ronaldo cunha lima- cruz e sousa

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Autor RONALDO CUNHA LIMA (PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro /PB) Data 19/03/1998 Casa Senado Federal Experimentei a grande fortuna espiritual de ter sido o Relator, dentre os membros da Mesa Diretora, de um Projeto de Resolução dos Senadores Esperidião Amin e Abdias Nascimento, instituindo o prêmio Cruz e Sousa.  Naquela oportunidade,entendi que deveria resumir o meu parecer em alguns versos, para dizer do signi ficado amplo e oportuno da iniciativa dos Senadores Esperidião Amin e Abdias Nascimento. E naquela oportunidade, permito -me repetir para lembrar, eu dizia: O resgate da memória, da vida e da trajetória do vate catarinense é gesto pra ser louvado, é mérito para o Senado, é honra que nos pertence. O poeta simbolista integra pequena lista de poetas geniais. Tem uma história bonita, é triste, mas não evita  beleza sentimentais. Era filho de um escravo,  mas, preto e pobre, foi bravo ante tudo que sofreu. Casou com Gavita Rosa,  que morreu turbeculosa, como o poeta morreu. Sua esposa enlouqueceu depois com filho morreu e um outro morreu depois. E a morte, não satisfeita,  ainda ficou na espreita e em breve levou os dois. A obra de Cruz e Sousa imensamente repousa em Tropos e Fantasias, Em Missal e Evocações, Broquéis, Faróis, emoções de um mundo de poesias. Acato o requerimento e lhe dou deferimento por seu aspecto legal. Será um belo concurso e vai ter muito discurso na sua terra natal. 

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8/4/2019 Ronaldo Cunha Lima- Cruz e Sousa

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AutorRONALDO CUNHA LIMA (PMDB - Partido do Movimento DemocráticoBrasileiro /PB)

Data 19/03/1998 Casa Senado Federal

Experimentei a grande fortuna espiritual de ter sido o Relator, dentre os membrosda Mesa Diretora, de um Projeto de Resolução dos Senadores Esperidião Amin eAbdias Nascimento, instituindo o prêmio Cruz e Sousa. Naquela oportunidade,entendi que deveria resumir o meu parecer em algunsversos, para dizer do significado amplo e oportuno da iniciativa dos SenadoresEsperidião Amin e Abdias Nascimento. E naquela oportunidade, permito-me repetirpara lembrar, eu dizia: 

O resgate da memória, da vida e da trajetória do vate catarinense é gesto pra ser louvado, é mérito para o Senado, é honra que nos pertence. O poeta simbolista integra pequena lista de poetas geniais. Tem uma história bonita, é triste, mas não evita beleza sentimentais. Era filho de um escravo, mas, preto e pobre, foi bravo ante tudo que sofreu. Casou com Gavita Rosa, que morreu turbeculosa, como o poeta morreu. Sua esposa enlouqueceu depois com filho morreu e um outro morreu depois. E a morte, não satisfeita, ainda ficou na espreita e em breve levou os dois. A obra de Cruz e Sousa imensamente repousa em Tropos e Fantasias,Em Missal e Evocações, Broquéis, Faróis, emoçõesde um mundo de poesias. Acato o requerimentoe lhe dou deferimento por seu aspecto legal. Será um belo concurso e vai ter muito discurso na sua terra natal. 

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 Os autores, na verdade revelam identidade que cada história projeta Abdias, pela raça. E Amin por ter a graça de ser da mesma praça onde nasceu o poeta. O meu voto é favorávela esse gesto louvável por essa justa medida. Que o nosso plenário acate essa homenagem ao vate que vai servir de resgate duma história e duma vida. Hoje, inscrevi-me para falar sobre a obra de Cruz e Sousa e ouvi duas peçasnotáveis: o discurso do Senador catarinense Esperidião Amin, com o seu talento esensibilidade se somando ao amor à tese que defendia, na projeção e na análise doseu poeta conterrâneo, e ouvi o discurso do Senador Artur da Távola, sederramando no seu talento maravilhoso, no universo imenso de seusconhecimentos de música, de literatura e de arte, dando alguns enfoques que euaté pretendia dá-los, mas os recolho para mim, na insignificância da minhaavaliação, para que eles não possam se contrapor à imensidão maior do valor doSenador Artur da Távola.Sr. Senadores, eu me permitira apenas dizer que à época em que surgia oSimbolismo no Brasil, copiávamos rigorosamente, pari passu, todas as mudançasdas escolas literárias, a influência européia, mais precisamente a francesa. Surgia,à época, na França, um movimento chamado Decadente ou Decadentismo, que

