Quase não há renda de clientes físicos. As gravadoras grandes tem catálogos antigos e prontos, e não há despesa de operação, de frete. (RALPHES, Paul. Entrevista concedida em junho para Igor Fediczko Silva)

A Vivendi , gigante empresa de mídia francesa e dona da Universal Music

Group e EMI, divulgou um lucro de US$ 193 milhões de dólares no primeiro

semestre de 2018 . Calcula-se que 40% do faturamento da empresa venha da 97

Universal Music Group, e que esse valor seja dividido, principalmente, entre

download pago de músicas e streaming . A Universal Music, após cerca de 15 anos

de crise com o fim do CD e o surgimento da pirataria, volta a ser uma empresa super

lucrativa.

96 Em 2016, grandes empresas anunciantes na plataforma, como Vodafone, a Starbucks e a PepsiCo deixaram de investir em anúncios dentro do YouTube por conta de não conhecerem exatamente as regras do algoritmo e não conhecerem o destino final de suas campanhas de publicidade. 97 "Vivendi apresenta lucro de 165 milhões de euros no primeiro semestre" <https://istoe.com.br/vivendi-apresenta-lucro-de-165-milhoes-de-euros-no-1o-semestre/>

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As gravadoras contam com os catálogos, como mostrou Paul Ralphes, e

também com o fato das produções se tornarem mais práticas e baratas. Ao

conversar com Maestro Billy, o produtor citou uma história de uma música gravada

por um artista consagrado e a diferença atual para se produzir uma música em seu

próprio computador.

Hoje não há mais custo de distribuição e de prensagem. O streaming é uma mão na roda para as gravadoras, pois só gasta com produção, e mesmo assim muitos artistas fazem a produção em casa. Tempos atrás estava conversando com um artista famoso do Brasil, e ele me mostrou uma música nova, muito bonita, bem feita. Perguntei sobre a produção, e o artista me contou que as cordas foram gravadas em Praga, os metais em Los Angeles. Hoje em dia, gravar cordas em Praga custa por volta de 70 mil dólares, metais em Los Angeles fica mais 70 mil dólares. Hoje, com os plugins atuais, que custam mil dólares, você não vai ter o mesmo calor e qualidade de uma orquestra, mas a música vai chegar no ouvido do consumidor com um fone barato. Ou seja, o custo de produção atual é reduzido, e para a gravadora é ótimo, pois o break evening é menor também. A gravadora está ganhando muito mais dinheiro pois a produção para se gravar um disco está custando menos também. (BILLY, Maestro. Entrevista concedida em junho para Igor Fediczko Silva)

As grandes gravadoras, com um custo operacional menor e com um

faturamento maior, estão adquirindo participações nas empresas de capital aberto,

como o próprio Spotify . Estima-se que cerca de 20% das ações da empresa são das

gravadoras. Outras empresas aplicativo, como Soundcloud ou o Shazam , já tiveram

participação das grandes gravadoras também . 98

Estamos em um momento onde as gravadoras sentem uma urgência de

reverter uma década de queda de vendas de álbuns, queda essa acelerada pela

criação do Napster e seus derivados, conforme capítulo anterior deste trabalho.

Foram 45% de queda de vendas de álbuns em oito anos, com 785 milhões de

álbuns vendidos nos EUA em 2000 e cerca de 430 milhões de álbuns vendidos em

2008.

98 "Como as gravadoras estão se apoderando da multibilionária revolução digital". <https://forbes.uol.com.br/negocios/2015/12/como-as-gravadoras-estao-se-apoderando-da-multibilionaria-revolucao-digital/>

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Após esse período de queda, o streaming e a música digital se tornaram algo

lucrativo com a quase extinção da pirataria de músicas. Segundo o próprio Deezer , a

indústria fonográfica brasileira movimentou US$ 229 milhões em 2016, dos quais

49% já seriam oriundos de canais digitais. Ou seja, praticamente metade do

faturamento da indústria musical hoje está atrelado a serviços como YouTube ,

Deezer , Spotify , Apple Music e menores . 99

Considerações finais

As consequências do streaming na parte social da música

Mas afinal, o Spotify e os demais serviços de streaming mudaram a relação

do artista dentro do campo? Em uma palavra: sim. O Spotify For Artists , o YouTube

