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socialismono século xxi

marco aurélio garciajuarez guimarãesvalter pomar

O SOCIALISMO É HERDEIRO DE DUAS GRANDES

VERTENTES HISTÓRICAS QUE TÊM SUA ORIGEM NO

SÉCULO XIX. OS MOVIMENTOS CONCRETOS DAS

CLASSES TRABALHADORAS CONTRA OS EFEITOS

SOCIALMENTE DEVASTADORES DA REVOLUÇÃO

INDUSTRIAL E A TENTATIVA DE ENTENDER OCAPITALISMO, NA PERSPECTIVA DA SUA

SUPERAÇÃO, EM ESPECIAL A CRÍTICA DA

ECONOMIA POLÍTICA. ESTE LIVRO APRESENTA

UM RICO DEBATE POLÍTICO E TEÓRICO SOBRE

A HISTÓRIA DO SOCIALISMO NO SÉCULO XXE SUAS PERSPECTIVAS NO NOVO MILÊNIO.

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O SOCIALISMO É HERDEIRO DE DUAS GRANDES

VERTENTES HISTÓRICAS QUE TÊM SUA ORIGEM NO

SÉCULO XIX. OS MOVIMENTOS CONCRETOS DAS

CLASSES TRABALHADORAS CONTRA OS EFEITOS

SOCIALMENTE DEVASTADORES DA REVOLUÇÃO

INDUSTRIAL E A TENTATIVA DE ENTENDER OCAPITALISMO, NA PERSPECTIVA DA SUA

SUPERAÇÃO, EM ESPECIAL A CRÍTICA DA

ECONOMIA POLÍTICA. ESTE LIVRO APRESENTA

UM RICO DEBATE POLÍTICO E TEÓRICO SOBRE

A HISTÓRIA DO SOCIALISMO NO SÉCULO XXE SUAS PERSPECTIVAS NO NOVO MILÊNIO.

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Marco Aurélio GarciaJuarez Guimarães

Valter Pomar

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NONONONONO SÉCULOSÉCULOSÉCULOSÉCULOSÉCULO XXIXXIXXIXXIXXI

Socialismo em discussão

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

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Assistente EditorialViviane Akemi Uemura

RevisãoMárcio Guimarães Araújo

Rubens Rusche

Capa e Projeto GráficoGilberto Maringoni

Ilustração da CapaEgrégora, de Samuel Santiago

Editoração Eletrônica Enrique Pablo Grande

Impressão Gráfica Bartira

Fundação Perseu AbramoInstituída pelo Diretório Nacional

do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996

DiretoriaHamilton Pereira – presidente

Ricardo de Azevedo – vice-presidenteSelma Rocha – diretora

Flávio Jorge Rodrigues da Silva – diretor

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação EditorialFlamarion Maués

Editora AssistenteCandice Quinelato Baptista

1a edição: maio de 2005 – Tiragem: 2 mil exemplaresTodos os direitos reservados à

Editora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 224 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – Brasil

Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910Na Internet: http://www.fpabramo.com.br – Correio eletrônico: [email protected]

Copyright © 2005 by Editora Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-7643-017-7

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Este livro reproduz o debate do Seminário“A luta pelo socialismo no século XXI”,

promovido pelo Instituto Cidadania, pelaFundação Perseu Abramo e pela Secretaria

Nacional de Formação Política do Partidodos Trabalhadores, que aconteceu emSão Paulo em 15 de outubro de 2001.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Guimarães JuarezSocialismo no século XXI / Juarez Guimarães, Marco Aurélio Garcia,

Valter Pomar – São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2005. – (ColeçãoSocialismo em Discussão)

Outros autores: Juarez Guimarães, Valter Pomar

ISBN 85-7643-017-7

1. Socialismo - História - Século 21 - I. Garcia, Marco Aurélio. II. Pomar,Valter III. Título. IV. Série.

05-3646 CDD-320.905

Índices para catálogo sistemático:1. Século 21 : Socialismo : Ciência política : História 320.53109052. Socialismo : Século 21 : Ciência política : História 320.5310905

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Agenda para o socialismo no século XXI

Marco Aurélio Garcia ................................................................ 7Internacionalismo e nação ............................................................................ 19Propriedade, mercado, planejamento, regulação ........................................... 20A igualdade social ........................................................................................ 21O mundo do trabalho .................................................................................... 21Novos paradigmas de desenvolvimento ....................................................... 22A socialização da política .............................................................................. 22Exploração e opressão .................................................................................. 23Socialismo, cultura e conhecimento .............................................................. 24Sujeitos sociais ............................................................................................. 24Partido e movimento ..................................................................................... 25O processo .................................................................................................... 25

Marxismo e democracia:um novo campo analítico-normativo para o século XXI

Juarez Guimarães ....................................................................................27Marxismo crítico e reinvenção do socialismo ................................................ 28Marxismo e princípio da liberdade ................................................................ 30Marxismo e princípio da soberania popular .................................................. 36Marxismo e princípio de civilização ............................................................... 43Notas ............................................................................................................ 44

A luta pelo socialismo no século XXI

Valter Pomar ............................................................................. 49

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6 SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

Debate com o públicoMax Altmann ...................................................................................................... 61Paulo Vannuchi ................................................................................................... 63Gilberto Maringoni ............................................................................................. 64Aparecido ........................................................................................................... 65Paul Singer .......................................................................................................... 66Adriano Diogo .................................................................................................... 68Luiz Dulci ............................................................................................................ 69Ruth Barros ......................................................................................................... 70Devanir Ribeiro ................................................................................................... 70Juarez Guimarães .............................................................................................. 71Valter Pomar ...................................................................................................... 74Marco Aurélio Garcia ...................................................................................... 80Clara Charf .......................................................................................................... 89Maria Victoria Benevides ................................................................................... 92Cesário Silva ....................................................................................................... 95Ibraim Farrah ....................................................................................................... 96Gabriel ................................................................................................................. 97Paulo ................................................................................................................... 98Juarez Guimarães .............................................................................................. 99Valter Pomar .................................................................................................... 100Marco Aurélio Garcia .................................................................................... 103

Sobre os autores ....................................................................................... 109

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7SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Agenda para osocialismo no século XXIMarco Aurélio Garcia

Por uma questão de deformação profissional, vou iniciar minha exposi-ção com uma abordagem de caráter histórico. Parece-me essencial paratratar os problemas que estão propostos na origem desse seminário –As perspectivas do socialismo no século XXI.

Na segunda parte, quando procuro dar um tratamento mais atual paraas questões, não tenho nenhuma pretensão de oferecer qualquer receitaou resposta. Pareceu-me mais importante formular questões, colocarproblemas, isto é, de uma certa maneira construir o que considero sejauma necessária agenda para o socialismo no século XXI.

O socialismo é herdeiro de duas grandes vertentes históricas que têmsua origem no século XIX. Os movimentos concretos das classes traba-lhadoras contra os efeitos socialmente devastadores da Revolução In-dustrial e a tentativa de entender o capitalismo, na perspectiva de suasuperação, em especial a crítica da economia política.

Os diversos movimentos operários tiveram em comum a reação à des-truição da sociedade tradicional pelo capitalismo e a resistência às bru-tais condições de trabalho e de vida que a exploração fabril impunha àsclasses trabalhadoras. São movimentos que se desenvolveram em reali-

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8 SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

dades econômicas, sociais, políticas, ideológicas e culturais distintas. Osprocessos de emergência do capitalismo em vários países – na Inglater-ra, na França, na Alemanha, por exemplo – são profundamente distintos.Da mesma forma, há que considerar as especificidades das revoluçõesInglesa de 1640-1688 e Francesa de 1789 e a Unificação Alemã de 1870no que se refere às classes em presença, às transformações realizadasou às suas origens intelectuais.

Junto com o movimento das classes trabalhadoras contra o capitalismonascente surgiram inúmeras teorias críticas à nova sociedade em cons-trução. Essas teorias tinham variados pressupostos éticos, filosóficos,religiosos e econômicos. Na sua diversidade, elas possuíam em comuma idéia de que a sociedade capitalista era desigual e transitória, devendoser substituída por outra igualitária, a partir da eliminação da propriedadeprivada dos meios de produção.

A emergência da classe operária coincidiu com as tentativas de afirma-ção política da burguesia no marco conservador que a Restauração haviainstaurado. Na medida em que as classes trabalhadoras se transforma-vam em ameaça – o fantasma que percorria a Europa em 1848, aludidopor Marx e Engels, no Manifesto comunista –, a burguesia perdia seuconteúdo revolucionário. Revelava-se incapaz de afirmar a democraciaque o liberalismo político pregava e por isso sucumbiu diante de um aven-tureiro como Luís Bonaparte, viu frustrada sua aspiração monárquico-parlamentar democrática, como na Alemanha, e desenvolveu uma simbioseativa, segundo a expressão de Arnold Mayer, tomada de empréstimo deSchumpeter, com o persistente Antigo Regime na Inglaterra.

Essa incapacidade histórica da burguesia de assumir praticamente oideário democrático que retoricamente pregara na primeira metade doséculo XIX lançou sobre a idéia de democracia as suspeitas de que osvalores de liberdade e igualdade políticas não passavam de um álibi para

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9SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

esconder a opressão e a desigualdade econômica e social. Essa demo-cracia seria apenas formal e estava exigindo uma outra, substantiva.

O problema que se colocava então para o movimento operário era com-plexo e teria profundas conseqüências para o socialismo no futuro. Noséculo XIX, durante décadas o movimento operário careceu de uma teoriapolítica mais consistente. Nas suas lutas concretas, no entanto, ele desen-volvia ações das quais resultaram inúmeras conquistas políticas democrá-ticas, inclusive a maior de todas, a que concedeu efetiva cidadania aostrabalhadores, principalmente nos países de capitalismo mais avançado.

Aquilo que mais tarde, e a meu juízo, incorretamente, viria a ser chama-do pelos setores de esquerda de democracia burguesa, isto é, República,sufrágio universal, liberdades civis e direitos humanos, para citar algunsexemplos, foi em realidade o resultado da ação das classes trabalhadoras,portanto, conquistas suas, e não outorga das classes dominantes.

Está aí um aparente paradoxo histórico. A “democracia burguesa” foiconseqüência mais da ação das classes trabalhadoras do que da própriaburguesia. Esse paradoxo é apenas aparente se considerarmos que osgrandes movimentos que puseram fim ao Antigo Regime, as revoluçõesInglesa e Francesa por exemplo, foram considerados revoluções bur-guesas, pelo simples fato de terem viabilizado as condições de possibili-dade de dominação da burguesia.

Tal reducionismo deixa de analisar a natureza mais complexa dessasrevoluções e as circunstâncias históricas em que se deu efetivamente ahegemonia burguesa nas sociedades contemporâneas.

Essa orfandade de referências teórico-políticas das classes trabalha-doras viria a ser em certa medida sanada com a Comuna de Paris. Arevolução, diferentemente dos movimentos anteriores, teria finalmentese vestido com trajes proletários, segundo a expressão de Jules Vales.Apesar de ser um movimento hegemonizado por correntes operárias

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10 SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

distintas das de Marx, seja na França, seja no interior da AssociaçãoInternacional dos Trabalhadores, o movimento de 1870-1871 foi não sósaudado por ele, Marx, mas adotado como referência teórico-política. Éa partir da Comuna que ganhou força o conceito de ditadura do proleta-riado, retomado por Lenin em Estado e revolução, livro no qual o diri-gente russo estabeleceu um paradigma político para o novo regime a serimplantado em 1917.

O conceito de ditadura do proletariado exercia um compreensível fas-cínio na medida em que aparecia como um modelo de dominação dotadoda universalidade que o governo da burguesia dizia ter, mas não possuía.A isso se somava o atrativo que justamente provocam os movimentospolíticos de baixo para cima, capazes de derrubar o conservadorismo einstaurar uma nova ordem social.

Mas ações diretas das massas no caso russo e em seu precedentefrancês se explicavam não pelos limites da democracia representativa,mas exatamente pela ausência desta. A Comuna foi a alternativa po-pular ao despotismo do Segundo Império e à incapacidade das classesdominantes de garantir sequer a defesa nacional durante a guerra fran-co-prussiana.

Da mesma forma, os sovietes em sua primeira aparição, 1905, e emsua ressurreição, 1917, não são uma resposta aos limites da democraciarepresentativa, uma vez que na Rússia essa simplesmente não existia. Aburguesia russa não fora capaz de dissociar-se do Antigo Regime e, poressa razão, não revelara aptidão para conduzir o processo de transfor-mação democrática do país.

Essa foi a percepção histórica que por caminhos distintos tiveram Lenine Trotsky, e que os levou a se oporem a Plekhanov e aos mencheviques,que defendiam a necessidade de uma etapa burguesa antecedendo asocialista e hegemonizada pela burguesia no caminho da transformação

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revolucionária do país. Tanto Lenin como Trotsky defendiam que as trans-formações burguesas não realizadas na sociedade russa não poderiamser conduzidas pela burguesia, cabendo ao proletariado, em aliança como campesinato, impulsioná-las. Mas, apesar das diferenças marcantesque historicamente separaram bolcheviques e mencheviques, ambospartilhavam a convicção evolucionista de que as formações sociais de-veriam passar inevitavelmente por etapas historicamente necessáriascomo a capitalista, ainda quando admitisse que ela fosse hegemonizadapor forças sociais opostas à burguesia.

Aqui, em realidade, eu me veria um pouco tentado a relembrar a polê-mica que os populistas russos mantiveram com a nascente socialdemo-cracia, que se nutria, entre outras coisas, de uma correspondência queVera Zassulitch e outros populistas haviam mantido com Marx nos anos1880. Marx, no final da vida, começou a se preocupar incessantementecom os temas da Rússia, e justamente nesta correspondência discutia sehavia possibilidade de a Rússia transitar diretamente para uma socieda-de sem classes sem que fosse necessária a passagem pelo capitalismo.

As vicissitudes do período inicial pós-1917 podem explicar o endureci-mento do regime soviético, inclusive a substituição da ditadura do prole-tariado pela ditadura do partido. O fracasso do comunismo de guerra,resposta compreensível ao cerco imperialista que a jovem Rússia sovié-tica sofria nos primeiros anos da revolução, ensejou um pragmatismoeconômico, representado pela nova política econômica, a NEP. Nos anos1920, a direção bolchevique realizou importante debate sobre os cami-nhos que deveria seguir a economia russa. As posições em presençaapontavam basicamente para o enfrentamento da tarefa burguesa, comose dizia, não realizada, até mesmo nas posições de Bukharin, que, noentanto, mantinha uma postura mais flexível em relação à importânciada economia camponesa.

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Penso que aí poderia até haver uma certa conexão dos temas queBukharin suscita nesse momento com outros que haviam sido levanta-dos pelos populistas no final dos anos 1890 e mesmo depois.

O sistema político não se flexibilizou em 1920. A abertura que a NEP(Nova Política Econômica) representou no plano econômico não encon-trou correspondência no plano político. Lenin afirmava que poderiam serfeitas concessões à burguesia na esfera econômica, como o restabeleci-mento dos mecanismos de mercado, uma vez que o poder estivesse emmãos do proletariado. A economia política no socialismo se transforma-ria em política econômica. O problema estava em que não mais haviaditadura do proletariado nos anos 1920, mas ditadura do partido; e opróprio Partido Comunista (PC) estava sujeito internamente a crescentesconstrangimentos que impediam o livre debate de idéias.

Não se trata aqui de reconstruir a história da União das RepúblicasSocialistas Soviéticas (URSS), mas de dar indicações gerais sobre as vi-cissitudes enfrentadas pelo socialismo em uma experiência que, por ra-zões compreensíveis, assumiu um papel paradigmático para grande par-te do movimento operário no século XX.

A URSS abandonou no fim dos anos 1920 a NEP, realizou a coletivizaçãoforçada da agricultura e, mediante sucessivos planos qüinqüenais, em-preendeu a mais radical e sangrenta revolução industrial da história dahumanidade. O despotismo político que acompanhou boa parte desseperíodo corresponde à natureza despótica das alternativas econômicasadotadas, em que convivia um teorismo radical, expresso fundamental-mente nos projetos de Stakhanov com o uso maciço do trabalho escravopara produzir aquilo que Eugeny Preobrajensky havia antes chamado deacumulação socialista originária.

Os dois principais teóricos da Revolução Russa, Lenin e Trotsky, conce-biam-na como parte de um processo de transformações mundiais em um

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13SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

período em que o capitalismo parecia haver chegado a seu limite. A tesecatastrofista sobre o eminente colapso do capitalismo era tema central domovimento socialista desde finais do século XIX. Ela aparece na polêmicaque opôs Bernstein a Rosa Luxemburgo. Contra o evolucionismo gradualistado primeiro, Luxemburgo invocava a inviabilidade estrutural do capitalis-mo, tema que ela trabalhou teoricamente mais tarde na Acumulação docapital. Posteriormente, a Primeira Guerra Mundial aparece como a com-provação de que o capitalismo havia chegado a sua crise final. A Revolu-ção Russa, por sua vez, aparecia como a resposta necessária a ser dada aessa crise. Nesse momento insinua-se a tese, que mais tarde Trotsky reto-maria com a formulação que segue, segundo a qual a crise revolucionáriaera centralmente uma crise de direção revolucionária. A revolução teriavencido na Rússia não só porque esse país era, na expressão de Lenin, oelo mais fraco da cadeia imperialista, mas porque, diferentemente da so-cialdemocracia ocidental, os bolcheviques haviam optado por uma políticarevolucionária nos planos nacional e internacional.

É evidente que a hegemonia do liberalismo econômico e político havia sidoprofundamente abalada e que o capitalismo passaria por um prolongado eintenso período de instabilidade que se estendeu até o fim da Segunda Guer-ra Mundial, tendo em 1929 seu momento mais crítico. Se neste momento arevolução e o socialismo não podem ser considerados como inevitabilidade,eles devem ser entendidos, no entanto, como possibilidade. Pouco a pouco,em meio a circunstâncias históricas dramáticas como a dos anos 1930 e1940, a burguesia foi construindo mecanismos de regulação econômica, queabriram inicialmente saídas tópicas para a crise e, mais tarde, estarão naorigem da grande expansão do capitalismo mundial entre 1945 e metade dosanos 1970, os “30 anos gloriosos”, como esse período é conhecido.

Em uma conjuntura diagnosticada como revolucionária, tornava-se ne-cessário explicar – estou me referindo evidentemente ao período pós-

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1917 – por que a revolução não se consumava, ou, pior ainda, por que elaera frustrada inclusive por aqueles que deveriam ser os seus protagonis-tas: o proletariado.

Para explicar a capitulação da socialdemocracia diante da burguesiana Guerra Mundial, constrói-se a teoria da formação de uma aristocra-cia operária, espécie de quinta-coluna burguesa no interior dos trabalha-dores, sem que se explique por que esses mesmos trabalhadores se sub-metiam aos “traidores”. Era difícil reconhecer que, a despeito da tradiçãointernacionalista das vanguardas do movimento operário europeu, esteainda estava muito preso aos valores nacionalistas, monárquicos e reli-giosos que o arrastaram para a guerra.

Da mesma forma, o desgaste e os limites da democracia representati-va no Ocidente não eram suficientemente fortes para provocar a adesãodos trabalhadores ao modelo e, sobretudo, à prática da ditadura do prole-tariado de inspiração bolchevique. O movimento operário sabia que achamada democracia burguesa era também, em alguns casos, principal-mente uma construção sua.

A insistência da exposição nesse período inicial da experiência dosocialismo está, sem dúvida nenhuma, ligada ao fato de que é entrefins do século XIX e as primeiras décadas do século XX que se constróiboa parte dos paradigmas políticos que vão nortear a ação do movi-mento operário até os anos 1980, quando o socialismo enfrentou a maiorcrise da sua história. Pode-se ver no período aludido como comparece-ram os grandes temas que hoje ainda se colocam como desafios para osocialismo: o diagnóstico das formações sociais, o caráter da revolu-ção, as etapas, as tarefas, a natureza do contexto internacional e suaincidência nos quadros nacionais; os sujeitos e instrumentos da açãorevolucionária, classes, movimentos, partidos; a natureza do Estado edo poder revolucionário e a relação entre socialismo e democracia; a

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15SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

questão da propriedade e do novo modelo econômico, para citar algunstópicos mais importantes.

Em meados dos anos 1970 começam a insinuar-se novas tendênciasque viriam a afetar fortemente as duas grandes experiências socialistasdo século XX – a experiência socialdemocrata e a dos partidos comunis-tas. Aqueles partidos comunistas, sobretudo, que estavam no poder dospaíses que viriam a ser eufemisticamente chamados de socialismo real.E os partidos socialistas que haviam renunciado anos antes ao que cha-maram de dogma marxista – estou pensando fundamentalmente no fa-moso Congresso de Bad Godsberg da socialdemocracia alemã, que aban-dona o marxismo como referência. Esses partidos haviam assumido umkeynesianismo de esquerda e assistiram à erosão das bases do Estadode bem-estar social. O crescimento das demandas sociais ligadas aosmovimentos de 1968, somado a eventos como a crise do petróleo mais acrise monetária internacional, precipita a crise fiscal do Estado e com elao temor de surtos inflacionários.

Estava aberto o caminho para o neoliberalismo, que leva os conserva-dores ao poder em vários países e acaba por contaminar a política departidos socialistas recém-chegados ao governo. Estou pensando aquibasicamente no caso espanhol e, em certa medida, na França.

Ao mesmo tempo, as transformações tecnológicas por que passa ocapitalismo e sua incidência sobre a composição das classes trabalhado-ras incidiam sobre a combatividade do movimento operário, já afetadanegativamente pelas políticas dos partidos comunistas e socialistas. Ospactos que a socialdemocracia havia engendrado entre burguesia e pro-letariado, partidos e sindicatos eram eminentemente nacionais. A econo-mia se internacionalizava, no entanto. Se globalizava, como passou adizer-se, em termos de produção, mercado e, sobretudo, finanças. Ageografia econômica do mundo se reconfigura aceleradamente, varren-

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16 SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

do do mapa regiões industriais, construindo outras e com isso alterandoradicalmente o mundo do trabalho. As bases materiais de um movimentooperário quase centenário começam a ser fortemente afetadas. O mun-do do socialismo real explode em contradições que vinham amadurecen-do havia décadas. Esse não é o lugar para analisar o complexo processoda crise que arrastou o socialismo realmente existente ao colapso,emblematicamente revelado pela queda do Muro de Berlim, em 1989, epela autodissolução da União Soviética em 1991.

Sinalize-se, no entanto, que se trata não só de um colapso econômicoresultante da obsolescência do sistema produtivo industrial, agrícola e deserviços, incapaz de competir tecnológica e gerencialmente com o capi-talismo, como se observa trivialmente. Trata-se, sobretudo, de um pro-cesso de ruptura interna mais radical que afeta basicamente as socieda-des de quase todos esses países. Essas mazelas não eram novas, elashaviam sido denunciadas a partir de distintas perspectivas, anos ou atémesmo décadas antes, por homens como Victor Serge, Leon Trotsky,Boris Suvarin, Charles Bettelheim e tantos outros.

O ato final dessa crise é o fracasso do mais audacioso projeto de auto-reforma do sistema empreendido por Gorbatchev, que se propunha aarticular uma reforma econômica, a Perestroika, com uma mudançapolítica, a Glasnost.

Demasiado radical para os conservadores da Nomenclatura e excessiva-mente tímido para os dissidentes da burocracia que exploravam o descon-forto popular em seu favor, o projeto gorbatcheviano naufraga e abre passonão para a tão sonhada revolução política que regeneraria o socialismo, maspara uma contra-revolução silenciosa que mergulharia regiões inteiras namiséria, no atraso, na barbárie e na vulgaridade cultural-ideológica.

O impacto político do colapso da experiência socialista na URSS e naEuropa do Leste, somado às metamorfoses dos processos em curso na

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17SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

China, no Vietnã e em Cuba, para citar apenas três casos, não podesuscitar indiferença. Nem a afetada superioridade dos que vinham haviadécadas chamando a atenção, pela esquerda, para os problemas queexplodiram nos anos 1980, nem a aparente tranqüilidade dos que nãovêem no colapso do campo socialista nenhuma ligação com a crise dosocialismo. Nessa posição, tudo se passa como se o colapso do socialis-mo real não tivesse nada a ver com o socialismo enquanto projeto, quese manteria intocado, bastando analisar onde o paradigma havia sidotergiversado para propor-se uma volta às origens.

O mesmo problema se verifica em relação à crise da socialdemocracia,que, apesar de ser menos estrepitosa do que a do comunismo, não deixade ser profunda também.

A crise do socialismo foi acompanhada, como todas as crises políticaso são, por uma crise intelectual e ética. A queda do Muro, o fim da URSS,foi um pretexto para a adesão descontrolada de muitos às aguadas teo-rias emergentes, o que na maioria dos casos veio acompanhado por pos-turas éticas marcadas pelo oportunismo e pela pusilanimidade.

O desprezo que essas atitudes suscitam não exime ninguém de umesforço de reconstrução teórica e política, menos ainda de uma atitudeética correspondente e oposta. Mudar, sem mudar de lado, como tantasvezes foi dito. A tarefa que corresponde aos socialistas é maior do queaquela que se espera dos historiadores. Desses se cobrará a reconstru-ção histórica e o entendimento do que ocorreu. Dos socialistas se esperao esforço crítico, que pode ser dilacerante pelas conclusões a que podechegar e pela iluminação que produza sobre o passado e o futuro. Masos socialistas, diferentemente dos analistas, têm um compromisso com ateoria e outro com a política. Não deduzem esta daquela. Não condicionama teoria aos avatares da política. Articulam um processo de iluminaçõesrecíprocas entre uma e outra.

