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  • M.AguievTraduo Klara Gourinova

  • Romance com CocanaMemrias de um Doente

  • MusaFico

    Srie Romance Russovolume 1

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    M. Aguiev, M., 1866-1941.Romance com cocana : memrias de um doente / M. Aguiev ; traduo

    Klara Gourinova. So Paulo : Musa Editora, 2003. (Musa Fico ; 1)

    Ttulo original: Pomah c kokauhom

    1. Cocana - Vcio 2. Drogas - Abuso3. Juventude - Conduta de vida 4. Romance russo5. Toxicmanos I. Titula II. Srie.

    03-2076 CDD-891.73

    ndices para catlogo sistemtico:1. Romances : Literatura russa 891.73

  • M.Aguiev

    Romance com CocanaMemrias de um Doente

    Traduo Klara Gourinova

    EDITORA

  • Ttulo original: Pomah c kokauhom

    Capa: Raquel MatsushitaReviso: Musa EditoraEditorao eletrnica: Nelson CanabarroFotolito: Laserprnt

    Klara Gourinova, 2003.

    Todos os direitos reservados.

    Musa Editora Ltda.Rua Cardoso de Almeida, 202501251-001 So Paulo SP

    Tel. & fax:0xxll 3862 25863871 5580

    [email protected]

    Impresso no Brasil 2003 ' (1" ed.)

  • SUMRIO

    M. AguivMistrio em cinco atos V11

    Colgio 15Snia 75Cocana 127Pensamentos 167

  • M.Aguiev

    Mistrio em cinco atos

    Nos anos 1930, um desconhecido emigrante e escritor,M. Aguiev, enviou um manuscrito de Constantinopla a Pa-ris. Em 1934 o Romance com Cocana apareceu em diversas re-vistas de emigrados russos e foi comentado por eminentesescritores e crticos literrios: G. Adamovitch, P. Pilski, D.Merejkovski, V. Khodassvitch.

    No jornal Segdnia (editado em Riga), P. Pilski faz a per-gunta Quem Aguiev? e responde-a ele mesmo: ...h algunsmeses, recebi uma carta de Aguiev, ...ele mora em Constantinopla,sua assinatura Aguiev pseudnimo. Ao mesmo tempo, umoutro colaborador do jornal, o escritor Guergui Ivanov,com a ajuda da poetisa Ldia Tchervnskaia, que se dirigiaa Constantinopla, ficou sabendo quem se escondia atrsdesse pseudnimo. Mas na poca nenhum deles cita onome de M. Levi.

  • VIII Romance com Cocana

    IINos anos 1980, depois de editado em francs, na traduo

    de Ldia Schveitzer, o Romance com Cocana ganha o verdadei-ro reconhecimento mundial. Ldia Tchervnskaia, j em ida-de bem avanada, menciona Marco Levi, como o verdadeiroautor do romance que se escondia sob o pseudnimo deAguiev. Segundo L. Tchervnskaia, M. Levi foi parar emConstantinopla no comeo da dcada de 1930, quando fugiuda URSS. Mais tarde ele voltou para a Unio Sovitica. Qua-se ningum levou a srio esta verso.

    IIIMais tarde, no Boletim do movimento cristo russo, Nikita

    Struve, no polmico artigo Sobre a soluo de um mistrio liter-rio, afirma que Aguiev um imitador supergenial de Nabkov queconhecia de antemo toda a obra dele, que seu perfeito alter ego,isto , o prprio Nabkov que nos habituou aos pseudnimos e smistificaes. Algumas pessoas participam da polmica, in-clusive a viva de Nabkov: Meu marido, Vladimir Nabkov,no escreveu Romance com cocana na revista Tchisla, nuncausou o pseudnimo M. Aguiev... Nunca esteve em Moscou, nuncaem sua vida tocou em cocana (ou outro narctico qualquer), e, dife-rentemente de Aguiev, escrevia numa magnfica, pura e correta ln-gua russa falada em Petersburgo...

    Todos os dados sobre Marco Levi, comunicados por L.Tchervnskaia e V. Ianvski, o primeiro editor do romance,eram to lendrios e fantsticos, que a verso de Nikita Struveparecia ser bastante convincente, tanto mais que ele era um

  • M. Aguiev IX

    prestigioso russista, professor da Universidade de Paris, edi-tor da obra de O. Mandelschtam, de A. Soljentzin, etc.

    IVNo dia 15 de novembro de 1991, na redao do jornal

    Rsskaia Misl(Opensamento russo) reboou uma trovoada numcu azul. O jornalista e bibligrafo Serguiei Dedilin, sobo ttulo A autoria definitivamente estabelecida deu a seguintenotcia: Segundo comunicado de Moscou, finalmente foi achada aresposta para quem o verdadeiro autor do misterioso Romancecom cocana, editado pela primeira vez em Paris e nos ltimosanos, quando reeditado em russo e traduzido para muitos idiomas,provocou um grande interesse. Quem se esconde sob o pseudnimo deM. Aguiev Vladimir Nabkov ou Marco Levi? nestadiscusso quebraram suas lanas muitos especialistas emliteratura russa.

    A pesquisadora moscovita Marina Sorkina verificounos arquivos de Moscou a hiptese de Gabriel Superfin(ver o artigo de N. Struve na edio da KhudjestvennaiaLiteratura, 1990, p. 205 sobre a autoria de Nabkov). Estahiptese confirmou-se. G. Superfin supusera que no ro-mance esteja descrito o Colgio particular de R. Kriman.M. Sorkina havia descoberto documentos, nos arquivosdo colgio, nos quais, entre os formandos do ano de 1916,junto com o nome de Mark Lazarevitch Levi encontram-se quase todos os nomes dados aos personagens do Ro-mance com cocana.

    Seria definitiva a descoberta?

  • X Romance com Cocana

    VO artigo detalhado que fora prometido, apresentando os

    dados achados por M. Sorkina seguindo as instrues de G.Superfin, foi publicado em 1994, no almanaque histricoMinvcheie n 16, sob o ttulo Havia um escritor chamado Aguiev...M. Sorkina e G. Superfin mostraram de uma maneira convin-cente que o problema da autoria do Romance com cocana estavabasicamente resolvido. Quando comunicamos em Russkaia mislsobre o primeiro achado, no podamos supor, na realidade, que o cres-cimento do volume dos documentos biogrficos ia complicar a reconstituioda biografia de Mark Levi, tanto que, at hoje, apenas alguns fatos davida dele podem ser considerados esclarecidos.

    Pois bem: .. .Mark Lazarevitch (Liudvigovitch) Levi nasceu nodia 28 de julho de 1898, na famlia de um mercador da 1a guilda (...)Em agosto de 1912 Mark Levi ingressou no colgio Kriman e lestudou at maio de 1916. Logo depois, em junho de 1916 foi batizado

    pelo pastor Briuchveiler na igreja evanglica reformadora de Moscou.(..) Durante o perodo da Nova Poltica Econmica, a partir de ano1923 aproximadamente, M.Levi, segundo os relatos dele mesmo, tra-balhou como intrprete em ARCOS, organizao da GPU de famaescandalosa. A documentao do pessoal da ARCOS, inclusive doscontnuos e das faxineiras, conservou-se bastante bem, mas, no acha-mos nenhum sinal de M. Levi. Pode-se considerar como fato incontest-vel unicamente sua partida para Alemanha no limite dos anos 1924-25. O quefazia M. Levi na Alemanha?

    Uma referncia do Cnsul Geral da URSS em Istambul,apresentada para o Comissariado Nacional de Assuntos Es-trangeiros no dia 22 de abril de 1939, tem o seguinte texto:

  • M. Aguiev XI

    "Ao se empregar no consrcio alemo Eitingon Schild, elenunca mais voltou para a URSS, e, segundo ele, trocou seupassaporte sovitico por um paraguaio.

    Em 1930 ele abandonou a Alemanha e veio morar na Tur-quia, onde lecionava lnguas e at se dedicava atividade lite-rria. O livro intitulado Novela com cocana foi escrito por ele eeditado pela Casa do livro de emigrantes em Paris.

    Levi assinala que o livro inofensivo, no contm umas palavra dirigida contra a URSS, e que foi escrito forosa-mente para ganhar a vida.

    Das conversas que mantivemos, pode-se deduzir que Levirepensou e entendeu a gravidade do erro cometido, e tentarepar-lo vendendo literatura antifascista e edies soviti-cas, trabalhando na firma Hachette. Nos ltimos anos ele con-tinua trabalhando nessa firma e mantm contatos de negci-os com a Representao Comercial". [Sovitica, N. do T.]

    Em 1942, a polcia turca deportou Levi para a URSS comocidado sovitico, mas ningum sabe quando ele adquiriunovamente o passaporte sovitico.

    Segundo a documentao publicada, isto correspondia a seu desejo devoltar ptria, mas parecia estar ligado com o famoso caso Papen[Franz von Papen, N. do T.] tentativa de atentado contra o embai-xador germnico na Turquia, e as autoridades turcas acusavam algunscidados soviticos da participao dela.

    Retornando URSS, M. Levi instalou-se em Erevan, onde viveutodos os anos seguintes de sua vida. Lecionava alemo na ctedra delnguas estrangeiras da Academia de Cincias da Armnia. Dizemque, ao escrever sua tese sobre os verbos, rasgou-a por ser desnecessria.Casou-se, levava uma vida bastante isolada, preferindo apenas o crculo

  • XII Romance com Cocana

    familiar e poucos amigos. Viajava a Moscou pelo menos uma vez porano, no se sabe para a casa de quem. Seus hobbies eram a filmagemamadorstica e a msica. Fumava muito, colecionava baralho e gostavade repetir que tudo na vida deve ser experimentado. Faleceu em 5 deagosto de 1973, em Erevan, efoi enterrado l mesmo...

    Pode-se concordar com os autores deste precioso artigo:Romance com cocana no quer se separar de seus mistrios omistrio da autoria transformou-se em mistrio do autor, tal-vez ainda mais fascinante e emocionante.