Studio Creator e seus semelhantes deram ao criador de conteúdo uma gama de

resultados e estatísticas para que o artista, cada dia mais, crie uma obra em que

corresponda às expectativas do seu público, ao invés de criar uma obra que seja

fruto de sua originalidade e genialidade . 100

André lança singles esporadicamente, diz que "as pessoas dão atenção para

a minha música e consigo trabalhar e manter os meus ouvintes, lançando música a

cada dois meses". Jeff Pina mostra que os artistas que ele produz estão, cada dia

mais, preocupados com a imagem quando diz que "essas pessoas que vêm aqui em

meu estúdio, às vezes peço para fazer uma foto espontânea, mas às vezes não

querem, por não ter feito o cabelo ou a maquiagem", conta o produtor.

99 "Só 5% utilizam streaming de música no Brasil". <https://www.dci.com.br/servicos/so-5-utilizam-streaming-de-musica-no-brasil-1.538330>

100 O caso mais conhecido vem da Netflix e a sua série Stranger Things. A empresa entendeu que criar para o digital é trabalhar com dados, e criou a série baseada em termos de busca dentro de sua plataforma, retenção de usuários em série x, rejeição em série y, entre outras dezenas de métricas. Com isso, foi criado um conteúdo para um público específico, baseado em uma série de dados de seu próprio banco. Uma série sob medida. Os dados pré Stranger Things foram divulgados pela plataforma em <https://media.netflix.com/pt_br/press-releases/netflix-binge-new-binge-scale-reveals-tv-series-we-devour-and-those-we-savor-1>

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O artista se sente um funcionário do Spotify e demais serviços? Na maioria

das vezes, não. Mesmo sem receber, ou recebendo muito pouco, e mesmo criando

estratégias, planos de ação e conteúdo para as plataformas, o artista acha que é

comum não receber em tempos de internet, como já citado por André Whoong, que

declarou que não se sente um funcionário do Spotify . Foi também o que contou Jeff

Pina, com a experiência de seus artistas, ao dizer que "não. Na cabeça delas, estão

trabalhando para elas, pois para esses artistas maiores, o retorno está vindo". De

forma resumida, o streaming não gera um valor considerável, mas o fato de mostrar

estatísticas e ter dados reais faz com que seja um parceiro do artista, como mostrou

Maestro Billy.

Não considero o artista um usuário do Spotify, me parece mais uma relação ganha-ganha. Antigamente, o CD servia para levar a música da loja para a tua casa, e com o streaming, esse suporte ficou desnecessário.

O streaming deu para o músico a possibilidade de alcançar muito mais ouvintes, e o músico agrega valor ao streaming pois ele está levando mais gente para os serviços. É uma relação ganha-ganha, onde você tem uma base de ouvintes muito grande, e por outro lado o serviço precisa do seu conteúdo para estar lá dentro. Todo mundo ganha. (BILLY, Maestro. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em julho de 2018).

Na resposta de Maestro Billy, ainda perguntei para ele se é uma relação

"ganha-ganha", como ele citou, então por que não se acha um artista que usa a

plataforma como a sua fonte de renda principal?

Eu tenho cerca de 50 músicas no Spotify, todos os plays me dão cerca de 150 dólares mensais. É muito pouco. Se eu tivesse uma música minha tocando por 1 minuto na globo, eu já ganharia mais do que isso. Mas é uma questão de adaptação, e hoje em dia infelizmente é desse jeito.

Mas se o Spotify não está ganhando dinheiro, por que os artistas deveriam ganhar?

Tem gente ganhando dinheiro com isso, mas não é o Spotify e nem são os artistas. A gravadora sempre vai estar ganhando dinheiro, mas o artista pequeno, independente, assim como ele se ferrava para ganhar dinheiro antes, continua se ferrando mais ainda, pois o Spotify é algo que não dá dinheiro nem para o próprio Spotify, imagina para o artista. (BILLY, Maestro. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em julho de 2018).