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18 SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

A chamada crise do socialismo, cuja profundidade foi maior na medidaem que o capitalismo celebrava a sua vitória, pode ter chegado a umponto de inflexão. A proposta liberal começou a encontrar seus limites, eo capitalismo hoje se encontra, no mínimo, diante de inúmeras incerte-zas. A fragilidade de um mundo hegemonizado unipolarmente pelos Es-tados Unidos diante da crueldade do terrorismo só acentua esse senti-mento de perplexidade. Os movimentos antiglobalização, na sua hete-rogeneidade, vocalizam novas teorias, sinalizam novas práticas, perfilamnovos sujeitos, apontam para novas problemáticas. Partidos e movimen-tos de esquerda se renovam e mantêm em alguns países, como é o casono Brasil com o Partido dos Trabalhadores (PT), um considerável poderde atração popular.

É possível visualizar uma agenda para o socialismo. Para fazê-lo, alémda crítica de um passado que, queiramos ou não, é nosso, há que realizarum esforço de pensar um novo mundo em construção. Tão importantesquanto as respostas a serem dadas à pergunta “como será o socialismono século XXI” são as questões a serem colocadas e que deverão balizaro debate.

Um programa socialista para o século XXI, diferentemente de outrosno passado, não parte de uma meta construída a partir da qual se dese-nhará um caminho para atingi-la. Não se trata de um movimentoteleológico. Sua única premissa: o capitalismo não é o fim da história e,portanto, coloca-se no horizonte, ainda que em forma imprecisa, umasociedade pós-capitalista. A diferença está em que o processo queconduz a essa sociedade é tão importante quanto o resultado. Este nãopode ser separado daquele. Movimento (meios) e fins se articulammutuamente.

Vou então alinhar alguns temas que me parecem importantes para essaagenda do socialismo no século XXI.

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19SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Internacionalismo e nação – Um dos desafios para o socialismo noséculo XXI é a articulação entre o internacionalismo e a nação. A cons-trução nacional em muitos países, sobretudo na periferia do capitalismo,é um processo inconcluso, principalmente em função da dominação im-perialista e, mais recentemente, da globalização sob hegemonia neoliberal.

O socialismo do século XXI não pode renunciar à construção de umacomunidade universal de povos, articulados em forma democrática, pa-cífica e igualitária. Essa comunidade, longe de abortar a construção na-cional, deve dela partir. Um Estado-nação pode abrir mão de cotas desoberania em favor de instâncias multinacionais, quando essa decisãocontribuir decisivamente para alcançar objetivos superiores e democra-ticamente definidos.

As associações regionais só podem existir se forem capazes de evitaras assimetrias nacionais ou criar mecanismos sólidos de compensaçãopara elas. Isso implica intricadas redes de proteção de sistemas produti-vos, ambientais, garantias sociais, tradições políticas, étnicas e culturais.O internacionalismo não se reduz a acordos multilaterais de Estados-nação. Ele implica o intercâmbio entre cidades e regiões de distintospaíses. Ele envolve igualmente a aproximação e a articulação de parti-dos, sindicatos e movimentos. Os movimentos antiglobalização liberalque se expandiram com força nos últimos anos, como as correntes paci-fistas no passado, para citar dois exemplos importantes, podem ser em-briões de uma sociedade universal e de uma nova opinião pública inter-nacional necessárias para um novo socialismo.

A complexidade das relações econômicas atuais já produziu uma arti-culação de produção, mercados e finanças. Essa forma de globalizaçãoeconômica em muitos casos escapa inclusive ao controle dos Estados-nação, ainda que sobre ela tenha grande importância o controle exercidopelos Estados Unidos e pelas grandes potências por meio de organiza-

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ções multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o BancoMundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outras.

A reforma ou a construção dessas e de outras instituições é o imperativode uma ordem mundial equilibrada e democrática. Iniciativas, para citarum exemplo, como a Taxa Tobbin, por mais limitado que seja o seu alcan-ce, simbolicamente apontam para a necessidade de mecanismos que bus-quem introduzir uma racionalidade distinta nas relações internacionais.

Propriedade, mercado, planejamento, regulação – Não basta reite-rar a forma clássica, segundo a qual o socialismo é a socialização dos meiosde produção. A experiência histórica mostra que se trata de um processocomplexo, tortuoso e prolongado. O mais importante é definir a lógica quevai imperar na organização da nova economia. O socialismo do século XXI

deve aprofundar a questão da coexistência de formas de propriedade esta-tal, pública não-estatal, cooperativas; múltiplos mecanismos de economiasolidária e de propriedade privada, cujas dimensões desta última serão fun-ção dos desafios estratégicos do projeto econômico. No caso brasileiro, aimplementação de uma consistente reforma agrária, acompanhada de sólidapolítica agrícola, constitui-se em elemento fundamental para resolver umaquestão secular que tem dimensão não só econômica como social e política.

Sobre todas as formas de propriedade devem exercer-se múltiplasmaneiras de controle, dos trabalhadores, dos consumidores e de outrasesferas sociais, além das diretrizes emanadas dos mecanismos de plane-jamento estratégico democrático do Estado. Mesmo os países que afe-tam o mais absoluto liberalismo têm e sempre tiveram formas de plane-jamento por meio de complexas políticas agrícolas, industriais e de ciênciae tecnologia. Trata-se de saber quais serão os mecanismos de decisãodessa planificação, se democráticos, a serviço dos interesses da maioria,ou se tecnocráticos, a serviço do capital.

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Esses e outros instrumentos de regulação constituem-se em mecanis-mos eficientes para atenuar ou até mesmo quebrar a lógica do capital.

A igualdade social – Nos países do capitalismo periférico, mas tam-bém em alguns avançados, o socialismo se verá confrontado não só com odesafio da socialização da riqueza, mas com o enfrentamento específicode gigantescos bolsões de pobreza. A resolução desse problema envolvesoluções estruturais, muitas das quais têm resultado no médio e longo pra-zo. Daí a necessidade de lançar mão de instrumentos emergenciais, aschamadas políticas compensatórias, que acelerem a resolução de gravessituações de desigualdade social. Cabe ao poder público um papel decisivonesse campo, por intermédio da reabilitação e sofisticação dos instrumen-tos de bem-estar social. Tributação progressiva que permita consistentespolíticas sociais que beneficiarão os trabalhadores – educação, saúde, ha-bitação, transporte, saneamento, cultura e lazer.

Mais que políticas salariais justas, cabe ao Estado impulsionar umanova política de rendas.

O mundo do trabalho – O socialismo do século XXI deve enfrentar aquestão da alienação do trabalho. A despeito do crescimento da produti-vidade ancorado nas prodigiosas inovações tecnológicas, a jornada detrabalho está, com algumas exceções, estancada há quase 40 anos. Re-duções drásticas da jornada de trabalho se impõem, não só para absor-ver cerca de 1 bilhão de desempregados no mundo inteiro, como parapropiciar a homens e mulheres mais tempo livre a ser utilizado para odescanso, a educação, a cultura e a participação cidadã.

As experiências do mundo fabril no socialismo real contribuíram paraa persistência da alienação do trabalho, na medida em que homens emulheres viviam em seus locais de trabalho um regime tão ou mais des-

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pótico do que aquele da fábrica taylorista. É sintomático que o capitalistatenha compreendido antes que os socialistas, digo compreendido prati-camente, que isto contribuía negativamente para a produtividade, e te-nha sido ele mesmo, o capitalismo, que propôs novas formas de sociabi-lidade fabril que estimulavam a criatividade e uma visão de conjunto dostrabalhadores sobre os processos produtivos.

Novos paradigmas de desenvolvimento – A queda do Muro deBerlim permitiu descobrir, entre tantas outras, a tragédia ambiental que omodelo de desenvolvimento econômico havia provocado na URSS e naEuropa do Leste. A opção por uma industrialização acelerada e quereproduzia tardiamente e com idênticas perversões as clássicas revolu-ções industriais capitalistas, só que aqui conduzida pelo Estado, produziuum considerável dano ao meio ambiente.

O socialismo do século XXI incorporará em sua agenda a perspectivade um crescimento sustentado da economia, em que a preservação domeio ambiente assume uma dimensão estratégica.

A socialização da política – A razão maior do fracasso do socialismoreal, aparentemente localizado nas dificuldades de construção de umanova economia, situa-se em realidade na sua incapacidade de haver so-cializado a política. As experiências do socialismo real criaram regimesautoritários, quando não despóticos e totalitários, estruturados em tornodo par partido–Estado, ambos submetidos a mecanismos internosantidemocráticos. O controle do Estado pelo partido único institui duplacidadania, pois aos não-filiados ao partido está reservado papel absoluta-mente secundário na sociedade. A reivindicação do monopólio da repre-sentação da classe pelo partido–Estado conflita com a ausência de liber-dade sindical, de organização partidária, de imprensa e de expressão de

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uma maneira geral. As instituições políticas copiavam o parlamentaris-mo burguês sem o vigor deste e faziam dos mecanismos de participaçãopopular um mero simulacro democrático.

O socialismo do século XXI está diante do desafio de fortalecer si-multaneamente a democracia representativa, hoje sumamente debilita-da nos países capitalistas, e combiná-la com novos mecanismos dedemocracia direta. Nesse sentido, é possível desde agora, por meio deum processo de invenção política, estabelecer mecanismos de controlesocial do Estado que antecipam o socialismo e educam os cidadãospara ele. Aí se enquadram todas as formas de controle social das polí-ticas públicas por conselhos e outros organismos, bem como, e sobre-tudo, os orçamentos participativos em esferas setoriais, municipais,regionais e nacionais. Essas experiências não podem ser encaradascomo panacéias nem devem ser entendidas como auto-aplicáveis. Elasexigem uma sociedade de alta mobilização social, sob pena de criaremnovas instâncias vazias de conteúdo.

Exploração e opressão – A experiência do socialismo no século XX

mostrou que o fim ou a atenuação da exploração não elimina os múltiplosmecanismos de opressão herdados da sociedade anterior, em alguns ca-sos reproduzidos no novo regime. O combate a todas as formas de dis-criminação de gênero, orientação sexual, etnia, religião ou aos portado-res de deficiência física e mental antecede ao socialismo. Se este é en-tendido também como um processo de radicalização da democracia,construída a duras penas nos últimos dois séculos, é de supor que eletenha como meta a eliminação de todas as formas de constrangimentosocial que se exercem contra grupos minoritários ou não. O socialismodo século XXI deve ser um choque de liberdade não só através do respei-to ao Estado de direito, mas igualmente pela criação de um espaço públi-

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co que será a fonte ininterrupta de criação de novos direitos. É isso quedará à democracia um sentido dinâmico, diferente da perspectiva demo-crática propugnada por um liberalismo que, com freqüência, desliza parao conservadorismo.

Socialismo, cultura e conhecimento – O socialismo do século XXI

implica a desconcentração do saber, o que ganha particular importância,tendo em vista que o mundo cada vez mais ingressa em uma sociedadedo conhecimento. Deverá impulsionar uma ampla socialização dos bensculturais. Esses dois aspectos foram sem dúvida um dos pontos positivosde muitas experiências do socialismo do século XX, na medida em quepromoveram nesses países massivos processos de educação e acessode setores sociais aos tesouros da cultura produzidos pela humanidade.Diferentemente dessas experiências, no entanto, e sublinhando o seulimite, a socialização do conhecimento e dos bens culturais deverá se darem um marco de mais absoluta liberdade de criação, de expressão e decrítica, sem o que não existe produção artística ou científica.

Abertura para o mundo no plano da criação artística e da pesquisacientífica não impede processos de valorização e exposição da produçãocultural nacional e regional, especialmente aquela que permanece ocultapor não se enquadrar nos cânones da indústria cultural ou do chamadomercado cultural.

Sujeitos sociais – O socialismo do século XXI exigirá finalmente umaprofunda reflexão sobre os sujeitos sociais que estarão presentes em suaconstrução. O mundo do trabalho passou por profundas modificaçõesquantitativas e qualitativas nos dois últimos séculos. Os mais de 150 anosdecorridos depois do Manifesto comunista mostraram que a universali-dade abstratamente atribuída à classe operária nem sempre coincidia

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concretamente com o papel histórico que ela desempenhava em distin-tas conjunturas, como ficou claro na Primeira Guerra Mundial.

A substituição da classe pelo partido, que Lenin propugna já em 1902,expressa, ainda que distorcidamente, a percepção desses desencontros doproletariado com a história. A despeito disso, as grandes transformaçõesprogressistas que a humanidade viveu foram, no essencial, resultantes daação das classes trabalhadoras. Resta saber se a noção de trabalhadoresno século XXI não se amplia, se a eles não se pode somar outros setores,excluídos e incluídos, que objetiva e subjetivamente se sintam representa-dos por um programa de mudanças de direção socialista.

Partido e movimento – Da mesma forma coloca-se o problema dosinstrumentos políticos de transformação social. O que antes se resumiaexclusivamente à questão da existência de um partido dotado de identi-dade política e doutrinária próprias, homogêneo, quando não monolítico,ideologicamente centralizado militarmente, pois feito como indicavam as21 condições para ingresso na Internacional Comunista em 1920, paraenfrentar um período de guerra civil generalizado. Ao lado desses parti-dos conviverão sindicatos, centrais operárias e movimentos sociais quenão só não serão correia de transmissão deles, como deverão possuiruma visão abrangente dos problemas nacionais e internacionais, refletin-do a racionalidade própria aos interesses dos seus integrantes.

Essa diversidade de atores e de instrumentos dará necessariamente aosocialismo uma dimensão ampla, democrática e pluralista, e se constitui-rá em um poderoso antídoto às tentações totalitárias.

O processo – A luta pelo socialismo envolve em muitos países, e esteé o caso brasileiro, uma curiosa relação com o capitalismo realmenteexistente no país. Um programa de transformações centrado em refor-

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mas econômicas de cunho fortemente redistributivista, que exija umareorientação importante do modelo de desenvolvimento, associadas aum processo de radicalização da democracia e de defesa da soberanianacional com a correspondente assignação de um novo lugar para oBrasil no mundo, pode ter pouco a ver com o socialismo e ser até enten-dido como um projeto de fortalecimento do capitalismo brasileiro. Essasreformas, consolidando abstratamente o capitalismo no Brasil,desestabilizam-no concretamente, sempre e quando as mudanças foremresultado de intensa mobilização social.

Abre-se então um processo continuado de transformações em que asconquistas parciais preparam novas conquistas e sinalizam que as possi-bilidades de reformas profundas deixam o terreno das possibilidades paratransformar-se em viabilidades.

Para tanto, e especialmente no plano das transformações internacionais,deve-se estabelecer uma dialética entre a consciência dos constrangimen-tos e a vontade política de vencê-los. Política é ação, e por maiores quesejam suas exigências de racionalidade há uma margem para decisão eação transformadoras da vontade humana. As enormes vicissitudes porque passou o socialismo no século XX não significam que lhe esteja reser-vada uma perspectiva sombria para o futuro. Antes que o socialismo che-gasse ao ponto crítico do período 1989-1991, Eric Hobsbawm escreveu:“A função da busca de uma sociedade não é pôr um ponto final na Histó-ria, mas abrir suas possibilidades desconhecidas e incognoscíveis a todosos homens e mulheres. Nesse sentido, a estrada que leva à utopia não estáinterrompida, felizmente, para a espécie humana.”

Há mais tempo, referindo-se a seus poemas dos anos 1940, impregnadosdo sentimento do mundo, que o levou bem mais próximo do socialismo, CarlosDrummond de Andrade disse que “algumas ilusões feneceram, mas o sen-tido moral é o mesmo”. E como concluiu o poeta, “aqui está dito tudo”.

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Marxismo e democracia:um novo campo analítico-normativo para o século XXIJuarez Guimarães

Não é difícil constatar que o debate acadêmico contemporâneo sobrea democracia ou sobre a república em geral prescinde do marxismo en-quanto fundamento, sequer como interlocutor ou até mesmo como opo-nente crítico.

Há razões de ordem histórica e de cultura política que sustentam estefenômeno. O modo como se processou o fim dos sistemas de poder doLeste Europeu expressou uma vitória do capitalismo, seus valores e ins-tituições. Por sua vez, o ponto de saturação do horizonte da cultura con-temporânea pela visão de mundo liberal reduziu o espectro da imagina-ção política a uma interlocução entre correntes no interior de seusfundamentos de civilização.

Creio que há uma terceira razão, porém, de ordem teórica, que está nabase deste fenômeno, interno ao próprio campo do marxismo, que dizrespeito à sua congênita dificuldade de estabilizar um campo analítico-normativo coerente de crítica ao capitalismo. A crise do marxismo éhistoricamente bem anterior aos acontecimentos da última década e, emvez de ser deles mera conseqüência, está também na própria base des-

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ses fenômenos. Assim como a URSS ruiu de dentro para fora sob a pres-são do capitalismo, também as cidadelas do chamado marxismo ortodo-xo (em sua sistematização mais extremada, o marxismo-leninismo) haviamsido cindidas e desorganizadas pela pressão da visão de mundo liberal. Efoi em torno e a partir do tema da democracia, da incompatibilidade defundamentos entre a realização das promessas emancipatórias do mar-xismo e a liberdade, que essa erosão do campo teórico do marxismoinstituiu-se e se alastrou.

Se estamos corretos nesta avaliação, a reentrada do marxismo no de-bate contemporâneo sobre a democracia deve percorrer necessariamenteum duplo percurso crítico, o da polêmica com o liberalismo e a recons-trução do seu campo analítico-normativo. Este esforço para reposicionaro marxismo no debate contemporâneo sobre a democracia, sempre tri-lhando este duplo processo crítico e autocrítico, passa a nosso ver portrês desafios:

• superar a interdição liberal que pesa sobre o marxismo acerca daincompatibilidade de fundamentos com a democracia, isto é, demonstrara possibilidade de convivência entre marxismo e democracia;

• demonstrar a centralidade do marxismo para refundar um campoanalítico-normativo do marxismo que projete a superação dos impassescontemporâneos da democracia;

• inverter, em conseqüência, a afirmação de Norberto Bobbio de que háuma relação de necessidade entre liberalismo e democracia, demonstran-do os fundamentos de dominação que presidem esta visão de mundo.

Marxismo crítico e reinvenção do socialismo – Se são várias as visõesde mundo anticapitalistas (conservadorismo de fundo romântico,milenarismos e ideações utópicas, anarquismo), são também múltiplas asfontes da tradição socialista (associativismo das guildas, marxismo,

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comunitarismo cristão e até mesmo os chamados “socialismos liberais”ou liberal-socialismos, que vão desde o último John Stuart Mill até certascorrentes do pensamento italiano no século XX).

Mas é certo que foi em torno da tradição marxista que se organiza-ram as correntes anticapitalistas e socialistas de maior continuidade,influência e impacto nos dois últimos séculos. Não por acaso, mas portrês razões fundamentais: na origem do marxismo estavam três com-plexos culturais ricamente configurados na aurora da modernidadecapitalista (o idealismo alemão, a economia política inglesa e os jovensmovimentos socialistas); seu campo analítico mostrou-se particular-mente fértil e heuristicamente produtivo e, além disso, sua organicidadeao moderno movimento operário europeu forneceu-lhe um caminho deexpansão internacional.

Mas já aprendemos também que a cultura do marxismo foi desde sem-pre plural. A própria noção de marxismo ocidental contraposta à noçãode marxismo russo é insuficiente para captar este pluralismo. AndrewArato já localizava na cultura marxista da II Internacional pelo menoscinco diferentes e alternativas fundamentações filosóficas do marxis-mo1. De novo aqui, porém, é possível afirmar que foi a tradição do mar-xismo russo a que exerceu uma condição quase estruturante do marxis-mo na maior parte do século XX, não apenas em relação a seu corpodogmático (o chamado marxismo-leninismo), mas também em relação àsua crise (as várias vertentes do trotskismo, o euro-comunismo, oalthusserianismo, o maoísmo foram também configurados em relação asuas problemáticas e impasses).

O que parece ter se esgotado na última década de 1990 não foi omarxismo, mas a perspectiva de compreender os seus dilemas a partirde uma ótica russa, isto é, a partir de outubro de 1917 e seus desdobra-mentos históricos e culturais. Mais precisamente, a cultura terceiro-

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internacionalista em seu pluralismo interpretativo. Não se trata de arqui-var Outubro, esconjurar o demônio bolchevique, dar razão em últimainstância a Kautsky ou Bernstein. O que equivaleria a interpretar ummomento crucial do impasse do marxismo a partir de um outro momentodecisivo de sua crise, as variantes reformistas da II Internacional. Masler a própria grandeza e tragédia de 1917, suas conquistas e fracassos, apartir de um ponto de vista marxista mais clássico e universalista.

O marxismo passa hoje por um processo de renovação e classicizaçãofundamental para os destinos do socialismo no século XXI. Um retorno aMarx diverso daquele dos anos da desestalinização, menos dogmático etensionado para descobrir exegeticamente a verdadeira leitura ou a filo-sofia em ato na obra de Marx. Trata-se de um “marxismo crítico”, naboa expressão de Michael Löwy2.

Se a década de 1990 foi marcada pelas respostas à crise do neoli-beralismo ainda no campo do horizonte liberal (as chamadas terceiras-vias), o que se trata hoje é de começar a configurar os fundamentos dealternativas ao neoliberalismo a partir de valores, dinâmicas e perspecti-vas de um socialismo democrático renovado.

A seguir, apresentaremos três teses desta renovação do marxismo, relacio-nadas a temas-chave para a renovação de um projeto socialista neste sécu-lo. São elas: marxismo e princípio da liberdade, marxismo e princípio dasoberania popular ou republicanismo e marxismo e princípio de civilização.

Marxismo e princípio da liberdade – Após pouco mais de um sé-culo e meio de sua história, a cultura do marxismo ainda não estabilizouteoricamente uma resposta convincente e adequada ao princípio da li-berdade, chave para se pensar o futuro do socialismo. Foi em torno doslimites, inconsistências ou mesmo problematicidade das respostas mar-xistas a este princípio que o liberalismo centrou a sua crítica.

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O princípio da autodeterminação está posto no centro da síntese deMarx3. Não deveríamos desvalorizar esta conquista ético-política, atode verdadeira fundação do socialismo moderno, atualização do princí-pio rousseauniano da autonomia no solo da modernidade capitalista. Aíestá a distância maior entre Marx e Hegel, e não na oposição materia-lismo/idealismo, como muito bem observou Lenin em seus Cadernosfilosóficos. E, ao mesmo tempo, está aí o ponto estruturante da deli-mitação do marxismo ante a insuficiência histórica inarredável do con-ceito liberal de liberdade, preso ainda à condição heterônoma do Esta-do e do mercado.

Mas a questão é: a obra teórica de Marx contém um desenvolvimentoteórico adequado, conceitualmente coerente deste princípio da autode-terminação? Pensamos que não, já que ela não supera as tensõesdeterministas na sua visão da história, seja através de uma filosofia dahistória, de uma teoria da história ou de uma ciência da história.

A inteligência da grande crítica liberal ao marxismo foi de fixar a leitu-ra da obra de Marx como sendo coerentemente determinista e, a partirdaí, erigir metódica e logicamente a sua incompatibilidade com a noçãode democracia. Como a cultura do marxismo foi, desde as suas origens,predominantemente determinista, os próprios marxistas pareciam darrazão à crítica liberal.

Como os liberais formularam, a partir do determinismo, a incompatibi-lidade entre marxismo e democracia? Estudando a crítica de BenedettoCroce, Max Weber, Karl Popper e Norberto Bobbio, de diferentes épo-cas e densidades teóricas, elaboramos esta incompatibilidade a partir detrês impasses: da antinomia, do carecimento e da inversão4.

Da antinomia: se o destino da sociedade está fixado a priori, então oshomens não podem livre e coletivamente escolher o seu futuro e a pró-pria noção de democracia perde o seu sentido.

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Do carecimento: a pretensa cientificidade da previsão do futuro socialpelo marxismo neutraliza a dimensão ético-moral, encerrando os marxis-tas em uma cega ética das convicções. Assim, estas visões deterministasacabaram por reduzir o princípio da liberdade no marxismo a uma ade-são às leis imanentes do mundo, a consciência reduzida à ciência, o atoético-moral da escolha amesquinhado à opção pelo que seria, afinal, vi-torioso. É significativo que um filósofo do porte de Plekhanov tenha che-gado a definir o marxista como uma espécie de anti-Hamlet, um ser queage movido incólume ao esclarecimento que só a dúvida permite5. Porsua vez, o economicismo que expressa o determinismo anula ou reduz ocampo e a dignidade da política. O esvaziamento ou o empobrecimentoda reflexão política teria feito com que a teoria marxista nunca tivessesido capaz de pensar plenamente o Estado, omitindo-se quanto a respos-tas mais elaboradas dirigidas a conter o potencial opressivo da concen-tração do poder político. Além disso, a pretensão de cientificização dapolítica introduz um viés necessariamente antipluralista, já que a umaposição científica se oporiam as demais, vistas como falsas ou não ver-dadeiras ou simplesmente anticientíficas.

