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Instituto Diocesano de Estudos Pastorais (IDEP) ESPIRITUALIDADE SÉC. XV - XVI Pe. José Carlos A.A. Martins

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ESPIRITUALIDADE SÉC. XV - XVI

Pe. José Carlos A.A. Martins

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1. Introdução

2. Gerson

3. Devotio Moderna

4. Alguns escritores da Devotio Moderna

5. A Devotio e outras espiritualidades

6. Espiritualidade feminina

7. A religiosidade popular

8. Savonarola e o Humanismo Renascentista

9. Erasmo e o Protestantismo Luterano

10. Tomás Moro

11. João d’Ávila

12. Inácio de Loyola

13. Teresa de Jesus

14. João da Cruz

15. Filipe de Neri e o Oratório

16. Carlos Borromeu e a Reforma Tridentina

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Introdução

A fé cristã como história de salvação realiza-se no tempo, como um

interlaçar-se entre o eterno divino com o tempo histórico, um diálogo de aliança

entre a iniciativa de Deus e a livre resposta do homem. Isto que no evento

Cristo tem o seu ponto culminante, continua com a ação do Espírito Santo na

história. Assim Deus guia a Igreja e a humanidade de idade em idade, através

de etapas e horas únicas (Kairós), particularmente suscitando figuras e

movimentos de renovação.

A exigência de renovação da cristandade dá-se sobretudo nos séculos

XV e XVI. Uma multiplicidade de fatores põe em crise a vida cristã; muitas

eram ainda as sequelas do cisma do Ocidente (1378-1414) com três Papas

que lutavam entre si, mesmo com armas e exércitos, pelo Papado; a voz

profética de Catarina de Sena (1347-1389), pedindo aos Papas a reforma da

Igreja, mostra a gravidade do momento. Desde o Concílio de Viena (1311-

1312) e daí para a frente que se reclamava uma reforma da Igreja. Eram

sobretudo dois os âmbitos da reforma:

1) Os comportamentos morais (reforma dos costumes);

2) Os mecanismos institucionais que geram corrupção (reforma estrutural).

O conceito de reforma implica sempre uma vontade de melhorar. É

muito notado o ditado: “Ecclesia semper reformanda”, ou seja a fé da Igreja é

uma realidade sempre viva! Ela conhece a necessidade contínua de se renovar

de se revitalizar (Nova evangelização!). A reforma estrutural não teria muito

sucesso se se esquecesse a auto reforma, a reforma singular de cada crente à

luz do evangelho. Foi precisamente isso que recordou Catarina de Sena e que

depois continuarão a recordar Gerson, o movimento da “devotio moderna”,

Inácio de Loyola, Teresa de Jesus e outros, como veremos.

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É por isso uma vontade geral de uma religiosidade interior, longe dos

formalismos da oração, de práticas exteriores populares (peregrinações,

cerimónias), do abstratistismo teológico e jurídico. Trata-se de um aproximar-se

de novo à simplicidade de uma vida cristã segundo o Evangelho, como já o

tentaram fazer nos três séculos anteriores, S. Francisco e S. Domingos com a

fundação das ordens mendicantes, mas que agora têm também uma nova

necessidades reforma.

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JOÃO GERSON

Jean de Charlier, conhecido com o nome de Gerson, torna-se Prelado e

Chanceler da Universidade de Paris, onde estudou. Não obstante a grande

carga académica e teológica, desenvolve trabalhos pastorais na paróquia,

pregou na língua do povo e ocupou-se com intensidade na vida espiritual.

Gerson, desenha, pensando nas suas irmãs, um programa de vida

espiritual muito simples: fazia-se uma oração comum, a horas estabelecidas e

sempre às mesmas horas (para se disciplinarem), mais vezes ao dia, recebia-

se os sacramentos (da confissão e da comunhão) frequentemente; estavam

juntamente em paz, exortando à vivência e à prática do bem e consideravam-

se todos iguais; o vivido no quotidiano pode conduzir à santidade, sem

necessidade de fazer escolhas particularmente radicais.

Não pensando só nas irmãs, mas voltando-se em particular para os

leigos, Gerson escreve em francês duas obras importantes para a vida

espiritual: “Montanha da contemplação” e “ Mendicidade espiritual”. Estava

animado pela convicção de que cada batizado fosse chamado à perfeição do

amor e à santidade. Assim transparece o esforço de tornar acessível a todos

também os temas mais profundos da espiritualidade e da teologia: todos, por

isso devem pôr-se a caminho sobre o monte da contemplação, mesmo as

crianças.

Por isso tudo o que respeita ao início deste caminho, Gerson,

recomenda o conhecimento de si mesmo: cada um deve dar-se conta do

próprio carater. Uma pessoa que tende para a atividade, através do seu próprio

temperamento, não deve pretender forçar a sua natureza buscando uma forma

de vida espiritual em total retiro e silêncio.

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A ideia da montanha sugere um itinerário ascensional que ocorre para

chegar ou conseguir chegar à meta, escalando com fadiga as diversas etapas

da subida, até à contemplação (fase mais perfeita). O monte, a montanha é por

isso um lugar privilegiado para se fazer a experiência de Deus na Bíblia e

também noutras religiões.

A primeira etapa deste itinerário sublinha o aspeto penitencial que

consiste no “distanciar-se” no “apartar-se”, na libertação do “apego” a si mesmo

e às coisas. Trata-se por isso de iniciar um processo de autoconhecimento,

constatando os apegos que impedem o progredir do imperfeito ao perfeito com

gradualidade de modo semelhante ao que a natureza usa para fazer a sua

obra, levando ou passando da imperfeição à perfeição.

Só depois de ter percorrido o caminho da perfeição, se pode iniciar a

segunda etapa que consiste no estar “separado”, no silêncio. Isto é, trata-se

dum deserto espiritual interior; pode de facto estar-se sozinho exteriormente,

ou num deserto físico, mas cheio de recordações, de pensamentos, de rostos,

de lugares; e estas representações provocam no ser orante uma grande

perturbação!

A terceira etapa vem caracterizada por uma “forte perseverança”, que

dispõe a pessoa “para aquele estado perfeito” no qual se pode dizer que vive

do amor divino. “ Quem acredita não chegará ao cume da montanha sem uma

forte perseverança; é semelhante àquele que escala uma grande montanha e

desce sempre. Mesmo que esteja já no alto ou encontre alguma dificuldade ou

impedimento”.

Fica assim claro que segundo Gerson o amor divino é o início e o fim da

contemplação; por consequência, diz, o maior mestre de teologia é aquele que

mais ama a Deus, Quem mais ama Deus, conduz uma vida mais cristã. Neste

sentido a vida contemplativa é certamente a mais perfeita, como mostra a

palavra de Jesus a Marta, afirmando que Maria escolheu a melhor parte.

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É também verdade, afirma Gerson, que se se pode amar a Deus na

vida ativa, muito mais se pode na vida contemplativa. Alcança-se o estado de

maior perfeição a partir dum estado de menor perfeição: estar no “estado de

perfeição” (vida consagrada, consagração sacerdotal) não significa viver

plenamente a perfeição cristã, mas tender para esta com mais empenho!

A doutrina espiritual de Gerson, conduz à mística, como mostra a sua

obra de arte “ De mística theologia”, na qual analisa com profundidade a união

da alma com Deus. Nesta união, o crente é elevado à oração perfeita e

encontra nesta a sua plena realização. Entre os autores mais citados encontra-

se Dionísio Areopagita, Ricardo de S. Vítor, Hugo de Balma. Nesta obra a

mística assume a dimensão de uma “ciência” mas em estreita relação com a

vida da fé. Gerson não refuta a especulação teológica, como farão alguns

autores da “Devitio Moderna” mas procura estabelecer uma relação

complementar entre teologia e experiência religiosa.

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GERARDO GROOTE (1340-1384) E A DEVOTIO

MODERNA

Em sentido cristão “devoção” é uma palavra quase exclusivamente

usada pela vida de fé. Com S. Bernardo e com a Cartuxa de S. Bruno, vem

usada para exprimir o fervor interior da caridade, da qual nasce a

contemplação, isto é a devoção entre aderir e repousar em Deus. Segundo S.

Tomás de Aquino, “devoção é o acto interior de cada religião, por meio do qual

o crente se doa, alegremente ao serviço de Deus”. Esta doutrina reencontramo-

la em S. Boaventura, com a acentuação sobre Cristo e os seus mistérios.

“Moderna” é o adjectivo diferencial que, etimologicamente equivale a

“novo”, “actual”. A “Devoção Moderna”, quer propor um modo de piedade

actualizado, “aggiornato” ao seu tempo. O acento é posto na interioridade

afectiva.