  • COLGIO

  • Burkvitz recusou

    Certa vez, no comeo de outubro, eu, Vadm Mslennikov(com 15 anos naquela poca), saindo cedo para o colgio,esqueci na sala de jantar o dinheiro do pagamento do primei-ro semestre da escola, deixado l na vspera pela minha menum envelope. Lembrei-me dele j em p no bonde, quando,com o aumento da velocidade, a rpida apario das accias edas pontas da grade do bulevar nas janelas transformou-senum jato contnuo e o peso da mala nos ombros apertavacada vez mais minhas costas contra a barra cromada do va-go. Porm, o meu esquecimento no me preocupou nemum pouco. O pagamento poderia ser feito no dia seguinte e,em casa, no havia quem pudesse passar a mo no dinheiro;alm da minha me, morava no apartamento h mais de vin-te anos, apenas Stiepanida, minha antiga bab, agora criada,

  • 16 Romance com Cocana

    cuja nica fraqueza, ou talvez, at vcio, era morder sementesde girassol e cochichar consigo mesma por falta deinterlocutoras, levando longas conversas e at discusses, in-terrompendo-as de vez em quando com altas exclamaescomo essa boa! ou mas claro! ou ainda pode esperar sentada!. Nocolgio esqueci-me totalmente do caso do envelope. Naque-le dia minhas lies no foram preparadas, o que no aconte-cia com freqncia, em absoluto, e tive de faz-las, parte du-rante os recreios, parte at na presena do professor em clas-se, e esse estado fervoroso e tenso de ateno, no qual seaprende tudo com tanta facilidade (se bem que se esquececom a mesma facilidade um dia depois!) contribua para tirarda memria tudo o que era alheio. Quando comeou o inter-valo mais prolongado e estvamos descendo para o ptio paraaproveitar o tempo seco e ensolarado, embora frio, vi minhame no patamar inferior da escada e s ento lembrei-me doenvelope que ela, no se agentando, deveria estar trazendo.Minha me permanecia afastada, solitria, vestida com suapelia calva, seu capuz ridculo por cima dos cabelinhos gri-salhos (ela j tinha completado cinqenta e sete anos naquelapoca) e com visvel inquietao, que acentuava ainda maisseu aspecto deplorvel, perscrutava desamparadamente obando de ginasianos, que corriam passando por ela; algunsvoltavam a cabea para ela, rindo e fazendo comentrios comos outros. Chegando perto dela, eu queria esgueirar-me des-percebido, mas ela me viu e, iluminando-se com um sorrisocarinhoso, mas no alegre, chamou-me e eu me aproximei,apesar de sentir uma terrvel vergonha perante os colegas.

    Vditchka, filhinho disse com uma voz surda de velha,estendendo-me o envelope e tocando timidamente os botes

  • M. Aguiev 17

    do meu uniforme com sua mozinha amarela, como se elaqueimasse, voc esqueceu o dinheiro, menino, e eu pensei: ele vai seassustar, ento eu o trouxe.

    Ao dizer isso, ela olhou para mim como quem pede es-mola, mas eu, furioso pelo oprbrio sofrido, repliquei, comum sussurro de dio, que esses exageros de sentimentalismono nos convm e, j que ela no pde esperar e trouxe odinheiro, que pague ela mesma. Minha me ouviu-me quieta,silenciosa, baixando seus velhos e ternos olhos com ar deculpa e de pesar, e eu desci correndo a escada j vazia e, pu-xando a porta dura que sugou ruidosamente o ar, virei a ca-bea e olhei para ela, no por sentir uma certa piedade porela, mas por medo de que ela se pusesse a chorar num lugarto imprprio. Minha me permaneceu no patamar, do mes-mo jeito, a cabea disforme, tristemente inclinada para o lado,seguindo-me com o olhar. Ao encontrar o meu, ela acenou amo com o envelope como acenam na estao de trem, eesse gesto to jovial e enrgico mostrou mais ainda como elaera velha, esfarrapada e lastimvel.

    No ptio, onde alguns colegas se aproximaram de mim, umdeles perguntou que palhao de saia era aquele com quem euacabara de conversar, respondi, rindo alegremente, que era umagovernanta empobrecida que me procurou trazendo uma car-ta de recomendao e que, se quisessem, eu a apresentaria aeles: no sem sucesso eles poderiam fazer-lhe a corte. Ao pro-nunciar isso, senti, no tanto pelas palavras que usei, mas pelasgargalhadas provocadas, que elas foram fortes demais at paramim e que eu no devia ter dito aquilo. E quando minha me,depois de ter feito o pagamento, saiu, sem olhar para ningum,

  • 18 Romance com Cocana

    arqueando-se, como se quisesse diminuir mais ainda de tama-nho, passou o mais rpido que pde pelo caminho asfaltadoat o porto batendo com seus saltos gastos, totalmente entor-tados, senti por ela uma dor no corao.

    Porm essa dor que no primeiro instante me queimou toforte no durou muito; sua desapario bem ntida e, porconseguinte, minha total cura dessa dor, aconteceu como queem duas etapas: quando, voltando do colgio, entrei na sala e,indo para meu quarto, passei pelo estreito corredor de nossopobre apartamento com forte cheiro de cozinha, a dor, ape-sar de ter cessado, no deixava de lembrar que existira umahora antes; depois, quando fui para a sala de jantar, sentei-me mesa e minha me sentou-se em frente, pondo a sopa nospratos, a dor no apenas deixou de me incomodar, mas era-me difcil de imaginar que em algum momento ela podia ter-me perturbado.

    Bastou eu me sentir aliviado, inmeras reflexes raivosascomearam a me agitar: que essa velha caduca precisa enten-der que me faz passar vexame com essas suas roupas; queno havia necessidade de se mandar para o colgio com aqueleenvelope; que ela me obrigou a mentir e que me privou dapossibilidade de convidar os colegas para minha casa. Euobservava como ela tomava a sopa, como levantava a colhercom a mo trmula, derramando uma parte de volta ao pra-to, olhava para suas pequenas faces amarelas, para seu narizcor de cenoura por causa da sopa quente, via como depois decada colherada ela passava a lngua esbranquiada pelos lbi-os para tirar a gordura e eu a odiava profunda e intensamen-te. Sentindo que eu a observava, minha me levantou paramim seus desbotados olhos castanhos, meigos como sem-

  • M.Agueiev 19

    pre, largou a colher e, como se fosse forada a dizer algumacoisa para justificar seu olhar, perguntou: T gotoso?' comoquem fala com um nen e meneou sua cabecinha grisalhanuma afirmao interrogativa. T gotoso, repeti, sem ne-gar, nem afirmar, mas arremedando-a. Proferi esse t gotosocom uma careta de nojo, como se estivesse a ponto de vomi-tar, e nossos olhares, o meu frio, cheio de dio, o dela caloroso, acolhedor e afetuoso, encontraram-se e se uniram.Esse encontro prolongou-se e eu via claramente como seuolhar bondoso estava se apagando, tornando-se perplexo,depois amargurado, mas quanto mais evidente era a minhavitria, tanto menos perceptvel e compreensvel parecia aque-le sentimento de dio a uma criatura amorosa e velha, porfora do qual essa vitria estava sendo conseguida. Talveztenha sido por isso que eu no agentei, fui o primeiro abaixar os olhos, peguei a colher e comecei a comer. E quan-do eu, resignado interiormente e querendo-lhe dizer algumacoisa insignificante, levantei novamente a cabea, no conse-gui dizer nada e pulei da cadeira sem querer. A mo da mi-nha me que segurava a colher com sopa estava deitada dire-tamente na toalha, na outra ela deitou a cabea, apoiando ocotovelo na mesa. Seus lbios finos, entortando o rosto, su-biam para a face. Das cavidades marrons dos olhos fechadosque puxavam leques de rugas, corriam lgrimas. E havia tan-to desamparo nessa sua velha cabecinha amarelada, tanta doramarga sem rancor, tanta desesperana por causa dessa suafeia velhice rejeitada por todos, que eu, olhando-a com o rabodo olho, disse, simulando voz grossa: Bom, no fique assim,bom, pare, no h motivo nenhum , e j queria acrescentar : mezinha e at talvez chegar perto e beij-la, quando nesse

  • 20 Romance com Cocana

    mesmo instante, a bab, balanando-se numa perna de botade feltro, empurrou com a outra a porta do lado do corredore entrou com a travessa nas mos. No sei contra quem epara qu, mas, de repente, dei um forte soco no prato. A dorda mo cortada e as calas sujas de sopa confirmaram defini-tivamente que eu estava com razo, e a justeza disso foi vaga-mente reforada pelo grito de susto da bab. Praguejei comar ameaador e fui para meu quarto.

    Logo depois minha me vestiu-se, saiu no sei para ondee voltou no fim da tarde. Ao ouvir que seus passos se dirigi-am da entrada para o meu quarto e quando ela tocou na por-ta, perguntando pode? lancei-me escrivaninha abrindo spressas um livro, sentei-me de costas para a porta e respondicom um indiferente entre. Passando indecisa pelo quarto, che-gou ao meu lado e eu, fingindo estar absorto pelo livro, vique ela ainda estava de casaco e com seu hilariante capuzpreto. Tirando a mo de sob a lapela, colocou na mesa duasnotas de cinco rublos amassadas, como se pudicamente elasquisessem diminuir de tamanho. Depois, passando sua motorcida pela minha, disse baixinho: Me desculpe, filhinho. Voc bom. Eu sei. Acariciou meu cabelo, pensou um pouco, comoquem quer dizer algo mais, mas saiu na ponta dos ps, semdizer nada, fechando a porta sem barulho.

    2Logo depois daquilo adoeci. Porm, meu primeiro grande

    susto foi confortado um pouco pelo bom humor prtico domdico, cujo endereo escolhi ao acaso entre os anncios devenereologistas que enchiam quase uma pgina inteira do jor-nal. Ao examinar-me, ele arregalou os olhos numa surpresa

  • M. Aguiev 21

    de respeito, exatamente como nosso professor de letras, quan-do ouvia boa resposta de um mau aluno. Depois, dando pal-madas no meu ombro, acrescentou no em tom de consoloque me deixaria aflito, mas em tom de tranqila certeza desua fora: No se desespere, jovem, consertaremos tudo em um ms.

    Lavou as mos, escreveu as receitas, deu-me as devidasinstrues e, olhando para o rublo, que, desajeitadamente, eucolocara torto e que por isso rodava tilintando cada vez commaior freqncia medida que deitava na mesa de vidro,escarafunchou com gosto seu nariz, despediu-me, alertando,com um ar sombrio de preocupao que no combinava nadacom ele, que a rapidez de minha cura e da cura em geraldependiam totalmente da pontualidade das consultas, e queo melhor seria visit-lo diariamente.