Da inversão: o futuro estando determinado, valeriam para alcançá-lotodos os meios, mesmo os que contradissessem provisoriamente os valo-res humanistas. O caminho estaria aberto para o percurso que vai deuma visão instrumental dos valores ao anti-humanismo. Professando umideal finalista da história, coletivista, organicista, o marxismo teria se fe-chado ao desenvolvimento de uma concepção moderna de individualida-de e, no limite, à própria valorização dos direitos humanos. Ali onde todateoria da emancipação humana deveria expandir-se, agigantar-se, fe-cundar-se, refinar-se – o terreno da formação da autonomia individualvinculada a valores emancipatórios – o marxismo, em suas formas domi-nantes, apequenou-se, aprisionou-se, esterilizou-se, embruteceu-se.

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O caminho para desmontar a interdição liberal é questionar a leituraliberal da obra de Marx como sendo coerentemente determinista. Estequestionamento só pode ganhar credibilidade se reconhecemos na traje-tória intelectual de Marx, variando de fontes e dimensões, a existência,nunca de todo superada, de tensões deterministas6. Estas tensões resul-taram, em grande medida, do diálogo crítico de Marx com os grandescomplexos científicos culturais de seu tempo: a filosofia alemã, a econo-mia política inglesa, o materialismo francês – marcados pela visãodeterminista da história7. A dimensão crítica do diálogo de Marx comestas fontes protege, no entanto, seu campo teórico de uma coerente erematada visão determinista da história8. Por outro lado, faz conviverem seu campo analítico-normativo – nunca plenamente desenvolvido doponto de vista conceitual – uma visão praxiológica da história, de que oshomens constroem coletivamente a história, embora profundamente con-dicionados por sua cultura, sua posição de classe, pelo nível de desenvol-vimento das forças produtivas.

O desenvolvimento conceitual pleno de uma visão praxiológica da his-tória permitiria tornar possível e compatível a relação entre marxismo edemocracia, superando os três impasses antes referidos. Mas foi apenascom a rede de conceitos elaborados por Antonio Gramsci nos Cadernosdo cárcere, 70 anos após a edição do primeiro volume de O capital, queo campo teórico do marxismo conseguiu romper com o determinismohistórico e desenvolver, em um novo patamar, os fundamentos do quechamamos uma concepção praxiológica da história.

Em uma das passagens mais líricas e dramáticas dos Cadernos, Gramsci,fazendo alusão a Poesia e verdade, de Goethe, relembra a figura de Pro-meteu, que, separado dos deuses e contando apenas com suas própriasforças, povoou um mundo9. A imagem lembra a solidão – esta separaçãoradical dos dogmas e certezas – da reflexão de Gramsci no cárcere.

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O campo teórico do marxismo reconstruído por Gramsci tem em seu cen-tro o conceito de hegemonia, que nucleia uma cadeia coerente de outrosconceitos, como as noções de bloco histórico, de “revolução passiva”, decrise orgânica, de intelectual orgânico e de vontade coletiva, os quais, comocritérios de interpretação histórica, fornecem instrumentos analíticos macrosde compreensão da dinâmica das sociedades a partir da práxis coletiva dosatores sociais10. O fato de a reflexão de Gramsci não estar sistematizadaformalmente, compondo-se de uma teia de pensamentos formulados emclaro estágio formativo e em regime de tensão criativa, deveria protegeraqueles que se apóiam em suas reflexões da tentação de erigir umgramscianismo como ponto de chegada, dogmatizar a obra de Gramsci.

O desenvolvimento conceitual de uma visão praxiológica da históriapermitiria tornar possível e compatível a relação entre marxismo e de-mocracia, superando os três impasses antes referidos. Em primeiro lu-gar, a noção de história aberta com base no resultado nunca plenamenteprevisível (embora não indeterminado plenamente ou puramentecasuístico) do choque das vontades coletivas organizadas nas socieda-des. Assim, é exatamente a dimensão da política que é a chave de umaconcepção de mudança histórica, tornando possível a retomada de umrico diálogo do marxismo com as várias tradições da filosofia política.

Em segundo lugar, a descientificização da autocompreensão do mar-xismo e a sua concepção como uma teoria ou visão totalizante do mundosocial que pretende construir um novo campo civilizatório a partir dacrítica do liberalismo e da civilização do capital. Em suma, a sua com-preensão como filosofia da práxis transformadora, como sinteticamentepropôs Gramsci, retoma a dimensão do seu significado ético-político comohumanismo radical e, ao mesmo tempo, o liberta de um viés antipluralista,auto-referenciado na cultura, autoproclamatório no programa e auto-su-ficiente no exercício do poder.

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E, por fim, se o futuro não é fixado a priori, o caminho da emancipa-ção, e não simplesmente a meta, torna-se fundamental. Passa a serestritamente necessária uma relação dialeticamente configuradora en-tre fins e meios, entre o caminho e o objetivo socialista, entre indivíduoe sociedade.

Chegamos assim à primeira tese: desenvolver um marxismo dota-do de uma visão praxiológica da história, conceitualmente consis-tente, é pois fundamental. É condição para recuperar uma dialéticaentre a liberdade individual e coletiva, uma dinâmica emancipadoraentre meios e fins, entre valores e racionalidades anticapitalistas.

Esta visão praxiológica permitiria desenvolver plenamente o valor daautonomia como fundamento da liberdade individual no campo do mar-xismo. É interessante como a noção de autonomia, de origem na matrizrousseauniana, repõe a noção de liberdade para além do dilema entre“liberdade positiva” e “liberdade negativa”, como formulado por IsaiahBerlin. E refaz uma lógica mutuamente configuradora entre liberdade eigualdade, já que a dominação econômica tanto quanto a opressão políti-ca podem ser fontes da heteronimia. Assim, é evidente que, se o capitalé, nos seus próprios termos, uma relação de dominação, um conceitopleno de autonomia individual é potencialmente anticapitalista11.

O tema da autonomia permitiria acolher com centralidade três temasda fronteira do século XXI. O primeiro deles, a atualização do questio-namento ao próprio princípio do capital, isto é, da apropriação privadapara fins de lucro dos ganhos permitidos pela ciência e a sua destinaçãoao aumento do tempo socialmente livre do trabalho necessário, comocondição para a superação dos limites da divisão de trabalho. Em segun-do lugar, a cultura do direito à diferença e os seus temas derivados – o

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pluralismo de valores de civilização, estético e cultural, a liberdade deopção sexual, a resistência aos padrões agressivamente normatizadoresda personalidade. Enfim, a participação cidadã nos destinos da comuni-dade como princípio político estruturante. Isto nos leva à segunda tese, ada relação entre marxismo e republicanismo.

Marxismo e princípio da soberania popular – Foi na experiênciada Revolução Russa que se cristalizou, no plano histórico e teórico, acisão entre o princípio da ditadura do proletariado e o princípio da sobe-rania popular. Na crítica aguda de Rosa Luxemburgo, a dissolução daAssembléia Constituinte (e a não convocação de uma outra) foi traduzidapela direção bolchevique não como um limite da revolução (a não ade-são das maiorias), mas como uma virtude. Em Lenin, esta cisão se apre-senta como a crítica da democracia burguesa por meio da oposição in-conciliável entre democracia direta e representativa e na defesa da legi-timidade da restrição ao direito de voto dos burgueses, que ele concebiaexplicitamente como necessidade advinda da particularidade russa. EmStalin, a tensão substitucionista de Lenin já se cristalizou em torno dateoria do partido único, amalgamado ao Estado. Em Trotsky, em A revo-lução traída, a democracia operária concebida como pluripartidária éformulada de modo insuficiente como antídoto à burocratização.

O conceito de ditadura do proletariado, embora com oscilações desentido, Estado–comuna ou Estado centralizado da transição ao socialis-mo, está, no entanto, em Marx12. O princípio da legitimidade deste Esta-do de transição está ancorado na noção da universalidade do proletaria-do, classe definida imanentemente como revolucionária porque interes-sada objetivamente no comunismo. Mas em Marx, na experiência daComuna parisiense, a contradição entre o poder revolucionário e o prin-cípio da soberania popular não está aflorado, já que a Comuna foi eleita

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por sufrágio universal. Essa contradição aflorou “externamente” à ex-periência no cerco à cidade revolucionária, com a ausência do apoio dasmaiorias camponesas13.

Mas como Marx elaborou a noção do proletariado como classe univer-sal? Esta noção foi elaborada nos anos 1840, em particular no seu diálo-go crítico com Hegel, na passagem do seu rousseaunismo de origem,pensado do alto da filosofia alemã, para o comunismo. A importânciadeste diálogo crítico para o futuro da obra de Marx desmente as leiturasque pretendem isolar o Marx “maduro” do “jovem” Marx, uma faseideológica de uma outra científica ou simplesmente “marxista” e “pré-marxista”. Trata-se claramente de um momento genético de síntese, dedelimitação e de constituição de uma primeira identidade, do lançamentode uma perspectiva e de uma problemática que, se estão ainda longe deencontrar uma maturação conceitual, nunca serão negadas no itineráriointelectual de Marx.

No centro das reflexões de Marx em Para a crítica da filosofia dodireito de Hegel (1843) e Para a crítica da filosofia do direito de Hegel-Introdução (1844) estão as relações entre a política e o econômico-social ou, na linguagem da filosofia política, entre Estado e sociedadecivil. A doutrina liberal formulou conceitual e programaticamente a no-ção da separação entre Estado e sociedade civil, definindo a próprianoção de liberdade a partir da autonomia desta última, de sua prioridadeontológica ante o Estado, de suas prerrogativas, limites e controle dopoder do Estado. Assim, a noção de liberdade ganhou um sentido nega-tivo, como sendo o espaço livre de constrangimento do indivíduo em facedo poder estatal. Historicamente, a crítica marxista à doutrina liberalincidiu centralmente sobre o limite, o formalismo, a incompletude da di-mensão política (estatal) da liberdade, repondo o sentido social da eman-cipação, a dimensão da igualdade social como fundamento da verdadei-

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ra liberdade, maximizando a noção não do limite, mas do controleou absorção do poder do Estado pela sociedade emancipada ouautogovernada.

Ora, a nosso ver, o grande problema desta crítica marxista à doutrinaliberal está não propriamente nos seus termos de crítica, já que é possí-vel demonstrar com evidência mais que suficiente que o domínio do ca-pital impõe severos limites à liberdade e à igualdade dos cidadãos nocapitalismo. A sua falha está em não fazer a crítica de raiz do funda-mento da visão liberal de sociedade, que trabalha analítico-normativamentecom a noção de separação entre Estado e sociedade civil. A origemdeste erro remonta aos próprios anos de nascimento do marxismo, dacrítica de Marx à filosofia hegeliana do Estado que coincide com a suadelimitação original em relação ao liberalismo.

Para termos uma visão da inadequação ou desequilíbrio conceitual docampo analítico-normativo que Marx elabora neste período decisivo – eque se projetaria duradouramente na sua obra –, é preciso repor os trêspólos do debate, isto é, a tradição liberal (traduzida aqui na teoria lockianajusnaturalista e contratualista), Hegel e Marx.

Em Locke, o momento ético-político da fundação do Estado, criticamen-te aos motivos teológicos do absolutismo monárquico e alternativamente àracionalização hobbesiana, é recomposto em um argumento que parte dosdireitos naturais e vê a passagem da sociedade natural para a sociedadecivil através de dois pactos, o de associação e o de submissão. No argu-mento de Locke, a sociedade precede o Estado (inclusive com a existên-cia da propriedade e do dinheiro) e, contra ele, estipula-lhe os limites edelimita as suas prerrogativas. No século XVIII, a economia política inglesaconfere um estatuto de cientificidade à separação entre Estado e socieda-de civil, teorizando o automatismo do funcionamento do mercado que es-trutura a sociedade civil. No século XIX, o utilitarismo atualiza a filosofia

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liberal ante o descrédito do jusnaturalismo sem, no entanto, rever a suaconcepção da relação entre Estado e sociedade civil.

Hegel, em Fundamentos da filosofia do direito (1821), culmina um de-senvolvimento teórico que tem início em Sobre as maneiras científicas detratar o direito natural (1802), no qual faz a crítica de Grotius a Rousseau(empiristas) e Kant e Fichte (formalistas). Hegel critica o método e a estru-tura do jusnaturalismo, no qual vê as inconsistências do princípio atomístico,da determinação arbitrária da natureza humana e a unidade externa entreEstado da natureza e Estado de direito. Na ausência do princípio da eticidade,haveria uma “unidade formal que passa sobre a multiplicidade e não a pene-tra”. Em Fundamentos da filosofia do direito, Hegel consolida a sua evo-lução de um organicismo de origem, que vê unidade entre Estado e naturezapara uma concepção que acolhe a liberdade da vontade14.

Em síntese, em Hegel o momento ético-político é pensado especulativae metafisicamente por meio de uma razão que realiza a síntese entre aliberdade objetiva e a liberdade subjetiva, denunciando a capacidadedo mero contrato para estruturar a sociabilidade. Em seu sistema, aeticidade penetra os diversos momentos, o da unidade irreflexiva (fa-mília), o de um semidesenvolvimento (na sociedade civil, composta pelosistema de necessidades, pelo sistema de lei e de justiça, pela polícia ecorporações) e um desenvolvimento pleno no Estado (Constituição,Coroa, burocracia, Legislativo). Por essa via, Hegel nega tanto oautomatismo do mercado quanto a prioridade ontológica da sociedadeem relação ao Estado, enfatizando a unidade entre Estado, família esociedade civil a partir da eticidade.

Em Marx, convergem a crítica do caráter especulativo do momentoético-político, a crítica à inconsistência, de fundo teológico, da defesahegeliana da monarquia constitucional e a crítica ao modo como Hegelformula a reconciliação dos interesses conflitantes da sociedade civil na

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eticidade estatal enquanto um universal. Mas qual a relação entre Esta-do e sociedade civil que resulta desta tripla crítica de Marx ao sistemahegeliano? Em síntese, a eticidade se objetiva em um primeiro momento(1843) na figura do demos total e, depois (1844), no proletariado. Asociedade civil, a partir do método feuerbachiano da inversão ou métodotransformativo, precede ontologicamente ao Estado15. Enfim, a emanci-pação social leva à superação do Estado político, a superação da cisãoentre o burguês e o cidadão, entre Estado e sociedade civil16.

Quais seriam, em síntese, os problemas do campo analítico-normativoresultantes da crítica de Marx a Hegel? Em primeiro lugar, a desvaloriza-ção ou negação do princípio ético-político como momento-chave de funda-ção e de solda do Estado e da sociedade civil. Em segundo lugar, o estabe-lecimento de uma prioridade ontológica da sociedade civil diante do Esta-do, que na cultura do marxismo fixar-se-ia no dualismo base-superestrutra.Por fim, a determinação empírica de uma nova eticidade no proletariado,que ganha assim uma projeção metafisicamente revolucionária na história.

Uma crítica à concepção hegeliana do Estado que não perdesse as suasconquistas metodológicas na crítica ao liberalismo deveria trabalhar com oconceito de Estado integral. E aqui estamos seguindo as pistas de Gramscinos Cadernos do cárcere, desenvolvendo o seu campo analítico-normativo:

• um campo ético-político hegemônico, historicamente configurado porvontades políticas socialmente organizadas por intermédio de uma redede intelectuais orgânicos;

• instituições estatais organizadas a partir do ponto de vista de umaeticidade política hegemônica (Estado, no sentido estrito de máquinagovernativa e repressiva);

• instituições privadas, organizadas de acordo com a eticidade políticahegemônica, configurando a sociedade civil, a qual inclui o mercado ou asua “anatomia”, como afirma Marx.

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O Estado seria, então, a unidade contraditória entre Estado (no sentidoestrito) e sociedade civil, historicamente configurados. Ressalte-se queneste campo analítico-normativo a dimensão internacional deve ser in-corporada como momento fundante, já que a eticidade de qualquer Esta-do nacional participa ou se relaciona com a eticidade configurada mundial-mente; todo Estado participa de um sistema de Estados e o mercado decada país relaciona-se com o sistema capitalista mundial17.

Com esta concepção de Estado seria possível requalificar a crítica domarxismo ao liberalismo e a sua própria concepção das relações entredemocracia e socialismo.

Em vez de opor a dimensão social da emancipação ao caráter mera-mente político da liberdade na doutrina liberal, tratar-se-ia de opor àeticidade política liberal um outro campo ético-político que requalificassea própria natureza das instituições estatais e privadas que organizam avida social. Este campo ético-político teria assim uma componente dereestruturação das instituições estatais de modo a favorecer a socializa-ção do poder, ao invés do elitismo congênito ao liberalismo, e de organi-zar a vida social a partir de uma expansão inaudita da esfera pública edos direitos em detrimento da lógica particularista do capital. Estas duasdimensões seriam pensadas como necessariamente configuradas, isto é,não pode haver superação do particularismo mercantil sem socializaçãodo poder e este pressupõe, por sua vez, uma lógica de publicização dadinâmica econômica. Elas conformariam, por sua vez, um contexto depotencialização máxima ao plano do desenvolvimento da individuaçãoem um novo campo de civilização.

Chegamos, enfim, à segunda tese: a universalidade contrapostaao particularismo do capital não pode ser pensada a partir de umadimensão imanente ao proletariado. Esta universalidade só pode

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ser pensada no plano ético-político, projetual, programático nosentido amplo do termo. Este universalismo projetual só pode al-cançar legitimidade se elaborado a partir do critério da soberaniapopular, das maiorias ativamente políticas no seio de um pluralismoirrestrito, já que não há apenas um projeto de socialismo, nem se-quer a ciência expulsando a opinião e a ética da política. Isto sig-nifica retornar o marxismo ao solo do republicanismo, levando paraeste toda a potência crítica do seu anticapitalismo.

Que o proletariado, por se definir pela própria contradição com o capi-tal, seja a classe potencialmente mais em condições de vir a desenvolverprojetos alternativos ao capitalismo não faz dele necessariamente umaclasse universal nem revolucionária. Não pode haver aqui nenhumdeterminismo sociológico, automático ou mesmo mediado.

Significa isto render o marxismo às “regras do jogo”, como quer Bobbio,retirar dele qualquer veleidade revolucionária? Não, porque republica-nismo não é liberalismo; este na maior parte de sua história rejeitou oprincípio da soberania popular e, quando teve que o absorver, o fez pormeio das teorias do chamado elitismo democrático. Significa apenas queo caminho para a construção de um novo Estado deve incorporar desdejá o princípio legitimador das maiorias ativas.

Este princípio legitimador das maiorias ativas, em regime de pluralismoe de liberdades, poderia alavancar uma nova fase histórica de ofensivacontra os direitos do capital. O estabelecimento dos direitos sociaisdeu-se historicamente sob a dinâmica macropolítica e macroeconômicado Estado de bem-estar social. O grande limite destas lutas foi sempreo direito de propriedade e o controle pelo capital da ciência, que lhepermitiu acomodar as tensões distributivistas do capitalismo com o cres-cimento da mais-valia relativa. Trata-se no século atual de, a partir de

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um setor público democraticamente gerido e socialmente controlado,expandir os direitos da maioria sobre o capital, incidindo inclusive cen-tralmente sobre o eixo que vai do controle da ciência à apropriaçãosocial das inovações, regulando e tributando os fluxos do capital finan-ceiro, estabelecendo novos marcos redistributivos e expandindo a co-bertura dos direitos18.

Marxismo e princípio de civilização – Marx deve, em grande me-dida, a perenização da sua obra ao fato de ter revelado o princípio davalorização do capital e da mercantilização da vida como estruturante dacivilização capitalista. Há, neste sentido, no centro de sua obra uma crí-tica à civilização do capital e a indicação de um outro tipo de civilizaçãouniversalista em que a sociabilidade humana fosse estruturada pela não-dominação e pelo tempo livre. Os limites da sua visão alternativa decivilização eram de época, configurados pelo etnocentrismo, pela ausên-cia de uma cultura feminista, ecológica, por um pensamento ainda con-servador no plano da sexualidade.

Ao se territorializar em sociedades em que o capitalismo não havia sedesenvolvido – URSS, China, Cuba etc. – o marxismo viu questionada asua capacidade de pensar em civilizações para além do capitalismo. Emparticular, o marxismo foi rebaixado à condição de propositor de umoutro modo de produção no qual a estatização e o plano central substitui-riam a anarquia do mercado. O produtivismo, a confiança sem reservasno progresso das forças produtivas, uma certa apologética do trabalhofizeram, então, escola no marxismo.

Foi principalmente na Teoria Crítica, nos autores da chamada Escolade Frankfurt, que o marxismo como crítica da civilização do capitalismoemergiu e se desenvolveu, não sem desequilíbrios valorativos e de diag-nóstico. Mas foi ali que o marxismo fecundou-se com a teoria freudiana,

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realentou a crítica à mercantilização do mundo e ao produtivismo, elabo-rou as primeiras críticas à cultura de massas, fez a crítica à cultura doprogresso e ao que havia de riscos no projeto iluminista de dominação danatureza, e abriu-se, através de Marcuse, às culturas libertárias de 1968.

Chegamos, enfim, à terceira tese: hoje, diante das realidades dachamada globalização ou mundialização do capital, a crítica deMarx à mercantilização do mundo e da vida ganha toda a atualida-de. Esta crítica, aliada ao princípio do multiculturalismo, do respei-to às diferenças de cultura, religião e modos de vida, pode assentaras bases de um novo internacionalismo socialista. Este internacio-nalismo, assim como se passou do princípio da ditadura do proleta-riado ao princípio da soberania popular, do reino do privatismomercantil à esfera pública, deve acolher o antiimperialismo em umavocação verdadeiramente universalista.

Em síntese, um marxismo que desenvolva o princípio da autonomia, dorepublicanismo e do universalismo antimercantil mutuamente configura-dos, pode vir a ser o campo estruturador de um relançamento da tradi-ção socialista democrática, por sua própria identidade, pluralista para oséculo XXI.

NOTAS1. ARATO, Andrew. “A antinomia do marxismo clássico: marxismo e filosofia”,

In: HOBSBAWM, Eric (org.) História do marxismo. Volume 4. Rio de Janeiro, Paz eTerra, 1984, p. 85. De acordo com o autor, o campo antinomicamente estruturadoda relação marxismo e filosofia “se estende desde uma filosofia da história (oumesmo uma ontologia) determinista, ligada tanto ao materialismo quanto aopensamento político clássico do século XVIII, e uma mais recente, mais cética emetodológica devoção à ‘ciência’, ligada ao ‘neopositivismo’, até duas varieda-des de neokantismo, baseadas respectivamente no primado do prático e do

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teórico, e até uma posição oscilante entre o historicismo das Geisteswissenchaftene o irracionalismo da Lebensphilosophie”.

2. Entre as obras mais recentes, que poderiam se encaixar nesta designação de“marxismo crítico”, encontram-se os livros de Daniel Bensaid (Marx l’intempestif.Grandeurs e misères d’une aventure critique (XIX et XX siècles), Paris, Fa-yard,1995; Daniel Brudney, Marx’s attempt to leave philosophy, Cambridge,Harvard University Press, 1998; Antoine Artous, Marx, l’état et la politique,Paris, Éditions Sillepse, 1999; Henri Maler, Congedier l’utopie. L’utopie selonKarl Marx., Paris, Editions L’Harmattan,1994; Michel Vadée, Marx, penseur dupossible, Paris, Meritiens Linck-Sieic, 1992; Michael Levin, Marx, Engels andliberal democracy, Nova York, Saint Martins’s Press, 1989; Miguel Abensour, Ademocracia contra o Estado. Marx e o momento maquiaveliano, Belo Horizon-te, Editora da UFMG, 1998.

3. Este é o grande valor da tese doutoral de Michael Löwy, La teoria de larevolucion en el joven Marx, México, Siglo Veintiuno Editores, 1972.

4. Ver o capítulo I, “O ardil do dogma: a crítica liberal”, em meu livro Democra-cia e marxismo: crítica à razão liberal, São Paulo, Xamã, 1999.

5. “Não há nada de surpreendente nisto: quando dizemos que um determinadoindivíduo considera a sua atividade como um escalão necessário na cadeia dosacontecimentos necessários, afirmamos, entre outras coisas, que a falta de livre-arbítrio equivale para ele à total incapacidade de permanecer inativo e queessa falta de livre-arbítrio se reflete na sua consciência como forma da impossi-bilidade de atuar de um modo diferente daquele como atua. É precisamente oestado psicológico que pode exprimir-se através da célebre frase de Lutero; ‘Herstehe ich, ich kann nicht anders’(‘Este é o meu conceito e outro não posso ter’);e graças ao qual os homens revelam a energia mais indomável e realizam asfaçanhas mais prodigiosas. Hamlet desconhecia este estado de espírito: porisso, somente foi capaz de se lamentar e de mergulhar na meditação. E, por issomesmo, Hamlet nunca poderia admitir uma filosofia segundo a qual a liberdadenão é mais que a necessidade feita consciência. Fichte dizia com razão: ‘Talcomo o homem é, assim é a sua filosofia.’ PLEKHANOV, George. O papel doindivíduo na História. Lisboa, Edições antídoto, 1977, p. 13.

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6. Há um deslocamento da problemática do determinismo ao longo da evoluçãodo pensamento de Marx, sendo incorreto, portanto, generalizar a partir da ênfaseexclusiva em um dado momento da obra. É possível delimitar – sem dar a estaperiodização um caráter rígido, inconsistente com uma reflexão que se enriquecepor sínteses sucessivas – três momentos: um primeiro até 1844, marcado ainda poruma nítida filosofia da história de inspiração hegeliana; um segundo, de 1844 até1857, caracterizado pela ênfase no caráter praxiológico da história, mas não desem-baraçado plenamente de visões deterministas; um terceiro período, enfim, de 1857até a elaboração de O capital, caracterizado por tensões fortemente deterministas,marcadas pelo seu diálogo crítico com a economia política.