seria substituído, posteriormente, pelo Simbolismo. E daquele manifesto se diziaexpressamente: ¿o homem moderno é insensível¿. Como se o manifesto pudesseprovocar o aspecto da sensibilidade que a poesia até então dominante podiatransmitir, já que ainda estava em voga, predominante, talvez, diria no seu auge, apoesia parnasiana, tão bem definida aqui nos seus limites pelo Senador Artur daTávola. O Parnasianismo que se preocupava efetivamente com a forma e, no Brasil,tinha como seu esplendor maior o talento de Olavo Bilac.Pois bem, em função desse Decadentismo, substituído posteriormente peloSimbolismo, na convocação ou na provocação, diria melhor, de que o moderno erainsensível, surgiu um outro movimento, o movimento Simbolista, para buscar nãoapenas a preciosidade da forma em prejuízo da própria estrutura verbal, mas apoesia da sensibilidade, a poesia que pudesse, sem prejuízo, evidentemente, da

forma, mas sem realçá-la ao ponto de retirar-lhe méritos na estrutura, amanifestação com pendores e misturas híbridas de várias escolas. No Brasil predominava ainda a força impressionante do Parnasianismo. Aindaestava no auge a poesia do mal secreto de Raymundo Correa, quando setransforma, por completo, através daquele que, na verdade e a rigor, foi oprecursor do simbolismo no Brasil, o pernambucano Medeiros de Albuquerque, e aí despontavam duas figuras que iam dominar a escola literária que surgia: Alphonsusde Guimaraens e Cruz e Sousa. Cruz e Sousa passou a ser o protótipo, modelo, exemplo e padrão daquilo que erachamado a escola simbolista, e que na França tinha sido adotada como lançamentodaquele manifesto, já escolhido o seu protótipo, o seu mentor em CharlesBaudelaire, que manifestava em um dos seus versos a definição da inconformação

do modelo decadente que até então era adotado. Quando ele dizia no seu poema:

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 O Ideal Jamais serão essas vinhetas decadentes belezas pútridas de um século plebeu nem borzeguins ou castanholas estridentes que irão bastar a um coração igual ao meu.¿ Aí Charles Baudelaire, como se depois Paul Marie Verlaine, começava a manifestaressa repulsa ao movimento decadente ou ao Decadentismo substituído peloSimbolismo. E a idéia central ou ideal passou a ser a fonte inspiradora, ao contráriodo parnasianismo, que buscava, como bem disse Artur da Távola, a Pátria, osentimento do amor, a paisagem, a beleza, a vida, a natureza e a singularidade daprimeira pessoa.E ao falar na singularidade da primeira pessoa, o Senador Artur da Távola disse quetem em Cruz e Sousa o poeta da sua preferência, como eu tenho Augusto dosAnjos. E porque ele usou essa expressão, a preferência pela primeira pessoa do singular,lembro-me também que há essa identidade com Augusto dos Anjos, cujo único livro

se chama Eu. Agora foi publicada uma obra belíssima, intitulada Eu, MinhaSingularíssima Pessoa. Podemos até estabelecer paralelos e afinidades entre Cruz e Sousa e Augusto dosAnjos a partir da própria idéia, como lembra o Senador Artur da Távola. Se Baudelaire falava que ¿jamais serão essas vinhetas decadentes... que irãobastar a um coração igual ao meu¿, Cruz e Sousa também passava a definir o idealde outra forma, mais sensível, e Augusto dos Anjos definia a idéia não na poesiasimbolista rigorosamente definida, mas dentro daquilo que os analistas literárioschamam de poesia científica. Como Augusto dos Anjos define a idéia? Ele diz:

A IDÉIA De onde ela vem? De que matéria bruta Vem essa luz que sobre as nebulosas Cai de incógnitas criptas misteriosas Como as estalactites de uma gruta?! Vem da psicogenética e alta luta Do feixe de moléculas nervosas, Que, em desintegrações maravilhosas, Delibera, e depois, quer e executa! Vem do encéfalo absconso que a constringe. Chega em seguida às cordas do laringe, Tísica, tênue, mínima, raquítica... Quebra a força centrípeta que a amarra,Mas, de repente, e quase morta, esbarra No molambo da língua paralítica! O ideal passou a ser, dentro da escola simbolista, que também Augusto dos Anjospercorreu, sem abandonar o Parnasianisno, a exemplo de Cruz e Sousa, ossentimentos e as manifestações iguais. Aqui, ao receber a obra de Cruz e Sousa, publicada pela Comissão Estadual doCentenário, eu anotava algumas palavras do seu glossário poético, para mostrar,

nesse vocabulário, também uma outra identidade com Augusto dos Anjos. Anotei:ergástulo. E quantas vezes os simbolistas não recorreram ao ergástulo da rima paramostrar a sua dificuldade e repetir o mesmo termo em vários poemas! As palavras

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parecem iguais: ergástulo, tábido, ebúrneo, sidéreo, equóreo, panóplia, vergôntea,adamastórico, para homenagear Adamastor. E Augusto dos Anjos também asusava.Srªs. e Srs. Senadores, certa vez, cheguei a fazer brincadeira com os poemas deCruz e Sousa e de Augusto dos Anjos, convocando intelectuais para delaparticiparem - e enquanto o Senador Artur da Távola declamava alguns poemas do

poeta Cruz e Sousa, anotei alguns termos, como ergástulo, tábido, equóreo,panóplia e vergôntea. E nessa brincadeira, eu disse que iria escolher um soneto deAugusto dos Anjos e que, dentro do soneto, iria separar dez termos. Se ospresentes pudessem identificar, desses dez termos, pelo menos três, estariamdando uma demonstração de cultura elevada.São poucas as pessoas que poderão traduzir essa terminologia, esse vocabulário deAugusto dos Anjos, cujos termos são igualmente repetidos ou usados por Cruz eSousa em alguns de seus poemas. Isso traz o que foi citado pelo Senador Artur daTávola: a sonoridade, a musicalidade do verso. Cruz e Sousa chega a usar palavrasproparoxítonas e a fazer um decassílabo com três palavras. Augusto dos Anjos ofez com duas palavras: profundissimamente hipocondríaco. Este é um decassílabocom duas palavras. Quais eram as dez palavras do soneto que eu citava? Senador Artur da Távola, seV. Exª, que realmente conhece tão bem literatura, arte, música, poesia, fizesseparte da bricandeira, ela evidentemente não teria graça. Escolhi um soneto deAugusto dos Anjos e sublinhei dez palavras:

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo... O Inconsciente me assombra e eu nele rolo Com a eólica fúria do harmatã inquieto! Assisto agora à morte de um inseto!... Ah! todos os fenômenos do solo Parecem realizar de pólo a pólo O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierático areópago heterogêneo Das idéias, percorro, como um gênio, Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgos dos mundos o velar espesso; E em tudo, igual a Goethe, reconheço O império da substância universal .

Se fôssemos sublinhar os termos, evidentemente iríamos ter dificuldade paradescobrir que harmatã é um vento seco que sopra no Sul da África, levantandouma poeira vermelha nos meses de março e abril. As palavras ergástulo, tábido,ebúrneo, equóreo, panóplia, vergôntea e adamastórico, utilizadas por Cruz e Sousa,ajustar-se-iam, com absoluta identidade e igualdade, à poesia de Augusto dosAnjos. Cruz e Sousa fez um poema dedicado a seu filho. Cruz e Sousa sofreu muito! A suavida foi descrita aqui pelo Senador Esperidião Amin, que mostrou que ele foi buscar- nesse aspecto, ele se separa um pouco de Augusto dos Anjos -, na dor e nosofrimento, a sublimação da sua própria obra, sem misturar ou trazer dentro doverso a dor do chamado ¿poeta do hediondo¿.Numa quadra, que penso ser uma das mais belas da sua obra, sintetizando toda asua amargura e toda a sua dor, Augusto dos Anjos chegou a dizer o seguinte: Bati nas pedras de um tormento rude 

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 E a minha mágoa de hoje é tão intensa Que eu penso que a Alegria é uma doençaE a Tristeza é minha única saúde!