    Nos dias que se seguiram, verifiquei que essas visitas di-rias no eram indispensveis em absoluto, mas apenas ummeio comum da parte do mdico de fazer meu rublo tilintarmais vezes no seu gabinete; mesmo assim, eu ia l diariamen-te, ia simplesmente porque me dava prazer. Havia algo na-quele homem gordo de pernas curtas, na sua voz baixa edensa, como se ele tivesse acabado de comer uma coisa gos-tosa, nas dobras de seu gordo pescoo que lembravam pneusde bicicleta colocados um em cima do outro, nos seus peque-nos olhos, alegres e ladinos e, em geral, na maneira de metratar, havia algo de jactncia com gracejo, de aprovao eainda algo mais dificilmente perceptvel, mas que me lisonje-ava e agradava. Ele era o primeiro homem entrado em anos,portanto homem adulto, que me via e me entendia daquelengulo, do qual eu queria me mostrar naquela poca. E eu iavisit-lo todos os dias, no por causa dele, no como mdico,

  • 22 Romance com Cocana

    mas como amigo, e no comeo esperava at com impacin-cia a hora marcada, vestindo como para um baile um novobluso, novas calas e sapatos rasos de verniz.

    Naqueles dias, querendo criar para mim a reputao deum menino prodgio em erotismo, contei na classe que tipode doena eu tive (disse que j tinha passado, quando na ver-dade o mal estava apenas no comeo); foi naqueles dias quando eu no tinha a menor dvida de que revelando seme-lhante coisa eu ganharia bastante aos olhos dos colegas eucometi esse terrvel erro, cuja conseqncia foi uma vida hu-mana estropiada ou, talvez, a morte.

    Passadas duas semanas, quando os sinais externos da do-ena enfraqueceram, mas eu sabia muito bem que ainda esta-va doente, sa para passear ou pegar um cineminha. Era noi-te, meados de novembro, essa poca maravilhosa. A primeiraneve fofa, como estilhaos de mrmore em gua azul, caalentamente sobre Moscou. Os telhados das casas e os cantei-ros dos bulevares enfunaram-se como velas azuis. Os cascosno batiam, as rodas no faziam barulho e o sonoro retinirdos bondes numa cidade aquietada emocionava como na pri-mavera. Numa pequena rua alcancei uma moa que ia mi-nha frente. Alcancei-a no porque quis, mas simplesmenteporque caminhava mais depressa do que ela. Quando estavaultrapassando e contornando-a, ca, enterrando-me numa nevefunda, ela virou a cabea e nossos olhares se encontraram esorriram. Numa excitante noite moscovita dessas, quando caia primeira neve, quando as faces ardem em manchas de mirtiloe no cu estendem-se os fios como cabos azuis onde en-contrar foras e mau humor numa noite dessas para passarsem dizer nada, para nunca mais encontrar um ao outro?

  • M. Aguiev 23

    Perguntei como se chamava e aonde ia. Ela chamava-seZnotchka e no ia aonde nenhum, mas ia andando simplesmenteassim. Na esquina da qual nos aproximvamos estava umtrotador; o tren alto tinha forma de clice, o enorme cavaloestava coberto com um baixeiro branco. Sugeri dar um passeioe Znotchka, com os olhinhos brilhando para mim e os lbiosem boto, comeou a acenar rapidamente com a cabea comocriana. O cocheiro estava sentado de lado para ns, mergu-lhado na dianteira do tren que parecia um ponto de interro-gao. Quando estvamos chegando perto, animou-se um pou-co e, seguindo-nos com os olhos como quem segue o alvo,disparou a voz rouca: Faz favor, faz favor! Eu levo vocs! Vendoque acertou e que era preciso pegar a caa, desceu do tren.Enorme e solene, de sobretudo verde at o cho, luvas brancasdo tamanho de uma cabea de criana, cartola com fivela moda Onguin, acrescentou, aproximando-se: Queira VossaSenhoria ordenar conduzi-los num cavalo ligeiro.

    A comeou um martrio. Para ir at o Parque Petrovski evoltar, ele pediu dez rublos. Embora no bolso da Senhoriahouvesse apenas cinco rublos e meio, eu no vacilaria empegar o tren, achando naqueles anos qualquer calote menosvergonhoso que a necessidade de pechinchar com o cocheirona presena de uma dama. Mas foi Znotchka quem salvou asituao. Com indignao nos olhos ela declarou decidida-mente que o preo era absurdo e que eu no ousasse pagarmais do que uma verdinha. Segurando-me pela mo, ela mepuxava para longe, e eu ia, resistindo de leve, com essa resis-tncia tirando de mim e passando para Znotchka toda a ver-gonha da situao. Como se no fosse por minha causa, comose eu estivesse disposto, claro, a pagar qualquer preo.

  • 24 Romance com Cocana

    Afastados uns vinte passos, Znotchka olhou com a cau-tela de um ladro por cima do meu ombro para trs e, ao verque o baixeiro estava sendo retirado s pressas do cavalo,avanou, colocando-se na minha frente e levantando-se naponta dos ps sussurrou com exaltao: Ele aceita, aceita(bateu palmas silenciosamente), ele vem j! Est vendo como eusou inteligente tentando encontrar meu olhar, est vendo, eutinha razo, hem?!

    Esse hem soava muito agradvel para mim. Queria dizerque eu sou um farrista elegante, rico e esbanjador e ela, me-nina pobre, me contm em meus gastos e no porque essesgastos estejam acima das minhas possibilidades, mas apenasporque dentro do estreito horizonte de sua misria, ela, coi-tadinha, no pode admitir tais dispndios.

    O cocheiro alcanou-nos no cruzamento seguinte, ultra-passou-nos e, segurando o impetuoso trotador, puxando asrdeas da direita para a esquerda como volante, e deitando decostas no tren, abriu a manta. Ajudei Znotchka a se sentar,passei para o outro lado devagar, embora com vontade deme apressar, subi no assento alto e estreito, prendi a forteala de veludo no gancho de metal, abracei Znotchka e, pu-xando fortemente a viseira, como quem pretende brigar, dis-se com altivez: Arre!

    Ouviu-se um preguioso estalido de beijo, o cavalo arran-cou de leve e o tren comeou a se arrastar lentamente. Eusenti que tudo j tremia dentro de mim por causa dessa zom-baria do cocheiro. Mas quando, ao dobrar duas esquinas, sa-mos na rua Tverskaia-Iamskaia, o cocheiro encurtou de re-pente as rdeas e gritou E-e-e-p! onde o agudo e metlico

  • M. Aguiev 25

    e elevava-se estridente at bater na pequena barreira p queno o deixava seguir. O tren arrancou-se violentamente, nsfomos jogados para trs de joelhos levantados e em seguidapara frente, de cara contra as costas acolchoadas. A rua todaj voava ao nosso encontro, cordas de neve molhada aoita-vam fortemente as faces e os olhos, s por instantes soava oretinir dos bondes que vinham em sentido contrrio e denovo o ep, ep, desta vez curto e dolorido como chicote e de-pois um baaaila! como um alegre e furioso balido, as negrasexploses dos trens em sentido contrrio e a angustianteexpectativa de levar um varal na cara; tchoc, tchoc, tchoc soa-vam os arremessos de neve dos cascos contra a dianteirametlica, e tremia o tren, e tremiam os nossos coraes. Ah, como bom, sussurrava com admirao perto de mim umavoz infantil em meio chuva fustigante. Ah, que maravilha,que maravilha! Para mim tambm era uma maravilha. S que,como sempre, eu resistia e me opunha a este sentimento dextase que explodia dentro de mim.

    Quando deixamos para trs O lar [Restaurante famoso, ondecantavam ciganos. (N. do T.)] a galope, j podia-se ver a torre daestao no balo da linha de bonde e o quiosque da confeita-ria fechado com tbuas. Na passagem para o balo, o cocheiro,recostando-se em ns, freou fortemente o cavalo e cantaro-lou com voz entrecortada, mansa e feminina prr..., prr...,prr... e ns entramos na passagem marchando. De repenteparou de nevar, somente em torno de uma lanterna amarelasolitria os flocos voavam com languidez sem cair, como sel algum estivesse sacudindo um edredom. No ar negro atrsda lanterna havia uma placa sobre postes e do lado dela esta-

  • 26 Romance com Cocana

    va pregada em diagonal uma mo fechada com o dedo in-dicador esticado de punho branco e uma parte da manga.Pelo dedo andava uma gralha, jogando a neve para baixo.

    Perguntei a Znotchka se ela no sentia frio. Me sintomaravilhosamente bem, disse isto uma verdadeira maravilha, no? Bom,pegue minhas mos, esquente-as. Despreguei de sua cintu-ra meu brao que doa bastante no ombro. Da viseira escor-ria gua pelas faces e, atrs da gola, tnhamos os rostos mo-lhados, a pele das faces e do queixo estava to repuxada pelofrio que conversvamos com os rostos imveis, as sobrance-lhas e os clios grudavam em pingentes de gelo, ombros,mangas, peito, manta tudo estava coberto com uma crostade gelo estalante, o cavalo e ns exalvamos vapor como seestivssemos fervendo por dentro e as bochechas deZnotchka pareciam ter casca de ma vermelha colada.

    O balo totalmente deserto era todo branco e azul, e nes-ses branco e azul da neve, no seu brilho de naftalina, nessesilncio imvel, como o de um quarto, eu vi a minha angs-tia. Lembrei-me de repente que dentro de alguns minutosteria que sair do tren, ir para casa, cuidar da minha nojentadoena, levantar-me no escuro de manh cedo e tudo deixoude ser uma maravilha para mim.

    Coisas estranhas aconteciam na minha vida. Sentindo feli-cidade, bastava eu pensar que essa felicidade era por poucotempo que no mesmo instante ela acabava. A sensao defelicidade acabava no porque as condies externas que acriaram interrompiam-se, mas s pela conscincia de que es-ses esforos externos muito em breve e infalivelmente cessa-riam. E no mesmo momento em que essa conscincia surgia,desaparecia a felicidade, e os fatores que a criaram e ainda

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    no se interromperam, continuavam existindo, j comea-vam a irritar. Quando samos do balo e voltamos para aestrada, meu nico desejo era estar o quanto antes na cidade,sair do tren e pagar a conta.

    A volta era fastidiosa e fazia frio. Mas quando, ao chegarao bulevar Strastni, o cocheiro, virando a cabea, perguntouse continuava a viagem e para onde, eu, olhandointerrogativamente para Znotchka, senti em seguida que meucorao parou docemente como de costume. Znotchka es-tava olhando no nos meus olhos, mas para meus lbios comaquela expresso feroz e sem sentido, do qual o sentido meera bem conhecido. Soerguendo-me nos joelhos que come-aram a tremer de felicidade, disse ao ouvido do cocheiroque nos levasse casa de Vinogrdov.