7. É interessante, neste aspecto, como o liberal mais avançado do século XIX,John Stuart Mill, procura compatibilizar a sua noção de liberdade com uma con-cepção da história tipicamente evolucionista, influenciado diretamente porAuguste Comte. Ver MILL, J. S. “Elucidações da ciência da história”. In: GARDINER,Patrick. Teorias da história. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

8. Em relação ao seu diálogo com Hegel, embora mantenha a busca de umaracionalidade imanente da mudança histórica, Marx critica a sua hipostasia,afirmando que os homens fazem a história, mas em condições determinadas. Acrítica ao sentido especulativo das formulações hegelianas implica uma incor-poração densa dos elementos históricos, em particular em sua dimensãosocioeconômica. Além disso, Marx incorpora centralmente em sua teoria a idéiada auto-emancipação. No que diz respeito à economia política inglesa, Marxhistoriciza e critica a naturalização das categorias típicas do capitalismo, elaboraa objetivação mercantil através do conceito de fetichismo da mercadoria e supe-ra a noção de uma ordem econômica que tende ao equilíbrio. No que tange aomaterialismo tradicional, Marx crítica a ausência de um princípio ativo e, pormeio da noção de práxis, procura superar o dualismo materialismo/idealismo.

9. GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere (Edizione critica dell InstitutoGramsci. A cura de Valentino Gerratama). Turim, Giulio Einaudi Editore, 1975.Caderno 8, parágrafo 214, p. 1.073.

10. São exatamente estes conceitos capazes de absorver a lógica da açãocoletiva que faltam à sociologia weberiana, que admite apenas a ação individual

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como dotada de sentido. Esta lacuna conceitual certamente está relacionada àsperspectivas quase fatalistas de Weber sobre o desenvolvimento das tendên-cias burocráticas na sociedade moderna, bem como à sua descrença em relaçãoa uma democracia que vá além de um elitismo competitivo entre líderes.

11. É interessante, neste sentido, que um liberal como Robert Dahl, que tomaa sério a democracia como superação das formas de tutelagem sobre o indiví-duo, formule uma noção de democracia econômica na qual os trabalhadores deuma empresa deveriam ter o direito de eleger a sua direção (ver especialmente ocapítulo “O direito à democracia dentro das empresas”. In: Um prefácio à demo-cracia econômica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 1990).

12. A origem do termo “ditadura do proletariado” é de Auguste Blanqui em 1837e foi utilizado pela primeira vez por Marx nos anos 1850, imediatamente após areação conservadora aos movimentos revolucionários de 1848/1849. Ver A luta declasses na França e carta a Joseph Weidemeyer. O termo volta a ser utilizado porMarx nos anos 1871-1875, quando as perspectivas de poder dos trabalhadoresvoltam a entrar na agenda política. O sentido de um poder proletário como funda-mento da transição a uma sociedade sem classes é, no entanto, mais generalizadotanto na obra de Marx como na de Engels. Michael Levin nota que há na obra deMarx um duplo significado do Estado no período de transição: o modelo 1, no quala ênfase é colocada na ditadura do proletariado como poder centralizado em opo-sição ao poder de classe da burguesia, e o modelo 2, tipificado na Comuna deParis, no qual a máquina do Estado é absorvida pelas formas de auto-organizaçãosocial, superando-o enquanto uma entidade autonomizada do controle social. VerMarx, Engels and liberal democracy, capítulo VI, “Beyond bourgeois society”.

13. Esta observação importante, que diferencia substancialmente a experiên-cia da Comuna de Paris daquela da Revolução Russa, está em Marx, l’état et lapolitique, de Antoine Artous (p. 282). Ao contrário das leituras canônicas, opoder na experiência da Comuna de Paris não estava assentado em formas dedemocracia direta, mas em novas modalidades de representação, em rupturacom o conceito liberal.

14. Sobre o pensamento político de Hegel, ver BOURGEOIS, Bernard. O pensa-mento político de Hegel. São Leopoldo, Editora da Universidade do Vale do

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Rio dos Sinos, 2000; FRANCO, Paul. Hegel’s philosophy of freedom. YaleUniversity Press, 1999; WEIL, Eric. Hegel y el estado. Buenos Aires, EditorialLeviatan,1996; PELCZYNSKI, Z. A . (ed.). The state and civil society. Studies inHegel’s political philosophy. Cambridge University Press, 1984; WESTPHAL,Kenneth. “The basic context and structure of Hegel’s Philosophy of Right”.In: The Cambridge Companion to Hegel (edited by Frederick Beiser). Cam-bridge University Press, 1993.

15. Com efeito, Marx se vale das metáforas do céu e da terra para requalificar arelação entre Estado e sociedade civil, seguindo a crítica feuerbachiana da reli-gião. Ele denuncia em Hegel a pretensão do Estado em dominar a sociedade civilcomo universalidade dominante, enquanto que, na realidade, é a sociedade civilburguesa, por intermédio de seu particularismo conferido pelo direito de proprie-dade, que domina o Estado. Sob uma primeira forma, aparece aqui a noção queirá se desenvolver na obra posterior de Marx das relações de produção quecondicionam a esfera da política.

16. Uma crítica interessante das reflexões de Marx sobre Hegel está em ILTING,K-H. “Hegel’s concept of the state and Marx’s early critique”. In: The state in thecivil society. Studies in Hegel’s political philosophy, op. cit. Ver também:MACGREGOR, David. The communist ideal in Hegel and Marx. Canadá, Universityof Toronto Press, 1990; BRECKMAN, Warren. Marx, the young hegelians, and theorigins of radical social theory. Cambridge University Press, 1999; MERCIER-JOSA, Solange. Pour lire Hegel and Marx. Paris, Editions sociales, 1980.

17. Isto equivaleria a retraduzir neste campo teórico a problemática marxista doimperialismo, bem como o debate sobre as teorias do subdesenvolvimento e dadependência. Isto é, a comunidade internacional dos Estados-nações é profun-damente hierarquizada a partir do centro capitalista e esta dimensão está revela-da nos próprios princípios fundacionais dos Estados “periféricos” ou“semiperiféricos”.

18. Ver OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor. A economia políticada hegemonia imperfeita. Petrópolis, Vozes, 1997.

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Lendo o roteiro e ouvindo a exposição do Marco Aurélio Garcia, iden-tifiquei um grande número de temas sobre os quais gostaria de polemizar.

Mas, como o tempo é curto, vou me limitar ao que acho ser mais relevante.Em primeiro lugar, quero afirmar de maneira enfática uma opinião

que Marco Aurélio colocou na condicional. Ele disse que a crise do socia-lismo “pode ter chegado a um ponto de inflexão”. Eu penso que pode-mos afirmar isso com certeza. Não porque tenhamos equacionado teori-camente as causas da “crise do socialismo”. Tampouco porque tenha-mos dado início a novas tentativas de construir o socialismo. Mas simdevido à situação do capitalismo contemporâneo.

Hoje a agenda teórica e ideológica, tanto da esquerda quanto de am-plos setores do establishment, é dominada pelo debate acerca da crisedo capitalismo. Claro que há divergências sobre a profundidade, a exten-são e a natureza dessa crise. Marco Aurélio, por exemplo, usou a ex-pressão “incertezas”, que me parece totalmente insuficiente.

Em qualquer caso, considero que a outra crise, a “crise do socialismo”,saiu da pauta ou, pelo menos, perdeu a importância que chegou a ter naprimeira metade dos anos 1990.

A luta pelo socialismo no século XXIValter Pomar

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É certo que a crise do capitalismo não faz a luta pelo socialismo “en-trar na agenda” espontaneamente, naturalmente, automaticamente. Issosó acontecerá se houver um esforço ideológico, mas principalmente po-lítico, de oferecer o socialismo como alternativa para a humanidade ecomo saída para a crise.

Nesse sentido, estivesse eu no lugar do Marco Aurélio, teria invertidocompletamente a lógica da exposição, começando por uma análise dacrise contemporânea e das perspectivas enormes que ela abre, tantopara o socialismo quanto – infelizmente – para a barbárie.

Uma última observação sobre este primeiro ponto: a “crise do socialis-mo” prolongou, por mais de uma década, uma situação que vinha deantes: os marxistas contemporâneos ainda não fizeram, para o capitalis-mo atual, um estudo equivalente ao que Hilferding, Rosa Luxemburgo eLenin, por exemplo, fizeram para o “imperialismo”.

Não é demais dizer que aqueles estudos foram feitos a partir deângulos distintos, chegaram a conclusões também distintas, em grandemedida incompatíveis entre si e resultando em opções políticas tam-bém contraditórias.

Mas o fato é que não dispomos hoje de uma interpretação, ou de inter-pretações suficientemente consistentes, sobre as tendências de evolu-ção do capitalismo contemporâneo. E sem isso é muito difícil executaruma política socialista, qualquer que seja, exceto a da tentativa e erro.

Em segundo lugar, senti falta – na exposição do Marco Aurélio – deuma reflexão sobre um fato que considero central: todas as tentativasde construir o socialismo, no século XX, tiveram lugar na periferia domundo capitalista.

Acredito que qualquer balanço sobre as vicissitudes do socialismo noséculo XX tem que levar isto em conta, não para justificar, mas paracompreender adequadamente.

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Arrancando de um ponto de partida muito atrasado, os socialistas op-taram – e não vejo como poderiam ter feito de outra forma – por lançarmão de expedientes típicos da revolução industrial capitalista: longas jor-nadas, trabalho infantil, remunerações baixas, controles intensos sobre amão-de-obra, proletarização forçada de camponeses.

Esse esforço brutal, somado à propriedade pública, ao planejamentocentralizado, à inexistência da burguesia e ao impulso igualitário da revo-lução, possibilitou altas taxas de crescimento econômico e uma significa-tiva elevação da qualidade de vida da população dos países socialistas.

Mas, embora tenham se aproximado, não lograram superar a potênciaeconômica – e, em muitos casos, nem mesmo o padrão de consumo –dos países capitalistas centrais.

Em geral, o socialismo começou a ser construído em países em que amaior parte dos trabalhadores não havia conhecido a chamada demo-cracia burguesa.

O baixo nível cultural e político da população, as conseqüências decor-rentes da guerra civil e/ou da agressão externa – friso que é fundamen-tal levar em conta a agressão externa –, as necessidades da reconstru-ção econômica, somados à desmobilização pós-revolucionária, ajudam aentender as vicissitudes da “ditadura do proletariado” no século XX: asconcepções que pregavam uma “democracia socialista restrita” encon-traram terreno fértil para prosperar.

Um parêntese sobre a “democracia burguesa” e a “ditadura do prole-tariado”. Acho ambos os conceitos teoricamente corretos. Politicamen-te, eles nos lembram dos limites postos à radicalização da democracia,nos marcos da ordem social capitalista.

As opções feitas pelos socialistas e comunistas, ao longo do século XX,ocorreram portanto naqueles marcos, muito diferentes daqueles imagi-nados por Marx e pela primeira geração de marxistas. A ponto de Gramsci

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dizer que a Revolução Russa fora uma “revolução contra O capital”(contra Das Kapital).

Fazendo blague, acho que podemos dizer que a débâcle do socialismoreal foi a dupla “vingança d’O capital”, do próprio e também das idéiasde Marx.

Pensando sobre o futuro, as chances de um novo ciclo de revoluçõessocialistas ter um desfecho distinto do ocorrido no século XX depen-dem principalmente e novamente do que vai ocorrer nos países capita-listas centrais.

Pensando sobre o passado, acho que não podemos seguir cobrando,sobretudo do “socialismo real” e do movimento socialista nos paísesperiféricos, que eles não tenham cumprido a tarefa histórica de derro-tar o capitalismo.

Ao contrário, acho que devemos nos concentrar em responder o quese passou com o movimento socialista nos países capitalistas centrais.Por que fracassou o projeto socialdemocrata de transformar o capitalis-mo em socialismo através de reformas? Por que até mesmo o Estado debem-estar social fracassou?

Ou ainda: por que foi derrotada a revolução na Alemanha? Por que opós-Segunda Guerra, na França e na Itália, desembocou numa “nor-malização capitalista”? Por que a burguesia dos Estados Unidos, cen-tro do capitalismo mundial, conseguiu marginalizar a esquerda socialis-ta? Por que a onda neoliberal implantou-se em países com um fortemovimento operário?

É preciso lembrar que foi operando a partir dos países capitalistascentrais, contando com as debilidades e os erros de um movimento socia-lista majoritariamente socialdemocrata, que a burguesia conseguiu imporuma derrota fenomenal, ao longo dos anos 1980, ao movimento socia-lista, em todas as suas variantes.

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53SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

É preciso lembrar também que a capitulação da socialdemocracia aoneoliberalismo ocorreu antes da crise geral do campo socialista.

O destino do socialismo no século XX não foi, nem poderia ter sido,decidido nas revoluções da periferia ou nas lutas teóricas travadas entreos bolcheviques, nos anos 1920.

Nesse sentido, fosse eu o Marco Aurélio Garcia, teria invertido a hie-rarquia da análise e concentrado mais energia e atenção na crítica dasocialdemocracia do que na crítica do socialismo real.

Em terceiro lugar, senti falta na exposição do Marco Aurélio de umareflexão mais detida sobre a prática do nosso partido e – de maneirageral – sobre a prática do movimento socialista mundial contemporâneo.

Não se trata de uma interrogação doutrinária. É impossível desconhe-cer, por exemplo, que grande parte das organizações denominadas de“socialistas”, “socialdemocratas” e mesmo algumas chamadas de “co-munistas” têm hoje muito pouco a ver com a luta anticapitalista.

Aliás, basta observar a atitude subalterna da grande maioria dessasorganizações – muitas à frente de governos nacionais – diante do bom-bardeio norte-americano contra o Afeganistão, para perceber que partedo movimento socialista “oficial” transformou-se em um grande obstá-culo para a luta pelo socialismo.

No caso específico de nosso partido, eu perguntaria se estamos dan-do a ênfase possível e necessária, em nossa conduta política, à defesado socialismo.

Novamente, não se trata de uma interrogação doutrinária. Assim como,na Europa, o Estado de bem-estar social foi uma solução de compromis-so, possível porque existia um forte movimento socialista interno e exter-no, aqui no Brasil mesmo a possibilidade de “civilizar o capitalismo” tam-bém depende da existência de um forte movimento socialista.

Infelizmente, ao contrário da tradição reformista clássica, que via na

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luta parlamentar-eleitoral um caminho para o socialismo, aqui no Brasilos setores moderados da esquerda minimizam ao extremo o papel dosocialismo, não apenas enquanto objetivo estratégico, mas inclusive comocomponente de nossa propaganda e agitação política. Eventos como esteciclo constituem exceções que devemos comemorar.

Ao contrário do que alguns pensam, uma atitude envergonhada ante osocialismo reduz as chances de sucesso de uma política reformista.

Acredito que isso vai mudar; mas hoje o PT ainda é “vítima da inércia”.Ou seja: os ventos mudaram, mas grande parte da esquerda ainda selimita a uma postura teórica e ideologicamente defensiva, a ofereceralternativas semikeynesianas ao neoliberalismo, não percebendo que acrise do neoliberalismo é a expressão superficial e visível de uma crisemais profunda da ordem social capitalista.

A “solução” capitalista para esta crise passa, como de outras vezes,por uma destruição em larga escala de forças produtivas (através deguerras, recessões prolongadas, genocídios etc.).

Isso torna ainda mais urgente a necessidade de constituirmos um mo-vimento anticapitalista e socialista em países como o Brasil e no conjuntodo mundo. Se isto não acontecer, o capitalismo e sua crise nos conduzi-rão em direção a níveis cada vez maiores de barbárie.

Mas para isso precisamos enfrentar a “timidez” e principalmente aatitude explicitamente pró-capitalista de amplos setores da esquerda mun-dial. Sem o que teremos crise, teremos guerras, teremos conflitos so-ciais, mas não teremos sombra de revoluções vitoriosas.

No caso do PT, temos os que defendem que o PT exclua o socialismode seu programa; os que defendem que socialismo é igual a “liberdadesdemocráticas”, “mercado” e o “Estado controlando os excessos da pro-priedade”, o que não passa da velha socialdemocracia; e os que sãosocialistas, mas não enfrentam o debate sobre a estratégia que pode nos

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levar ao socialismo, aderindo a uma posição estratégica muito semelhan-te à que marcou o velho Partido Comunista.

Por tudo isso, fosse eu o Marco Aurélio Garcia, acentuaria a dimensãopropriamente política e estratégica do debate sobre o socialismo.

Em quarto lugar, gostaria de fazer alguns comentários sobre a “agen-da para o socialismo” esboçada por Marco Aurélio.

Marco Aurélio diz que

“Um programa socialista para o século XXI, diferentemente deoutros no passado, não parte de uma meta construída a partir daqual se desenhará um caminho para atingi-la. Não se trata de ummovimento teleológico. Sua única premissa: o capitalismo não é ofim da história e, portanto, coloca-se no horizonte, ainda que emforma imprecisa, uma sociedade pós-capitalista. A diferença estáem que o processo que conduz a essa sociedade é tão importantequanto o resultado. Este não pode ser separado daquele. Movi-mento (meios) e fins se articulam mutuamente”.

Este raciocínio contém, na minha opinião, um problema central. Veja-mos: o socialismo não será produto de um movimento espontâneo e in-consciente da sociedade. Ou há um processo consciente de construçãode uma sociedade de outro tipo, ou não haverá socialismo. Mas issosignifica dizer que o estabelecimento de “metas”, o estabelecimento deum “fim”, é parte essencial do processo.

Não é possível, portanto, ressaltar a importância do “processo que con-duz ao socialismo” e reduzir a importância central, decisiva, nuclear, doestabelecimento prévio de uma meta, de um desenho geral. A “articula-ção mútua”, que aliás existe em tudo que é real, não pode eliminar ahierarquia teórica e prática que existe entre os “fins” e os “meios”.

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Aliás, o próprio Marco Aurélio, ao falar dos desafios ou questões fun-damentais para o socialismo do século XXI, acaba tentando estabelecereste desenho geral.

Cada um dos pontos que ele aborda mereceria um comentário especí-fico. Até porque Marco Aurélio lançou mão de alguns conceitos – comoo de “processo inconcluso de construção nacional” – com os quais nãotenho o menor acordo, embora reconheça que estão muito na moda.

Mas quero chamar a atenção para o seguinte: exceto a questãoambiental, todos os demais pontos já faziam parte da tradição e/ou dodebate socialista no século XIX: internacionalismo e nação; combinaçãoentre formas de propriedade; combinação entre mercado e planejamen-to; fortes políticas públicas sociais; redução da jornada de trabalho; com-bate à alienação do trabalho; a luta contra todo tipo de opressão; a socia-lização da cultura etc.

Em outras palavras: a “pauta” proposta não é nova, embora a experiên-cia socialista do século XX tenha demonstrado que a radicalização dademocracia, a superação da alienação e da desigualdade são mais fáceisde proclamar do que de alcançar.

A pauta proposta por Marco Aurélio mistura reformas de inspiraçãosocialista, que podem ser implementadas ainda no interior do capitalis-mo, com medidas que exigiriam o estabelecimento prévio de novas rela-ções de produção e de outra correlação de forças políticas.

Nesse sentido, faz muita falta esclarecer qual o plano estratégico deluta pelo socialismo e de construção de uma sociedade socialista. Fazfalta, no meu entender, aquela “meta construída a partir da qual se dese-nhará um caminho para atingi-la”.

Na ausência desta meta, podemos substituir a teleologia pelo culto aoprocesso. Isso fica absolutamente claro, a meu ver, quando Marco Au-rélio aborda o caso brasileiro.

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Ao falar da luta pelo socialismo em nosso país, Marco Aurélio diz que

“Um programa de transformações centrado em reformas econô-micas de cunho fortemente redistributivista, que exija umareorientação importante do modelo de desenvolvimento, associa-das a um processo de radicalização da democracia e de defesa dasoberania nacional com a correspondente assignação de um novolugar para o Brasil no mundo, pode ter pouco a ver com o socialis-mo e ser até mesmo entendido como um projeto de fortalecimentodo capitalismo brasileiro. Essas reformas, consolidando abstrata-mente o capitalismo no Brasil, desestabilizam-no concretamente,sempre e quando as mudanças forem resultado de intensamobilização social”.

Esse raciocínio me lembra aquela pirueta teórica com a qual se tentavajustificar a contradição entre a tese marxista da “extinção do Estado” e aprática de fortalecimento do Estado no socialismo real. A pirueta estavaem dizer que o Estado “desapareceria ao se fortalecer ao máximo”.

Qual é, exatamente, a relação entre nosso “projeto para o Brasil” –que Marco Aurélio admite que “pode ter pouco a ver com o socialismo eser até mesmo entendido como um projeto de fortalecimento do capita-lismo brasileiro” –, entre nosso programa para um governo popular elei-to, entre nossas campanhas eleitorais e o socialismo?

Sem resolver este tipo de questão, qualquer “pauta”, seja a propostapor Marco Aurélio ou qualquer outra, servirá apenas para mais umatentativa frustrada de reformar o capitalismo.

Na minha opinião, o vínculo entre o socialismo e nosso programapara 2002 deve estar em que qualquer política que vise melhorar, rápi-da e consistentemente, a vida da maioria dos trabalhadores brasileiros

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exige transferir renda, riqueza e poder, dos grandes capitalistas nacio-nais e estrangeiros, dos latifundiários e do imperialismo, em direçãoaos trabalhadores.

Para encerrar meus comentários sobre a pauta proposta por MarcoAurélio, gostaria de falar rapidamente do tema “Propriedade, mercado,planejamento e regulação”.

Estou de acordo que “não basta reiterar a fórmula clássica segundo aqual o socialismo é a socialização dos meios de produção”. Por outrolado, não basta, mas é fundamental reiterar esta “fórmula”.

Mesmo que a abolição da propriedade privada dos grandes meios deprodução seja “um processo complexo, tortuoso e prolongado”, é o esta-belecimento de novas relações de produção que define a “lógica que vaiimperar na organização da nova economia”.

Salvo, é claro, se acharmos que seja possível estabelecer uma “lógica”nova, coexistindo com a grande propriedade privada dos meios de produção.

Não são, a meu ver, o “planejamento” ou o “controle externo” quequebram a lógica do capital. O planejamento e o controle operam nosmarcos das relações de produção existentes. Ou mudamos estas rela-ções, ou a lógica do capital continuará hegemônica.

Em quinto lugar, gostaria de dizer que senti falta de alguma menção atrês questões clássicas em qualquer debate sobre o socialismo: a ques-tão da extinção do Estado, a questão da superação da sociedade declasses e o tema da revolução.

Senti falta, em especial, do tema da revolução!Afinal, da mesma forma como é ilusório achar que uma revolução

revoga o passado e permite começar do zero, também é ilusório cons-truir uma estratégia socialista dispensando a revolução política e social.

Quem faz isso não entendeu de fato qual a profundidade da mudançaque queremos fazer no mundo. Para os que, como eu, continuam comu-

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nistas, não há maneira de colocar o “mundo de ponta-cabeça” sem umagrande revolução política e social.

Por último, quero dizer que tenho participado de muitos eventos, den-tro e fora do Brasil, nos quais predomina um enorme otimismo acercadas possibilidades do socialismo.

No curto prazo, não sou tão otimista. Exatamente porque acho quevivemos um período de crises, guerras e revoluções, exatamente porqueacho que a crise atual será mais profunda que a de 1929, é que achoimportante lembrarmos que entre aquela crise e a ampliação do camposocialista houve a ascensão de Hitler, a derrota da República Espanholae a Segunda Guerra Mundial.

Estou certo de que temos pela frente um período muito duro. Masestou convencido também de que no Brasil reunimos condições excepcio-nais para enfrentar de maneira vitoriosa este período. Seja pela força denossa classe trabalhadora, seja pela continuidade das tradições revolucio-nárias em nosso país, seja pela existência do PT, temos chance de fazerdeste limão uma limonada, abrindo, quem sabe a partir de nosso país, umnovo período na história da humanidade.

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Debate com o público

Max Altmann, Diretório de Per-dizes (bairro de São Paulo, SP)

Devo ter pouco menos do que odobro da idade do Valter Pomar, masnão me considero um sobreviventedo socialismo. Eu diria que sou maisum socialista teimoso. O público temuma grande desvantagem: não leu pre-viamente o texto de Marco AurélioGarcia, nem a réplica de Valter Po-mar e nem o texto do professor JuarezGuimarães. Temos de falar absolu-tamente de improviso, organizar asidéias enquanto os debatedores falam.Ainda assim, vou propor alguns pon-tos brevemente, dentro do restritotempo disponível para o público.

Marco Aurélio Garcia elaborou uminventário crítico com evidente pro-

cedência, mas acho que ele teria fei-to melhor se fizesse um balanço maisequilibrado da experiência do socia-lismo real. Afinal de contas, somostodos herdeiros daquele socialismoexistente, como este foi do Iluminis-mo, da Revolução Francesa, da Co-muna, dos socialistas utópicos e dossocialistas científicos.