E ele conclui esse belíssimo poema dizendo: Melancolia! Estende-me a tua asa! És a árvore em que devo reclinar-me... Se algum dia o Prazer vier procurar-me, Dize a esse monstro que eu fugi de casa! Augusto dos Anjos, ao perder o seu primeiro filho, escreveu um soneto científico,

mas de profunda amargura. Cruz e Sousa fez a canção para o filho que dorme,escondendo, no seu sono, a própria eternidade do seu sentimento, mas mostrandoas marcas da poesia tocada pela musicalidade, pelos aspectos que foram aqui tãobem sublinhados e desenhados pelo Senador Artur da Távola. O poema de Cruz e Sousa sobre o filho e o soneto de Augusto dos Anjos sobre ofilho morto aproximam os dois poetas, esses dois gênios; um, saindo um pouco doSimbolismo para abraçar a escola chamada científica; o outro, permanecendo noSimbolismo, mas sem sair também da escola parnasiana e do Romantismo. No soneto ao filho morto, Augusto o chama de

Agregado infeliz de sangue e cal, Fruto rubro de carne agonizante,

 Filho da grande força fecundante De minha brônzea trama neuronial, Que poder embriológico fatal Destruiu, com a sinergia de um gigante,Em tua morfogênese de infante A minha morfogênese ancestral?! Porção de minha plásmica substância, Em que lugar irás passar a infância, Tragicamente anônimo, a feder?! Ah! Possas tu dormir, feto esquecido, Panteisticamente dissolvido Na noumenalidade do NÃO SER! Em Cruz e Sousa: ¿Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento! sob a guarda piedosa e muda das Esferas dorme, calmo, embalado pela voz do vento, frágil e pequenino e tenro como as heras. 

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 Ao mesmo tempo suave e ao mesmo tempo estranho o aspecto do meu filho assim meigo dormindo... Vem dele tal frescura e tal sonho tamanho que eu nem mesmo já sei tudo que vou sentindo. Minh¿alma fica presa e se debate ansiosa,em vão soluça e clama, eternamente presano segredo fatal dessa flor caprichosa,do meu filho, a dormir, na paz da Natureza. Minh¿alma se debate e vai gemendo aflita no fundo turbilhão de grandes ânsias mudas: que esse tão pobre ser, de ternura infinita, mais tarde irá tragar os venenos de Judas! Dar-lhe eu beijos, apenas, dar-lhe, apenas, beijos, carinhos dar-lhe sempre, efêmeros, aéreos, o que vale tudo isso para outros desejos, o que vale tudo isso para outros mistérios?! De sua doce mãe que em prantos o abençoa com o mais profundo amor, arcangelicamente, de sua doce mãe, tão límpida, tão boa,o que vale esse amor, todo esse amor veemente?! Que aproveitemos este instante em que se celebram 100 anos da morte de Cruz eSousa, pelo seu exemplo de vida e pela vida da sua obra, pela amplitude e pela

essência e estrutura da sua própria obra, condenando, como condenou o manifestodecadentista de Paris, para mostrar que o homem moderno não é insensível. Nóssomos sensíveis à arte, à bela arte, à poesia, à musica, à poesia de Cruz e Sousa,aqui ressaltada, aqui relembrada, à poesia de Augusto dos Anjos, aquihomenageada, à poesia, seja ela qual for, à poesia manifestada nas variantes, nasformas mais diversas de cantar a manifestação espontânea do seu êxito, de cantar,de cantar sempre. Eu disse certa vez, Senador Artur da Távola, que, às vezes, eu canto, e a minhaforma de cantar me espanta, porque são tantos os versos que eu digo que pensotrazer comigo um rouxinol na garganta