Nascido em Deventer ( Países Baixos), Gerardo Groote é o iniciador

principal deste movimento; estudou em Paris. Uma doença, quase que o levou

à morte, e fê-lo mudar de vida(conversão); renuncia às prebendas eclesiásticas

e inicia um retiro nos Cartuxos (Munnikshuizen, Arnhem), onde permanece

cerca de três anos e onde sente a exigência de uma vida cristã mais autêntica,

mais apostólica, sobretudo. Torna-se um ardente reformador do clero de Utrcht.

Entre os diversos livros, que encontrou na Cartuxa, estavam os de beato

Johannes Ruusbroeck (1283-1381) grande místico, prior do convento agostinho

de Groenendael perto de Bruxelas. Entre os seus escritos encontra-se o

“Ornamento das núpcias espirituais”, uma mística esponsal da qual Sta. Teresa

e S. João da Cruz, darão, como veremos mais tarde, um profundo

ensinamento.

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Groote, concebe a mística esponsal e especulativa, mas dessa toma

acima de tudo os conselhos ascéticos e práticos. As razões são várias e

diversas; uma é certamente a situação originada pelas epidemias, como a

peste e as calamidades físicas. Diante da dor, das doenças, das guerras, e.t.c.,

a espiritualidade inspirada na metafísica neoplatónica, parecia muito

complicada para a gente comum. Ponto de referência para a reforma espiritual,

é a Sagrada Escritura e, unida com ela, a pessoa de Jesus, a sua vida e a sua

mensagem; descobre-se como “mestre interior”, do qual já tinha falado Sto.

Agostinho. Propõe-se a configuração a Cristo que implica o baptismo: despojar-

se do homem velho para se revestir do homem novo, Cristo. Neste sentido a

meditação da paixão, morte e ressurreição de Cristo, tem um papel central para

a Devotio Moderna.

O livro de Groote “De quattor generibus meditabilium” (quattro géneros

de argumentos ou razões para meditar) propõe isto:

1) O que a escritura diz sobre a vida de Cristo;

2) O que é revelado privadamente aos santos sobre os mistérios da vida de

Cristo;

3) O que sobre isto dizem os teólogos;

4) O que construímos com a nossa imaginação, as imagens que possamos

fazer-nos sobre a vida de Cristo;

Os argumentos dignos de meditação são para ele dados pela Sagrada

Escritura, mas o quarto é reconduzível à Sagrada Escritura, pois como ele

argumenta, também a Sagrada Escritura usa imagens e figurações para

transmitir a Palavra de Deus. Assim é legítimo servir-se da imaginação para a

oração, mas sem nos determos em demasia no sensível que esqueceria o

supra sensível transcendente, o divino. Por outras palavras: na vida de fé deve

ter-se um equilíbrio justo entre as forças da imaginação e as da razão, evitando

tanto o racionalismo abstracto (mística especulativa) quanto a ingenuidade de

uma religiosidade demasiado antropomórfica.

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A Devotio Moderna mostra-nos uma espiritualidade que sabe ser fiel à

humanidade de Jesus, à sua vida, morte e ressurreição, unida à sua divindade,

evitando todo o espiritualismo de uma piedade desencarnada, neoplatónica,

ascética própria da mística especulativa que atravessa o Jesus histórico,

quanto o é objectivismo ingénuo de uma fé grosseira.

A estrutura central da Devotio Moderna é iniciada por Groote, não só

com os seus ensinamentos, mas também de modo concreto; fundou “As irmãs

da vida comum”. “Comum” significa não só vida em comum, juntos, mas uma

forma de vida “ordinária”, comum a todos, que gera comunhão, um estilo de

vida “íntimo” com Deus (contemplativo), fundamento da vida comum com os

outros. Esta é a única comunidade nascida sob a orientação de Groote, pois

sob os seus sucessores, em particular F. Radewijns(1350-1400), desenvolveu-

se uma forma de comunidade mais organizada mas ainda sem votos solenes,

contudo vivendo em pobreza, castidade e obediência. Renunciavam aos bens

patrimoniais, e dedicavam-se à cura dos doentes e ensinavam às raparigas os

trabalhos domésticos.

Os “Irmãos de vida comum”, fundados por Radewijns, estavam

organizados de forma semelhante às “Irmãs”, sem votos solenes e sem regras

monásticas. Alem da oração, trabalhavam nas transcrições e nas miniaturas de

livros, trabalho considerado importante para a propagação da fé. Ocupavam-se

também no ensino, aos jovens nos colégios, nos quais encontravam um

espaço amplo para as práticas espirituais, próprias da Devotio. Um destes foi o

colégio de Montaigu em Paris, onde estudaram Erasmus, Calvino e Sto. Inácio.

Também Lutero frequentou as escolas destes “Irmãos” que não têm regras

mas “consuetudines”. Trata-se essencialmente de organização da vida interna

da casa: horário e demais ocupações do dia. A sua casa não tem nada de

Mosteiro ou de Convento: é uma casa de dia a dia comum, “ordinária” sob a

orientação dum sacerdote, que fazia de superior e seguia o dia da casa, a

oração e o trabalho, a mesa comum, e praticavam a correcção fraterna e outros

exercícios de caridade. Sobretudo cultivavam a leitura da Sagrada Escritura.

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Os grupos de irmãos da vida comum aumentaram rapidamente, porque

os próprios jovens dos seus colégios lhes pediam a admissão. Assim, por

exemplo, o jovem Tomás de Kempes fez parte de uma destas comunidades em

Deventer (de 1392 a 1397). A experiência feita pelos jovens que frequentavam

as escolas dos Irmãos, mostrou a Radewijns que entre eles marcavam aqueles

que buscavam uma forma de vida mais monástica, capaz de unir a vida

contemplativa com a vida activa. Portanto a partir desta ideia ele fundou a

comunidade dos Cónegos regulares de Sto Agostinho em Windesheim(1387),

terceira forma de vida comum da Devotio.

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ESCRITORES DA DEVOTIO, “DE IMATATIONE CHRISTI

Os devotos amavam os livros e juntamente com as simples cópias

emergiam aqueles que escreviam livros próprios:

Gerardo Zerbolt (1367-1398), Irmão e Johan Mombaer, último dos

mestres flamengos da Devotio, caracterizam-se por uma excessiva

metodização formalista da vida espiritual, como mostra o “Rosetum exercitorum

spiritualium et sacrarum meditationum (1494) de Mauburnus, que se apresenta

como uma enorme enciclopédia; isto recorda-nos as meditações afectivas e

experiências místicas de que falava Groote.

Assim, a característica mais importante da Devotio consiste no colocar

um método à vida espiritual, em particular à oração mental, à meditação e ao

exame de consciência. Isto praticava-se também antes, mas não de um modo

assim tão claro e central. Mas por outro lado o interesse excessivo pelo

método, trazia uma complicação progressiva de regras, sobejando a

espontaneidade afectiva na relação com Deus.

Certamente o autor de maior influência da Devotio é Tomás Kempes,

pois foi considerado o autor mais provável do livro “De imitatione Christi”. Ele

foi Cónego regular da Congregação de Windesheim; além da sua actividade de

copista, escreveu cerca de quarenta escritos espirituais. Kempes encontrou a

sua inspiração na meditação do Evangelho e com coragem enfrentou uma

nova visão Cristocêntrica da fé no meio de um ambiente metafísico-platónico.

Só partindo de Cristo se pode verificar, segundo Kempes, com a ajuda da

graça, uma verdadeira experiência divina.

O protagonista da “Imitação de Cristo” é uma pessoa que, desiludida

com a vida mundana, se põe no caminho do seguimento de Cristo. O cristão

deve partir do conhecimento de si mesmo, reconhecendo a sua fraqueza, e

para fazer isto volta-se para Jesus.

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O cristão não se deve envolver com as coisas temporais esquecendo as

eternas, mas como Jesus, deve estar disposto a libertar-se destas( sejam as

honras, o saber, ou as coisas materiais) em particular de tudo o que impede de

seguir Jesus. No livro 2º, apresenta de modo mais imediato a iniciação à “vida

interior”: deve descobrir o Reino de Deus que está em nós, colocando-se em

íntimo contacto com Cristo, para que Ele substituía o nosso “eu” pelo seu. No

3º livro, que é o mais longo, a contemplação centra-se sobre a amizade com

Cristo, sobre o seu amor e a sua consolação, em particular diante da dor e da

desolação; o estilo é dialogal. O 4º livro é como que o vértice dos três

precedentes. A mesma ideia guia do terceiro livro são transportadas e

aplicadas a Jesus-eucaristia. União espiritual ou mística com Cristo e união

sacramental, longe de se excluírem, completam-se.