A primeira parte da exposição deMarco Aurélio Garcia abordou aquestão histórica, mas acho que fal-tou ênfase em alguns aspectos: asconquistas sociais dos trabalhadoresque a Revolução de 1917 permitiu;enormes avanços ao longo das dé-cadas que se seguiram nos paísescapitalistas. Um episódio, talvez omais importante do século XX, foi a

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derrota do nazifascismo. Isso sedeve basicamente à União Soviéti-ca, que quebrou, em Stalingrado, aespinha dorsal da máquina de guer-ra do nazifascismo. O público deveimaginar, se o nazifascismo tivessevencido aquela guerra, em quebarbárie estaríamos metidos na se-gunda metade do século que passou.A vitória do campo aliado e, em par-ticular, da União Soviética, do cam-po socialista, sobre o nazifascismopropiciou o fim do colonialismo.Houve então uma espécie de dominóque caía ao longo do tempo. Prova-velmente esse colonialismo não te-ria sido derrotado tão rapidamentecomo foi. E faltou também enfatizaro que significou a derrocada do so-cialismo real em termos de geopo-lítica. Eu digo que houve uma heca-tombe geopolítica que se seguiu àderrubada de um dos pontos da bipo-laridade existente, o que permite hojeao governo hegemônico pôr e dis-por à sua vontade, antes e depois do11 de Setembro de 2001.

Gostaria de tocar em algumasquestões, na perspectiva de futuro:para as perspectivas de socialismo

no século XXI, a luta anticapitalista éabsolutamente fundamental. Temosde ter isso como perspectiva de lutateórica e prática contra o capitalis-mo. E vemos que no mundo inteiroessa vontade se manifesta, o FórumSocial Mundial foi uma expressãodisso – não perfeita, não exata, masfoi uma manifestação. Deve se acen-tuar no movimento antiglobalizaçãoe até no II Fórum Social Mundial. Aperspectiva antiimperialista tambémé um dos enfoques a ser apresenta-do. Nas manifestações de rua recen-tes, vê-se nitidamente nos cartazes,nos slogans, nas faixas, uma pers-pectiva de luta antiimperialista. Oscartazes colocavam nitidamente “nãoà guerra”, “não ao domínio imperia-lista”, “não ao racismo”...

E, finalmente, deve haver uma preo-cupação muito grande com a basesocial. A evolução da base social vaipermitir os passos na direção detransformações socialistas. Não po-demos perder de vista o horizontesocialista, embora as táticas nos le-vem a ruas colaterais. Afinal de con-tas, o processo revolucionário não éuma reta, ele comporta curvas. E aí

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é que se destaca o papel dos parti-dos – no nosso caso, o papel do PT

–, na construção da base social ne-cessária a essas transformações nadireção do socialismo, na perspecti-va do socialismo do século XXI.

Paulo Vannuchi , do InstitutoCidadania

Quero pedir aos três componen-tes da mesa uma reflexão um poucomais aprofundada sobre algo que jáfoi abordado na fala dos três. Nãosabia se citava Norberto Bobbio aqui,mas como Juarez Guimarães o fez,me sinto mais à vontade como leitorde Bobbio, pensador italiano, que,pelo menos em duas polêmicas comos marxistas italianos nos anos 1950e 1970, entre suas interpelações,acentuou muito um tema que cha-mou de “a via” para o socialismo.Na discussão de hoje isso foi men-cionado, mas eu queria levá-la umpouco mais adiante. Valter Pomar, nofinal de sua fala, aborda o tema darevolução. A referência do JuarezGuimarães foi ao Bobbio querendoretirar do marxismo seu conteúdo re-volucionário. Queria perguntar aos

três sobre a questão da via para osocialismo no seguinte sentido: as-sim como Bobbio solicita, nós so-mos socialistas e, no Brasil de 2001,afirmamos taxativamente a idéia davia democrática para o socialismo;como fica nisso a clássica questãoda violência revolucionária? Fui umdos que participaram – e não me ar-rependo de nada – de uma resistên-cia armada ao regime militar. Na épo-ca havia companheiros do PCB [Par-tido Comunista Brasileiro] que eramcontra ela, e eu qualificava isso deilusão pacifista. Logicamente, hojenão vejo as coisas assim.

E, numa reflexão em aberto, queriaperguntar para Marco Aurélio Garcia,Valter Pomar e Juarez Guimarães sepodemos afirmar hoje, taxativamente,que o caminho no Brasil de 2001, naAmérica Latina de 2001, é o da dis-puta democrática. Não achamos quea Constituição de 1988 é o fim da his-tória em termos de constitucionalidadepossível de um país. Mas esse é oparâmetro: estamos nessa disputapara num dado momento de crise, deacumulação dada, haver passagem auma outra estratégia? Quando Valter

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Pomar termina com a colocação darevolução, num comentário ao movi-mento teleológico do Marco AurélioGarcia, como fica nessa abordagema questão da revolução e o processopolítico de acumulação de luta social,sindical, cultural que fazemos hoje?E, num enfoque histórico, analítico,não me parece que no marxismo te-nha havido jamais uma defesaapologética da violência. Aparece mui-tas vezes uma afirmação da necessi-dade da violência como resposta auma outra violência opressiva e umargumento de realismo político. Apa-recem contradições entre textostaxativos, claros no Manifesto [doPartido Comunista], e, por exemplo,no famosíssimo prefácio de Engelsde 1895 de As lutas de classe na Fran-ça, quando ele se revela maravilhadocom os avanços do sufrágio univer-sal e o uso inteligente que o movi-mento operário alemão fazia disso,apontando o caminho.

Gilberto Maringoni, Diretório daMooca (bairro de São Paulo, SP)

Marco Aurélio Garcia enfatizoumuito a questão da democracia bur-

guesa, como o conceito pode sernuançado pelas conquistas e pelapressão do movimento operário, es-pecialmente no século XIX. É funda-mental colocar essa questão da de-mocracia, até porque nos últimos 20,25 anos esse debate pegou fogo aquino Brasil, especialmente depois dolivro de Carlos Nelson Coutinho, Ademocracia como valor universal,discutindo essa questão da democra-cia burguesa e da democracia ope-rária. Quando se fala em democra-cia burguesa, está se falando de umademocracia que é o rebatimento po-lítico de uma dada organização eco-nômica. Quer dizer, ao liberalismoeconômico corresponde um deter-minado tipo de democracia que temseus limites colocados pela questãoda propriedade.

Gostaria que Marco Aurélio e osdemais componentes da mesa respon-dessem o seguinte: se hoje, 20 e tan-tos anos depois, a democracia é umvalor universal ou se é um valor declasse. Quais os limites da democra-cia burguesa, apesar do Marco Auré-lio ter dito que eles podem ser alarga-dos pela pressão do movimento tra-

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balhista, do movimento operário? Elaé um conceito de classe ou, no caso,o que seria a democracia operária oua ditadura do proletariado? Que limi-tes ela colocaria à ação do mercado,à ação da propriedade e que tipo deliberdade poderia estabelecer para asamplas maiorias da população, paraos trabalhadores etc.?

Uma segunda questão: Marco Au-rélio afirmou que, na agenda do sé-culo XXI, a luta pelo socialismo seráfruto da ação de partidos, movimen-tos, sindicatos etc., e proferiu a se-guinte frase – me corrija se eu esti-ver enganado: partidos com unidadena política, mas diversidade ideoló-gica. Esta é uma questão séria a sercolocada porque os partidos que es-tão aí, os partidos burgueses, têmaté diversidade política, mas têm uni-dade ideológica, querem manter aordem tal qual está, com algumasnuanças. Como é possível um parti-do socialista abrigar no seu interioruma diversidade ideológica muitogrande? Claro que há nuanças, masque tipo de diversidade, que tipo denuanças são essas? Eu gostaria dever mais bem esclarecido esse con-

ceito de partido com diversidade ideo-lógica na luta pelo socialismo.

Aparecido, militante do PT de Ita-quera (bairro de São Paulo, SP)

Gostaria de colocar para MarcoAurélio Garcia, Valter Pomar e JuarezGuimarães duas questões. Umas daspolêmicas que atravessam o movi-mento socialista desde muito tempoé a questão do sujeito da revolução, eé uma polêmica bastante atual em fun-ção dos estudos feitos nos últimosanos sobre o fim do proletariado, queo proletariado industrial não seria maiso sujeito da revolução; em vários mo-mentos alguém aqui já fez referênciaa algumas propostas no sentido de quesujeito substituiria o operariado.

Então, a primeira questão que dei-xo aos debatedores é justamente essa:na atualidade, em particular aqui noBrasil, como vêem essa questão dosujeito da revolução.

E, como uma segunda questão,gostaria que os companheiros comen-tassem, considerando a conjunturaem que estamos, nossas condiçõespara polarizar a disputa presidencial,com toda a importância que isso tem

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tido no nosso país, na medida em queo Partido dos Trabalhadores, nasúltimas eleições, tem polarizado asdisputas presidenciais e de projetospolíticos na sociedade, e consideran-do nossa crescente presença em go-vernos estaduais e municipais, em umsubcontinente cuja trajetória históri-ca registra que quando chega ao go-verno central um partido com since-ras preocupações reformistas, no sen-tido de resolver os problemas da maio-ria do povo, em geral ele é apeado dopoder por um golpe militar. São vá-rias as experiências, seja com incli-nação mais à esquerda, socialista, sejamesmo com inclinação nacionalista,enfim, com um programa que de al-guma forma coloque freio à presen-ça imperialista.

Paul Singer, Diretório de SantaCecília (bairro de São Paulo, SP)

Quero colocar uma questão quenenhum dos companheiros abordou,mas que me parece fundamental paraos debates que se desenvolveramaqui: a própria noção de socialismo.Quer dizer, o que é exatamente umasociedade socialista? Será que é uma

sociedade anticapitalista, ou seja, sempropriedade privada dos meios deprodução? Eu acho que não, mesmoporque isso é algo muito abstrato. Apropriedade privada dos meios deprodução começou a ser fundamen-talmente abolida pela sociedade anô-nima. Hoje a propriedade privada dosmeios de produção é uma ficção ju-rídica, cada um de nós pode ser pro-prietário das maiores empresas domundo, e isso não significa absolu-tamente nada. Ou seja, na realidade,acho que todos estamos pensando osocialismo, desde os utópicos, comouma sociedade de convivência fra-terna em que as pessoas não estãocompetindo o tempo todo, não es-tão no mercado o tempo todo, nãoestão expostas à miséria, ao desem-prego, enfim, a uma série de violên-cias que vêm de uma sociedade cujamola do progresso é a competiçãode todos contra todos, em que quan-do a competição tende a afrouxarvem o neoliberalismo. Ele vem emgrande parte por causa disso, parareacender as lutas competitivas deuma forma absolutamente fundamen-tal dentro de cada país e entre os

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países, e mesmo entre empresas hojeuniversais ou globais.

Estou levantando isso para dizerque não é verdade que se pode cons-truir o socialismo pelo Estado. Istoficou meio subentendido. Houve pro-blemas com o socialismo real por-que houve o cerco capitalista, eramatrasados etc. Mas eu diria que hou-ve um problema grave de “estadola-tria”; eu não inventei isso, já foi ditoantes. Quer dizer, é a idéia de que apartir do governo, de cima para bai-xo, são impostos a fraternidade, a aju-da mútua, um outro tipo de vincula-ção comunitária entre as pessoas. Nãoé possível impor nada disso, o que sepode impor é disciplina, obediência,tudo ao contrário daquilo que se ima-gina que seja o socialismo.

Então, na realidade, o socialismotem de ser construído de baixo paracima, por práticas educativas, eco-nômicas e sindicais, políticas, ideo-lógicas, religiosas. Portanto, a revo-lução socialista já começou, e ela temidas e vindas, derrotas, vitórias,avanços, mas, só para dar idéia, paramim, a existência desses 20 e tantosanos de PT, da CUT [Central Única

dos Trabalhadores], do MST [Movi-mento dos Trabalhadores Rurais SemTerra] já é a construção do socialis-mo. Já existe algo de socialismo nessasociedade capitalista. O Brasil não éum país uniforme e integralmentecapitalizado. Aliás, nenhum país é.O capitalismo exclui uma enormeparte da sociedade dele próprio, por-que não consegue absorvê-la, poispor causa da ditadura do capital fi-nanceiro as últimas décadas tiveramuma economia extremamente pou-co dinâmica, portanto o grau de ex-clusão é muito maior, e os excluídossão obrigados, para sobreviver, a re-correr a práticas não-capitalistas quese mostram, muitas vezes, socialis-tas. Se formos observar como vive ametade miserável do Brasil, como sevive nos assentamentos da reformaagrária do MST, como se vive nas pe-riferias paupérrimas de nossa cidade,vê-se muita solidariedade organizada,muitas cooperativas, pré-cooperati-vas, todas as formas de associaçãoque têm caráter anticapitalista.

Então, acredito que deveríamospensar no socialismo como algumacoisa pela qual se luta, e que se cons-

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trói lutando contra o capitalismo,contra as práticas de corrupção, deconcorrência, de agressão etc. Mastambém como uma luta positiva deconstrução econômica, social, polí-tica e ideológica.

Adriano Diogo, vereador do PT emSão Paulo, SP

Valter Pomar, em sua última con-sideração, fez uma análise compara-tiva sobre o papel do PT e o papel dopartido político. Achei muito interes-sante e até contraditório, felizmen-te, com tudo o que ele havia dito an-teriormente. Por quê? Eu acho queo papel que o PT – acompanhado,como citou o professor Paul Singer,da CUT e do MST – desenvolve e de-senvolveu aqui no Brasil, ao contrá-rio de todos os outros partidos daAmérica Latina, originou a condiçãoda criação de um partido socialista,que não optou pela luta armada, maspor um outro caminho, sem deixarde fazer a luta socialista.

Paulo Vanucchi, nesse sentido,questionou com muita propriedade:será que a divergência existente en-tre nós é que nosso partido não te-

nha optado por preparar a via arma-da e isso seria a direção para o socia-lismo? Ou nosso partido criou ascondições de se construir um parti-do socialista, uma teoria socialista,uma organização socialista em dire-ção a uma via democrática, que podeser interrompida a qualquer momen-to, e, assim, haja necessidade de ou-tras formas de enfrentamento?

Então, apesar dessa contribuição te-órica que, evidentemente, não tenhotoda a condição de fazer, a questãoque temos de discutir é qual a contri-buição do PT para a construção dosocialismo, para o enfrentamento docapitalismo, para que isso seja umprocesso de massa. E discordo radi-calmente da afirmação de Valter Po-mar: o PT não tem nada de parecidocom o antigo Partido Comunista por-que não tem aquela visão de alinha-mento, não tentou uma “intentona”,não tem uma visão de libertação na-cional... Porque se formos beber dascorrentes da luta armada, embora al-gumas tivessem certa influência so-cialista, todas bebiam do leito do na-cionalismo e do antigo Partido Co-munista da libertação nacional.

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Luiz Dulci, presidente da Funda-ção Perseu Abramo [até 2003]

Tenho duas questões para os ex-positores. Uma diz respeito às fon-tes culturais, ou ético-culturais dosocialismo. Temos os marxismos,mas Juarez Guimarães se referiu aocomunitarismo cristão, aos socia-lismos não-marxistas, a outros pen-samentos radicais, transformadores,libertários que têm outras matrizes.Qual sentido eles podem ter, em quemedida eles enriquecem ou não aelaboração de uma perspectiva desocialismo democrático para o sé-culo XXI? Não é uma pergunta ape-nas teórica, pois, na constituição dopróprio PT, há a militância cristã,por exemplo, de milhares de pes-soas que eram de esquerda, mas nãosocialistas de tradição marxista, ese consideram socialistas por umoutro viés, com base no pensamen-to cristão. Mas não estou me refe-rindo apenas a isso; estou falandotambém de doutrinas laicas de trans-formação social que não têm raiz nomarxismo. Qual a importância dis-so para um projeto socialista demo-crático para o século XXI?

A outra questão diz respeito à pau-ta que foi citada. Valter Pomar deua opinião de que, a rigor, as ques-tões que Marco Aurélio Garcia pro-pôs são questões clássicas, como ada opressão, que ele mencionou enão vejo necessidade de repetir.Juarez Guimarães, se não entendimal, diz que há uma série de ques-tões historicamente novas, porexemplo, no terreno do direito às di-ferenças. São novas mesmo, sãoquestões de opressão. Nisso, a pa-lavra que cabia há 200 anos conti-nua pertinente hoje. Mas são novasformas de opressão, logo, novasdimensões de luta libertária. A per-gunta que faço é: em que medidaessas são questões que vêm de 200anos atrás e permearam esses doisséculos e em que medida são pro-blemas de fato novos, colocadospelas contradições específicas dasociedade contemporânea e que,portanto, mereceriam respostas no-vas, que o pensamento socialista de200 ou de 100 anos atrás não tinhacondição de dar porque as contra-dições não tinham aparecido comessa natureza?

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70 SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

Ruth Barros, jornalistaSou jornalista e, aproveitando a

pergunta do professor Luiz Dulci,gostaria de saber no que essa aliançaque está sendo construída pelo PT

com o PL [Partido Liberal], que é umpartido que abriga evangélicos, atra-palha ou não, ou avança na constru-ção desse socialismo?

Devanir RibeiroA minha pergunta se dirige tanto

ao Marco Aurélio Garcia como aosoutros dois companheiros. Sem me-nosprezar a história e quem a escre-veu, Marx, Rosa Luxemburgo e ou-tros, vamos pensar o real. Eu gosta-ria de pensar que temos um partidoque foi criado com ex-revolucioná-rios. Falo do meu ponto de vista: nãohá revolucionários porque a luta nãoestá posta. Temos companheiros quelutaram na luta armada, companhei-ros que eram da Igreja, companhei-ros que hoje são evangélicos e estãono partido, intelectuais, operários,para os quais nunca passou pela ca-beça essa tal de revolução, e eu eraum deles. Então, quero saber o se-guinte: considerando a história, fa-

zendo uma análise para nós aqui e onosso partido, como chegamos aosocialismo? Pela via armada ou pelavia democrática? Porque nós temosde fazer o balanço de nosso partido,queremos construir uma propostapolítica para ele, não é algo abstra-to. Se conseguirmos analisar o queé o nosso partido, depois podemosanalisar o que é o Brasil, com todosos avanços e atrasos. Nós avança-mos: se considerarmos a luta de clas-ses dos trabalhadores no Brasil, elateve um pico, hoje está em descenso.Eu gostaria de saber o que os três,principalmente o Marco Aurélio Gar-cia, acham: com esse partido e essasociedade que temos, complexacomo é, como vamos chegar lá, lu-tando pelo socialismo, nessa com-preensão de socialismo que o PaulSinger propôs? Também concordocom ele porque não dá para termosno abstrato uma visão de futuro, poisassim não vamos dar nem o primei-ro passo, quanto mais o segundo.Gostaria de ter uma definição do par-tido, aonde vamos querer chegar ecomo podemos chegar, ainda nempensando nas eleições do ano que

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vem, porque isso é uma caminhadamuito longa.

Juarez GuimarãesVou procurar comentar as ques-

tões levantadas em quatro blocos. Oprimeiro deles refere-se à questão re-lacionada a Bobbio e ao caminho de-mocrático. Quando Bobbio fez a in-terpelação aos comunistas italianos,a Della Volpe, Togliatti, discutiu di-retamente com eles no final da dé-cada de 1950, depois nos anos 1970,na fase de ascensão eleitoral do euro-comunismo, ele já havia feito umatransição muito importante na suaconcepção de teoria democrática,transição esta que é muito importan-te para encontrarmos a maneira deresponder a ele. Qual é essa transi-ção que Bobbio fez? Depois de tersido fascista por um curto período,na sua juventude, ele aderiu ao Par-tido da Ação e se tornou defensor dademocracia ética, como era formu-lada no contexto do chamado libe-ral-socialismo italiano. No correr dosanos 1950 e inícios dos anos 1960,ele transitou da concepção ética dademocracia para uma concepção

procedimental de democracia atra-vés da influência que ele reconhecede Kelsen, que é um positivista jurí-dico. Então, a questão que se colo-ca, quando ele levanta que o cami-nho para o socialismo deve obede-cer às regras do jogo, é “Quais sãoas regras do jogo?”. Porque o libe-ralismo não é igual à democracia, nóssabemos. E o princípio da soberaniapopular não foi absorvido pelo libe-ralismo na maior parte do seu tempoe, quando o absorveu, foi no sentidode neutralizar os seus efeitos maistransformadores. Então, o ângulo daresposta adequada a Norberto Bobbioé, sim, o caminho democrático, oqual significa, inclusive, colocar emquestão valores que estruturam a de-mocracia liberal.

A segunda questão da minha res-posta é o problema da existência ounão da democracia burguesa e comoisso se relaciona com as colocaçõesque nos chegaram na década de 1970por intermédio de um ensaio bastan-te conhecido de Carlos NelsonCoutinho – A democracia como va-lor universal –, que teve uma pri-meira versão, na qual ele se apoiava

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diretamente em Lenin, depois umasegunda versão em que ele retiravaessa menção direta a Lenin. Minhadiferença com a colocação de CarlosNelson Coutinho é que há valores eprocedimentos que dizem respeito acertos valores no interior da demo-cracia liberal, tal como existe, quedevemos assumir como universais.Mas a democracia é liberal, ela temem seus procedimentos, em seusvalores, em seu corpo de direitos,algumas questões que delimitam opredomínio do princípio do capitalnas esferas do Estado e da sociabili-dade que não temos de reconhecercomo universais, porque não o são,são particularistas.

O princípio da propriedade tal comoestá estruturado nas democracias oci-dentais é um princípio particularista.Por que o capital detém o domíniosobre os usos da ciência, que é tãofundamental para a humanidade? Nãoé um princípio universal, é um prin-cípio particularista. A desigualdadesocial, tal como se estabelece nas de-mocracias ocidentais, se vale deprincípios particularistas. O modocomo é exercido o poder governativo

está assentado numa série de proce-dimentos que não levam à socializa-ção da política, como propõe MarcoAurélio Garcia. E por que nós deve-mos aceitar esses procedimentoscomo universais?

Assim, é importante reconhecer queexiste uma democracia liberal que in-corporou historicamente, tanto pelatranscendência histórica das própriasrevoluções liberais em relação a seuscontextos anteriores como pela pres-são de correntes alternativas e adver-sárias a ela, valores e procedimentoscom sentido universalista, um dosquais é o princípio da soberania po-pular, o princípio universal do direitode voto, que foi uma luta que devemuito aos socialistas, como MarcoAurélio Garcia mencionou.

Então, desse ponto de vista, deve-mos defender que existem, no inte-rior da democracia burguesa, algunsprocedimentos e valores universais,no sentido de que devem comportambém o nosso projeto alternativo.Mas não temos por que reconheceressas regras do jogo como limitepara a transformação social nessesentido explícito; nosso princípio

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deveria ser o da soberania popular,das maiorias ativas como princípioregulador de nosso processo detransformação. Este sim me pareceo princípio fundamental.

A terceira questão, presente em al-guns ensaios recentes, é o direito doantivalor, o reconhecimento de que nointerior das sociedades capitalistasexistem, como fruto da luta dos opri-midos, dos trabalhadores – e não ape-nas deles, mas de socialistas cristãos,de liberais éticos, de nacional-desen-volvimentistas, enfim, de outras tra-dições –, alguns valores que têm ca-ráter universalista e que, nesse senti-do, já prefiguram nossos procedimen-tos e valores que nos ajudam a com-por uma sociedade socialista. Admi-tir que vai existir algum tipo de mer-cado, que são vários os princípios dearticulação da propriedade produtiva,me parece uma questão fundamentalpara dar um sentido mais explícitoàquela idéia da radicalização da demo-cracia ou da socialização da política.Parece-me que o princípio que deveprevalecer é o da esfera pública – oEstado democratizado submetido acontrole, aquele setor que não é nem

governamental nem movido pelo prin-cípio diretor do lucro e o setor mer-cantil sob regulação democrática.Estes três setores comporiam umaesfera pública. A idéia da transiçãopela qual devemos lutar deve se ba-sear na afirmação cada vez maiordessa esfera pública com esse senti-do, porque ela é o chão histórico dapossibilidade da socialização da po-lítica, da experiência de formas maisavançadas de democracia, que vãoalém daquelas regras do jogo de Nor-berto Bobbio.

Então, essa questão da esfera pú-blica, definida como aquela que temvalores universalistas e é regida de-mocraticamente, de forma pluralista,me parece essencial para repor aidéia de transição, para colocar essaquestão do processo de construção.Por isso falamos da idéia de um prin-cípio republicano dirigido pelos so-cialistas. Revolução é isso, a cons-trução de um outro princípio de Es-tado. Queremos construir um outroprincípio de Estado, e este deve serrepublicano; dirigido por nós, socia-listas, e incorporando outras tradi-ções republicanas.

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Por fim, para concluir, o que issotem a ver conosco no Brasil? Euacho que se trata de estabelecercomo horizonte histórico concretoa idéia de uma refundação republi-cana do Estado brasileiro, entendi-do como um período histórico dereconstrução e construção dessaesfera pública, como o espaço ondefaremos a ponte entre o nosso bomtrabalho reformista e as metas so-cialistas que nos propomos a cons-truir. E, nesse sentido, têm um va-lor transcendental para a culturapetista as formulações que já li – etive possibilidade de aprender comelas – de Chico de Oliveira, de PaulSinger, ligadas exatamente a essaidéia de socialização da política, deradicalização da democracia.

Valter PomarPrimeiro, a questão de Paul Sin-

ger sobre a noção de socialismo.Acho que divergimos na noção decapitalismo, é anterior. Porque o queé característico do capitalismo, domeu ponto de vista, não é a proprie-dade privada dos meios de produ-ção, é a exploração do trabalho as-

salariado. A propriedade privada dosgrandes meios de produção e a ex-propriação de uma parte das pessoassão condições que explicam a explo-ração do trabalho assalariado. Porque isso é relevante? Porque a ques-tão que se coloca, para superar a ex-ploração do trabalho assalariado, émudar as relações de produção. Querdizer, o “fim” não é ter a proprieda-de social, mas superar a exploração.