    Seria uma total inverdade dizer que, durante aqueles pou-cos minutos que eram necessrios para chegar at a casa deencontros, no me preocupava nem um pouco o fato de es-tar doente e poder contagiar Znotchka. Apertando-a forte-mente contra mim, eu no parei de pensar nisto, mas ao pen-sar, temia no a responsabilidade diante de mim mesmo, esim os aborrecimentos que outros poderiam me causar portal procedimento. E como quase sempre acontece em taiscasos, esse medo, no impede o cometimento da contraven-o, apenas estimula a pratic-la de tal maneira que ningumconhea o culpado.

    Quando o tren parou diante daquela casa cor de ferru-gem com janelas calafetadas, pedi ao cocheiro que nos levas-se para dentro. Para passar pelo porto, o tren precisavarecuar para trs at a grade do bulevar e quando j estva-mos no porto, os esquis chiaram entrando no asfalto e para-

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    ram atravessando a calada. Durante aqueles poucos segun-dos antes que o cavalo, num arranque, nos levasse ao ptio,os eventuais transeuntes contornavam o tren e nos exami-navam com curiosidade. Dois deles at pararam e isso influ-enciou visivelmente Znotchka. Subitamente ela distanciou-se, tornou-se estranha, aflita, ar ofendido.

    Enquanto Znotchka, ao descer do tren, afastava-se paraum canto escuro do ptio, eu, pagando o cocheiro, que in-sistia num acrscimo, pensava com aborrecimento que merestavam somente dois rublos e meio e que possivelmente,se os cmodos baratos estivessem ocupados, precisaria demais cinqenta copeques. Paguei o cocheiro e, aproximan-do-me de Znotchka, j pela maneira como ela sacudia suabolsinha e contorcia nervosamente o ombro, senti que ago-ra, assim, de imediato, ela no iria. O cocheiro se foi e avirada brusca do tren deixou na neve um crculo liso comoque passado a ferro. Aqueles dois curiosos que haviam pa-rado quando entrvamos, agora estavam no ptio, a umacerta distncia, observando-nos. De costas para eles, paraque Znotchka no pudesse v-los, abracei-a pelos ombros,chamei-a de pequerrucha, de pequenina, de menininha, usan-do palavras privadas de qualquer sentido, se no fossempronunciadas com voz afetuosa, da qual o som se fez por simesmo doce como melao. Sentindo que ela estava se ren-dendo, voltando a ser a Znotchka de antes, no exatamen-te aquela que lanou para mim o terrvel olhar (como mepareceu) no bulevar Strastni, mas a que dizia no parque maravilha, ah, que maravilha! , comecei a falar-lhe de umamaneira desajeitada e confusa que eu tinha no bolso umanota de cem rublos, que aqui no poderiam troc-la, que eu

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    precisava de cinqenta copeques, que dentro de alguns mi-nutos eu os devolveria, que... Mas Znotchka no deixou euterminar, rapidamente, com a pressa de quem est assusta-da, abriu sua velha bolsinha de oleado, imitao de crocodi-lo, tirou um porta-moedas minsculo e virou seu contedona palma da minha mo. Eu vi um punhado de moedas deprata e pequenininhas de cinco copeques, que eram umaespcie de raridade, e olhei para ela com interrogao. So

    justamente dez disse em tom tranqilizador, depois, enco-lhendo-se com ar de coitada, como que se desculpando,acrescentou pudicamente: h muito tempo que eu as juntava,dizem que do sorte. Mas, minha pequerrucha, repliquei comuma nobre indignao ento d pena, ora! Tome de volta, eume viro. Mas Znotchka, j zangada de verdade, fazia caretastentando fechar meus dedos com suas mozinhas. Vocdeve aceitar dizia. Voc deve. Se no, voc me ofender.

    Ir ou no ir? Ir ou recusar? era a nica coisa queagitava meus pensamentos, meus sentimentos, todo meu ser,enquanto eu, como por acaso, levava Znotchka para a entra-da do hotel. Subindo o primeiro degrau, ela, parecendo vol-tar a si, parou. Olhou com angstia para o porto, onde aindaestavam aqueles dois, como guardas que barram a passagem,depois para mim, como quem est se despedindo, deu umtriste sorriso, baixou a cabea, encurvando-se toda, fechou orosto com as mos. Peguei fortemente o brao dela, bemalto, perto da axila, puxei-a pela escada acima e empurrei-apela porta, servilmente aberta pelo porteiro.

    Quando saamos, dentro de uma hora ou sei l quan-to, ainda no ptio, perguntei a Znotchka, para que ladoela devia ir, para determinar uma direo contrria mi-

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    nha casa, despedir-me dela uma vez para sempre aquimesmo, no porto. Assim procedia-se habitualmente nasada de Vinogrdov.

    Mas se a tais despedidas para sempre eu era induzido pelasaciedade e tdio e, s vezes at pelo asco sentimentos queimpediam de acreditar que a mesma menina poderia tornar-se desejada no dia seguinte (mesmo sabendo que me arre-penderia dentro de um dia), desta vez, separando-me deZnotchka, eu experimentava apenas enfado.

    Experimentava enfado porque l no cmodo, atrs do ta-bique, Znotchka, contagiada por mim, no correspondeu sexpectativas, continuou sendo a mesma menina exaltada epor isso assexuada, como quando dizia ah, que maravilha!Despida, ela acariciava minhas faces, repetindo ah, meu amor-zinho, meu bichinho com uma voz de ternura infantil, de me-nina e essa ternura, que no era coquete, no, mas cordial envergonhava-me, no deixava que eu me expressasse inteira-mente naquilo que costumam chamar de sem-vergonhice, em-bora erroneamente, porque a principal e a mais emocionantedelcia da viciosidade humana a superao da vergonha eno a sua falta. Sem ela mesma saber, Znotchka impedia aoanimal superar o homem, por isso naquele momento, sentin-do insatisfao e enfado, eu defini o acontecido com umapalavra: em vo. Em vo contagiei a menina pensava e sen-tia eu, mas esse em vo eu entendia e sentia como se cometes-se no somente algo que no era terrvel, mas, ao contrrio,como se eu fizesse um sacrifcio, esperando em troca umprazer, que acabei no recebendo.

    Somente quando j estvamos no porto, e Znotchka,cuidadosamente, para no perder, guardava um pedacinho

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    de papel, no qual eu anotei meu suposto nome e o primeironmero de telefone que me veio cabea, somente quando,ao me agradecer e se despedir, Znotchka comeou a se dis-tanciar de mim sim, somente ento a voz interior, no apresunosa e insolente com a qual em minha imaginao,deitado no sof, eu me dirigia mentalmente ao mundo exter-no mas uma voz tranqila, complacente que conversava,dirigindo-se apenas a mim mesmo, comeou a falar dentrode mim. Ora, rapaz dizia essa voz com amargura, ar-rasaste com a menina. Olhe, ei-la andando, essa criancinha. Lembras-te como ela te dizia, Ah, meu amorzinho! E destruste por qu? Quemal ela te fez? Ora, rapaz!

    Uma coisa surpreendente so as costas de uma pessoa sedistanciando, de uma pessoa ofendida injustamente e queparte para sempre. H nelas uma impotncia humana, umafraqueza lastimvel, que pede complacncia, que chama, quepuxa atrs de si. H algo nas costas de uma pessoa se dis-tanciando, que faz lembrar as injustias e ofensas, das quais preciso relatar mais uma vez, e se despedir mais uma vez,e deve-se faz-lo o quanto antes, porque a pessoa vai em-bora para sempre, deixando por si muita dor, que ir ator-mentar ainda por muito tempo e na velhice, talvez, no per-mitir dormir. De novo estava caindo a neve, mas seca efria, o vento balanava a lanterna e no bulevar as sombrasdas rvores agitavam-se unanimemente como caudas. Faziamuito tempo que Znotchka virara a esquina, fazia muitotempo que no dava mais para ver Znotchka, mas de novoe de novo eu a trazia at mim pela minha imaginao, dei-xava-a ir at a esquina, olhava suas costas se distanciando, enovamente, ela, no sei por que, de costas voltava voando

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    para mim. E quando, finalmente, minha mo esbarrou nobolso, e retiniram nele as dez moedas de prata de cincocopeques no utilizadas, lembrei-me em seguida de seus l-bios e de sua voz, dizendo- juntei-as durante muito tempo,parece que do sorte aquilo foi como uma chibatada nomeu infame corao, chibatada que me fez correr, correratrs da Znotchka pela neve profunda, naquele relaxamen-to lacrimoso quando voc corre atrs do ltimo trem emmovimento, corre sabendo que no poder alcan-lo.

    Naquela noite vaguei longamente pelos bulevares, e na-quela noite jurei para mim: guardar por toda vida, por todaminha vida as moedinhas de prata de Znotchka.

    Nunca mais encontrei Znotchka. Moscou grande e hmuita gente nela.

    O grupo que liderava nossa classe era composto por Stein,Iegrov e, como eu queria que parecesse naquele tempo, pormim mesmo. Com Stein eu tinha amizade, ao mesmo tempo,sentindo uma inquietude constante, pois, se eu deixasse deforar essa amizade dentro de mim, eu o odiaria em seguida.Loiro desbotado, sem sobrancelhas, com uma careca j des-pontando Stein era filho de um rico judeu peleteiro e era omelhor aluno da classe. Os professores muito raramente oquestionavam, certificando-se, com o passar dos anos, de queseus conhecimentos eram irrepreensveis. Mas quando umprofessor, ao dar uma olhada na lista de chamada, pronunci-ava S-s-stein a classe toda calava-se de uma maneira espe-cial. Stein arrancava-se do seu lugar com tanto rudo, comose estivesse preso por algum, saa rapidamente da fileira de

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    carteiras, e, por pouco no se dobrando sobre suas finas ecumpridas pernas, colocava-se, longe da ctedra, to obli-quamente em relao ao cho, que se passassem uma linhareta da ponta de seus ps para cima, ela sairia pela pontaaguda do seu estreito e magro ombro perto do qual ele junta-va, como para orao, suas mos enormes e brancas. Em p,o corpo na diagonal, apoiando todo seu peso numa s perna,a outra tocando o cho apenas com a ponta da botina, comose ela fosse mais curta, efeminado, desajeitadamente angu-loso, mas nem um pouco ridculo, expressando pela voz durante as respostas a precipitao que o empurrava parafrente, como que por excesso de conhecimentos e enquan-to ouvia as perguntas que lhe faziam , por uma negligentecondescendncia, ele metralhava brilhantemente sua respos-ta, e, esperando um benvolo pode sentar-se, sempre procuravano olhar para a classe, mas para a janela, e parecia mastigarou murmurar algo com os lbios. Quando, arrancando-se damesma forma, ele voltava rapidamente ao seu lugar peloassoalho escorregadio, sentava-se ruidosamente, e, sem olharpara ningum, comeava em seguida a escrever algo ou esga-ravatar a carteira enquanto a ateno geral no se desviavapara a chamada seguinte.