Assim, espiritualidade como apelo à imitação de Cristo, não significa

tomar um modelo imposto, estranho ao homem. Não é uma reprodução

(fotocópia), não substitui o esforço criativo pessoal pedido a cada um. Em

Cristo o homem descobre a verdadeira imagem de Deus à qual foi criado. Por

consequência, imitação de Cristo, quer dizer auto-realização plena do ser

humano: isto aprece particularmente nos santos.

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A DEVOTIO NAS OUTRAS ESPIRITUALIDADES

Contemporaneamente à difusão da Devotio também as ordens religiosas

directamente ou indirectamente, sentem a necessidade de renovar a sua vida

religiosa. Na Ordem Dominicana encontramos um retorno à observância: aqui a

perspectiva da espiritualidade dominicana afasta-se da influência da mística

eckhartiana de impressão neoplatónica, favorecendo uma religiosidade

“devota”, de acordo com a humanidade de Cristo.

Na Ordem da Cartuxa, este repensar a espiritualidade deve-se

particularmente a um cartuxo que antes era dominicano, Ludolfo de Saxónia

(+1378), com a sua monumental obra “Vita Christi”, iniciada quando ainda era

dominicano; imprime-se depois da sua morte em 1472; esta não foi pensada

somente para os monges, mas para todos aqueles que queriam aprofundar a

sua vida espiritual. Ludolfo tem a formação teológica de um dominicano, à qual

junta a espiritualidade contemplativa dos Cartuxos.

Os Cartuxos, foram fundados por S. Bruno, que nasceu em Colónia

(1036) e morreu no sul de Itália (Calábia), têm um papel importante no séc. XV

e XVI, porque aparecem como Ordem na qual a vida religiosa se pode

reencontrar na sua plena autenticidade.

Os cartuxos, seguindo a espiritualidade dos monges do deserto (Egipto,

Síria, Palestina) vivem nos ermos remotos: a solidão-deserto, e o silêncio para

viver plenamente na presença de Deus são um princípio fundamental da sua

forma de vida. A vida monástica é para eles uma oração ininterrupta;

contemplar, amar e empenhar-se na imitação de Cristo, a vida do Verbo unido

ao Pai, vida silenciosa do Filho. Contemplar Jesus na verdade do mistério

trinitário, o Cristo silencioso no divino mistério do Pai no amor do Espírito. Mas

também contemplando-a desde quando estava no seio de sua Mãe, na vida

escondida, na sua pregação, paixão, morte e ressurreição e ascensão.

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Em Itália e Espanha a Devotio foi introduzida através da influência de

Barbo (1382-1443), reformador do mosteiro de Justina de Pádua e depois

bispo de Treviso.

Henrique Herp (+1478), de origem holandesa, adere à Devotio Moderna;

vem de Roma, torna-se franciscano e volta à pátria, onde foi guardião do

convento de Malinnes. Nas sua obras, encontra-se uma união de Devotio e

espiritualidade franciscana. Assim, ele revela-se discípulo de S. Boaventura e

ao mesmo tempo deixa entrever uma influência de alguns outros autores como

Ruusbroeck. Do qual tomou a distinção de vida activa (purgativa e apostólica),

vida contemplativa espiritual (via iluminativa), vida contemplativa (via unitiva).

Os seus escritos espirituais foram recolhidos sob o título: “Theologia

mística”, e tiveram uma forte influência nos Países Baixos, na Alemanha, em

França, Itália e Espanha.

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ESPIRITUALIDADE FEMENINA

A espiritualidade feminina não a encontramos somente nos conventos,

mas também na vida civil, onde se encontram mulheres que trabalham, indo

para além dos próprios países, como Sta. Brígida da Suécia, esposa, mãe,

viúva religiosa e escritora; ou como a já mencionada Sta Catarina de Sena. A

história da espiritualidade mostra, na mulher, um tipo de experiência pessoal da

fé, da qual Sta Teresa de Ávila representa, como veremos, uma das mais

importantes.

RITA DE CÁSSIA(1370-1447)

Nasce em Roccaporena (Umbria); segundo a vontade dos pais casa-se

com um jovem da sua terra, conhecido pelo seu carácter colérico, mas que

depois é assassinado. Os seus dois filhos, que se assemelhavam no carácter

ao pai, procuravam ser vedetas. Rita no entanto rezava dizendo:” Senhor,

melhor estes filhos mortos, que manchados por um crime grave”. Os dois

rapazes foram mortos durante uma luta. Afrontada pela dor, Rita amadureceu a

sua vocação à vida religiosa; torna-se monja agostiniana no convento de

Cássia. A sua intensa devoção a Cristo crucificado valeu-lhe um estigma na

testa, que lhe fez uma chaga para sempre, muito dolorosa. Popularmente foi

invocada muito depressa como “santa dos impossíveis”, porque tinha a

capacidade de superar situações humanamente muito complicadas.

JOANA D’ARC (1447-1431)

A sua vocação é qualquer coisa de surpreendente. Ela ouve “vozes” (S.

Miguel, Sta Catarina e Santa Margarida) que lhe disseram para se dirigir ao rei

de França; vestida com um hábito masculino cavalga até Orleans, que livra em

29 de Abril de 1429 do assédio dos Ingleses. Joana é ferida e presa. Depois de

torturas e ameaças é condenada. Antes de morrer repete muitas vezes o

grito:”Jesus”. A sua missão e o seu martírio mostram a autenticidade do seu

dom incondicional a Deus e ao seu povo, que sucessivamente a declarou

padroeira de França. Por isso é a fé que a move e não a política.

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Teve que resolver o dilema entre a sua escolha pessoal e a autoridade

eclesiástica. Preferiu esta.

CATARINA DE GÉNOVA (1447-1510)

Recebeu uma educação humanista e uma boa formação cristã. Aos

dezasseis anos, por conveniências familiares, casa com um homem violento e

dissipador, que depois de um período de matrimónio, decide conceder a

liberdade e Catarina. Ela consagra-se à oração, à penitência e ao serviço dos

necessitados. O marido, Adorno, vencido pela nova vida de Catarina, converte-

se. Depois de tudo isto, os dois cônjuges trabalham pelo grande hospital de

Génova. Morto o marido, ela dedica-se mais intensamente à vida

contemplativa. O sacerdote Caetano Marabutto, fazendo uso das suas

confidências, redige A Vida e mais dois tratados, o Purgatório e o Dialogo. Aqui

se percebe uma espiritualidade de anulamento do amor próprio, que encontra

na experiência do Purgatório a sua expressão mais intensa.

Constitui um conjunto de colaboradores, religiosos, e leigos à volta de

Catarina e nasce assim a “Companhia do Divino Amor”, mais um entre os

“oratórios” que germinam naquele tempo, dos quais o mais conhecido é o de

Filipe de Neri, como adiante veremos.

ÂNGELA MERICI (1474-1540)

Funda em Brécia em 1535 A “Companhia de Santa Úrsula”, composta

por mulheres sem votos, sem hábito, sem vínculos na vida comum. Elas,

vivendo em família e do seu próprio trabalho, sentiam-se chamadas a ser sinal

de “separação das trevas deste mundo”.

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A RELIGIOSIDADE POPULAR, OS PREGADORES

A influência da “Devotio” domina os movimentos espirituais e as práticas

da vida dos religiosos, do clero e dos leigos durante o séc. XV. Um profundo

desconcerto verificava-se naquele tempo por parte de um grande número de

cristãos. As muitas crises que agitam a Europa, como as guerras e as

epidemias, aumentam o medo colectivo. Assim, a morte, representada pelo

cadáver putrefacto e cheio de vermes, a caveira, é um facto recorrente a nível

popular. A consciência da caducidade do ser humano está prevista até aos

nossos dias na liturgia de quarta feira de cinzas. O luto exagerado pela morte

de familiares, a cor negra na liturgia de defuntos. As danças da morte,

sublinhavam a vaidade das distinções sociais e das honras e a igualdade de

todos os mortais. Não era pois uma pia exortação sobre a transitoriedade das

coisas terrenas, mas também uma sátira, uma crítica social.

Ligada à esperança da vida depois da morte, busca-se o modo de se

preparar para isso. Aqui se apresentam as tentações que provavelmente olham

o moribundo, isto é a dúvida sobre a fé, o desespero pelos pecados, o apego

às coisas terrenas, o desespero pelo sofrimento e o orgulho pelas próprias

virtudes. Era necessário estar preparado para este momento assim decisivo

para o ser humano: o seu destino eterno. Com o tema da morte desenvolve-se,

de modo exagerado, a descrição do tormento do inferno, do purgatório, etc.