Segundo, não acho que seja fatoque a sociedade anônima abole a pro-priedade privada e que esta seja umaficção jurídica. Considero isso umexagero retórico sem nenhum em-basamento real. O cidadão comumque participa de uma sociedade anô-nima descobre no Japão, aqui, emqualquer lugar, o quanto vale sua açãoquando entram em cena os interes-ses dos reais controladores. Todosaqui conhecem como eram as assem-bléias dos acionistas das grandes em-presas no Japão, em que se tinha in-clusive a máfia impedindo que os pe-quenos acionistas pudessem se ma-nifestar. No Brasil, no processo de pri-vatização, vimos um pequeno exem-plo de como funciona a dinâmica do

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sistema acionário. O sistema porações não elimina a concentração dapropriedade em mãos de um peque-no setor e muito menos o controle doprocesso de produção. E nem achoque a competição seja a característi-ca típica do capitalismo. A caracte-rística típica do capitalismo, insisto,é a exploração do trabalho assalaria-do, ou seja, determinada maneira dese apropriar do excedente social. Acompetição pode até ser uma resul-tante disso, mas qual é a competiçãoque existe no capitalismo dos dias dehoje? A competição entre grandesmonopólios é a que domina, e há, numoutro nível da sociedade, outros ti-pos de competição, mas a competi-ção dominante é determinada, de novo,pela dinâmica das grandes empresas.

Então, por conta disso, não achopossível construir qualquer tipode formulação sobre socialismo quenão trabalhe com a idéia de superara grande propriedade privada dosmeios de produção. Não acho factível,dado o meu objetivo, que é acabar coma exploração do homem pelo homem,que na forma atual se traveste sob aforma de assalariamento.

Concordo, entretanto, que dentrode qualquer formação social domina-da pelo capitalismo existem outras re-lações de produção que não são capi-talistas. Basta pensar a esfera fami-liar, fundamental para o capitalismoporque é um trabalho não-pago, fun-damental para reproduzir a força detrabalho, e não é capitalista. Seria pos-sível citar outros exemplos. E, da mes-ma forma, existem formas de produ-zir que já antecipam, em alguma me-dida, o que seria uma forma que, ge-neralizada, poderia dar origem a umasociedade de outro tipo. Agora, sãoformas dominadas, esmagadas, quenão se generalizam, que se mantêmhegemonizadas pelo capitalismo. Eisso tem a ver com o quê? Com ofato de que, ao contrário do capitalis-mo, que conseguiu se desenvolvereconomicamente no interior das so-ciedades anteriores, o socialismo nãovai conseguir se desenvolver plena-mente no interior de uma ordem so-cial dominada pelo capitalismo, eleprecisa antes que haja uma mudançana ordem política da sociedade.

Aí eu entro na questão do PauloVannuchi. Para mim, a questão do po-

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der é chave, por conta disso. Nãoacho possível dar início à constru-ção de uma sociedade socialista, ouseja, generalizar relações socialistasnuma sociedade qualquer, sem que opoder político tenha mudado demãos. E, por poder político, não en-tendo apenas o controle do Executi-vo, do Legislativo ou do que seja. Paramim, a principal fonte de poder polí-tico numa sociedade moderna é a pro-priedade dos grandes meios de pro-dução, dos meios de comunicação, ocontrole das Forças Armadas, e é tam-bém o controle daqueles aparatos queidentificamos com o governo ou como Estado, enfim.

Nenhum dos esforços de conquis-tar o poder por via não-revolucioná-ria, pelo caminho eleitoral, do Exe-cutivo, ou pelo crescimento do pesodos partidos socialistas no Parlamen-to, desembocou em qualquer tenta-tiva consistente, ou que tenha dura-do um pouco mais de um par deanos, de construir uma sociedadesocialista. Esse é um dado da histó-ria, o que não quer dizer que sempreserá assim. Não quer dizer que ooutro caminho vá dar no socialismo.

Estou só fazendo uma constatação.As tentativas de construir, ou de con-quistar o poder, e dar início à cons-trução do socialismo por via eleito-ral, ou qualquer outra via, não tive-ram sucesso.

Agora, acho que temos de olhar ooutro lado da questão: as chamadasrevoluções socialistas são uma ex-ceção histórica, e não a regra. Fo-ram poucos os casos na história dahumanidade de países que experi-mentaram revoluções socialistas,porque as condições que geram umarevolução nem sempre são acompa-nhadas de outras condições que po-dem desembocar numa revoluçãovitoriosa, e assim por diante. Por-tanto, há uma estratégia política dossocialistas que não deve trabalharcom uma afirmação genérica, retó-rica, teórica; acho que temos de tra-balhar com as possibilidades postasem cada país.

Bom, como saímos desse sarrilho?E estou falando as coisas com extre-mo cuidado porque quero evitar ma-nipulação do que estou falando – nãopor quem está aqui na mesa, e muitomenos por quem está no plenário.

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A primeira coisa que quero falaré o seguinte: não aceito essa con-traposição entre via democrática evia revolucionária. Acho que o pro-blema de origem está aí. Democrá-ticos são os outros, os revolucio-nários são autoritários, brutais, an-tidemocráticos. Por quê? Qual foi aorigem da democracia burguesa?Qual foi a origem do Estado mo-derno? O que acabou com a escra-vidão nos Estados Unidos? Não foisó a guerra civil; aquilo foi revolu-ção social, acompanhada de umconflito violento.

Assim, a revolução é um elementofundamental de qualquer teoria de-mocrática. Agora, o que torna umarevolução democrática é a participa-ção de amplos setores da população.Não sei se majoritário, 50% mais um,50% menos um, mas de amplos seg-mentos da população. O grande pro-blema de uma parcela da esquerdarevolucionária dos anos 1960 e 1970é que achava que podia fazer a revo-lução pelo povo. Achava que a revo-lução era um processo voluntarista,subjetivo. Desconsiderava o nível deconsciência da população. Enfim,

tentou fazer um processo social atra-vés de mecanismos de laboratório,não fez uma revolução. Não estoujulgando o valor, nem o empenho daspessoas, nem o sacrifício que foifeito, mas não há comparação entreas revoluções vietnamita, chinesa erussa e a luta armada que se travouaqui no Brasil. São coisas completa-mente diferentes, apesar das inten-ções das pessoas.

Então, não aceito contrapor via de-mocrática e via revolucionária, e soufavorável a aproveitar ao máximo oespaço que conquistamos – espaçodemocrático que foi conquistado noBrasil pelos movimentos operário,popular, socialista, democrático.

Mas temos de aproveitar ao máxi-mo, esse é o ponto de diferença quecreio existir muitas vezes no interiordo nosso partido. Por exemplo, aonão falar de socialismo nas campa-nhas eleitorais, estamos abrindo mãode aproveitar ao máximo a possibili-dade do caminho democrático elei-toral de luta pelo socialismo. Por quenão fazemos isso?

Já participei de muitos debates en-tre as chapas, recentemente, em que

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as pessoas diziam: “Socialismo sócom revolução. Portanto não se podefalar de socialismo em campanhaeleitoral.” Se é isso, o raciocínio estáao contrário. Este raciocínio eu tam-bém não aceito. Quero aproveitar aomáximo as possibilidades postas.

Quem sempre estabeleceu limitesnão foi a classe trabalhadora. Querdizer, a burguesia tem uma tradiçãoque todos conhecem, no Brasil e emtantos outros países, de dizer “Daquinão passa”. Ela aceita que a classetrabalhadora use os mecanismos de-mocráticos até que comece a colo-car em questão a sacrossanta proprie-dade. Quando chega nesse limite, elaé a primeira a romper com a demo-cracia. Acho que isso é uma terceiracoisa que temos de levar em conta.Acho ruim que, nos debates que tra-vamos na esquerda, se impute a ela aresponsabilidade de quebrar a demo-cracia. Não é a esquerda que quebraa democracia. Mesmo aqui no Brasil,mesmo eu não achando que tenhasido uma ação revolucionária nessesentido em que estou falando, a lutaarmada foi absolutamente legítima.Quem quebrou a democracia foram

os golpistas, não a esquerda. Ao con-trário, a esquerda pré-1964 acredita-va que já estava no poder, nas pala-vras de Luís Carlos Prestes. Vamoslembrar como eram as coisas: o gol-pe não foi culpa da esquerda.

No caso concretíssimo da nossaconjuntura, sou favorável a aprovei-tar ao máximo as possibilidades pos-tas pela conjuntura nacional. Queroeleger um governo federal de esquer-da, disposto a fazer reformas pro-fundas na ordem social, e quero medar o direito, assim como acho queo partido e a esquerda brasileira têmde se dar o direito, de vigiar a atitudeda classe dominante brasileira, por-que não acredito no compromissodemocrático dela. Não acredito. Eacho que vai chegar um determina-do momento em que eles vão rom-per com a legalidade democrática. Adeles. Nós não devemos agir no go-verno para forçar isso, mas, se agir-mos no governo com a vontade fér-rea de melhorar a vida do povo, nãoacredito na disposição democráticada elite brasileira.

Vou responder às questões doDiogo e do Devanir. Eu não falei de

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guerra. Aliás, quem está fazendoguerra hoje no mundo é o governonorte-americano. Fico impressiona-do com a completa inversão postaaqui, Adriano: se há um setor da so-ciedade moderna que apela para aviolência para manter a ordem, nãoé a esquerda. A quantidade de mor-tos da esquerda revolucionária éenorme. Eu não consigo entender.Agora, que a guerra e a violência fa-zem parte da política moderna, qual-quer pessoa que queira chegar aopoder tem de levar isso em conta. Efico impressionado de ver como so-mos realistas e pragmáticos em tan-tas coisas e nisso não. Desconside-ramos um dado de realidade, comose não houvesse Forças Armadas,como se não houvesse imperialismo,como se não houvesse violência,como, para quem não quer exem-plos antigos, se Bush não tivesse ditorecentemente: “Ou está do nosso la-do, ou está do outro lado”, e bombaneles. Não tem democracia, não temsoberania nacional, não tem ONU [Or-ganização das Nações Unidas], nãotem nada. E vamos desconsiderarisso no nosso plano político? Que-

remos ser governo de um dos maio-res países do mundo, e o que te-mos a dizer a respeito? Que vamosdesmontar nossas Forças Armadas,que vamos estabelecer como prin-cípio de nossa política de seguran-ça a paz mundial? Quero entenderaonde se quer chegar com esse tipode raciocínio.

Encerro explicando qual é o pon-to de semelhança que consideroexistir entre o PT, hoje, e a tradiçãodo Partido Comunista. Para mim, atradição essencial do Partido Comu-nista não é o que algumas pessoasfalaram aqui. O ponto essencial des-sa tradição era uma política de alian-ças com um setor do empresariado,da burguesia, e ter como centro desua política derrotar o latifúndio eo imperialismo.

Acho que, nos últimos anos, existeum amplo setor do nosso partido quetem esta mesma concepção de alian-ça com o setor do grande empresa-riado. Esse é o ponto de semelhança.E essa polêmica é antiqüíssima e vaicontinuar existindo ainda por muitasdécadas. Qual a nossa relação com ogrande empresariado? Esse é um pon-

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to de semelhança real, apesar dasenormes diferenças. Uma delas éque, noutras épocas, no Partido Co-munista, não teríamos o que temosaqui. É evidente.

E sobre a questão do Devanir, tra-zendo para o real o que eu falei, achoque um governo popular aqui no Bra-sil, para melhorar as condições devida substancialmente do povo bra-sileiro, terá de transferir renda, ri-queza e poder das classes dominan-tes para os setores populares. E issovai exigir não apenas taxação, tribu-tação, mas vai envolver confisco,expropriação e controle estatal deempresas que hoje estão sob proprie-dade privada. Isso não é socialismo.Devemos deixar isso bem claro.Vários governos burgueses, nacio-nalistas, governos de ocupação de-pois da Segunda Guerra Mundial, to-maram medidas semelhantes a es-sas. Isso em si não é socialismo, masacho que gera uma dinâmica deenfrentamento político e social noBrasil. Não acho factível dizer quevamos melhorar rapidamente as con-dições de vida do povo e, ao mesmotempo, que vamos fazer isso priori-

tariamente através de políticas de tri-butação. Então, isso é, do meu pon-to de vista, bastante real, não temnada de abstrato. Essa discussãoque estamos travando aqui não temnada de abstrata, ela incide na políti-ca do PT e nos rumos do país nospróximos anos.

Marco Aurélio GarciaEu queria em primeiro lugar agra-

decer os comentários feitos porValter Pomar e Juarez Guimarães e,ao mesmo tempo, felicitar a todosque expressaram suas opiniões edúvidas aqui. Vou procurar, na me-dida do possível, responder às ques-tões colocadas e, de passagem, tra-tar alguns dos temas que foram ob-jeto da atenção dos meus comenta-dores aqui.

Max Altmann me pede um balan-ço mais equilibrado. Eu achei que,do ponto de vista da exposição, evi-dentemente, em se tratando de umadiscussão de natureza mais políticado que histórica, na qual eu lanceimão da historiografia como instru-mento de apoio, eu poderia me per-mitir esse desequilíbrio. Se fosse fa-

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zer uma discussão de tipo historio-gráfica, talvez eu fosse mais dese-quilibrado ainda.

Creio que os elementos que Maxcitou aqui são verdadeiros. Sem dú-vida nenhuma houve transformaçõessociais importantes, liquidação doantigo regime, socialização culturalextraordinária, o peso geopolítico dochamado campo socialista no mun-do foi indiscutível. Isso me faz lem-brar duas histórias. Uma delas, umaobservação feita por um historiadorrusso, que muitos conhecemos aqui,inclusive pessoalmente, e tambémprezamos, Kiva Maidanik, que umavez disse o seguinte: “A nossa expe-riência [a da União Soviética] nosdeixou três grandes lições, ou me-lhor, tem três grandes méritos, aolado de tantas tragédias. A primeiraé ter criado um mecanismo civili-zatório do capitalismo ocidental. Sema existência da União Soviética, e da‘ameaça comunista’, provavelmen-te a burguesia da Europa ocidentalnão teria sido tão reformista quantofoi, depois da guerra. A segunda é aderrota do nazifascismo. Também éverdade. E a terceira foi ter deixado

um elenco de erros para a esquerdaocidental não cometer no futuro.”

Sei que isso tudo tem peso, doponto de vista geopolítico. Lembro-me de uma reunião do Foro de SãoPaulo, em Havana, em 1993, em queme tocou falar em nome do Partidodos Trabalhadores na sessão deabertura, e eu resolvi fazer um dis-curso caprichado, escrito etc. Equem estava presidindo a sessão eranada mais, nada menos, do que opresidente Fidel Castro. Num deter-minado momento do discurso, eudisse “Depois da derrota dos regi-mes burocráticos da Europa do Les-te...”, e quando eu sentei – nesse diaeu estava sentado ao lado de Fidel –,ele me pegou pelo braço e disse “Co-mo nos hacen falta esos burócra-tas...”. Isso é indiscutível. O mun-do hoje seria, seguramente, diferen-te do ponto de vista do equilíbriointernacional se não fosse a disso-lução da URSS.

Agora, a experiência da União So-viética e do chamado campo socia-lista é uma experiência sobre a qualacho que não estamos ainda fazen-do uma avaliação adequada, talvez

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para não nos confundirmos com aofensiva liberal, conservadora, des-tes últimos anos. Mas foi uma expe-riência terrível, companheiros. E,nisso, acho que os socialistas, se que-rem pensar efetivamente uma agen-da do século XXI, têm de ser absolu-tamente implacáveis. Morreram mi-lhões de comunistas no século XX.O que nós não dizemos muitas ve-zes é que uma boa parte desses mi-lhões morreram na União Soviética,nos campos de concentração do re-gime, no Gulag.

Esses são dados inquestionáveis.Não há condicionantes históricos,“cercos”, “atrasos” etc. que justifi-quem esta barbárie. No máximo, po-dem nos ajudar a entender. Por issoeu serei eternamente parcial nessaquestão, porque quero me colocarno campo do socialismo, não querodeixar essa bandeira para a burgue-sia. Em minha formação como his-toriador, conheci uma primeira ge-ração de historiadores que eram osfamosos historiadores da GuerraFria, que tratavam a história do so-cialismo de forma parcial. Mas tam-bém conheci uma outra geração, a

dos dissidentes, que escreviam pres-sionados por sua história pessoal,mas que tiveram essa capacidade –Juarez lembrava aqui Leon Trotski– de descortinar concretamente a tra-gédia que foi o socialismo no séculoXX, a qual não podemos de maneiranenhuma desconhecer.

Paul Singer e, de certa maneira,Devanir retomaram o tema das viaspara o socialismo com mais ansie-dade. Compartilho a idéia de ValterPomar de que opor conceitualmen-te via democrática e via revolucio-nária não tem sentido. Aqui foi ditoque grande parte dos regimes de-mocráticos se constituiu a partir derevoluções – falo de revoluçõescomo grandes processos sociaisque, na maioria das vezes, têm osseus momentos de exercício da vio-lência revolucionária.

Agora, de qualquer maneira a ques-tão foi bem colocada, houve um mo-mento de debate na esquerda mun-dial, e isso também ocorreu aqui, noqual a idéia da luta parlamentar, daluta social, enfim, daquilo que im-propriamente se chama de luta de-mocrática, era confundida com um

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processo de “acumulação de forças”,como se num determinado momen-to, atingido um certo patamar deacumulação de forças, nós dissés-semos: “Agora vamos partir para abriga”. Esse é o problema, de umamaneira geral: historicamente, colo-car amplos setores da sociedade dian-te de uma decisão de partir para aviolência não tem sido uma escolhado movimento popular ou da esquer-da, tem sido muito mais uma impo-sição das circunstâncias e muitas ve-zes, inclusive, uma pressão que vemde cima, dos opressores.

Se fizermos uma análise mais de-talhada do que foram as últimas dé-cadas do século XX, vemos que nãohá uma tendência para o surgimentode movimentos revolucionários ar-mados. Creio que poderemos vivertalvez uma situação semelhante àque-la que Engels registrou no famosoprefácio de As lutas de classes naFrança. Sobre o que ele estava re-fletindo? Estava refletindo um pou-co sobre o fim de um ciclo históri-co, sobre a derrota da Comuna deParis, que representara uma conti-nuação das Revoluções de 1848, de

1830. Naquela época se estava dis-cutindo se a Revolução Francesahavia cumprido seu ciclo ou não, umpouco depois do centenário. Engelsafirmava que não haveria mais revo-luções no velho estilo porque havianovos tipos de armamentos e as ci-dades estavam sendo reconstruídasde maneira a impedir as barricadasetc. Mas ele dizia fundamentalmenteque não seriam necessárias, porqueos trabalhadores podem fazer o “usointeligente do sufrágio universal”.

Ele estava considerando a exis-tência não só de uma grande classeoperária organizada, mas de umaclasse operária organizada que con-seguia aceder à cidadania, ao mun-do da política.

Podemos perfeitamente estar vi-vendo uma situação semelhante, ain-da que em circunstâncias históricasbem distintas.

É evidente que as esquerdas, asforças democráticas e populares noBrasil, precisam proteger-se da vio-lência à qual podem recorrer as clas-ses dominantes. Eu, particularmen-te, vivi in loco duas experiências trau-máticas. A do golpe de 1964 e a do

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golpe no Chile, em 1973. Elas têmmuito o que nos ensinar. Sem dúvi-da nenhuma, nas duas experiênciasviu-se a brutalidade das classes do-minantes, mas também os erros quea esquerda cometeu e que, de umacerta maneira, deram justificativas àsclasses dominantes.

Ligando a questão da democraciacomo valor universal, da ‘democra-cia burguesa’ etc., que Maringoni co-locou, com o tema ainda anterior,que Paul Singer explorou em sua in-tervenção e foi discutida aqui namesa, também digo que a revoluçãoé um processo que tem sempre duasdimensões. Em primeiro lugar, nãohá a revolução. Eu penso muito maisa revolução da maneira comoGeorge Léfévre discutia sobre a Re-volução Francesa, afirmando queem realidade era uma superposiçãode revoluções: temos uma revoluçãocamponesa, uma revolução popular,uma revolução da burguesia, a rebe-lião da nobreza, a inconformidade deuma parte do primeiro Estado, e poraí vai. Por isso não vejo com muitasimpatia a redução da RevoluçãoFrancesa a uma “revolução burgue-

sa”. Existe sobre isso ampla literatu-ra, inclusive de inspiração marxista,que critica a caracterização da Re-volução Francesa ou das revoluçõesinglesas como revoluções burguesas.

Acho que essa crítica comportapelo menos três dimensões que, meparece, seria útil explorarmos aqui.A primeira: não é evidente que ahegemonia burguesa tenha se confi-gurado plenamente na esteira dessastrês revoluções, e estou consideran-do alguns estudos, particularmenteo do Arno Mayer, sobre a naturezado século XIX, quando ele afirma quenão se trata de um século puramen-te burguês como é visualizado, masde um século no qual a hegemoniada burguesia se estabelece em sim-biose ativa com o Antigo Regime.Não são apenas restos do Antigo Re-gime que “freiam” a modernizaçãocapitalista, mas concretamente algodiferente, um novo tipo de articula-ção do velho regime com uma socie-dade emergente.

Em segundo lugar, a revolução éum movimento eminentemente po-lítico e, nesse sentido, por mais de-terminações econômico-sociais que

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tenha, ela tem uma especificidadeque eu acho que o marxismo, du-rante um longo tempo, teve dificul-dade em pensar. Aqui nesta sala es-tão profundos conhecedores da obrade Marx, e poderão estar de acordoou não comigo. A grande verdade éque em 1848, um ano-chave parapensarmos o destino do movimen-to operário, viu-se o esgotamento,de certa forma, do elã revolucioná-rio da burguesia. Ele se esgotou,entre outras coisas, porque as clas-ses trabalhadoras passaram a seruma ameaça. Como se viu na Fran-ça de 1848 a 1851, que desembo-cou na aventura bonapartista. Masisso também ocorreu no caso ale-mão, onde um afã modernizador,“democrático-burguês”, de parte daburguesia alemã revelou-se absolu-tamente inócuo. Por quê? Porque aproposta de uma “revolução burgue-sa” que alguns intelectuais tinhampara a Alemanha fracassou. Ela nãotinha possibilidade de se materiali-zar. Marx sempre dizia que as clas-ses dominantes alemãs só se encon-traram com a liberdade uma vez –no dia do seu enterro.

Por essa razão, Maringoni, é quenão gosto de falar de democracia bur-guesa. Muitos de nós estivemos pre-sos, alguns fomos torturados, e pen-so que nunca ninguém, no pau-de-arara, ficou perguntando se o habeascorpus fazia parte do ideário da de-mocracia burguesa ou não. Uma sé-rie de valores que são hoje em diaconsiderados valores “democrático-burgueses”, não só não foram con-quistados pela burguesia em revolu-ções que transcendem essa dimen-são da revolução burguesa – à qualdepois se colocou uma etiqueta “re-volução burguesa”, como a Revolu-ção Francesa –, como eles não fo-ram praticados pela burguesia. En-tão, por que vou entregar “de graça”à burguesia determinados valores? Amenos que eu queira outorgar umasignificação ontológica a esses valo-res: esses valores são “burgueses”,aqueles “proletários” etc. A históriamostrou que a “democracia burgue-sa” não foi aquele regime ditatorialque muitas vezes os marxistas diziamque era, e a ditadura do proletariadonão foi aquele regime democráticoque se anunciava. Por isso prefiro

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muito mais uma análise de naturezahistórica sobre a questão.

Unidade política ou diversidadeideológica? Imagino que você sejaateu como eu. Nesta reunião, creioque há muitíssimas pessoas que sãocrentes, outras agnósticas. Isso con-figura uma profunda diversidadeideológica entre nós. Este é um en-tre dezenas de outros exemplos; mes-mo entre as pessoas que acreditamem Deus e as que não acreditamhaverá diversidade ideológica. Paraque serve a ideologia? Serve parauma tarde como essa, para nós dis-cutirmos. Agora, na ação política,pode ser um empecilho terrível, quesó nos cria dificuldades. Se quere-mos um socialismo pluralista no qualexistam ateus e não-ateus, no qualexista diversidade ideológica, é bomque comecemos a praticar dentro dopartido. Senão, depois vai ser umpouco difícil termos essa tolerânciana sociedade.

Considero sintomáticas as discus-sões filosóficas que os bolchevistasfizeram em determinado momento,como aquela que redundou no livroMaterialismo e empirocriticismo. Que

elas fossem discussões filosóficaspertinentes, tudo bem; já sua inci-dência sobre a política me parece umpouco complicada.

Penso haver respondido às ques-tões que o Aparecido colocou sobreos partidos reformistas que foramapeados do poder. No entanto, elecoloca outra questão, a dos sujeitos.Não compartilho a tese sobre o fimdo proletariado. Mas são indiscutí-veis as profundas modificações queas classes trabalhadoras sofreramnesses últimos anos.

Sou muito sensível às questões queo Paul Singer levantou, mas não gos-taria de entrar numa discussão con-ceitual sobre o que é o socialismo.Procurei, de uma certa maneira,tratá-la no meu texto, sem dúvida ne-nhuma com muita insuficiência, noentanto acho que existe um aspectofundamental, que é o problema dasocialização das relações sociais. Sefor verdade o que o Valter Pomar nosdiz, que de qualquer maneira a pro-priedade tem de ser socializada, po-demos afirmar que talvez seja umacondição necessária, mas não é umacondição suficiente.