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A maioria dos criadores de conteúdo que conversei, sejam artistas ou

produtores, não conseguem acumular uma remuneração mensal para que pague a

sua própria assinatura do Spotify . Na prática, o Spotify cobra assinatura até 101

daquele que está gerando valor para a sua marca, pois a empresa sueca separa o

artista do consumidor, e não importa se você quer ouvir apenas as suas próprias

músicas em alta qualidade, você continua sendo um consumidor.

As consequências do streaming na parte técnica da

música

A necessidade de criar uma taxa de retenção de usuários tem uma relação

direta com uma menor qualidade do áudio? Na teoria, em uma sociedade onde os

smartphones ainda não se conectam em alta velocidade como nas conexões dentro

de suas casas e empresas, os serviços de streaming bu scam encontrar um meio

termo entre uma qualidade técnica aceitável e uma retenção de usuários.

Quando Adorno, em seu fetichismo da música e a regressão da audição,

debate a indústria cultural, ele está, de certa forma, defendendo um purismo na

questão da qualidade do áudio. O ensurdecimento e atrofia da audição, segundo o

autor, caminham junto às más condições para se ouvir música.

Tendo em vista que o arquivo digital e as suas diferentes maneiras de

divulgação modifica não só a qualidade de técnica do áudio, mas também o

processo de composição e produção, como vimos em diversas declarações dos

produtores, é possível avaliar algumas implicações desse fenômeno. Adorno faz

uma análise da maneira com que a sociedade consumia música em sua época e

como o consumo se relaciona com os meios de comunicação de massa. Trazendo

para o nosso contexto, analisamos os tocadores digitais atuais e como as pessoas

101 O valor da assinatura premium do Spotify é cerca de R$ 15. Dentre as entrevistas, apenas Maestro Billy tinha uma remuneração maior que os R$ 15 que a plataforma cobra do usuário.

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consomem música através desses tocadores. O autor teoriza um fetichismo a partir

da música, em que as melodias eram executadas fora do seu contexto original e 102

perdiam o sentido, transformando a arte em uma forma de simples entretenimento.

Adorno acreditava que “toda vez que a paz musical se acha perturbada por

excitações bacânticas, pode-se falar da decadência do gosto” (1975, p. 173). A

grande contribuição de Adorno para o presente trabalho é a constatação de que uma

música perde as suas características originais ao ser executada em ambientes de

baixa fidelidade.

Mas para pra pensar. Você faz uma ótima música, coloca orquestra, e o usuário ouve pelo fone vagabundo da Apple dentro do Spotify. Toda a qualidade do áudio gravado, com pureza e qualidade vira uma porcaria nos fones. O jeito de produzir mudou para atender essa demanda da portabilidade e mudou o tempo da música, o estilo musical. Ainda tem muita banda de rock, mas a mixagem é diferente, o estilo é diferente, e justamente para atender essa demanda dos fones de ouvido, das caixas de som de computadores. (BILLY, Maestro. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em julho de 2018)

O ensaio de Adorno poderia ser apenas um trabalho de constatação da

atuação da indústria cultural na sociedade e na música de um modo geral, uma

crítica a alguns compositores, principalmente aos compositores do gênero de jazz , 103

mas ao introduzir a discussão sobre a regressão da audição, Adorno amplia o

debate, pois em sua opinião, esse fetichismo está afetando a sociedade a tal ponto

que o ouvido humano sofre uma regressão. Adorno diz que nos acostumamos com

certas cadências e certas maneiras de execução e só reconhecemos essa maneira

como legítima e original. Se deixamos isso acontecer, segundo o autor, nosso

ouvido realmente regride e atrofia. Em troca, temos uma fácil assimilação, ou uma

“veneração do que é auto fabricado” (ADORNO, 1975, p. 180).

Em termos atuais, poderíamos entender a fácil assimilação resultante do

método de produzir atual, ou ao "estilo Drake", que Maestro Billy citou? Ter uma

música que vai ser reproduzida nos pequenos alto falantes dos celulares, dos

notebooks, dos fones de ouvido de baixa qualidade faz com que a própria música

102 O contexto original, neste caso, seriam as câmaras de concerto ou os teatros. 103 O improviso do Jazz seria pensado, seguindo sempre as mesmas fórmulas. É a "vitória da

massificação e do automatismo sobre a atividade artística genuína" (ADORNO: 1974).