Olhando para o mistério de Cristo, sublinha-se a sua paixão, em

particular a crucifixão, que não aparecia simplesmente como a expiação da

culpa de Adão, mas também como expressão do amor de Deus pelo homem. A

cruz, assim, é vista como sinal deste amor divino ao qual o homem responde

com a sua compaixão. Para ajudar a esta piedade popular fizeram as suas

aparições a imagem de crucifixos não serenos e reais, mas representando um

homem sofredor, atormentado. Os crentes para receberem mais intensamente

a paixão de Cristo recorriam à flagelação. Começou aqui a utilizar-se a oração

da via sacra, a devoção às cinco chagas, às sete palavras de Cristo na cruz.

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Neste contexto também Maria aparece, preferencialmente, como

“dolorosa” aos pés da cruz, às vezes representada desnuda, sobretudo no

modo de Pietà; também a Assunção de Maria foram verdades familiares na fé

deste tempo. A mãe de Jesus é assim aquela que intercede junto de Seu filho

pela humanidade, aquela para a qual os crentes se voltam para obter graças e

milagres, como mostram os muitos santuários dedicados a Nossa Senhora.

No que diz respeito aos santos, estes eram vistos como figuras notáveis,

dos quais se conhecia particularmente o seu martírio e os seus estupendos

milagres; eram vestidos como o povo e podiam encontrar-se entre os

peregrinos. Cada figura de santo tinha uma imagem bem delineada, com a sua

individualidade. E por isso tendo em conta as suas particularidade as pessoas

invocavam mais um santo que outro.

Uma menção particular merecem os santos pregadores: A pregação era

desenvolvida sobretudo pelos mendicantes, franciscanos e dominicanos, que

andavam de terra em terra, sempre vivendo em grande pobreza. Este tipo de

pregação exigia uma mudança no modo de viver. Na prática apelava a um

exame de consciência a cada indivíduo e à própria sociedade. Assim os

pregadores assumiram um papel de reformadores sociais e transformaram-se

também num grande movimento de reconciliação. Entre os pregadores deste

tempo deve mencionar-se, Vicennzo Ferrer de Valência, Espanha (+ 1414),

teólogo dominicano. No centro da sua pregação encontra-se a figura de Cristo,

expressa particularmente no seu nome (IHS) ; e também o anticristo, do qual

se esperava a vinda eminente, um tom apocalíptico que fez com que muitas

pessoas se voltassem, se aproximassem seriamente à prática da vida cristã.

Também o franciscano S. Bernardino de Sena (1380-1444) emerge

como pregador. Depois de ter sido professor durante um breve período,

percorre toda a Itália setentrional e central. Enquanto Vicente insistia na vinda

do anticristo, Bernardino reorienta a sua pregação para Cristo, deixando o

apocalipse em favor do evangelho, centra-se sobre a devoção ao nome de

Jesus.

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JOÃO CAPRISTANO (ÁQUILA 1368-1456)

Frade menor, pregador ambulante, dedicou particular atenção à Odem

Terceira. Ele tinha o laicado no coração. Os seus sermões não procuravam

tanto a moralização teórica, mas mais apresentar a vida dos santos como

exemplos de vida cristã. Os seus termos preferidos eram a teologia de Cristo

Rei e a devoção ao nome de Jesus (IHS). É de sublinhar o movimento de

reforma laical, do qual nasceram as confrarias e os institutos laicais.

Jesus ocupa-se desde o início ao fim da realidade pobre e sofredora da

humanidade. Isso passa a ser um empenho total, fazendo do necessitado a

imagem do próprio Cristo. Esta mensagem tem sido levada muito em conta e

muito a sério por muitos cristãos de todos os tempos. Vejamos o empenho e o

discurso do Papa Francisco! Neste período a pobreza era uma chaga, para

tentar resolver o problema, criaram-se associações, confrarias, que

desenvolviam várias formas de solidariedade: no caso dos cegos, por exemplo,

havia aqueles que os acompanhavam, a mútua assistência no caso de doença

e também os locais onde se davam esmolas.

Os grandes pregadores de que falámos não cessavam de chamar à

atenção dos cristãos para o serviço dos pobres. Bernardino de Sena dizia: “ Tu

não sentes o grito dos pobres! E sabes porquê? Porque para ti não faz muito

frio: tu tens a barriga cheia, bebes bem, comes bem... corpo bem composto e

alma bem consolada!”

Savoranola dizia: “vós os ricos... ajudai os pobres!”

A Instituição que manifesta mais preocupação pelos necessitados é o

Hospital. Os hospitais fundados pelos cristãos eram lugares de terapia, mas

também de acolhimento. A expressão francesa para hospital é “Hotel”.

Hospitais especializados eram as leprosarias, para as pestes e epidemias,

refúgios para as prostitutas. Tudo isto mostra bem como a fé cristã criava

sempre Instituições novas, organizações humanitárias segundo as

necessidades dos necessitados e tinha para eles a respectiva espiritualidade.

Depois virão as escolas, etc.

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JERÓNIMO SAVONAROLA (1452-1498) E O HUMANISMO

RENASCENTISTA

A sua vida dividiu e divide a opinião geral das pessoas. Para alguns é

um santo, para outros um impostor, um exaltado ou até um iludido reformador.

Nasceu em Ferrara em 1452, entrou na Ordem Dominicana em Bolonha (1475)

e uma vez ordenado sacerdote, dedica-se à pregação com especial interesse

por temas apocalípticos e proféticos. Em 1492 num sermão diz que a Igreja

está construída sobre um monte, mas pouco a pouco de está a desmoronar;

importava reconstruí-la a pulso, como a Igreja dos apóstolos. Incitou à reforma

dos costumes, ao fervor, à extirpação dos vícios (vaidade, jogo, luxo, usura,

imoralidade) e à rebelião social contra as “tiranias” dos senhores de Florença.

Na sua pregação criticava os religiosos, os clérigos, os bispos e o Papa.

Fezterríveis investidas contra Roma.

Estando num ambiente renascentista, que tanto tinha reprimido o

paganismo greco-romano sobretudo no âmbito moral, Savonarola não se quer

apegar ao conformismo da mentalidade do Renascimento, como faziam tantos

cristãos, começando pelos Papas, cardeais bispos, que deixavam as

exigências do Evangelho, vivendo ao estilo dos pagãos. O seu programa

ascético era muito rigoroso, mas não se discutia. Em cada caso importa dizer

que a mensagem da sua vida cristã era essencialmente sobre a “imitação de

Cristo” e por isso não permite uma conformação ao ambiente circunstante sem

um discernimento, permanece válido, para não confundir “actualização” ou

“inculturação” com “secularização”. Entre os seus escritos devemos mencionar

“O triunfo da Cruz”.

O caso Savonarola, mostra que a relação da fé cristã com a nova visão

da vida, que o Renascimento comportava, não era fácil. Não se pode dar uma

definição que o caracterize completamente, mas podemos afirmar que no

Renascimento se encontra uma concepção da vida, em cujo centro se constrói

a partir do homem e não tanto de Deus e da religião, como na Idade Média.

O homem com a sua força e a sua racionalidade é capaz de escolher o

seu destino e a sua postura no mundo (embora haja o perigo de exagerar).

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Mas estava neste antropocentrismos renascentista também uma redescoberta

do protagonismo que o homem tem na concepção cristã: à sua volta roda toda

a reacção porque ele foi feito à imagem e semelhança de Deus. A partir de

Itália o humanismo renascentista difundiu-se por toda a Europa.

NICOLAU CUSANO (1401-1464)

Nicolau, nasceu perto de Treviri na Alemanha, e teve uma primeira

educação na Holanda junto dos Irmãos da Vida Comum ( Devotio); estuda na

universidade de Heidelberg e Pádua; ordena-se padre, depois bispo e é feito

cardeal; é uma das mais importantes personalidades intelectuais do seu

século. Trabalha pela reforma religiosa e formula, retomando temas típicos da

mística medieval, a doutrina da “douta ignorância”; os grandes fenómenos

naturais fogem à natureza humana e a maior razão foge-nos porque Deus é

infinito. É típico dos ignorantes torrarem-se Sábios.

ERASMO (1466-1536) E O PROTESTANTISMO LUTERANO

Formado junto dos “irmãos de vida comum” é ordenado sacerdote. Era

entusiasta dos ideais do humanismo renascentista e sente grande aversão

pelas coisas que aos seus olhos de humanista eram velhas. As peregrinações,

o culto dos santos e as suas relíquias. Em parte tinha razão quando afirmava:”

nós beijamos os sapatos dos santos e esquecemos os seus escritos que são

as suas mais santas relíquias”.