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Em vários países, e em especialna Rússia, em determinado momen-to, toda propriedade foi socializada.No entanto, o que vimos? Persistên-cia de formas de opressão. Não hou-ve revolução das relações sociais. Asformas de opressão na sociedade so-viética fariam inveja aos piores mo-mentos da revolução industrial. Va-mos ter isso claro: isso não é propa-ganda anticomunista, é história con-creta. Houve lá, entre outras coisas,utilização de trabalho escravo. A pro-priedade estava em mãos do Estado,havia sido socializada. Não houve so-cialização da política.

Dulci pergunta sobre as fontes ori-ginais do socialismo. Elas são diver-sas em cada país. Fiquei muito sur-preendido com uma pesquisa recentepublicada no Brasil, em que 50% dapopulação brasileira se definiu favo-rável ao socialismo. Algo está errado,ou o socialismo ou a população, masseguramente não se trata do socialis-mo que estamos discutindo aqui. Po-dem ter absoluta certeza, não é esse.Com todas as diferenças que temosaqui, e não são poucas, sem dúvida oque as pessoas estão entendendo por

socialismo deve ser algo muito, muitodiferente. Então, temos de dar umaatenção muito grande para a consti-tuição de uma cultura política no país.

Dulci e outros aqui também levan-taram um tema importante: a agendasocialista é ou não é clássica? É umpouco como a nossa agenda pessoal.No dia 22 de junho faço aniversário,só que este ano fiz 60 anos, e há 40anos fiz 20. A agenda é a mesma, osdias são os mesmos, só que as cir-cunstâncias mudaram. É verdade,Dulci tem razão, que alguns temasapareceram, mas isso sempre foiassim. A democracia liberal, em1830, não envolvia o sufrágio. Mes-mo quando pregava o sufrágio uni-versal, ela não previa que as mulhe-res votariam. Sufrágio universal eraalgo para os homens. Portanto, há,sem dúvida nenhuma, temas novos.Há temas que vão ganhando novida-de, e, como Juarez Guimarães com-preendeu bem e fez menção a isso,não tive nenhuma pretensão de cons-tituir uma agenda nova aqui.

Quando eu falo em fins e proces-so, não estou dizendo que o proces-so é mais importante que os fins.

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Estou dizendo que o processo é tãoimportante quanto os fins, e que háuma relação – perdoem o palavrão –dialética entre processo e fins. Exa-tamente porque essa relação foi rom-pida no passado, deu no que deu. Ea forma mais perversa disso é a fór-mula de que os fins justificavam osmeios. Determinados meios levam,inclusive, a desfigurar os fins, por-que os fins do socialismo que esta-vam estabelecidos são tão geraisquanto os que apresentei aqui, só queeu assumo a nebulosidade e outros,não. Não se trata de construir umjardim edênico lá no final; esse pro-cesso não tem fim, é um processo...

Nesse particular, alguns dos temasque estavam antes cotados comomuito importantes – o fim do Esta-do, para citar um deles – não meparecem ser temas pacíficos. Nãotenho clareza alguma sobre o fim doEstado; já tive durante muitos anos.Aliás, quem disse que o Estado sefortalecia, debilitando-se, lamenta-velmente não foi Stalin, foi o ante-cessor dele. E quero concluir comessa reflexão de Lenin, que está emEstado e revolução.

Qual é o problema que temosaqui? Vou invocar um autor que seique terá simpatias em alguns seto-res da platéia, para mencionar umpouco o que eu disse na minha in-tervenção – num tópico muitocurtinho, por sinal, que eu deveriater desenvolvido mais, porque eleestabelece uma ponte entre a lutapelo socialismo e as mudanças. Oque eu disse e insisto é que o ‘capi-talismo realmente existente’ – sem-pre se falava do socialismo realmen-te existente, então quero falar docapitalismo realmente existente –tem uma enorme dificuldade, quan-do não incapacidade, para realizarreformas, mesmo as que, do pontode vista teórico e abstrato, podemser consideradas totalmente compa-tíveis com o capitalismo.

Agora, eu não vivo no mundo dateoria, eu posso viver da teoria parareceber meu salário. Vivo no mundoconcreto, e nele algumas dessas re-formas que são apresentadas comoliberais, capitalistas, não são “absor-víveis” pelo capitalismo. E, quandosão aplicadas, exercem sobre o ca-pitalismo real um efeito desesta-

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bilizador e, portanto, criam uma di-nâmica diferente na sociedade, par-ticularmente se há um movimentosocial forte. Quem disse isso não fuieu. Quem explorou essa idéia cominteligência, brilho, ainda que tenhachegado a conclusões discutíveis, foium senhor chamado Lev DavidovichBernstein, mais conhecido comoTrotski. E formulou essa idéia pri-meiramente em seus textos de 1907,depois em seu Revolução permanen-te e, finalmente, tentou transformarisso em uma espécie de sistemáticapolítica no seu chamado Programade transição.

E, respondendo rapidamente à per-gunta de Ruth Barros, na relação como PL a única coisa que não me preo-cupa são os evangélicos.

Clara Charf, da Secretaria deMulheres do DN-PT

Quando estava entrando aqui en-contrei o companheiro Luiz Marinho,do Sindicato dos Metalúrgicos doABC, que já estava de saída porquetinha um compromisso. Perguntei aele o que os operários dizem do so-cialismo. Ele disse: “Ah, Clara, os

operários estão discutindo empre-go...”. Foi a primeira resposta rea-lista que encontrei, logo de saída.

Essa questão do socialismo é mui-to delicada para discutir – não aqui,talvez, numa platéia politizada, cul-ta, que lê etc. Mas, mesmo entre estaplatéia e outras, há um problema de-licado de como fazer a abordagem.Por exemplo, me aproximo de umapessoa e ela me pergunta: “Clara,você luta pelo socialismo há tantotempo, e essa causa não venceu atéagora. Quando vai ser? E afinal decontas, o que é o socialismo?”. Nor-malmente usamos exemplos: emCuba tem emprego, Escola de Me-dicina de graça. Quem ouve isso con-clui: “Ah, então socialismo é ter em-prego, ter educação de graça...”. Ecomeça a raciocinar pela maneirasimplista. Não precisa de muita teo-ria, pensa a partir da vida. Dizemosque o primeiro grande país socialis-ta foi a União Soviética. E ela derro-tou os nazistas, fez uma série detransformações importantíssimas,mudou o mundo e depois foi derro-tada. Se era tão bom, por que foi der-rotada? Se era real, então, no final,

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não era, porque o realismo naquelaépoca não se confirmou para sem-pre. Mas existe o socialismo da Chi-na, o socialismo de Cuba, o Vietnã,que também se afirmava como umarevolução socialista – pelo menos fi-zemos essa propaganda, que era umalibertação nacional via socialismo. OVietnã derrotou os norte-americanose depois afundou, porque o que exis-te lá hoje não é revolução socialista,nem a revolução de independêncianacional, com todo o respeito queeu tenho pelo processo vietnamita,que ajudei a propagar.

Então, há uma série de questõesque são muito mais complexas paradiscutir do que essa simplicidade quese apresenta às vezes.

O PT foi formado por gente quelutou e continua lutando para trans-formar essa sociedade. Se não racio-cinarmos desse jeito, não vamos con-seguir dialogar com a população,porque essa história é muito fan-tasiosa às vezes, muito cheia de fra-ses feitas, de citações, e não basea-da na realidade das pessoas, quequerem outro tipo de vida. Por queo PT está crescendo nas pesquisas?

Hoje mesmo o rádio estava dizendoque Lula já está com 35%, está su-bindo etc. Outros podem dizer queisso não adianta, porque governarnão é fazer revolução. Tudo bem,não é. Então não vamos governar,vamos entregar todas as prefeiturasque ganhamos e ver qual é a manei-ra de chegar a governar. Terá de serpela via das armas? Já tentamos issona década de 1960 e não deu certo.

Vejam vocês, companheiros, esseraciocínio parece uma coisa meiolouca, mas é a realidade do proces-so político no nosso país. Eu fui mi-litante do Partido Comunista. Qualera a concepção naquele tempo? Queia se instaurar no país o sistema so-cialista. Naquela época ainda existiamos países do bloco socialista, tudoera ótimo, o povo tinha conseguidoconquistas importantíssimas na suavida diária, na cultura, no lazer, noemprego etc. Queríamos uma socie-dade socialista e fazíamos propagan-da por aquele tipo de sociedade, quedepois redundou no que conhece-mos. Foi aquela sociedade que der-rotou o nazismo, ela tinha força, be-leza, atração, emoção, e a luta que

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nos movia a todos era essa, e comofazê-la no Brasil, com um anticomu-nismo violentíssimo, principalmentedos setores religiosos naquela épo-ca, uma vez que a maioria das reli-giões era contra os comunistas e oscomunistas eram contra a religião.Estava tudo errado, porque o povonão era assim. O povo queria trans-formar a sociedade e tinha a sua re-ligião. Trabalhávamos com essaspessoas no dia-a-dia e, quando en-trávamos na discussão teórica, co-meçava o embate. Mas na hora daprática todo mundo se juntava paralutar. Lutar para transformar a vida,por habitação, por saúde, por em-prego. Lutar por um sonho que erauma sociedade diferente, que é o quequeremos até agora.

Achei importantes todas as expo-sições, mas acho que alguma coisanão está boa para discutirmos nomeio do povo e na militância maissimples do PT – quando digo maissimples, quero dizer a que não teveacesso à leitura, que não teve for-mação marxista ou mesmo religiosaou cultural de nível mais alto. O queeles querem saber é o que queremos

com essa transformação da socie-dade. Então não adianta dizer que ago-ra temos de falar em socialismo. Eufalo de socialismo toda hora, quan-do é preciso falar. Mas quando medirijo como petista ao meu vizinho,ao companheiro de trabalho ou auma outra pessoa e digo que preci-samos lutar para derrubar esse go-verno, mudar essa sociedade etc.,não posso falar em socialismo 24 ho-ras por dia, porque a primeira per-gunta é: quando vocês tomarem opoder, o que vocês vão fazer? Se oLula for eleito, ele vai fazer o quê?Ele vai fazer socialismo? Como é osocialismo do Lula, ele vai tomar afábrica? Vai dividir as coisas que tem?Foi isso o que Fernando Collor dissena campanha eleitoral, que se Lulaganhasse íamos dividir as camisas,os sapatos, essas loucuras todas.

Então, temos uma forma de nosexpressar partindo da realidade, res-peitando a teoria, o estudo, a com-preensão dos fenômenos políticosnacionais, internacionais e tal, e dia-logamos com a sociedade de outramaneira, ou não conseguimos dis-cutir as perspectivas para o socialis-

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mo. E não é para o século XXI. Épara amanhã, para o próximo ano,para a campanha do Lula. Porquetodo mundo pergunta a razão dacampanha contra Lula, da rejeiçãoem muitos lugares. As elites conti-nuam dizendo que se Lula chegar aogoverno ele vai dividir tudo, vai to-mar terra do pequeno, do grande, domédio; vai tomar as fábricas – algoque nunca mais o movimento sindi-cal levantou, até como forma de luta.Os sindicalistas hoje se esgotam nodiálogo; até em determinados mo-mentos, quando o próprio proprie-tário vai à falência, os operários to-mam a fábrica, a tocam de maneiracorreta e ela dá lucro. Isso é umexemplo. Ou partimos dessa vidaprática, para as pessoas entenderemo que é a questão do socialismo, ouvamos ficar fazendo discurso e quemfalar de socialismo mais de uma vezpor dia fica sendo mais de esquerdae os outros que falam menos não sãode esquerda. Eu não aceito isso.

Maria Victoria Benevides, pro-fessora da Faculdade de Educaçãoda USP

Gostei muitíssimo de ouvir as ex-posições de todos os companheirosda mesa, sem exceção. Não vou pro-priamente fazer uma pergunta, masgostaria de fazer uma consideraçãosobre um tema que julgo da maiorimportância para se discutir juntocom a nossa proposta socialista, emrelação ao qual o PT tem sido muitocauteloso. Eu me refiro à relação entreo socialismo e o direito, no sentidode que nós cansamos de ouvir que osocialismo é bagunça, baderna etc.E estou ampliando a idéia de direitonão apenas para regras de convivên-cia, de participação política, direitosde cidadania etc., mas num planomais amplo, que acho que está in-trinsecamente ligado às lutas socia-listas do século XIX, que vieram co-mo valores do socialismo: o respei-to, a proteção e a promoção dos di-reitos humanos fundamentais.

Digo que é um assunto sobre o qualo PT tem sido cauteloso porque, in-felizmente, na nossa sociedade há taldesvirtuamento do que sejam direi-tos humanos que na maioria das ve-zes é melhor não falar no assuntopara não ser atacado como defensor

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de bandido. Então vejo que o queexiste de essencialmente diferenteentre o regime capitalista, tambémdo ponto de vista da democracia po-lítica, e um regime socialista, do tipodo socialismo soviético, é exatamen-te a questão dos direitos humanos –tanto para os regimes capitalistas,quando enfatizamos os direitos so-cioeconômicos e culturais que o ca-pitalismo repele, como para os regi-mes do chamado socialismo real, noque diz respeito aos direitos cívi-cos e às liberdades públicas, semos quais, aliás, nós nem estaríamosaqui, não teríamos fundado o PT;Marco Aurélio Garcia não teria con-seguido sobreviver à perseguição em1964 e à perseguição no Chile; e que,ao serem derrubados, levaram à tra-gédia que tivemos com os nossosperseguidos banidos, exilados, assas-sinados, desaparecidos etc.

Então, quero enfatizar que há umarelação profunda, inequívoca, comouma verdadeira marca, entre socia-lismo e direitos humanos fundamen-tais. Não devemos temer enfatizaressa verdade que é, sim, revolucio-nária. Porque aí está praticamente

tudo o que foi dito aqui, os direitoscivis e as liberdades individuais epúblicas. Os direitos sociais econô-micos e culturais e os direitos dahumanidade, dentro dos quais ca-bem, por exemplo, os direitos aomeio ambiente sustentável e à auto-determinação dos povos. E, dentroda questão da igualdade, que me pa-rece o ponto culminante da questãodos direitos humanos e do socialis-mo hoje, aparece também essa no-vidade do direito não só à igualda-de, mas à diferença. Com toda essaproblemática da globalização hoje,discutir o direito à igualdade e à di-ferença é fundamental. Essa era aprimeira consideração.

A segunda se refere à afirmaçãodo companheiro Paul Singer de quea construção do socialismo nãoocorrerá via Estado, mas vindo dasociedade. Concordo que tem de virda sociedade, mesmo porque, comoprofessora e fazendo parte de umaFaculdade de Educação, que formaos futuros professores etc., levomuito a sério a questão educacional,e acho impossível a viabilidade dequalquer proposta socialista sem a

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mudança das mentalidades. Isso éimpossível também para os direitoshumanos. E o exemplo soviético éprova disso, 70 anos não impediramque, quando o regime ruiu, afloras-sem nacionalismos, religiões, ódiosaos diferentes etc. Assim, todo umprojeto de educação política que seancora fortemente numa mudançade mentalidade é essencial, mas ficome perguntando se do lado do Esta-do não há também muito a fazer nosentido de que algumas coisas terãode ser impostas. Aí volta a questãodo direito. Há todo um lado do direi-to que ou será imposto ou não virá,por causa da famosa e vivíssima cor-relação de forças – e o Marco Auré-lio sempre brinca dizendo que va-mos festejar o cinqüentenário da cor-relação de forças –, mas, enfim, temque haver um mínimo de imposiçãodo Estado dentro das regras demo-cráticas de convivência, em relaçãoa Executivo, Legislativo, Judiciário,para que algumas coisas aconteçam.

Fico pensando, por exemplo, emtoda a legislação contra o trabalhoinfantil ou o trabalho escravo etc.:há muita controvérsia sobre isso. Por

quê? Porque os próprios pobres sãofavoráveis ao trabalho infantil, masisso contraria fortemente os direitoshumanos e as propostas socialistas.A discriminação contra a mulher, adiscriminação contra o diferente, asvárias formas de racismo, tudo issovem sendo tratado a partir das duascoisas, de um movimento na socie-dade, mas também de movimentosconcretos do direito, quando um cri-me é tipificado, quando uma políti-ca pública de amplo alcance popu-lar é imposta.

Outro exemplo: fico me pergun-tando o que será de uma política derenda mínima sem o papel do Esta-do. Eu considero que uma políticade renda mínima vai no caminho dosocialismo. Ela não é suficiente, masvai nesse caminho e/ou ela é assu-mida pelos governos, que são a car-ne e o osso do Estado, ou não seráassumida por ninguém. A mesmacoisa nas formas de democracia di-reta: estão na nossa Constituição,mas têm de ser assumidas legalmentepelos estados e governos, desde ofederal até o local, para que se possaimplantar o orçamento participativo,

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os conselhos, o referendum, os ple-biscitos etc.

A última coisa que queria enfatizaré o valor da solidariedade, um dosvalores essenciais na história do so-cialismo até hoje. E insisto muitocom meus alunos que essa solidarie-dade não é caridade nem terceiro se-tor, mas um conjunto de políticaspúblicas que a tornam uma virtudepolítica e pública, e não uma virtu-de pessoal.

Então, todos esses programas deimpacto social partem do princípioda solidariedade, tanto no nível na-cional como no nível internacional.

Muitas vezes me perguntam sobrea tal via democrática, ou a via revo-lucionária, e digo que se o Brasil che-gasse ao nível de um país como aFrança, que tem até o imposto da so-lidariedade, que também vem do Es-tado, eu já ficaria satisfeitíssima. Nãoé suficiente porque jamais teremosuma sociedade perfeita, mas é umavanço muito grande. Quando mo-rei na França, há 30 anos, fiqueidoente e precisei contratar uma fa-xineira, e me impressionou, mais doque uma relação de igualdade formal

que tivemos, e isso foi simbolicamen-te importante, o fato de que ela fez opré-natal no mesmo serviço de saú-de que eu, que tinha um status so-cioeconômico e cultural muito aci-ma do dela. Nossos filhos foram paraa mesma escola, isso há mais de 30anos, o que é absolutamente impos-sível aqui no Brasil. E isso na Françamoderna foi conseguido via direito epela via democrática, embora tenhaexigido uma pressão muito grandeda sociedade. Uma coisa que me im-pressiona na França é justamenteisso: as pessoas podem discutir se oimpôt solidarité é alto ou baixo, masnão se discute se ele é justo ou in-justo, ou seja, eles acham que é me-lhor uma sociedade minimamenteigualitária do que uma com uma bru-tal concentração de renda. Este erao ponto que gostaria de enfatizar, aquestão do direito, dos direitos hu-manos e o valor histórico da solida-riedade com suas conseqüências prá-ticas num momento em que um par-tido socialista assume o poder.

Cesário Silva, presidente nacio-nal do Movimento Evangélico Pro-

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gressista, diácono da Igreja Evan-gélica Assembléia de Deus e dirigen-te do Partido dos Trabalhadores emJundiaí, SP

Hoje os evangélicos progressistastêm uma visão socialista definida, in-clusive à luz da Bíblia; assim, gosta-ria de perguntar a Valter Pomar, aoprofessor Marco Aurélio Garcia e aoprofessor Juarez Guimarães comovocês, petistas, socialistas, vêem osevangélicos progressistas na atualconjuntura, sob a perspectiva da lutapelo socialismo neste século?

Ibraim Farrah, membro do Co-mitê Chico Mendes

Meus irmãos, como fundador doPT também adorei o debate e esperoque levem essa experiência para ou-tros estados; no meu Acre tambémtem gente que adora debater a ques-tão do socialismo.

Adorei a discussão, ela foi be-líssima, mas, se eu levar essa dis-cussão lá para o meio do seringal,eles vão comer todos vocês. Por-que nós vamos tratar do socialis-mo científico, a verdade, mas a ver-dade certas horas não vale nada no

meio de um povo que tem medo decomunismo. Então, quando o PT foifundado no Acre, a única forma deisso acontecer foi unir a teoria mar-xista com esse marxista que se cha-ma Jesus Cristo, que inventou oskibutz e eu tentava repassar issopara o povo, mas não como socia-lista ou comunista, porque, se eu fa-lasse de comunismo, o povo se afas-tava de mim.

O PT, para mim, é um partido demassa, não é um partido socialista,mas um caminho para o socialismo.Então, se souberem adaptar o queos três companheiros falaram aqui,e eu acho que o PT demonstrou quesaberá, nós iremos muito mais lon-ge. Porque começar com a teoriamarxista dentro dos seringais, den-tro das comunidades, não deu cer-to, mas se se integra esta questão nacultura religiosa da população, é di-ferente. Hoje o Acre é todo tomado,nós tomamos terra, seringal, lutamoscontra tudo. Mas não poderíamoscolocar a teoria marxista na frente.

E, como membro do ComitêChico Mendes, queria lembrar queesse companheiro merece uma ho-

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menagem, é um companheiro quesaiu daí, dos seringais, recebia hós-tia, depois entrou para o PRC [Parti-do Revolucionário Comunista], cer-tas horas queria guerrilha, depoisevoluiu para a comunicação de mas-sa. Quando nós descobrimos que aeducação é libertadora, como faloua companheira aqui, só nos seringaisdo Acre, junto com Chico Mendes,que foi quem começou, criamosmais de 50 escolas dentro dos serin-gais, de seringueiro para seringuei-ro. Hoje ganhamos a prefeitura deXapuri duas vezes, e aí se junto aisso nós devagarinho levarmos a teo-ria socialista para eles, eles viram umChico Mendes.

GabrielSou aluno de direito, não sou filiado

ao PT, mas venho de uma família quesempre teve uma tradição petista. Foibem abordada essa questão da de-mocracia liberal, mas acho que a de-mocracia vem antes da idéia de bur-guesia, de liberalismo, então é algoque tem de se manter inclusive como socialismo. Li a introdução do pro-fessor Paul Singer ao livro Capítu-

los sobre o socialismo, de Stuart Mill,da Editora Fundação Perseu Abra-mo; acho que esta seria uma via parapensar o socialismo reformista.Acho que revolução é diferente doque Valter Pomar disse, hoje em dia,mas gostaria de saber da mesa comoé pensada a forma de resistir aosconstrangimentos que vão ser im-postos pelas estruturas hegemô-nicas, os países centrais do capita-lismo, a qualquer tentativa de esca-par desse contexto, em qualquerforma de socialismo.

Acho que o debate teve um come-ço academicista, depois um nívelmais palatável para todo mundo; écomplicado, até na academia discu-timos muita coisa sobre socialismoe não chegamos a lugar nenhum –com relação à democracia, às vezes.

Gostaria de perguntar também oque vocês acham do fortalecimentodo Estado como gestor dessa novaforma de desenvolvimento da ciên-cia, citada pelo professor Juarez Gui-marães. Na verdade, acho que não éapenas ciência o que está faltandopara o Brasil, mas tecnologia tam-bém; encaro as duas de forma um

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pouco diferente, porque no meu en-tender a tecnologia seria uma formade aplicar ao sistema produtivo o queé descoberto nas academias.

Paulo, militante do PT de SantoAndré, SP

Uma pergunta para os trêsdebatedores, antecedida de um co-mentário rápido. Sou daqueles queentendem que o capitalismo é a for-ma de organização social em que al-guém com capital pode ir ao merca-do e comprar horas de trabalho deoutro ser humano e pô-lo para tra-balhar para si. Se nós formos até apraça da Sé, vamos encontrar ummonte de agências de emprego nasquais as pessoas se dispõem a ten-tar conseguir uma colocação ou não.Isso para mim é a característicamáxima do capitalismo e, em con-traponto, o socialismo é aquela so-ciedade em que esse exercício domercado, comprar por dinheiro, porcapital, horas de trabalho do ser hu-mano, é impedido pelo Estado oupelo coletivo.

No entanto, quero fazer uma per-gunta bastante objetiva para os três

debatedores: seja por uma via revo-lucionária, por ruptura armada, sejapor uma via pacífica, por etapas de-mocráticas, chegando ao extremo deatravés do mercado de ações iremse socializando os meios de produ-ção, é condição sine qua non paraesta ou aquela tática a mobilização, aorganização, a formação e a cons-cientização do povo, das pessoas,dos brasileiros. Nesse sentido, achoque se falou muito pouco e me pare-ce que está nessa omissão a raiz deuma democracia etérea e abstrata, enão concreta e real. Sou dos funda-dores do PT, sou de Santo André, e,no ABC, o PT, o movimento popular,está de freio de mão puxado, essa éa leitura. O Partido dos Trabalhado-res renunciou a fazer o trabalho...Não se fala mais de núcleos, traba-lho de base. Quando foi fundado oPT tinha voz, tinha peso, a palavrade quem tinha trabalho de base. Hojese você for falar para a moçada queestá chegando de trabalho de base,já nem se sabe mais o que é. Querdizer, não existe uma orientação po-lítica nesse sentido; pelo contrário,minha desconfiança é de que existe

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uma renúncia deliberada por umaestratégia de mobilização, de orga-nização, de conscientização, de acú-mulo de forças. Será que essa mi-nha desconfiança de uma renúnciadeliberada procede? Esta é a pergun-ta para a mesa.