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perca a sua qualidade como um todo? Afinal, essa característica técnica do ouvinte

e a sua forma de consumir música, altera a natureza do ouvir?

Para que isso não aconteça, o autor propõe certas condições para se ouvir

música , e este é um dos momentos que Adorno se mostra tão controverso. O que 104

existe é uma dicotomia entre a “música não orientada para o mercado” e a “música

comercial”. Porém, com os serviços de streaming e as playlists , quase somem as

músicas não orientadas ao mercado. O mercado atual da música pressupõe uma

lógica onde o artista faz pequenos testes, buscando sempre aparecer, baseado em

um sistema de estatísticas e resultados.

É possível afirmar que a música é afetada pelo meio em que é veiculada e

executada, pois os serviços de streaming trazem duas características para a

produção de áudio. Em primeiro lugar, essa padronização de que Maestro Billy falou,

baseado no algoritmo de recomendação e semelhantes. Em segundo lugar, a baixa

qualidade técnica do formato de áudio em serviços como Spotify ou YouTube , em

um smartphone , em uma conexão 3G e reproduzida por fones ou alto falantes de

baixa qualidade.

Quando Adorno cita a regressão da audição, existia uma preocupação com o

suporte. Hoje, com a internet, fica ainda mais claro essa preocupação.

Agora tem essas caixinhas bluetooth que muitas são mono, e é um negócio que a gente voltou a se preocupar com isso na mixagem. E assim, tem certas músicas que eu nem ouço mais em caixinhas pequenas que eu tenho, pois eu sei que eu vou sair com a referência daqui do estúdio, vou chegar em umas caixinhas desse tamanho, vou querer me matar. E quando você está muito dentro do processo, é complicado abstrair, é preciso até falar pro artista, pra ele ficar calmo. (SANCHES, Fernando. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

E se o ouvido pode realmente regredir de acordo com a falta de frequências,

falta de mudanças no som, a produção musical também corre risco semelhante?

Segundo muitas das respostas que tive, sim. A mentalidade dos músicos é

104 Ouvir música apenas nos locais apropriados, como casas de espetáculos. Apenas permitir a execução quando a orquestra estiver completa, não reproduzir tecnicamente uma sinfonia.

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modificada de tal maneira que as padronizações digitais se tornam naturais, ou "as

pessoas estão acostumadas a ouvir daquela maneira", como disse Fernando

Sanches.

O streaming v eio para ficar?

O presente trabalho buscou traçar uma relação direta entre a música e a

tecnologia, e como essa relação afeta o artista dentro do processo de criação da

música, como que os produtores se relacionam com os artistas, como que a

indústria se modificou e como que a própria música mudou, seja em forma ou

conteúdo.

O que se nota é que o profissional da música, seja o produtor, o artista, o

engenheiro de áudio, se mostra muito mais cheio de illusio sobre o campo e muito

mais cheio de ilusão sobre a natureza de sua produção do que o profissional de

outras áreas fora da produção cultural. Essa illusio faz com que Bourdieu dedique

um trabalho inteiro sobre as regras da arte, e essa illusio faz com que esse mercado

seja uma área que ainda não dê retornos econômicos a curto e a médio prazo, mas

garantem a seus patrocinadores e investidores que serão mercados lucrativos, pois

os seus agentes sociais confiam na sua produção intelectual, investem seu tempo e

produzam cada dia mais dentro dos serviços de streaming .

A obra de arte, e especificamente a música, representada neste trabalho, se

caracteriza por traduzir um momento, um sentimento, uma ideia em uma parte.

Transformar aquilo que se sente, aquilo que se vê, aquilo que se conhece, em um

pedaço de mármore, em um pedaço de madeira, em um quadro, ou em nosso caso,

em um arquivo de áudio, captado por microfones e ímãs magnéticos. É a física, pura

e simplesmente, que serve como ferramenta para o compositor, o intérprete, o

produtor, o engenheiro de áudio, traduzirem o todo em dois minutos e 50 segundos.