    Quando nos recreios contava-se algo engraado e o risogeral surpreendia-o sentado na carteira, ele, jogando a cabeapara trs, fechava os olhos, franzia o rosto, mostrando seusofrimento pelo riso, e batia rapidamente o punho contra acarteira como se procurasse com essas batidas afastar esseriso que o sufocava. O riso apenas sufocava-o: os lbios con-tinuavam fechados sem emitir som algum. Esperando o mo-mento em que todos parassem de rir, ele abria os olhos, en-xugava-os com o leno e pronunciava: Uff.

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    Suas paixes eram o bal e a casa de Maria Ivnovna datravessa Kossi. Seu provrbio favorito era: preciso ser euro-peu. Esta frase ele usava constantemente, a propsito e sempropsito. E preciso ser europeu dizia ele quando aparecia,mostrando no relgio que chegara exatamente um minutoantes de comearem a orao. preciso ser europeu dizia, aocontar que havia assistido a um bal na noite passada e decamarote especial. E preciso ser europeu acrescentava ele,dando a entender que depois do espetculo tinha ido a casade Maria Ivnpvna. Somente mais tarde, quando Iegrovcomeou a aborrec-lo demais, Stein perdeu o costume deusar sua expresso predileta.

    Iegrov tambm era rico. Filho de um industrial florestalde Kazan, sempre bem-tratado e perfumado, com uma riscabranca at a nuca dividindo o cabelo amarelo, brilhante comomadeira que, quando descolava, era por inteiro, em camada.Ele seria bonito, no fossem seus olhos: aguados e redondos,olhos de vidro como os de um pssaro, que se tornavam as-sustados e pasmos, bastava o rosto adquirir uma expressosria. Durante seus primeiros meses no colgio, quandoIegrov ainda era excessivamente simplrio, um z-povinho,e at se apresentava como Iegruchka [apelido carinhoso do nomeIegor, do qual provm o sobrenome Iegrov.], algum chamou-oabreviadamente de lago, e o apelido pegou.

    lago foi trazido para Moscou quando j tinha.13 anos, porisso foi logo matriculado na quarta srie.

    Ele foi levado sala pelo preceptor, ainda de manh, an-tes das aulas, o qual sugeriu-lhe, em seguida, ler uma orao,enquanto os vinte e cinco pares de olhos atentos no se des-viavam dele, procurando tensamente qualquer coisa que pu-desse ser motivo de zombaria.

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    Habitualmente, a orao, lia-se muito rpido e com mo-notonia, refletindo em ns com a costumeira necessidade denos levantarmos, ficarmos meio minuto em p, e nos sentar-mos, batendo com grande rudo as carteiras.

    Mas Iago comeou a ler claramente, com uma convicoafetada, e, alm disso, persignava-se no como todo mundo- espantando mosca do nariz, mas com fervor, fechando osolhos; fazia reverncias teatrais e depois, de novo jogando acabea para trs, procurava, com olhos turvos, o cone, pen-durado bem alto na parede da sala. Em seguida ouviram-seuns risinhos, todos desconfiaram que aquilo fosse brinca-deira, a desconfiana passou a ser certeza e os risinhos iso-lados transformaram-se numa boa gargalhada, logo que Iago,interrompeu a orao e percorreu-nos com seu olhar defranguinho, assustado e perplexo. O preceptor ficou muitonervoso, gritou com Iago e com todos ns dizendo que, sealgo parecido acontecesse novamente, ele levaria o assuntoao conhecimento do conselho. Somente uma semana de-pois, quando todos j sabiam que Iago era de uma famliamuito religiosa, seguidora de rituais antigos, o mesmo pre-ceptor, homem j velho, certa ocasio, depois das aulas,chegou de repente a Iago, e ruborizado como um adoles-cente, pegou na mo dele, e, olhando para o lado, disse comvoz entrecortada: Iegrov, voc, por favor, me desculpe. Semdizer mais nada, tirou sua mo, e, todo encurvado, j indoembora pelo corredor, fazia movimentos com os braos,como se arrancasse algo do teto e jogasse bruscamente parao cho. Iago foi para a janela, e, de costas para ns, ficoumuito tempo assoando o nariz.

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    Mas isso foi s no comeo. Nas sries mais avanadas,segundo palavras da diretoria, Iago corrompeu-se bastante,comeou a beber muito e com freqncia. Chegando de ma-nh sala de aula, ele dava uma volta proposital, aproximava-se da carteira onde estava Stein e, dando um arroto ameaa-dor, mandava tudo aquilo, como fumaa de charuto caro, nonariz de Stein. preciso ser europeu explicava ele aos pre-sentes. Apesar de morar em Moscou totalmente s alugavacmodos caros numa manso; pelo visto, recebia muito di-nheiro de casa, freqentemente aparecia com mulheres emcarruagens e, mesmo assim, ele estudava com regularidade emuito bem, era considerado um dos melhores alunos, e ape-nas poucas pessoas sabiam que em quase todas as matriasele recorria ajuda de professores particulares.

    Poder-se-a dizer que a ns trs Stein, Iegrov e eu --essa cabea da classe, como falava-se de ns, todos os outrosdo grupo juntavam-se como a uma barra de m grudam asduas pontas da ferradura. Uma ponta juntava-se a ns peloseu melhor aluno, e afastando-se de ns pelo crculo da fer-radura, proporcionalmente s notas mais baixas e, voltandode novo, entrava em contato conosco pela outra ponta, naqual estava o pior aluno, o vagabundo. Enquanto ns, a ca-bea, como que conjugvamos as principais caractersticasde uma coisa e da outra: notas do melhor aluno, e a reputa-o do que era tido em pior conta pela diretoria.

    Da parte dos melhores alunos juntava-se a ns Eisenberg,da parte dos vagabundos Takadjev.

    Eisenberg, ou o quietssimo como o chamavam, era meninojudeu muito modesto, muito aplicado e muito tmido. Eletinha um hbito estranho: antes de dizer alguma coisa ou de

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    responder a uma pergunta, procurava engolir a saliva, em-purrando-a com uma inclinao da cabea e, ao engolir, pro-nunciava mte. Todos consideravam indispensvel 2ombarda sua abstinncia sexual (embora a veracidade dessa absti-nncia no pudesse ser verificada por ningum e no fossetampouco confirmada por ele prprio). Freqentemente, nosrecreios, a turma cercava-o, exigindo: Ento, Eisenberg, mos-tra-nos a tua ltima amante e todos examinavam atentamenteas palmas de suas mos.

    Quando Eisenberg conversava com um de ns, ele invari-avelmente inclinava a cabea um pouco para baixo e para umlado, desviava seus olhos cor de urtiga para um canto e enco-bria a boca com a mo.

    Takadjev era o mais velho e o mais alto de todos. Essearmnio gozava da simpatia geral pela sua impressionantecapacidade de transferir totalmente o alvo de zombaria de simesmo para aquela pssima nota que ele acabara de receber,e, diferentemente dos outros, nunca sentia rancor pelo pro-fessor e divertia-se ele mesmo mais que todo mundo. ComoStein, ele tambm tinha uma pequena expresso favorita. Elasurgiu nas seguintes circunstncias: um dia, devolvendo ca-dernos corrigidos, o inteligente e bonacho Seminov, entre-gando a Takadjev o seu e lanando olhares ardilosos, decla-rou que apesar de sua redao estar excelentemente escrita ehaver nela uma nica falta insignificante uma vrgula nolugar errado ele, Seminov, por causa dessa falta insignifi-cante, se sentia obrigado a dar a Takadjev nota zero. O mo-tivo dessa nota to injusta, primeira vista, explicava-se pelofato de que a redao de Takadjev coincidia, palavra por pa-lavra, com a de Eisenberg, e, o que era especialmente miste-

  • 38 Romance com Cocana

    rioso, coincidiam nelas igualmente as vrgulas erroneamentecolocadas. E, ao acrescentar seu provrbio predileto pelovo que se reconhece o falco e pelo ranho o rapago , devolveu ocaderno a Takadjev. Mas Takadjev, com o caderno nas mos,continuava diante da ctedra. Ele perguntou mais de umavez: Ser possvel? Ser que ele entendeu bem? Como podiam essasvrgulas erroneamente colocadas coincidir tanto? Ao receber o cader-no de Eisenberg para se certificar, folheou-o longamente, pro-curava e comparava algo, com crescente surpresa no rosto e,para finalizar, j totalmente perplexo, olhou primeiro parans, prontos a explodir em gargalhadas, depois, bem devagarvoltou os olhos pasmos e esbugalhados para Seminov: Tam-manha caencedncia murmurou ele tragicamente, levan-tando os ombros e baixando os cantos da boca. A nota zeroj fora dada, o preo, portanto, j fora pago, e Takadjev, quena realidade dominava perfeitamente o idioma russo, sim-plesmente aproveitava a ocasio para divertir os amigos, a simesmo e tambm ao professor de letras que, apesar do cruelrigor das notas, gostava de rir.

    Tais eram as pontas da ferradura que se juntavam a ns,ferradura da qual os outros alunos pareciam tanto mais dis-tanciados e por isso inspidos, quanto mais prximos elesestavam do meio da ferradura, por causa da perene luta entrea nota baixa e a satisfatria. Era neste meio, distante e alheiopara ns, que se encontrava Vassli Burkvitz, rapaz baixi-nho, cheio de espinhas, cabelo rebelde, quando aconteceucom ele algo bastante incomum para a tranqila e bem en-grenada vida do nosso velho colgio.

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    4Estvamos na quinta srie e assistamos aula de alemo

    com fon-Folkman, homem totalmente calvo, rosto verme-lho e bigodes brancos com fios ferrugem, Masepa. Primei-ro, na prova oral, ele fazia perguntas a Burkvitz (chamando-o de Brkevitz, com o acento no ), mas como algum estavasoprando descaradamente e em voz alta, Folkman zangou-se, seu rosto cor de cenoura em seguida virou cor de beterra-ba. Mandou Burkvitz sair da carteira e chegar at a lousa, e,ao resmungar Verdammte bummelei [Maldita baguna!], j estavapuxando com carinho o freio de sua raiva o bigode branco-ferrugem. De p, junto lousa, Burkvitz ia responder, quan-do subitamente aconteceu uma coisa extremamente desagra-dvel. Ele espirrou, mas espirrou dum jeito to infeliz, que oranho jorrou do nariz e ficou pendurado quase at a cintura,balanando. Todos deram risadinhas.