O pensamento de Erasmo é uma mistura de clássico (Platão, Plutarco,

Cícero) e de fé bíblica. Por isso, ainda que tenha sido precedido de todo um

século de humanismo, representa um elemento novo. Todo o Renascimento

tinha o desejo de uma vida piedosa, alegre, idílica, que procura ideais de

unidade, sinceridade, verdade, serenidade, e harmonia. Erasmo amava o “dizer

bem”, a expressão literária e o bem estar no sentido material e moral, com

grande vontade de liberdade de não querer tomar posição a favor ou contra,

mas de ser independente. Mas, liberdade significa também capacidade de

tomar decisões importantes: Erasmo procura a liberdade, “de” e esquece a

liberdade “para”.

Por outro lado, segundo Erasmo, a vida cristã encontra-se

sobrecarregada de Instituições humanas e oprimida pelo poder das Ordens

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Religiosas, e por isso a forma do Evangelho vai-se perdendo. Aqui

encontramos uma nova expressão programática de Erasmo: voltar às fontes

bíblicas da fé: “ eu queria que o Evangelho e as cartas de S. Paulo fossem

lidas pela gente simples”. Aquilo que lhe repugna é que se queira estudar a

Escritura a partir do texto latino, da Vulgata. Nele encontramos uma forte

tensão: por um lado, ele aspira a uma fé cristã sentida, simples e íntima; por

outro lado encontramos a sua irresistível necessidade estética, que o levava a

um estilo de vida segundo a concepção greco-romana do humanismo.

Com o seu livro “ O Manual do perfeito militar cristão” quer mostrar que a

fé não se mede somente a partir do hábito ou da Congregação a que se

pertence; trata-se de apresentar um ensinamento adaptado às pessoas que se

propõem conduzir na vida quotidiana uma autêntica vida de fé. O cristianismo,

vê-se sob o aspecto da “luta” no sentido Paulino do “miles Christi”. Mais, o

cristianismo empenha-se em viver o seguimento de Cristo, apesar dos ataques

das tentações e dos vícios, mas com a ajuda da graça não será vencido

totalmente; poderá perder algumas batalhas mas não a guerra. Pois

apresentam-se as duas “armas” essenciais nesta luta: a oração e a meditação

da Escritura. Nos outros capítulos sublinha-se a importância de formar o

homem interior em sentido Paulino ( o homem segundo o Espírito, Gál. 5, 16-

26), mas também em sentido socrático (conhece-te a ti mesmo); dá alguns

conselhos práticos para se não encontrar diante do pecado como a avareza, a

impureza, o desejo da vaidade.

No que diz respeito à vida monástica, Erasmo permanece sempre critico.

Ele recorda que os monges não têm o exclusivo da santidade. Traz assim um

juízo critico.

Esquece no entanto o valor objectivo da vida consagrada, só porque os

monges ou monjas não vivem segundo as exigências da vida religiosa ou a

vivem somente segundo um modo formalístico, não quer dizer que a vida

religiosa como tal não seja um valor fundamental. A critica à vida religiosa

contrasta com o entusiasmo com o qual Erasmo fala do leigo e da vida

matrimonial. Uma contraposição entre as duas vocações é hoje, ao menos

teologicamente, superada a partir do momento em que se fala da chamada

universal à santidade.

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A relação com Lutero(1483-1546) ajuda-nos a conhecer melhor a sua

postura doutrinal e espiritual. Erasmo sentia desde o início uma certa simpatia

por Lutero que em Outubro de 1517 afixa as 95 teses contra as indulgências,

transformadas neste período num grande negócio financeiro. Mas a reacção de

Lutero não é somente contra os abusos relativos às indulgências, mas contra

as indulgências como tal. Como chegou Lutero a isto? Educado também nos

“Irmãos de vida comum” tinha levado muito a sério a vida monástica, mas não

encontrava a perfeição que procurava. Isto levou-o a uma profunda crise

espiritual e existencial. Assim, reflectindo sobre a sua crise, ele mesmo diz:

“Estou a martirizar-me; que coisa procuro senão Deus? Ele sabe como

observei a minha regra e que vida tenho conduzido”. Mas em tudo isto, ele não

encontrava a paz, nem com Deus nem com a sua consciência. Por outro lado a

teologia Ocamista, que tinha estudado, longe de o ajudar agravava o seu

problema, pois essa pedia-lhe uma predisposição perfeita para receber a

graça, e é precisamente aqui que ele se sentia impotente. A crise de Lutero

resolve-se por volta de 1513 com uma experiência particular, “experiência da

torre”, meditando Rom. 1,17.

Assim a justiça divina não é uma justiça formal, distributiva como a

humana, mas aquela pela qual Deus, na sua misericórdia, justifica mediante a

fé, sem as nossas obras. Para Lutero, esta era a revelação de Deus

misericordioso que ele procurava, manifestado no amor redentor de Cristo.

Lutero tem razão enquanto sublinha o primado da graça na vida cristã para lá

de cada obra(indulgências, penitências, e.t.c.), mas falha quando exclui o valor

das obras humanas como resposta à graça de Deus. Não obstante de Erasmo

ter querido permanecer espectador diante da grande questão luterana, toma

posição. Fixou-se no ponto sobre o qual existia uma clara disparidade, isto é

sobre o conceito de liberdade. Erasmo escreveu o livro “ De librero arbítrio”,

defendendo o valor da liberdade humana, por outras palavras das obras, para

juntar à salvação eterna.

Lutero respondia de modo violento com a obra “De servo arbítrio”,

declarando que, depois do pecado original, a vontade humana é escrava

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(serva) do mal e somente pode ser libertada com a graça da redenção de

Cristo. O pecado original, responderia Erasmo, enfraquece mas não anula

totalmente a liberdade humana para fazer o bem.

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TOMÁS MORO (1478-1535)

Em amigável relação com Erasmo, Tomás Moro apresenta uma visão

mais autêntica do Humanismo em sentido cristão. Eleito deputado do

parlamento inglês é nomeado chanceler do reino (1529). Pela sua recusa de

reconhecer a supremacia religiosa do Rei (Henrique VIII) foi condenado à pena

de morte. A Igreja católica declarou-o santo e patrono dos políticos. O seu

conceito de Homem leva-o a reflectir também sobre a ordem social em sentido

cristão, analisando qual poderia ser a óptima constituição social que pode

efectivamente garantir a plena liberdade do Homem. Isto desenvolveu-o no seu

conhecido escrito “Utopia”(1516). Aqui ele faz uma critica à sociedade do seu

tempo, partindo da sociedade inglesa.

Por exemplo, no que diz respeito à delinquência, diz que as punições

não servem muito porque o furto é provocado por uma profunda injustiça que

consente ao rico explorar, e desfrutar do pobre. Segundo a “Utopia”, todos

devem trabalhar, mas não mais de seis horas por dia: três antes do meio dia e

três depois, o resto deve ser tempo livre. A vida das pessoas desenvolve-se

tanto quanto é possível, num ambiente comunitário, e deve ser dirigida para

encontrar um harmónico equilíbrio entre prazer do corpo e do espírito.

A religião na “Utopia” é fundada sobre a crença de uma divindade

inconcebível, eterna, acima de cada sociedade, e cada indivíduo é livre de

adorar esta divindade com o culto que preferir. Estes termos, que hoje são de

todo actuais, mostram a modernidade do humanismo cristão, que o Vaticano II

revelou: a liberdade de consciência, o diálogo inter religioso, a igualdade

fundamental de todas as pessoas, a justiça social,, e assim, construir a

“sociedade do amor”, como antecipação e participação do Reino escatológico,

de verdade, de justiça, amor e paz. Em resumo, na “Utopia” Tomás Moro

apresenta-nos a vida do céu como um modelo para a vida sobre a terra.

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II – De INÁCIO DE LOYOLA A CARLOS BORROMEU

Em 1515 o humanismo renascentista e a Devotio Moderna encontram-se

num movimento chamado “Evangelismo” que se propõe a reforma da vida

cristã através do estudo e do retorno às fontes: o Evangelho e Paulo. O seu

representante mais importante é Le Févre d’Etapes (1455-1536). O Concílio

Latranense V (1512-1517) reforçou a necessidade da reforma da vida cristã, e

se não teve resultados avultados foi porque os seus decretos ficaram letra

morta. Propostas audazes, que pouco depois Lutero colocará em prática, tais

como a de traduzir a Bíblia para as línguas modernas, a reforma do Código de

Direito Canónico, a formação do clero. Pouco depois do seu encerramento, um

leigo de profunda cultura humanista, Pico de Mirandola(1469-1533) faz ouvir a

sua voz, revelando, diante da assembleia conciliar, a exigência de um clero

bem formado, de vida sóbria, atento à cura pastoral; assim era mais fácil estar

atento à luxúria que grassava, à ambição e ao luxo. Isto, dizia o Papa, vale

mais do que qualquer cruzada e exortava ao empenho pessoal nesta tarefa.