Juarez GuimarãesVou tentar agrupar as considera-

ções sobre as questões. A primeiradelas é a relação entre a nossa dis-cussão e o Brasil e a consciência po-pular, que foi abordada por váriaspessoas muito enfaticamente, e queeu acho que é mesmo fundamental.Marco Aurélio fez menção a umapesquisa que foi publicada pela im-prensa, que se referia ao fato de umaparcela significativa dos brasileiros,se não me engano mais de 50%, se-rem a favor do socialismo e 57%serem a favor de uma revolução so-cialista no Brasil. Era mais do que osocialismo. E a pesquisa, feita peloIbope, sofreu uma segunda interpre-tação, feita por pesquisas qualitati-vas, e foi então que o dado me pare-ceu mais interessante, porque foramperguntar ao povo o que ele enten-

dia por socialismo ou revolução so-cialista, e eles responderam: amiza-de, cooperação, partilha, solidarieda-de. Mas nossa idéia é que todos es-ses são valores importantes para aconstrução do socialismo. Amizade,partilha, solidariedade etc. são valo-res antimercantis, contrários a umahierarquia de mundo, a uma visãomesquinha do ser humano, comoformulado nas teses liberais. A pes-quisa não trata das fontes desses va-lores. Acredito que igrejas cristãs te-nham um papel muito importante naformação desses valores e, se fôs-semos analisar a sensibilidade cultu-ral do país mais além dessas pesqui-sas, veríamos que ela é profunda-mente marcada pelo que poderíamoschamar de cultura do comunitarismocristão e popular. O povo foi desdesempre retirado da comunidade po-lítica como personagem ativo, nãopôde – como muito bem demons-trou Caio Prado Júnior, com todasas suas obras –, através de um con-texto de dignificação do trabalho, ex-pandir a sua vocação nesse aspecto,mas ele pôde desenvolver sua voca-ção criativa e suas visões de mundo

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no plano da cultura. E a cultura nonosso país é profundamente marca-da por essa sensibilidade popular, in-clusive nas suas manifestações ar-tísticas, nos seus símbolos, nas suasidentidades. Acredito que a constru-ção de uma consciência socialistaterá que se fundir com essa sensibi-lidade popular, com esses valores quesão resistentes à ótica mercantil e,nesse sentido, eu responderia à ques-tão de qual o papel dos evangélicos.Os evangélicos que traduzem essesentimento cristão são nossos com-panheiros na construção dessa cons-ciência socialista, dessa consciênciaanticapitalista. Não tenho nenhumadúvida disso. Consultando as biogra-fias pessoais, na protoforma do nos-so processo formativo, quantos denós não chegamos ao socialismo viavalores cristãos? Eu próprio cheguei.Minha primeira sensibilidade forma-dora foi a sensibilidade cristã, a idéiada dignidade, da transcendência hu-mana, da solidariedade me veio atra-vés da cultura cristã ensinada porminha mãe e por meu pai.

E, por fim, a questão do compa-nheiro Gabriel. Parece-me muito im-

portante porque eu acredito que aúnica maneira de um governo Lula,por exemplo, fazer frente às pres-sões internacionais será constitu-indo um forte setor público, o quesignifica recuperar agentes econô-micos, capacidade de regulação,capacidade de financiamento dosetor público, legitimidade política,fazer crescer formas de democra-cia participativa, isto é, dar formaa um setor público por meio doqual seja possível fazer a media-ção com as pressões do mercadointernacional. E, para concluir, issonão significa necessariamente umaforma estatal, mas compreenden-do o setor público como um setornão-governamental não dirigidopelo princípio diretor do lucro, comcapacidade de regulação pública.Isso configura uma idéia de públi-co que seria fundamental para re-sistir às pressões internacionais e es-tabelecer um patamar possível denegociação com essas forças.

Valter PomarVários companheiros vieram aqui

falar de como levar esse debate ao

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povo. Acho que não devíamos com-plicar muito assuntos que a históriajá resolveu tantas vezes. Se há umatradição, além da Igreja, que se ca-pacitou a organizar a população, adiscutir política com a população, in-clusive conceitos complexos, é a tra-dição socialista.

As duas experiências que me vie-ram à mente quando estava se falan-do aqui foram os Cadernos: o livri-nho vermelho do Mao Tse-tung e oDiamat, materialismo dialético, fo-ram tentativas de vulgarização, de fa-zer os conceitos chegarem ao povode maneira simples. Do ponto de vis-ta teórico foi uma tragédia. Pode tersido politicamente eficaz, isso é ou-tro assunto, mas teoria exige estu-do, seriedade, empenho e é comple-xo mesmo. Marco Aurélio citou Ma-terialismo e empirocriticismo, que éum catatau. Pode ser bom ou ruim,mas é um catatau filosófico, foi es-crito para fundamentar a luta políti-ca entre dois grupos dentro da fra-ção bolchevique, entre AlexanderBogdanov, que era um médico quedepois veio a morrer fazendo expe-rimentos com ele mesmo, e Lenin.

Então veja, do meu ponto de vistaessa gente merece respeito, porquefundamentava suas posições ao limi-te. Isso merece ser valorizado.

Em relação ao problema dos evan-gélicos, quero separar a resposta.Pelo mesmo princípio que defendoa separação Igreja/Estado, quero tero direito de afirmar que, do ponto devista pessoal, considero que a cren-ça em Deus é contraditória com aidéia de uma sociedade sem aliena-ção. Isso é minha crença pessoal.Tenho essa posição filosófica, teóri-ca. Quero uma sociedade humanaautocentrada, ou seja, centrada naidéia de humanidade, não numa for-ça externa que nos governa. Em se-gundo lugar, acho que teoria é teo-ria, religião é religião; tenho dificul-dade de fundamentar a opção pelosocialismo com base na Bíblia, masrespeito quem acha que é possívelfazer isso.

Terceiro, acho que tem de se dife-renciar os valores populares, ligadosà religiosidade popular, da Igreja ofi-cial. A Igreja tem um histórico decrimes contra a humanidade, a Igre-ja oficial que rivaliza e supera coisas

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que foram faladas aqui. Outra coisaé a religiosidade popular, que temcomponentes terríveis e positivos.Acho que não devemos mitificarnada. Agora, isso é minha opiniãopolítica, teórica. Outra coisa, queacho que temos de defender no pe-ríodo atual, muito mais que a sepa-ração Igreja/Estado: vi várias cam-panhas eleitorais, vou citar a de Cam-pinas (SP), que acompanhei de pertoe me preocupou ver que a ofensivada direita contra nós era centrada notema da religiosidade, e a nossa rea-ção começou a ser também a defesade que Deus estava conosco. Co-meçaram a falar isso em comícios,e eu falei: “Pelo amor de Deus...”. Eeu não devia falar isso aqui, mas souproduto de um experimento trans-gênico, é a quarta geração de ateís-mo, é um processo de cultivo.

Mas acho que existe espaço na lutapolítica para a convivência dentro deum mesmo partido de pessoas comcrenças religiosas completamente di-ferentes. Tudo o que falei não impe-de que isso aconteça, ao contrário,e não tem nada de novo: o primeirocomissário de Educação do gover-

no bolchevique se chamava AnatoliLunacharsky, era conhecido comoo bolchevique que acreditava emDeus e estava lá, no primeiro gover-no revolucionário em 1917.

Para encerrar, três pontos rápidos.Não acho razoável construir uma teo-ria política da democracia no socia-lismo baseada na mobilização perma-nente. Isso é bom para escrever, masnão existe. A capacidade de susten-tar um governo popular ou um go-verno socialista tem de envolver ele-mentos de democracia que não se-jam só baseados na mobilização per-manente do povo. Você não susten-ta a mobilização permanente, tem deter elementos de democracia repre-sentativa, de organização institucionaletc. Segundo ponto, Marco AurélioGarcia, tanto quanto eu, respondeude maneira metafórica àquela ques-tão cabulosa que nos foi colocada;acho que o cenário internacional seráde crescentes restrições às liberda-des democráticas, o que está acon-tecendo nos Estados Unidos, porexemplo, de restrições às liberdadescivis, a ofensiva contra a soberanianacional, a restrição ao funcionamen-

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to, mesmo do jeito que é, todo este-reotipado, esse é o cenário interna-cional. Acho que ele não é de amplia-ção de democracia no mundo, é derestrição, e creio que devemos in-cluir essa constatação em nosso de-senho estratégico.

Última questão, sobre o problemado socialismo. Ao contrário do Mar-co Aurélio, qualquer socialismo já mesatisfaria, vou ser bem franco. Qual-quer maneira de falar do socialismovale a pena, porque acho que temosum problema simbólico. Houve umtempo, dez anos atrás, ao contráriodo que foi dito aqui, que dizer que oPT era socialista afastava as pessoas.Hoje não é mais assim: é engraçado,mas uma das vertentes de ataque aoPT é dizer que o PT já não é maisaquele, que é moderado, que aban-donou seu radicalismo, que vai che-gar no governo e fazer a mesma coi-sa que os tucanos, vai trair. Esse é odiscurso pesado da direita contra nós.O melhor porta-voz disso é a Folhade S.Paulo. O povo foi traído mui-tas vezes neste país. Eu acho quevale a pena para o PT, inclusive doponto de vista da disputa político-

eleitoral do ano que vem, reafirmarque nós somos socialistas. O que issosignifica, como vamos chegar lá,isso se pode discutir, mas devemosafirmar que defendemos uma socie-dade baseada em outra maneira deorganizar, o povo entende, acho quea pesquisa mostrou isso.

Marco Aurélio GarciaFaço minhas as considerações de

Valter Pomar sobre uma certa dificul-dade do debate teórico. Fomos con-vocados aqui para um debate teóricoe tratamos, bem ou mal, de realizá-lo. Não temos de levar o socialismopara ninguém. Socialismo não é umamercadoria que você leva. Na açãopolítica, vamos enfrentar desafios e,em função deles, construir alternati-vas, propor, aprender etc. Quantomais estivermos impregnados de boasconvicções, melhor vai ser nossa ca-pacidade de produzir essas políticas.

Às vezes me incomoda uma certaforma de desqualificar o debate: de-pois de três, quatro horas de discus-são, o que vamos fazer com o quese discutiu aqui? Cada um faça o quebem entender.

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Maria Victoria Benevides nos co-locou uma questão importante: a es-querda, de uma maneira geral, tra-balhou com muita dificuldade as re-lações com o direito, porque o direi-to era uma “superestrutura”, faziaparte da “democracia burguesa” etc.,e o Estado de direito, no fundo, erauma armadilha da burguesia para me-lhor exercer a dominação etc. O quese opunha a isso era uma idéia derevolução permanente, por assimdizer – não estou me referindo aoconceito de Trotsky. Uma idéia deque as regras nós vamos fazendo nodia-a-dia. Mas é importante que hajanormas, regras. O Estado de direitoé extremamente importante. Não po-demos deixar o Estado de direito nasmãos da burguesia, até porque aburguesia é a maior infratora do Es-tado de direito. O Estado de direito éuma condição necessária, mas nãosuficiente. Propus na agenda queapresentei, a articulação da democra-cia representativa com a democra-cia direta, porque na democracia re-presentativa temos uma temporali-dade um pouco mais alongada, éaquela que trabalha mais no longo

prazo, as eleições se dão num certoperíodo, as leis têm uma certa vi-gência, e na democracia direta temoso espaço de construção dos novosdireitos, que é mais ágil. Uma inter-fere sobre a outra.

Considero bom também que te-nhamos aqui, ainda que de formapassageira, evocado Chico Mendes.Chico Mendes é emblemático da mu-dança pelas quais esse país passou,porque ele representa concretamen-te o encontro de uma nova proble-mática – de uma velha questão quenão era percebida como tal por nin-guém, nem pela esquerda – com umatradição socialista. Acho que foi umaboa combinação. Fiquei muito orgu-lhoso que, no ano passado, no car-taz que celebrava os dez anos doForo de São Paulo, da articulação deesquerda da qual participamos naAmérica Latina, Chico Mendes apa-recesse ao lado do Che Guevara, deSandino e de outros. Isso significa-va concretamente que a esquerdapreservava sua tradição e se abriapara o que tinha de novo.

Cesário nos traz uma questão com-plexa. Eu posso ter convicções pes-

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soais próximas das do Valter Pomarem relação à religião, mas quero tera humildade de dizer que isso nãome dá vantagem. Conheço pessoasextremamente sofisticadas intelectual-mente que são religiosas. Minha opi-nião sobre religião pode refletir umaincapacidade de captar uma série deaspectos do mundo. Isso está mui-to ligado à biografia. Valter, eu, ou-tros, não tivemos formação religio-sa. Para mim isso não trouxe dra-mas pessoais mas representou umagrande lacuna cultural, porque vive-mos numa sociedade impregnada devalores religiosos, e um bom conhe-cimento da Bíblia é tão importantequanto o bom conhecimento, porexemplo, da obra de Balzac.

As restrições que o socialismo teveà religião durante muito tempo, maisdo que trazerem um problema paraa religião, trouxeram um problemapara o socialismo. Quem saiu per-dendo nessa briga foi o socialismo.Por quê? A religião tem duas dimen-sões, aquela transcendental, que emgeral é a que mais privilegiamos,mas tem uma dimensão cultural ex-traordinariamente importante. Reli-

gare, ligar os homens de novo, issonão se faz exclusivamente atravésda obediência a cânones, dogmas,mas se faz em todo um meio am-biente cultural, quer dizer, as pes-soas são religiosas não porque selhes impõe, deve haver algum tipode razão social além daquelas deordem psicológica que deveríamosentender melhor.

Evangélicos são bem-vindos, ob-viamente. Aliás, bem-vindos, não;sempre estiveram no PT desde o iní-cio, mas poderá haver hoje mais doque havia no passado. Como sãobem-vindos todos aqueles que têmum tipo de sensibilidade religiosa,existencial, diferente. Quer dizer, namesma faixa, poderemos dizer queas restrições que em algum momen-to foram impostas às mulheres namilitância, ou aos homossexuais etc.,trouxeram prejuízo para as mulhe-res, para os homossexuais? Claro.Mas trouxeram muito prejuízo tam-bém para o socialismo.

Finalmente, a pergunta de comoresistir aos constrangimentos inter-nacionais reflete uma ansiedade po-sitiva. Isto é, vamos sofrer constran-

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gimentos internacionais, estamoscom fortes possibilidades de ir parao governo. Eles não são como o ElNiño, contra o qual pouco se podefazer; são resultados de ações quepodem, em certa medida, ser neu-tralizados ou mediatizados por ou-tras ações ou contra-ações. O quesignifica, concretamente, que nãoestamos condenados à servidão.Outros países que sofrem constran-gimentos muito mais brutais, que têmuma presença muito mais insignifi-cante no cenário internacional –Cuba, por exemplo –, de alguma ma-neira estabeleceram seu espaço. Eunão quero para o Brasil o pequenoespaço que esses países têm e nemser uma voz isolada, como eles são.Mas eles nos dão um exemplo dedignidade, de perseverança – nemsempre por boas razões. Mas elesnos mostram concretamente que épossível resistir. E, sobretudo, queprecisaremos ter uma presença nocenário internacional muito diferen-te da atual. Nós nos damos conta dopeso que o Brasil tem. Essa presen-ça forte no mundo só será possívelse tivermos um clima de mobilização

social grande, e, evidentemente, seajustarmos os instrumentos estataispara tanto.

Finalmente, eu não quero entrar nadiscussão de o que é o capitalismo.Não precisamos de uma grande con-ceitualização do capitalismo para or-ganizar nossa ação anticapitalista.Grande parte das pessoas que se di-zem socialistas, e até aquelas que têmuma opção mais revolucionária, nãoprecisaram freqüentar grandes biblio-grafias para construir uma práticaanticapitalista. Nascemos com voca-ção para a liberdade, com vocaçãopara a autonomia. O capitalismo éincompatível com a autonomia.

O PT mudou muito nesses 20 últi-mos anos. Tínhamos aqui em SãoPaulo 55 diretórios zonais, com reu-niões semanais, às vezes quase diá-rias, uma freqüência militante muitogrande. O mundo era diferente, o Bra-sil era outro e as modificações pelasquais o país passou, e pelas quaispassamos também, devem ser objetode reflexão para sabermos até queponto essas modificações na compo-sição do partido, no seu acionar, fo-ram naturais, podiam ser evitadas ou

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se elas correspondem a mudançasconcretas no mundo e aqui.

O que sei é o seguinte: o Brasil mu-dou muito. Muitíssimo. E o Brasilmudou porque o PT existe. O senhorFernando Henrique Cardoso não te-ria sido presidente da República se oLula não tivesse sido candidato. Issoele sabe, e talvez por sabê-lo tem tan-tas dificuldades conosco. Durantedécadas na nossa República as elei-ções eram decididas entre direita edireita. Não só as eleições, as opçõeseram entre direita e direita, e quandoaparecia algo que fosse um poucodiferente da direita mais furiosa, erasuficientemente empapado de direi-ta para que não se pudesse dar umaoutra caracterização.

O PT mudou o país. Se não enten-dermos isso não vamos saber a for-ça que temos. Às vezes cometemoso erro da empáfia de achar que te-mos força demais. Em outras oca-siões, cometemos o erro, que achotão grave quanto o primeiro, de nãoconsiderar a força que temos. Nãoacho que seja bom, num partido decompanheiros, dizer que uma certa

desmobilização, uma mudança doquadro, possa ser atitude deliberadade quem quer que seja, porque issoseria reproduzir o que de pior a es-querda produziu num determinadomomento, que é transformar em ini-migos aqueles que pensam diferen-temente de nós. O meu mais clarooponente no debate político e inte-lectual dentro do partido é meu com-panheiro, e ai daquele que, de fora,vier atacá-lo: encontrará em mim, eacho que deve encontrar em todos,um defensor muito grande.

Para finalizar, gostaria de dizer queacho que prestamos com este de-bate uma homenagem a todos aque-les que se empenharam pelo socia-lismo, não tanto pelo que foi dito,mas pelo fato de termos dedicadoquatro horas a uma reflexão espe-cífica sobre esse tema. O partido,evidentemente, não será socialistaporque faz seminários de vez emquando sobre socialismo, como al-guns querem crer, para “enganar”a galera e “tranqüilizar os mais ra-dicais”. Esse é um partido de radi-cais e que assim o seja.

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Sobre os autores

Marco Aurélio Garcia é natural de Porto Alegre (RS). Formado emdireito e filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS),pós-graduou-se na Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais de Paris.

Professor licenciado do Departamento de História da UniversidadeEstadual de Campinas (Unicamp), também deu aulas na Universidadedo Chile, na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Chile) enas Universidades de Paris-VIII e Paris-X (França).

Foi secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhado-res por mais de dez anos, além de vereador na cidade de Porto Alegre(1967) e secretário de Cultura nos municípios de Campinas (1989-1990)e São Paulo (2001-2002). Coordenou o Programa de Governo do presi-dente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 1994 e 1998.

Atualmente é assessor especial da Presidência da República paraAssuntos Internacionais.

Valter Pomar é mestre e doutorando em História Econômica pelaUniversidade de São Paulo. É terceiro vice-presidente nacional do PT,

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110 SOCIALISMO NO SÉCULO XXI

secretário-adjunto de Relações Internacionais do Diretório Nacional doPT e membro do Diretório municipal do PT de Campinas (SP).

Foi secretário de Cultura, Esportes e Turismo de Campinas, na gestão2001-2004. Foi assessor da prefeitura de Santos no período 1995-1997.

Divide com o economista Reinaldo Gonçalves a autoria dos livrosO Brasil Endividado (2000) e A Armadilha da Dívida (2002), publica-dos pela Editora Fundação Perseu Abramo.

Juarez Guimarães é professor do Departamento de Ciência Políticada Universidade Federal de Minas Gerais e editor do boletim eletrônicomensal Periscópio, da Fundação Perseu Abramo e da Secretaria Nacio-nal de Formação Política do PT.

Graduado em economia, fez mestrado em ciências sociais na Uni-versidade Estadual de Campinas (Unicamp), com a dissertação Claroenigma: o PT e a tradição socialista, e doutorado na mesma institui-ção com a tese Democracia e marxismo: crítica à razão liberal(São Paulo, Xamã, 1998). Também é autor de A esperança equilibrista– O governo Lula em tempos de transição (Editora Fundação PerseuAbramo, 2004).

Foi durante 12 anos editor do jornal da imprensa alternativa Em Tempo.

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111SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Programa do terceiro ciclo de seminários Socialismo e Democracia, realizado no segundo semestre de 2001

Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramoe pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT

15 de outubro – Segunda-feira14:00 horasA luta pelo socialismo no século XXIExpositor: Marco Aurélio Garcia – Secretário de

Cultura da Prefeitura de São Paulo/SP.Debatedores:

Juarez Guimarães – professor da UFMGValter Pomar – 3o vice-presidente do PT

18:30 horas

22 de outubro – Segunda-feira14:00 horasO negro e o socialismoExpositor: Octavio Ianni – professor da USPDebatedores(as):

Benedita da Silva – vice-governadora do Rio de JaneiroGevanilda Santos – Soweto – organização negraLuiz Alberto Silva Santos – Deputado Federal PT/BA,militante do Movimento Negro unificado

5 de novembro – Segunda-feira14:00 horasO meio ambiente e o socialismoExpositor: Jorge Viana – governador do AcreDebatedores:

Gilney Amorim Viana – Deputado Estadual PT/MT eSecretário Nacional de Meio Ambiente e Desenvolvi-mento/PTEgídio Brunetto – Direção nacional do MST

12 de novembro – Segunda-feira14:00 horasA mulher e o socialismoExpositora: Maria Moraes – professora da UnicampDebatedoras:

Clara Charf – Coletivo da Secretaria Nacional deMulheres/PTTatau Godinho – Coordenadoria de Mulheres daPrefeitura de São Paulo/SPVera Soares – Elisabeth Lobo Assessoria – ELAS

19 de novembro – Segunda-feira14:00 horasA religião e o socialismoExpositor: Patrus Ananias – Ex-prefeito de Belo

Horizonte/MGDebatedores:

Gilmar Machado – Deputado federal PT/MG, Integran-te do Movimento Evangélico Progressista/MEPLuiz Alberto Gomes de Souza – Sociólogo – CERIS/RJ

Programa do terceiro ciclo de seminários Socialismo e Democracia, realizado no segundo semestre de 2001

Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramoe pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT

15 de outubro – Segunda-feira14:00 horasA luta pelo socialismo no século XXIExpositor: Marco Aurélio Garcia – Secretário de

Cultura da Prefeitura de São Paulo/SP.Debatedores:

Juarez Guimarães – professor da UFMGValter Pomar – 3o vice-presidente do PT

18:30 horas

22 de outubro – Segunda-feira14:00 horasO negro e o socialismoExpositor: Octavio Ianni – professor da USPDebatedores(as):

Benedita da Silva – vice-governadora do Rio de JaneiroGevanilda Santos – Soweto – organização negraLuiz Alberto Silva Santos – Deputado Federal PT/BA,militante do Movimento Negro unificado

5 de novembro – Segunda-feira14:00 horasO meio ambiente e o socialismoExpositor: Jorge Viana – governador do AcreDebatedores:

Gilney Amorim Viana – Deputado Estadual PT/MT eSecretário Nacional de Meio Ambiente e Desenvolvi-mento/PTEgídio Brunetto – Direção nacional do MST

12 de novembro – Segunda-feira14:00 horasA mulher e o socialismoExpositora: Maria Moraes – professora da UnicampDebatedoras:

Clara Charf – Coletivo da Secretaria Nacional deMulheres/PTTatau Godinho – Coordenadoria de Mulheres daPrefeitura de São Paulo/SPVera Soares – Elisabeth Lobo Assessoria – ELAS

19 de novembro – Segunda-feira14:00 horasA religião e o socialismoExpositor: Patrus Ananias – Ex-prefeito de Belo

Horizonte/MGDebatedores:

Gilmar Machado – Deputado federal PT/MG, Integran-te do Movimento Evangélico Progressista/MEPLuiz Alberto Gomes de Souza – Sociólogo – CERIS/RJ

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Leia também da coleção

1o ciclo

Globalização e socialismoMaria da Conceição Tavares, Emir Sader e Eduardo Jorge

Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismoFrancisco de Oliveira, João Pedro Stedile e José Genoíno

Economia socialistaPaul Singer e João MachadoO indivíduo no socialismo

Leandro Konder e Frei BettoInstituições políticas no socialismo

Tarso Genro, Edmílson Rodrigues e José Dirceu

2o ciclo

Orçamento participativo e socialismoOlívio Dutra e Maria Victoria Benevides

Poder local e socialismoCelso Daniel, Maria Silva, Miguel Rossetto e Ladislau Dowbor

Socialismo e globalização financeiraReinaldo Gonçalves, João Sayad, Ronald Rocha e Tânia Bacelar

Sindicatos, cooperativas e socialismoFernando Haddad, Ricardo Antunes, Gilmar Mauro e Gilmar Carneiro

Revolução tecnológica, internet e socialismoLaymert Garcia dos Santos, Maria Rita Kehl, Walter Pinheiro e Bernardo Kucinski

Socialismo em discussão

Socialismo no século XXI foi impresso em São Paulo pela Gráfica Bartira em maio de 2005. A tiragem foide 2 mil exemplares. O texto foi composto em Times New Roman no corpo 11,5/13,3/95%. Os fotolitosda capa foram executados pela Graphbox e os laserfilms do miolo pela Graphium Gráfica e Fotolito. A capafoi impressa em papel Cartão Carta Íntegra 222g; o miolo foi impresso em Offset 75g. Em 2005 o Partidodos Trabalhadores completou 25 anos de sua fundação, ocorrida em 10 de fevereiro de 1980.