    Was ist denn wider los? perguntou Folkman e, ao virar acabea e olhar, acrescentou: Na, ich danke [o que aconteceunovamente? / Eu agradeo.].

    Burkvitz, vermelho de vergonha e depois empalidecen-do at esverdear, procurava nos bolsos com as mos trmu-las. Mas no havia leno com ele. Voc, querido, poderia cortara suas ostras disse Iago. Deus misericordioso, mas ns aindavamos ter que almoar. Tamanha caencedncia admirava-seTakadjev. A classe toda j urrava de tanto gargalhar, eBurkvitz, perdido e lastimvel, saiu correndo para o corre-dor. Folkman, batendo com o lpis na mesa, gritava: Rrrue![Silncio]. Mas naquela zorra total s se ouvia o rosnar daprimeira letra, som que ilustrava perfeitamente a expresso

  • 40 Romance com Cocana

    de seus olhos, que ficaram to esbugalhados que ns senti-mos mais medo por ele do que por ns.

    Porm, no dia seguinte, quando novamente tnhamos aulade alemo, Folkman, pelo visto, bem-humorado desta vez,resolveu dar risadas e chamou Burkvitz de novo. Brkevitz!bersetzen Sie weiter ordenou Folkman e acrescentou, finindopavor: aber selbstverstndlich nur im Falle, wenn Sie heut'nTaschentuch besit^en. [Continue a traduo. Mas, evidentemente, s sevoc tiver um leno hoje. (alemo)]

    O admirvel em Folkman era que somente pelo sentidodos acontecimentos precedentes podia-se adivinhar se ele riaou tossia. Depois dessas palavras, vendo-o com a boca es-cancarada, da qual soltava um jato borbulhante, rouquejantee grugulejante, vendo como se levantavam as pontas enfer-rujadas de seus bigodes, como se um vento terrvel soprasseda boca, e como na sua careca cor de framboesa inchou umaveia roxa, da grossura de um lpis, a classe toda caiu numaterrvel e convulsiva gargalhada. Stein, com a cabea para trs,olhos fechados com expresso de sofrimento, batia com seupunho branco na carteira e, depois que todos se acalmaram,enxugou os olhos e fe z uff.

    Somente meses depois ns entendemos o quanto cruel,injusta e descabida era essa gargalhada.

    O caso que depois daquele acontecimento desagrad-vel Burkvitz no voltou para a classe, e no dia seguinteapareceu com uma cara imvel. A partir daquele dia a clas-se deixou de existir para ele, como se ele tivesse nos enter-rado, e ns o teramos esquecido, se dentro de uma ou duassemanas no fosse notado por ns e pelos professores algoextremamente singular.

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    Esta singularidade consistia em que Burkvitz, o mau alu-no Burkvitz, de repente e inesperadamente, comeou a sedeslocar do meio da ferradura, no incio muito devagar, de-pois cada vez mais rpido, em direo a Eisenberg e Stein.

    Esse avano era bastante lento e difcil. desnecessriodizer que mesmo com o sistema de notas, os professorescostumam orientar-se no tanto pelo conhecimento do alu-no no momento da prova oral, quanto pela reputao dosconhecimentos que o aluno adquiriu durante anos. Houvecasos, embora muito raros, em que algumas respostas deStein ou de Eisenberg eram to fracas, que se no lugar delesestivesse Takadjev, ele receberia a nota mnima. Mas j queeram Eisenberg e Stein, durante anos considerados os me-lhores alunos, o professor, apesar das respostas fracas, etalvez a contragosto, dava a nota mxima. Acusar por issoos professores de injustia, seria to justo, quanto acusar deinjustia o mundo inteiro. Acontecia amide quando pes-soas consideradas famosas, esses melhores alunos de belas-artes, recebiam de seus crticos comentrios de admiraomesmo por obras to fracas e to sem sentido, que, se fos-sem elas criadas por algum sem nome, ele poderia contar,na melhor das hipteses, com a nota mnima de Takadjev.A dificuldade maior de Burkvitz no foi seu anonimato,mas, o que era muito pior, sua reputao, de longa data, deum aluno medocre, de notas mnimas; foi justamente a famade mediocridade que o impedia de avanar e estava diantedele como uma parede indestrutvel.

    Mas isso, claro, foi s no comeo. Tal era, em geral, apsicologia do conceito de notas de 1 a 5, que para passarda nota 3 4 era como atravessar nadando um oceano, e

  • 42 Romance com Cocana

    da 4 at 5 dar uns passos apenas. Entretanto, Burkvitzavanava. Devagar, com tenacidade, sem recuar um pal-mo, sempre para frente, pela curva da ferradura, aproxi-mava-se cada vez mais de Eisenberg, cada vez mais deStein. No final do ano letivo (a histria com o espirro acon-teceu em janeiro) ele j estava perto de Eisenberg, apesarde no poder se comparar com ele por falta de tempo.Mas quando. Burkvitz saiu do ltimo exame com a mes-ma cara imvel e sem se despedir de ningum passou parao vestirio, ns ainda no supnhamos que seramos tes-temunhas de uma dura luta, luta pela primazia, que iria setravar desde o incio do ano letivo seguinte.

    5A luta comeou logo nos primeiros dias. De um lado Vassli

    Burkvitz, do outro Eisenberg e Stein. A primeira vista essaluta poderia parecer sem sentido: tanto Burkvitz, quantoEisenberg e Stein, no recebiam outras notas, a no ser 5 [Anota mais alta nas escolas russas]. E mesmo assim a luta continuava;uma luta tensa, quente (acalorada?), alis, ela se desenrolavapor aquele acrscimo invisvel nota, por aquela transforma-o suprema dessa nota, que, embora no pudesse ser repre-sentada graficamente no livro de notas, fazia-se sentir forte-mente pela classe e pelos professores, e por isso servia decauda, pelo comprimento da qual determinava-se a primazia.

    Uma ateno especial a essa competio manifestava oprofessor de Histria, e acontecia at de ele chamar os trsna mesma aula, um atrs do outro: Eisenberg..Stein eBurkvitz. Nunca vou esquecer aquele silncio eletrizadona sala de aula, aqueles olhos, midos, ansiosos, ardentes

  • M. Aguiev 43

    de todos ns, aquela emoo oculta e, por isso, mais arre-batada, e parece-me que ns viveramos uma tourada damesma maneira, caso no pudssemos expressar com gri-tos nossos sentimentos.

    O primeiro a responder era Eisenberg. Este pequeno ehonesto trabalhador sabia tudo. Sabia tudo que precisava sa-ber, sabia mais do que precisava, acima daquilo que dele seexigia. Mas, ao mesmo tempo, os conhecimentos que a liodo dia exigia dele, eram apresentados de uma maneira, que apesar deirrepreensvel, apesar de precisa, apesar de impecvel, no passava deum seco rol de acontecimentos histricos; e da mesma for-ma, os conhecimentos que no se exigiam dele, mas pelosquais ele queria brilhar, expressavam-se apenas em se adian-tar no futuro cronolgico das lies ainda no estudadas.

    Depois, apressado como sempre, ia frente Stein, quecom sua figura oblqua parecia inclinar a sala. De novo amesma pergunta feita para Eisenberg, e Stein comeava ametralhar com maestria. Aquilo j no era Eisenberg, comas degluties de saliva e os estrambticos mte, com os quaisele comeava seus pargrafos. Em certo sentido aquilo queapresentava Stein era at brilhante. Ele estalava como ummotor de muita potncia, palavras estrangeiras em abun-dncia saam como fagulhas, sem diminuir o ritmo da fala,citaes latinas passavam voando como pontes bem-construdas, e sua maneira de cunhar palavras fazia chegartudo aos nossos ouvidos sem tenso, sem exigir esforo paraescutar, permitindo descansar com prazer e, ao mesmo tem-po, sem deixar cair no vcuo nenhuma gota fnica. E paracmulo de tudo, Stein, j terminando, num resumo brilhan-te de sua exposio, nos dava a entender com transparncia

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    que ele, Stein, homem de nosso sculo, embora contandotudo aquilo, na realidade apenas condescende, e olha de cimaos homens de pocas passadas. Que ele, tendo agora suadisposio automveis, avies, aquecimento central e a so-ciedade internacional de vages-leito, considera-se em ple-no direito de olhar do alto gente dos tempos da trao ani-mal, e que se ele estuda essa gente, apenas para certificar-se mais uma vez da grandeza do nosso sculo de inventos.

    E finalmente Vassli Burkvitz, e de novo a mesma per-gunta feita aos dois antecedentes. As primeiras palavras deBurkvitz decepcionaram. que ele traava muito secamen-te o caminho de seu relato e nossos ouvidos mal-acostuma-dos esperavam o preciso tamborilar de Stejn. Mas logo de-pois de algumas locues, Burkvitz, como que por acaso,mencionava um pequeno detalhe da vida daquela poca, so-bre a qual ele contava, como se, erguendo o brao, jogasseuma exuberante rosa sobre as corcovas dos tmulos histri-cos. O primeiro trao de antigos costumes seguia-se pelo se-gundo e pelo terceiro, tambm isolados como gotas de chuvaantes da tempestade, depois por muitos e, enfim, por toda atorrente, fazendo mais lento e mais difcil o avano dele nodesenrolar dos acontecimentos. E os velhos sepulclos, ador-nados pelas flores deitadas sobre eles, j pareciam bem re-centes, ainda no esquecidos, como que cavados na vsperaIsso era o comeo.