Tudo isto permanecerá ineficaz até ao Concílio de Trento (1545). O Papa

Adriano VI escreveu em 1522:”Todos nós prelados e eclesiásticos desviámo-

nos da estrada do justo e são raros os que procedem bem”.

Em Espanha, por seu lado, crescia e intensificava-se o esforço por uma

vida cristã mais autêntica. O Cardeal Francisco Jimenez de Cisneros,(1436-

1515), animado e apoiado pela Rainha Isabel de Castela, reforçou uma reforma

estrutural e espiritual da Igreja em Espanha: reforma do episcopado, do clero

secular e regular. Tal reforma começava com coisas muito concretas, entre as

quais a celebração anual do sínodo diocesano, a obrigação de cada sacerdote

em ter um confessor; cada pároco devia explicar a doutrina cristã ao menos

uma vez por semana.

Ordenar e proibir não chegam para uma reforma eficaz, era necessário

formar clérigos e leigos de modo a melhorar e para aprofundar as questões do

momento.

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Assim, Cisneros projectou e organizou diversas casas de formação; a

intervenção cultural mais importante foi a fundação da Universidade de Alcalà

(perto de Madrid). Fez vir óptimos professores humanistas (Erasmo) e fez

publicar a “Bíblia Poliglota Complutensis”: uma obra monumental, que mostra

bem como o desejo de voltar às fontes da Revelação não pertencia só à

vontade de Lutero ou de Erasmo. Voltar à origem da fé cristã era uma vontade

muito cara a todos aqueles que procuravam reformas, ainda que de formas e

maneiras diferentes.

À Universidade de Salamanca, Francisco de Vitória, dominicano, tentou

dar uma resposta teológica ao problema da descoberta da América, levando a

sério os protestos dos missionários, como Las Casas, contra a brutalidade da

conquista. Na Abadia Beneditina de Monssserat (Barcelona) o Abade, Garcia

de Cisneros (+1510) introduzirá a Devotio. Este clima de renovação originou

uma “primavera” religiosa, teológica, literária e artística, que faz do séc. XVI

uma época de grande esplendor espiritual e cultural em Espanha, chamado

“Século de Ouro”. De particular importância é o complexo movimento dos

“Alumbrados”, nascido nos anos 1507-1512) com grande vontade de perfeição,

aberto à doutrina da “Devotio moderna” e ao “cristianismo interior” de Erasmo,

mas que progressivamente cai em alguns excessos de misticismo iluminístico.

Detenhamo-nos agora em algumas figuras espirituais relevantes deste período.

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JOÃO D´ÁVILA

S. João d’Ávila estuda em Alcalà e Salamanca e torna-se sacerdote.

Depois da morte dos seus pais, vende as suas ricas posses para ir como

missionário para a América, mas por diversas causas é impedido de realizar o

seu desejo. O arcebispo de Sevilha pede-lhe para trabalhar na diocese, na

reforma da vida cristã e particularmente na reforma do clero. O seu modelo de

vida espiritual e apostólica era S. Paulo. S. João organiza a catequese para as

crianças e adultos, cria missões populares e a ajuda aos enfermos.

Foi acusado de heresia e foi processado pela Inquisição e metido na

cadeia (1531-1533), onde escreveu a sua obra principal “Audi Figlia”. Com

outros sacerdotes forma um grupo de oração, de estudo e de ascese, que dá

origem à chamada “Escola sacerdotal S. João de Ávila”. Renunciou a dois

episcopados e ao cardinalato. O seu grande magistério espiritual e teológico é

chamado “Mestre d´Ávila”. Relacionou-se com Sto Inácio e S. Francisco de

Bórgia e com Sta Teresa e foi canonizado por Paulo VI em 31 de Maio de

1970.

Os temas fundamentais da sua obra são:

1) O mistério de Cristo: Cristo é a Palavra de Deus, o esposo, que dá

significado à perfeição cristã;

2) A Igreja como esposa de Cristo;

3) A vida em Cristo é marcada pela fé, esperança e caridade. Na “Audi

Figlia” utiliza o colóquio entre Cristo e o crente para descrever como se

vive a união com Cristo. Para começar o cristão deve tornar-se

consciente da sua situação; assim, o exercício da própria consciência

como ponto de partida. Para este fim é necessário fazer silêncio, exterior

e interior.

A espiritualidade sacerdotal é centrada, segundo S. João de Ávila, na pregação

e na Eucaristia, no orientar os crentes para o seguimento de Cristo, com uma

vida de oração e de penitência; não procurando cargos ou lugares importantes,

mas revelando o sentir com a Igreja, a direcção espiritual, por outras palavras:

a conformação a Cristo esposo e pastor dá a razão de ser ao ministério

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sacerdotal. Assim aparece uma clara semelhança com a Exortação Apostólica

pós sinodal “Pastores Dabo Vovis” (1992).

INÁCIO DE LOYOLA (1491-1556)

A opinião geral é a de que o santo de Loyola era soldado de profissão.

Mas isto não é bem assim. A sua formação antes de se ter convertido era antes

de mais administrativa como cortesão e cavaleiro. O cavaleiro, sobretudo no

Renascimento, é muito diferente de um militar sobretudo no sentido actual.

Próprio do ambiente cortesão renascentista, no qual o jovem Inácio cresceu era

normal um forte desejo que se vivia por um estilo de vida alegre e livre. A auto

afirmação do eu, o orgulho desmesurado a vontade de fama e de honras, eram

valores fundamentais daquela sociedade renascentista.

A este ambiente faz referencia a sua biografia quando ele mesmo

afirma:” Até aos 26 anos fui um homem do mundo, absorvido pela vaidade.

Amava sobretudo exercitar-me no uso das armas, atraído por uma imensa

vontade de conquistar honras vãs”.

A ferida de Pamplona, isto é o desabar de projectos importantes e o

facto de ter estado próximo da morte levou-o a fazer uma longa reflexão. A

leitura de livros espirituais (A vida de Cristo e a vida dos santos) leva-o a mudar

de vida:” E se também eu fizesse o que fizeram Francisco e Domingos”?

Inácio encontra-se numa situação de escolha, na qual a sua liberdade de

decisão é posta à prova. Sente-se interiormente dividido, inseguro. Contudo

havia uma diferença: pensando nas coisas do mundo isso dava-lhe muito

prazer, mas quando por cansaço as abandonava sentia-se desiludido e vazio;

enquanto pensava em viver como os santos fazendo penitências permanecia

alegre. O ideal de perfeição segundo a vida de Cristo e dos santos colocava-o

em confronto com a sua vida antiga.

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Um profundo sentido de culpa e de pecado apareciam na sua

consciência. Depois de tomar consciência da infinita misericórdia de Deus

encontra a iluminação mística, e torna-se um conhecedor experimentado da

vida espiritual. (Ter em conta sobretudo os “Exercícios Espirituais”- um mês...)

Mais à frente se houver tempo falaremos do esquema completo das quatro

semanas!

Em resumo, a espiritualidade inaciana é trinitária, porque se insere na

história da salvação; é cristocêntrica porque leva o crente ao seguimento de

Cristo; é pneumática porque se realiza como discernimento no Espírito e

segundo o Espírito; é eclesial porque se sente em comunhão particularmente

com o vigário de Cristo e ao seu serviço (quarto voto dos jesuítas); é apostólica

porque se santifica santificando os outros.

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TERESA DE JESUS (1515-1582)

Entre as diversas formas de espiritualidade feminina, a de Santa Teresa

teve um relevo particular. Seguindo os seus escritos auto-biográficos, em

particular o “Livro da Vida”, constata-se que na sua infância teve uma formação

cristã recebida dos seus pais. A jovem Teresa, lia a vida dos santos,

provavelmente o “Flos Santorum”. Aos oito anos, fervorosa a partir dos

exemplos heróicos de santidade, vai juntamente com o seu irmão para a “terra

dos mouros” para se tornar mártir. Depois da morte da mãe,(1528), Teresa

confia-se à Virgem da Caridade. Nos anos seguintes lê apaixonadamente livros

sobre romances cavaleirescos, alimenta amizades precoces com seus primos e

dedica-se a vida pouco recomendada.

A vaidade e o demonstrar publicamente a sua feminilidade que espicaça

neste tempo, impedem-na de levar uma vida cristã sadia, para grande

desagrado do pai, que para a proteger a leva ao mosteiro das Agostinianas em

Ávila. Ali conhece uma monja que a ajuda a descobrir a profundidade do

Evangelho. Durante todo este tempo amadurece a sua vocação à vida

religiosa.