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Essa característica da obra de arte, de transformar o grande em pequeno, o

todo em pedaços, essa simetria faz com que os próprios suportes atuem de tal forma

a mudarem a percepção do receptor diante do resultado daquela obra, dentro

daquele suporte, dentro daquela época, registrado por aquele software. A obra de

arte é modificada, tanto faz se para melhor ou para pior, de acordo com a época em

que é registrada.

A ciência de dados elevou esse critério a proporções muito maiores. Mudar o

refrão para o início das músicas, como disse Fernando Sanches, remover a

introdução das músicas, como disse Jeff Pina, alterar a duração das músicas, e

depois de todas essas alterações, saber exatamente onde a música foi tocada, por

quanto tempo, e tantos outros detalhes, como por exemplo saber exatamente em

qual segundo da música houve uma taxa de rejeição, faz com que os serviços de

entrega de música digital saibam previamente qual é a música que vai fazer sucesso

em uma determinada playlist e qual música não fará.

Com a ciência de dados, o pensamento objetivo da transformação do grande

em pequeno, descrito acima, e a capacidade de calcular, também de forma

matemática, qual é a maneira certa de apresentar uma música ao público, faz com

que a capacidade do músico de impressionar diminua, aumentando cada vez mais a

necessidade do músico de corresponder a uma expectativa. Mudar a ordem do

refrão, diminuir o tamanho de uma faixa, remover um solo, aumentar o volume de

uma voz, afinar digitalmente essa mesma voz, e tantos outros recursos, medidos por

ciência de dados e conhecidos pelos agentes da música, como vimos nas

entrevistas apresentadas, faz com que a subjetividade do artista, a espontaneidade

e especificidade diminuam. Diminui a importância de quem faz e aumenta a

importância de como é feito.

Então, se todas as músicas que estão dentro das principais playlists dos

serviços de streaming tendem a começar com refrão, ter uma parte A , outro refrão,

repetir, sempre com uma média de dois minutos e 50 segundos, sempre com uma

voz afinada digitalmente, sempre com praticamente os mesmos instrumentos,

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sempre com letras repetindo o mesmo tema, então como justificar que música A faz

mais sucesso que música B ? Como conhecer a especificidade do artista? Se o

sistema de métricas do Spotify , YouTube , Deezer e outros deram a possibilidade de

calcular exatamente quais as faixas de maior sucesso, e os artistas encontram

nessas faixas troféus simbólicos para estarem nas playlists de sucesso, então como

justificar o motivo de um artista fazer tanto sucesso?

A gravadora ainda paga para ter o artista tocando. Paga para ter o Drake tocando. Ele foi recorde de execuções nos serviços de streaming , e é óbvio, pois a 105

gravadora paga para ele tocar em todas as playlists possíveis. O lançamento dele teve a música com mais streamings de todos os tempos. Claro, foi pago. (BILLY, Maestro. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

Ainda há um interesse em vender anúncios, em vender assinaturas. Os big

datas e a ciência de dados extraem métricas e dados capazes de entender qual é o

tipo de música que vai corresponder a essa expectativa do usuário e confortar ele

dentro da plataforma. Estamos em um momento onde o que importa é a retenção de

usuários consumidores.

E o algoritmo dessas plataformas faz com que você ouça sons parecidos. Se você ouve Drake, a plataforma te recomenda um som parecido com o Drake. Se você ouve essa outra música, a plataforma te recomenda outra música parecida. E daqui a pouco só vai ter um tipo de música, nesse estilo Drake, Rihanna, Kate Perry. Existirão outros sons, claro, mas o grande consumo vai ser focado nesse estilo de música, e a grande massa só quer saber o que está tocando muito, e não procurar coisas diferentes.