    E logo que, por fora desse comeo, aproximavam-se dens, chegando bem perto, antigas casas, antigas pessoas e asatividades de pocas antigas, em seguida refutava-se o pontode vista de Stein, que enaltecia os tempos atuais sobre o pas-sado s porque hoje o expresso de luxo percorria em vinte e

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    quatro horas uma distncia que naqueles tempos remotos datrao animal exigiria mais de uma semana de viagem., Comuma habilidade que pouco parecia ser premeditada, Burkvitzencadeava os costumes de hoje aos de ontem, e mesmo semafirm-lo, fazia-nos entender que Stein enganava-se. Que adiferena entre pessoas que viviam nos tempos da traoanimal, e as que vivem hoje, na poca de aperfeioamentostcnicos, aquela diferena que, como acreditava .Stein, d aohomem do sculo atual o direito de se enaltecer sobre oshomens de pocas passadas, na realidade no existe em ab-soluto, que no h nenhuma diferena entre o homem dehoje e o das pocas passadas, que, pelo contrrio, toda e qual-quer diferena entre eles est ausente, e que justamente a au-sncia desta diferena explica a surpreendente semelhanado relacionamento humano naquele tempo, quando percor-ria-se uma distncia em uma semana e agora, quando essadistncia percorrida em vinte horas. E que como nos diasde hoje, pessoas muito ricas, trajando roupas caras viajam emvages-leito internacionais, naqueles tempos, pessoas vesti-das de uma maneira diferente, mas tambm com roupas muitocaras, e que viajavam, agasalhadas com mantas de zibelina,em carruagens forradas de seda; que como agora h pessoas,se no to ricas, mas bem-vestidas, que viajam na segundaclasse e cujo objetivo de vida conseguir essa possibilidadede viajar nos vages-leito, assim outrora tambm havia pes-soas que usavam carruagens menos caras e agasalhavam-secom mantas de pele de raposa, e que o objetivo de vida delesera poder adquirir uma carruagem mais cara, e trocar pelesde raposa pelas de zibelina; que como agora h pessoas queviajam na terceira classe, sem ter dinheiro para pagar o acrsci-

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    mo pela velocidade, condenados a sofrer nas tbuas duras dovago postal, naqueles tempos tambm havia pessoas semdinheiro nem cargo, e por isso mordidas durante mais tempopelos percevejos no banco do chefe da estao; que, afinal,se hoje h gente faminta, miservel, em farrapos, que cami-nham pelos dormentes, naqueles tempos tambm havia gen-te igualmente faminta e miservel, igualmente esfarrapada,caminhando pela estrada real. H muito tempo apodreceramas sedas, fenderam-se as carruagens e as peles de zibelinaforam comidas pela traa, mas as pessoas continuam as mes-mas, como se no tivessem morrido e entraram no dia dehoje com o mesmo orgulho mesquinho, com a mesma invejae a hostilidade E j no existia mais o passado de brinquedode Stein, diminudo pela locomotiva e pela eletricidade dehoje, porque o passado, aproximado de ns pela fora deBurkvitz, adquiria ntidos contornos dos dias de hoje. Mas,voltando novamente aos acontecimentos e novamente intro-duzindo neles traos de costumes, comparando-os com ocarter e o procedimento de certas pessoas, Burkvitz, comtenacidade e segurana torcia para o lado que ele precisava.Esta curva do seu relato, depois de numerosas e chocantesconfrontaes, sem entrar em afirmaes e, por isso, tornan-do-se mais convincente, levava concluso, que ele mesmono tirava, deixando que ns a tirssemos, e que consistia emque naquele remoto passado o que no se pode deixar denotar e o que no se pode deixar de ver a revoltante e sacr-lega injustia: a disparidade entre os mritos e os defeitos daspessoas, entre as zibelinas e os farrapos que paramentam unse outros. Isso no passado. Do presente ele nem fazia aluso,

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    como quem sabia firmemente o quanto bem e a fundo nsconhecamos essa revoltante disparidade de nossos dias. Masa teia j estava urdida. Todos ns seguamos confiantes porsuas emaranhadas e inquebrveis varas de ao, simplesmenteno podamos deixar de seguir Burkvitz, e acabvamos che-gando inabalvel certeza de que tanto antigamente, nos tem-pos da trao animal, quanto agora, no tempo das locomoti-vas, a vida mais fcil para um homem bobo do que para uminteligente, melhor para um astuto do que para um honesto,mais folgada para um avarento do que para um generoso,mais agradvel para um cruel que para um fraco, mais luxuo-sa para um autoritrio que para um submisso, mais farta paraum mentiroso do que para um justo, e mais doce para umdado luxria do que para um penitente. Que assim era eassim ser eternamente enquanto o homem viver na terra.

    A classe prendia a respirao. Na sala havia quase trintapessoas, mas eu ouvia claramente o tique-taque do relgio,proibido pela diretoria, no bolso do vizinho. O professorde Histria, sentado na ctedra, apertava os clios ruivos,olhando com o rabo do olho para o livro da classe, e arra-nhava com os cinco dedos sua barbicha como se dissesse: Eta, rapaz Finrio!

    Burkvitz encerrava seu relato, fazendo meno queladoena que, desenvolvendo-se durante muitos sculos, pou-co a pouco dominava a humanidade e que agora, na pocade aperfeioamento tcnico, contagiou o homem por todaparte. Essa doena a vulgaridade. A vulgaridade que con-siste na capacidade do homem de tratar com desprezo tudoque ele no compreende, e a profundeza dessa vulgaridade

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    aumenta medida que aumenta a inutilidade e a insignifi-cncia daqueles objetos, coisas e fenmenos que neste ho-mem causam admirao.

    E ns entendamos. Era uma pedra acertada na cara deStein, que justamente nesse instante concentrou-se na pro-cura de algo em sua carteira, sabendo que todos os olharesestavam voltados para ele.

    Mas entendendo em quem foi jogada a pedra, ns enten-damos tambm uma outra coisa: que essa injustia de relaci-onamento humano qual Burkvitz fazia aluso, e que pare-cia ser irremedivel e bem organizada sculos a fio, nem umpouco o desanimava, nem provocava raiva, mas servia decombustvel, de uma substncia preparada especialmente paraele, e que, despejada dentro dele, no explodia, causandodestruio, mas ardia com uma chama regular, tranqila eforte. Ns olhvamos para seus sapatos gastos, sem engra-xar, para suas calas pudas e esticadas no lugar dos joelhos,para as mas do rosto, salientes como duas bolas, seus mi-nsculos olhos cinza e sua testa ossuda debaixo do cabelorebelde cor de chocolate e sentamos, sentamos aguda e irre-sistivelmente, como fermentava nele e tentava sair uma terr-vel fora russa, para a qual no existem nem obstculos, nembarreiras, nem muros, uma fora de ao, solitria e sombria.

    6Essa luta entre Burkvitz, Stein e Eisenberg, que Stein

    batizou causticamente de luta da rosa branca contra a rosasuja, luta na qual a enorme vantagem de Burkvitz sentidaabsolutamente por todos, acabou logo que a opinio unni-

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    me da classe foi pronunciada em voz alta. Isso aconteceupor um mero acaso.

    Um dia, no comeo de novembro, de manh, quandotodos estavam sentados nas suas carteiras esperando o pro-fessor de Histria, um aluno da oitava srie entrou na salade aula to resolutamente que todos ficaram de p, toman-do-o por um professor. Ouviram-se palavres to florea-dos e to unnimes, que este aluno, ao subir descaradamen-te na ctedra, abriu os braos num gesto de incompreensoe disse: Desculpem-me, senhores, mas eu no entendo o que istoaquiuma cela para criminosos, que tomaram seu colega pelo diretorda priso, ou a sexta srie de um colgio clssico de Moscou?

    Senhores, continuou com extrema seriedade peo umminuto de vossa ateno. Hoje de manh chegou a Moscou osenhor Ministro da Educao Nacional, e h motivos parasupor que amanh, a qualquer hora, ele nos far uma visi-ta. Acho que no h necessidade de explicar, porque ossenhores mesmos sabem muito bem o quanto impor-tante para o nosso colgio a impresso com a qual o se-nhor ministro sair deste recinto. E tambm perfeita-mente evidente que a diretoria do colgio no considerapossvel para si combinar alguma coisa conosco no senti-do de prepararmo-nos para tal visita, porm receber combenevolncia caso algo semelhante seja empreendido porns mesmos. Senhores, gostaria de pedir-vos agora o nomede vosso melhor aluno que esta noite ter de estar presen-te numa pequena reunio e amanh, como representanteeleito, comunicar classe a resoluo geral, qual cadaum dos senhores, interessado em apoiar a antiga e

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    imaculada honra do nosso glorioso colgio, dever obe-decer sem reservas.

    Ao dizer isso, ele levantou um caderninho de notas at osolhos, provavelmente muito mopes, e com a ponta do lpisj no papel, piscando os olhos como as pessoas fazem es-pera de um som, acrescentou: Ento, qual o nome?

    E a classe, retumbando as vozes de tal maneira que ascentenas de moscas zumbiram nos vidros, rugiu: Bur-k-vitz. Algum, de trs, completou carinhosamente: sai,Vsika, embora no havia para onde sair, nem era preci-so. O colegial anotou, agradeceu e saiu depressa. O jogo foiperdido. A luta acabou. Burkvitz tornou-se o primeiro. Ecomo se soubesse que a competio chegara ao fim, (sebem que podiam ter existido outras razes) o professor deHistria, entrando na sala, sentando-se, e arrastando comraiva os ps pela ctedra, logo chamou Burkvitz, pediu querelatasse a lio do dia e acrescentou: Peo-lhe manter-se den-tro dos limites do programa colegial. E Burkvitz entendeu. Co-meou a dar a lio, discorreu-a no esprito do curso colegi-al, no esprito da honra imaculada do nosso glorioso col-gio e no esprito do senhor Ministro da Educao Nacio-nal, que naquela manh chegou a Moscou.

    Se o ranho no fizesse de mim um ser humano, em vez de serhumano eu seria um ranho. Assim dizia-me Burkvitz nos exa-mes finais, depois que um escndalo com o padre do colgioaproximou-nos um pouco. Mas somente nos nossos ltimosdias no colgio, dias da despedida. Antes disso Burkvitz nofalava comigo, nem com ningum em geral. Continuava con-siderando-nos pessoas estranhas, e durante todo esse tempoe fora do mbito colegial, disse apenas algumas palavras a

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    Stein pelo seguinte motivo: um dia, na hora do recreio, a tur-ma que se juntou em volta de Stein comeou uma conversasobre os homicdios rituais e algum perguntou-lhe com umsorriso cruel se ele, Stein, acreditava na possibilidade e naexistncia de homicdios rituais. Stein tambm estava sorrin-do, mas quando eu vi seu sorriso, senti um aperto no coraopor ele. Ns, judeus, respondeu Stein no gostamos de derra-mar sangue humano. Preferimos chup-lo. O que fazer? E preciso sereuropeu. Justamente nesse minuto, Burkvitz, que tambm es-tava ali, de repente e de surpresa para todos, pela primeiravez dirigiu-se a Stein: Senhor Stein, parece estar assustado com oanti-semitismo neste caso? Mas no devia. Anti-semitismo no nemum pouco assustador, apenas repugnante, desprezvel e tolo: repugnante,porque est dirigido contra o sangue, e no contra a individualidade,desprezvel, porque invejoso apesar de querer parecer desdenhoso, e toloporque consolida aquilo que se props destruir. Os judeus deixaro deser judeus somente quando ser judeu tornar-se no desvantajoso no sen-tido nacional, mas vergonhoso no sentido moral. E ser judeu tornar-se- vergonhoso, quando nossos senhores cristos tornarem-se, finalmente,verdadeiros cristos, em outras palavras, gente, que conscientemente pio-rando as condies de sua vida, para melhorar a vida dos outros, senti-ro satisfao e alegria desta piora. Mas, por enquanto nada disso acon-teceu, dois mil anos no foram suficientes para isso. Por isso, senhorStein, intil procurar comprar sua duvidosa dignidade rebaixandodiante desses porcos o povo, ao qual o senhor mesmo tem a honra estme ouvindo? tem a honra de pertencer. E que o senhor sinta-se enver-gonhado por estar eu, um russo, falando tudo isso a um judeu.