Em Novembro de 1535 foge de casa para se refugiar no mosteiro

carmelita da Encarnação em Ávila, onde apesar de tudo é admitida como

postulante. Em 3 de Novembro de 1537 faz a sua profissão religiosa, mas

depressa teve que deixar o convento por causa duma doença; é conduzida a

casa de um tio. Neste período lê o “terceiro Abecedário” de Francisco Osuna,

um livro que a ajuda muito na sua meditação. Em Julho deste mesmo ano, e

porque as anteriores doenças são mal curadas, Teresa é conduzida,

gravemente doente, a casa de seu pai. Permanece três dias em estado de

coma, a ponto de a darem como morta. Volta quase curada ao convento da

Encarnação.

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Não obstante a sua precária saúde, durante quase três anos, confia-se

em tudo a S. José, ao qual atribui a sua cura. Em 1543 morre o pai. De 1544-

54 Teresa sofre uma penosa crise espiritual. Debate-se entre as suas amigas,

os relacionamentos humanos e as exigências da vida consagrada. Durante

este período sente-se só, árida, dividida, infiel ao Senhor.

Na Quaresma de 1544 sente um chamamento especial diante da

estátua do “Hecce Homo”: cai de joelhos chorando e suplica ao Senhor que a

ajude a não o ofender mais.

Em seguida lê as “Confissões” de Sto. Agostinho e que lhe responderam

a muitas das suas questões. No fim deste período começa a experimentar

numerosas graças místicas. Teresa cola em dúvida a origem destas

experiências, que culminam na visão de Cristo ressuscitado. Tranquilizada pelo

franciscano P. D’Alcântara no que diz respeito à visão do inferno e encorajada

por algumas irmãs da Encarnação, decide fundar um novo mosteiro com base

na oração e no silêncio; um mosteiro pobre, pequeno a que porá o nome de S.

José. Em 1567 encontra João da Cruz, que ganha para a reforma do Carmelo,

ainda que ele pensasse entrar na Cartuxa. Em Novembro de 1568 Teresa de

visita a Duruelo, fica contente pelo que fez João da Cruz. Em 14 de Maio de

1569 santa Teresa funda um outro mosteiro em Toledo.

O P. Geral pede-lhe para acabar a fundação e para se retirar para o

mosteiro de Toledo; isto também por causa de uma acusação junto do tribunal

da Inquisição. Na sua defesa, ou para sua defesa escreve a quarta “relação”

onde se vê a sua fidelidade à Igreja. No meio destas peripécias, encontra

pessoas que são para ela de grande conforto como J. Grazian, amigo fiel de

toda a sua vida. Em 1573, por ordem do P. Risalda, começa a escrever as

“Fundações”. Leva a termo a segunda redacção do comentário ao “Cântico dos

Cânticos”.

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Por volta do fim de 1575 no capítulo geral carmelita é preso S. João da

Cruz e seus novos companheiros. Teresa é forçada a retirar-se para um

convento de Castela. Em Junho de 1576 Teresa chega a Toledo onde redige o

“Modo de visitar os conventos dos carmelitas descalços” e inicia o “Castelo

interior”, obra prima dos seus escritos espirituaias. Entretanto continuam as

perseguições contra a reforma Teresiana. S. João da Cruz foge da cadeia de

Toledo. No mesmo ano de 1578 o P. Grazian é preso. Graças às mediações do

rei de Espanha (Filipe II) obtém-se a aprovação pontifícia.

A noite de 20 de Setembro, depois de diversas viagens extenuantes,

Teresa chega fatigada a Alba de Tormes (entre Ávila e Salamanca). Em 4 de

Outubro de 2582 morre dizendo:”Enfim, Senhor, morro filha da Igreja”.

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JOÃO DA CRUZ (1542-1591)

S. João da Cruz nasceu em Fontiveros, perto de Ávila. Cedo fica órfão

de pai e vive na miséria com a mãe e os seus três irmãos; desde muito jovem

que se interessa pelos doentes, trabalhando num hospital ate aos 21 anos em

Medina del campo, onde frequenta também o colégio dos jesuítas, estudando

os clássicos latinos. Entra depois no noviciado carmelita desta cidade. Depois

da profissão e dos votos (1564), dirige-se à Universidade de Salamanca, onde

estuda filosofia e teologia. Aqui ensinava o grande biblista e literato Fr. Luís de

Leon, que era Agostiniano.

O desejo de perfeição evangélica leva-o a entrar na Cartuxa. Um

encontro casual com Teresa (1567), que também procurava a reforma do

Carmelo, fá-lo descobrir a direcção definitiva da sua vida, empenhando-se na

reforma dos Carmelitas. Isto levá-lo-á a não poucas tensões e conflitos. A

actividade exterior de João na reforma do carmelo não esteve no primeiro

plano, mas a interna essa sim foi de primeiríssimo plano. Ele foi o plasmador e

o moderador do espírito do carmelo reformado, sobretudo através da direcção

espiritual, que se desenvolve principalmente entre os religiosos e as religiosas

carmelitas, mas estende-se também aos sacerdotes e leigos.

A parte melhor da sua obra é escrita em poesia, obra prima da literatura

lírica em espanhol. Só depois de muitas insistências decide explicar alguns

versos. A exposição da sua experiência e doutrina torna-se mais clara na “

Subida ao monte Carmelo”, que com a “Noite escura” constitui uma doutrina

bem articulada. Muitos factos diz João no Prólogo da Subida, acontecem na

subida àqueles que a percorrem: alegrias, penas, desejos, dores que possa,

proceder do espírito perfeito e também do imperfeito. João quer ajudar o

religioso para que “possa conhecer o caminho que segue e aquele que lhe

convém escolher, se tem como intenção chegar ao cimo do monte”.

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O principiante começa um caminho de purificação de todos os aspectos

sensitivos e busca as coisas exteriores, Chamada “noite dos sentidos”, activa e

passiva. “noite” designa o caminho que se deve percorrer para chegar à

libertação total da união com Deus.

Este caminho é feito sobretudo de privações, porque, “como a noite não

é outra coisa que a privação da luz e, por consequência, leva a que

conheçamos todos os objectos que mediante a luz se vêem, o mesmo se pode

dizer da mortificação dos apetites, noite para a alma: quando esta se priva do

gosto e do apetite em cada situação, permanece na escuridão e privado de

tudo”.

O apetite que olha para o seu objecto só para o engolir, para o devorar;

um desejo que fecha o homem em si mesmo, confinando-o à sua própria

esfera, fazendo-o escravo de si mesmo. Para subir ao “Monte da Perfeição”,

para se dar ao eterno convencido do amor divino, para juntar ao “Tudo” da

liberdade infinita que é Deus, é necessário ainda descer à “noite do espírito”,

activa e passiva, purificando a memoria, o intelecto e a vontade; a vida é

sempre um “nada”. Ou seja e em súmula: para chegar à purificação é preciso

passar pela “noite”, pela experiência da Kenosis a fim de se chegar à Luz, à

Plenitude; ser “Nada” para ser “Tudo”.

O objectivo é sempre: a união plena com deus que tem como

consequência a paz e a tranquilidade, um conhecimento mais profundo do

homem e de Deus.

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FILIPE DE NERI [E O ORATÓRIO]. (1515-1595)

Nasce em Florença numa família modesta embora da nobreza

provincial. Rapaz alegre, simpático, pacífico nos seus modos, dificilmente se

enraivecia. Pela bondade da sua natureza era chamado de “Filipe Bom”. A

estas qualidades de temperamento juntava uma espontânea religiosidade. Aos

18 anos Filipe deixa Florença e transfere-se para junto de um tio paterno, muito

rico, que habita junto a Montecassino. Aqui conhece os monges beneditinos: a

sua vida é de oração e de silêncio. Nele começam a surgir também os desejos

próprios da idade juvenil. Por um lado a vida monacal e por outro a vida que

tinha o seu tio como rico.

Durante esta estadia de alguns meses, outro lugar que teve muita

importância para as suas escolhas futuras, foi o monte chamado de “Montanha

parada” esse lugar beneditino, com o santuário da Trindade, onde Filipe se

recolhia somente para rezar e meditar sobre a paixão e o crucifixo.

Um dia ele sente-se como que iluminado e comovido e decide voltar as

costas à riqueza e decide ir a Roma e ali encontrar uma resposta para a sua

inquietação vocacional. Hospedado numa família Florentina, trabalha como

preceptor dos seus filhos e ao mesmo tempo frequenta alguns cursos de

filosofia e teologia na Universidade de Roma.