Teste agora, entre na plataforma e procure algo realmente novo, de

recomendação da plataforma e que seja realmente diferente. Você não acha. 106

(BILLY, Maestro. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

Se uma tendência de efetividade de sucesso surge cada vez mais da

extração de dados de uma plataforma digital, o produtor se torna cada vez mais

aquele que, ao invés de encontrar no artista uma particularidade genial, encontra no

105 O último álbum de Drake, Scorpion, foi recordistas de execuções no lançamento de uma faixa em todas as plataformas digitais. 106 Ao falar sobre algo "realmente diferente", Maestro Billy está se referindo ao cenário de músicas internacionais.

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próprio mercado do streaming as características das músicas que tocam nas

playlists de sucesso.

Produção é uma vivência em que as pessoas não sabem como funciona o mercado. [...] Fico olhando os canais, ouvindo músicas em playlists. É um trabalho estar antenado com as coisas, e por mais que o artista tenha uma visão criativa e uma musicalidade própria, ele não tem a vivência do mercado. (PINA, Jeff. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

A complexidade da maneira de se produzir e consumir música onde o artista

não recebe por isso mostra que estamos novamente em uma transição do processo

histórico. O capitalismo, mais uma vez, transformou um momento de crise, da

pirataria e do download ilegal de músicas, em uma oportunidade de negócio. Temos

que confiar, acima de tudo, na vontade de consumir a música, seja por pirataria, seja

por streaming, seja ao vivo.

Em entrevista para a VICE, Bruno Vieira, diretor da Deezer no Brasil responde

que "é difícil antever um novo formato revolucionário. [...] E ainda tem muito a

crescer" . 107

O streaming é um ótimo formato, mas até quando essas empresas se

sustentam com resultados negativos em suas finanças? O artista realmente

continuará a produzir conteúdo para as plataformas, mesmo sem receber por isso?

O preço cada vez maior dos serviços de streaming viabiliza um sistema gratuito de

negócio onde usuários comuns consomem anúncios, seja via YouTube , seja via

Spotify , em troca de um áudio digital com qualidade discutível e que não remunera

adequadamente o criador de conteúdo.

Acho que os serviços de streaming só vão conseguir gerar lucro quando houver um acordo padrão de pagamento de direitos autorais, sem precisar de negociação a cada ano. Quando a indústria tiver um modelo mais fácil de negociação, será mais fácil de gerar lucro. (RALPHES, Paul. Entrevista concedida a Igor Fediczko Silva em junho de 2018)

107 Entrevista de Bruno Vieira para a coluna "Entendendo a cena", da revista virtual VICE. <https://www.vice.com/pt_br/article/8x8ep3/streaming-estudando-cena-6-natura-musical>

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Esse acordo padrão, citado por Paul Ralphes, iria contra a caixa preta de

dados das maiores empresas aplicativo da atualidade. Uber, iFood, AirBNB,

YouTube, Facebook e tantas outras dezenas de empresas baseadas em algoritmos

de localização estão mensurando dados, otimizando a performance e operando de

acordo com métricas desenvolvidas diante de estudo de consumo de suas

plataformas. Esse "acordo padrão" faria com que todos esses estudos funcionassem

como um acessório para calcular este acordo, ignorando os dados capturados e

analisados via machine learning, como por exemplo a taxa dinâmica em regiões com

alta concentração de passageiros, como shows, no caso do Uber . "Acordo padrão" 108

iria justamente contra uma tendência moderna, e infelizmente não acontecerá tão

cedo.

A uberização do trabalho, como apontado por Abílio, cria taxas dinâmicas de

remuneração, em um sistema baseado por métricas e dimensões desconhecidas

dos usuários, oferecendo ao prestador de serviço apenas a oportunidade de confiar

na extração de dados já consolidados, sem a opção de contestação. Sobre ao

prestador a illusio do jogo, a perseguição de troféus simbólicos e a qualificação do

seu capital, seja em forma de água disponível para passageiros dentro do Uber , seja

uma câmera de melhor qualidade no YouTube , seja um single mais curto e com voz

mais afinada no Spotify .

108 O Uber anunciou, na contramão do acordo padrão, uma taxa variável de cobrança de seus motoristas. <https://www.tudocelular.com/mercado/noticias/n127075/uber-fim-taxa-fixa-brasil-motoristas-mercado-.html>

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