Mais de que se dedicar à vida intelectual, ele queria ajudar o próximo.

Encontrou-se com Inácio, Francisco Xavier e outros jesuítas que em 1538

chegaram a Roma para se colocarem ao serviço da Igreja. As sua relações

mais estáveis foram com o Oratório ou Companhia do Divino Amor.

Sob este nome existiam várias associações e confrarias que em

diversas cidades de Itália tinham uma singular importância no movimento de

espiritualidade e de actividade caritativa até ao fim do séc. XV e início do XVI.

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O mais conhecido de entre todos é o romano S. Jerónimo da caridade.

Este nasce por volta de 1515 com sede na igreja de Santa Doroteia, de qual

um dos seus principais membros senão mesmo fundador, foi S. Caetano, que

depois fundará a ordem dos clérigos regulares, os Teatinos. O Oratório de

Roma contou entre os seus membros os principais promotores da reforma da

Cúria Pontifícia, mais tarde eleito Papa com o nome de Paulo IV.

Estas associações tinham como ideal a santificação, favorecendo uma

sólida piedade e um exercício prático do amor para com Deus e para com o

próximo, em particular nos hospitais. Neste ambiente de oração e de serviço

Filipe vive alguns anos. No Pentecostes de 1544, nas catacumbas de S.

Sebastião, teve uma profunda experiência mística. Em Maio de 1551 foi

ordenado sacerdote e foi habitar para o Oratório de S. Jerónimo da caridade,

onde já moravam alguns sacerdotes. “S. Jerónimo” converte-se num centro

comunitário para os sacerdotes seculares. Rezava-se e celebrava-se a missa e

faziam-se obras de caridade, tudo isto livremente sem uma regra determinada.

Este centro comunitário torna-se a base para a “Congregação do Oratório”.

Filipe amava condividir a sua vida com os outros. Não lhe agradava que os

padres vivessem sozinhos e por isso começa a reagrupar e a reunir, a gerar os

fundamentos de uma vida em comum, familiar, que pudesse servir à perfeição

humana e cristã.

Participavam na vida destes grupos sacerdotais também pessoas leigas

e de diversos estratos sociais. O Oratório de S. Filipe apresenta-se como uma

unidade livre de vários cristãos, chamados a várias funções em horas

determinadas por práticas religiosas em comum e pela escuta da Palavra de

Deus, tudo de modo muito familiar. Na espiritualidade do Oratório mostrou-se

patente a personalidade viva de Filipe e isto levou a que se tornasse numa das

personalidades mais populares de Roma.

Pela sua originalidade e espontaneidade e pelo sigilo da autenticidade

cristã, o Oratório Filipino torna-se um maravilhoso instrumento de reforma da

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vida cristã; isto parecia renovar o espírito da primeira comunidade cristã, onde

todos eram um só coração e uma só alma.

Era uma sua convicção que a vida espiritual, considerada

particularmente como algo de aborrecido, se tornasse familiar e doméstica em

cada pessoa, que se tornasse grata e fácil em casa de cada um, clérigo ou

leigo, prelado, príncipe, pai de família ou consagrado, artesão ou erudito, de

modo que todos eram capazes de a viver.

Os escritos de Filipe (cartas, poesias, fragmentos) são poucos e quase

todos redigidos por outros, tendo dele praticamente só mesmo a sua

assinatura. De destacar, a sua profunda devoção a Maria, invocando-a com o

título de “Mater Gratiae”.

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CARLOS BORROMEU (1538-1584) E A REFORMA

TRIDENTINA

Entre aqueles que durante a segunda metade do Séc. XVI, se

empenham na acção de reforma apresentada pelo Concílio de Trento (1545-

1563), encontra-se em primeiro lugar S. Carlos Borromeu. Nascido em Milão

numa família de tradição pontifícia como eram os Medici, foi destinado à vida

eclesiástica; assim, aos sete anos recebeu a tonsura eclesial. Estuda em

Pádua. O seu tio foi eleito Papa, Pio IV, e fez cardeal o seu sobrinho Carlos

com apenas 22 anos. Trabalhou muito perto do seu tio, para colocar em prática

as reformas do Concílio de Trento. Sendo ainda diácono quer ser ordenado

presbítero em Julho de 1563. Para a ordenação faz os exercícios espirituais de

Sto Inácio, que o influenciarão durante toda a sua vida espiritual. Em Dezembro

do mesmo ano foi consagrado arcebispo de Milão com 25 anos.

Durante todo o seu episcopado, Carlos Borromeu foi um grande

pregador. Geralmente pregava todos os domingos pelo menos uma vez. Por

dia tinha discursos três ou quatro vezes diferentes para abordar vários temas.

Preparava-se sempre muito bem. É importante salientar como ele fazia as

visitas pastorais às paroquias; a sua chegada era sempre precedida por alguns

dias em que primeiro um grupo de sacerdotes pregavam e confessavam. As

visitas pastorais eram minuciosas a ponto de terem relatórios detalhados, e de

decretos para que estes não ficassem letra morta! Para isso mandava

inspectores para averiguar do seu cumprimento. Assim a maior diocese do

mundo foi sendo aos poucos organizada segundo as reformas saídas do

Concílio de Trento.

O Seminário, fundado durante o seu episcopado, foi confiado a um corpo

de sacerdotes diocesanos (com este fim fundou os “Oblatos de Sto. Ambrósio)

com o objectivo de dar ao clero de Milão unidade de formação espiritual e

intelectual.

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A essência principal da espiritualidade sacerdotal de Carlos Borromeu é

o de Cristo Bom Pastor. Os passos bíblicos onde podemos encontrar isto nos

seus escritos são frequentes, como o mostram muitas das suas obras.

O objectivo principal das suas preocupaçoes era o de dar à sua diocese

padres excelentes, elevar em todos os sentidos a qualidade do clero, insistir

continuamente na sua responsabilidade e, em primeiro lugar, tender à

perfeição apostólica. S. Carlos compreende rápido que o impulso renovador

era em vão sem a reforma daqueles que teriam a responsabilidade de a

colocar em prática. A primeira reforma foi para os cónegos da sua catedral.

Depois procedeu a uma nova organização territorial e administrativa da diocese

e uma reforma da prática da vida da fé. Começou a reforma por si próprio, isso

mesmo o disse numa carta ao tio, Papa.

Outra característica da pastoral de Carlos Borromeu é o seu carácter

comunitário, centrado sobre o valor humano e cristão da família, em particular o

papel dos pais. S. Carlos é incansável no chamar os pais e em lembrar-lhes a

sua grande responsabilidade na educação dos filhos.

S. Carlos salienta a importância do ministério apostólico dos leigos.

Assim ele soube valorizar as numerosas associações de fieis leigos e

movimentos laicais que existiam.

Carlos Borromeu é sem dúvida o melhor exemplo para reconhecer a

vasta e longa acção reformadora iniciada pelo Concílio de Trento. Aqui as

diversas tendências reformadoras ja existentes, com excepção das Luteranas,

uniram-se. Nas suas 25 sessões, o Concílio afronta as questões colocadas

pelos Protestantes, entre as quais as que dizem respeito à Sagrada Escritura e

à Tradição, com uma particular atenção à interpretação e à leitura da dos

textos bíblicos, para melhorar a formação do clero e a pregação.

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O Concílio evita o pessimismo antropológico que já Erasmo tinha

observado na teologia Luterana. Descrevendo, depois, o dinamismo da vida

cristã, que não se limita à confiança na fé, mas compreende uma complexidade

de comportamentos da liberdade humana, o Concílio releva que o pecador está

sempre justificado pela fé, porque a fé em Cristo “é o princípio de uma

salvação, o fundamento é a raiz de cada justificação, sem a qual é impossível

agradar a Deus” e fomentar a comunhão com Ele.

A Reforma protestante não teve muito efeito em Espanha nem em Itália

graças ao fermento renovador e operante, em especial através das figura aqui

tratada.

O Concílio de Trento deu à vida Cristã um robusto ancoramento

teológico, sacramental e espiritual. No seu centro colocou-se a Eucaristia,

entendida sobretudo como “Presença Real” de Cristo o que favoreceu o culto

eucarístico fora das celebrações, a adoração ao Santíssimo Sacramento, em

paralelo com a prática da confissão frequente.

Trento relançou a catequese e a importância dos santos como reflexo

humano da santidade divina, como intercessores na obra salvífica de Cristo e

ajuda moral, encorajante, no seu seguimento. Infelizmente, a esperança da

reforma tridentina foi depressa uma desilusão no “depois” Trento, por causa da

polarização dada entre Reforma e Contra Reforma, que durou até ao fim com

Concílio Vaticano II, ou seja até aos nossos dias.