    Eu, estava calado como os outros. E parece, como osoutros, pela primeira vez, pela primeira vez em toda minhavida estava sentindo um forte e doce orgulho de ter cons-

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    cincia de que sou um russo, e que entre ns existe pelomenos um como Burkvitz. O porqu e de onde apareceuem mim este orgulho, eu no entendia muito bem. Sabiaapenas que Burkvitz disse algumas palavras a Stein, alis,antes de entender o sentido dessas palavras eu j senti nelasum cavalheirismo diferente, cavalheirismo de humilhaovoluntria em defesa de um estrangeiro fraco e infortunado,cavalheirismo este to peculiar no homem russo em ques-tes nacionais. E j porque nenhum de ns xingou Burkvitz,porque a turma comeou a se dispersar, como se no qui-sesse participar do seu caso indigno, e porque alguns dizi-am: T certo, Vsika, muito bem, Vsika, bravo, Vsika pareceu-me que os outros estavam sentindo exatamente omesmo que eu, e que estavam elogiando Burkvitz por aque-le sentimento compreensivo de orgulho nacional que eleproporcionou-lhes com suas palavras. Mas quem no tinhanem poderia ter tais sentimentos era o prprio Stein. Comum sorriso raivoso ele virou bruscamente as costas, chegouperto de Eisenberg e, enfiando seus enormes dedos bran-cos atrs do cinto de Eisenberg, puxou-o para si e comeoua falar-lhe ou perguntar algo em voz baixa. Nos primeirosminutos que se seguiram eu experimentava uma certa anti-patia por Stein. Mas essa antipatia passou rapidamente por-que de repente eu pensei que se naquele tempo, naquelerecreio, quando minha me viera ao colgio com o envelo-pe, eu me comportei justamente como Stein, renegando-a,achando que estivesse salvando minha dignidade; e que senaquele momento o mesmo Burkvitz estivesse por perto edissesse que no fica bem para um filho ter vergonha dasua me e reneg-la s porque ela velha, feia e esfarrapa-

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    da, que o filho deve amar e respeitar sua me, amar e res-peitar tanto mais, quanto mais velha, mais caduca e esfarra-pada ela se tornar - se algo parecido tivesse acontecido na-quela hora do recreio, seria bem possvel que os mesmoscolegiais que me perguntaram quem era o palhao concorda-riam com Burkvitz e at lhe fariam coro, e com certeza eu,eu mesmo, passaria vergonha naquele momento, e sentiriano tanto esse amor prpria me imposto por um estra-nho, quanto hostilidade quela pessoa que se intrometerano que no era de sua conta.

    Movido por essa afinidade de sentimentos, aproximei-mede Stein, abracei-o fortemente pela cintura e, assim, abraa-dos, fomos andando pelo corredor.

    7Duas semanas antes dos exames finais, em abril, quando

    fazia um ano e meio que se desencadeara a guerra contra aAlemanha, todos os colegiais do meu crculo e eu mesmoperdemos todo e qualquer interesse por ela.

    Eu ainda lembrava como estivera emocionado nos pri-meiros dias aps a declarao de guerra, e que essa emoode bravata fora extremamente agradvel e at simplesmentealegre. O dia inteiro eu andara pelas ruas, fundindo-meinseparavelmente na multido, como nos dias de Pscoa e,junto com a multido, gritava muito e xingava muito e alto osalemes. Mas eu xingava os alemes no porque os odiasse,mas porque minhas injrias, meus palavres eram como umprego que, quanto mais apertado, mais profundamente fazia-me sentir essa extremamente agradvel comunho com amultido ao meu redor. Se naquelas horas algum me mos-

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    trasse uma alavanca e propusesse pux-la, dizendo que comisso a Alemanha inteira iria explodir, que os alemes explodi-riam mutilados e que com o puxar da alavanca no restarianenhum deles com vida, eu a puxaria sem pensar duas vezese com satisfao faria reverncias a torto e a direito. Porqueeu tinha certeza demais de que se isso fosse realizvel e reali-zado, a multido iria rejubilar-se brbara e freneticamente.

    provvel, que justamente esse contato espiritual, essamelosa identidade com a multido, impediram minha ima-ginao de desencadear-se em sentido diferente, aquele, quesurgiu em mim dias depois quando, no meu quartinho es-curo, deitado no sof, imaginei que num cadafalso, no meiode uma praa cheia de gente, trouxeram para mim umbranqueio menino alemo, que eu deveria matar com ummachado. Desce o machado! dizem no ordenam, desce o machado at ele morrer; na cabea; mata, porque disso depen-de tua vida, a vida de teus prximos, a felicidade e o florescimento detua ptria. Se no matar, sers castigado com crueldade. E eu, ven-do a cabecinha loira desse menino alemo e seus suplican-tes olhos aguados, jogo o machado para o lado e digo: Como queiram, mas eu me recuso. Ao ouvir minha resposta, amultido rejubila-se freneticamente e bate palmas. Tal foimeu devaneio alguns dias depois.

    Porm, como em minha primeira imaginao, quando ani-quilando sessenta milhes com um simples puxar de alavan-ca, eu no fui motivado pela hostilidade a essa gente, em abso-luto, mas pelo suposto sucesso que se me destinava, caso eurealizasse algo semelhante. Assim mesmo, a minha recusa emmatar o menino que estava diante dos meus olhos foi moti-vada no tanto pelo medo de derramar sangue alheio, no

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    tanto pelo respeito vida humana, quanto pelo anseio deatribuir minha personalidade um carter excepcional queseria tanto mais engrandecido, quanto maior fosse o castigoque me esperava pela minha recusa.

    Ao cabo de um ms meu interesse pela guerra esfriou e, seeu, lendo nos jornais que os russos derrotaram os alemesem algum lugar, comentava comigo mesmo com aquecidoentusiasmo: Bem feito para esses canalhas! Para que foram se metercom a Rssia? passado um ms, lendo sobre alguma vitriados alemes sobre os russos, eu dizia a mesma coisa: Bemfeito para os canalhas, no deveriam se meter com os alemes. E dentrode mais um ms um furnculo que apareceu no meu narizenfurecia-me e me preocupava se no mais, em todo casomais sinceramente de que toda a guerra mundial. Em todasessas palavras como guerra, vitria, derrota, mortos, prisio-neiros, feridos, nessas palavras lgubres que nos primeirosdias eram to vivas e trepidantes como um peixinho na mo,o sangue, com o qual elas foram escritas, secou para mim, eao secar, transformou-se em tinta tipogrfica. Essas palavraseram como uma lmpada queimada: o interruptor estalava,mas ela no acendia; as palavras eram pronunciadas, mas aimagem no surgia. Eu j nem imaginava que a guerra pudes-se ainda emocionar pessoas no atingidas diretamente porela, e, como havia trs anos que Burkvitz no mantinha re-laes nem comigo, nem com ningum da classe, ns, evi-dentemente, no podamos saber das suas opinies sobre aguerra, alis, tnhamos a certeza de que elas no poderiamem absoluto ser diferentes das nossas. O fato de Burkvitzno estar presente na sala de conferncias durante a oraopela concesso da vitria no foi notada em geral e lembrada

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    apenas depois de ter acontecido um conflito. No que se refe-re sua constante ausncia nas aulas de instruo militar,introduzidas no colgio j havia alguns meses, ela interpreta-va-se ou como indisposio, ou como m vontade de cedersua primazia, fsica no caso, ao medocre Takadjev, que reve-lou-se um notvel atleta, forte e habilidoso. E presenciandoesse terrvel conflito, eu, por minha ignorncia, nem tinhanoo de que as palavras ditas por Burkvitz eram apenasuma trovoada daquele raio que cara havia muitas dezenas deanos, partindo do ninho da nobreza em Isnaia Poliana.

    8No ltimo ano de colgio tivemos uma aula vaga. O nos-

    so professor de letras adoeceu e os alunos da nossa classeandavam silenciosamente pelo corredor, procurando nofazer barulho para no perturbar as aulas da sexta e da sti-ma sries, cujas portas davam para a mesma rea. No tinhaningum da diretoria. Nosso preceptor, que passou a cha-mar-nos agora de universitrios daqui a cinco minutos, confian-do em ns, retirou-se para a sala dos professores nos anda-res inferiores. A maioria dos alunos estava animada: dentrode uns dez dias comeariam os exames de formatura, a lti-ma etapa colegial.

    Perto de uma grande janela de trs batentes reuniu-se umpequeno grupo de colegiais tendo Iago ao centro. Algumdo grupo retrucando, interrompeu Iago, e este, pelo visto,irritado, esqueceu-se da necessidade de falar em voz baixa eberrou um palavro no grito.

    Neste mesmo instante muitos j notaram a presena doproco do colgio e o grupo, do crculo voltado para Iago

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    comeou a formar um semicrculo de frente para o padre.Alis, ningum ouviu quando e como ele entrou pela porta.

    Vs no tendes vergonha, crianas? disse ele aguardandoque todos notassem sua presena, sem se dirigir a ningumem particular, e por isso a todos, em tom de censura com suavoz senil e adocicada. Pensai, continuou ele que dentro dealguns anos vs entrareis na vida social da grande Rssia como cidadosabsolutos. Pensai que essas palavras humilhantes, que eu tive a infelici-dade de ouvir aqui, so horrveis pelo seu sentido. Pensai que mesmo queo sentido dessas palavras no chegue at vossas conscincias, isso no vos

    justifica e sim, vos reprova mais ainda, porque confirma que essas pala-vras horrendas so usadas por vs a cada hora, a cada minuto, e queelas, essas palavras, deixando de soar para vs como xingamento, torna-ram-se um meio figurativo de vossa fala. Pensai, que vs tivsteis a sortede estudar a msica da poesia de Pshkin e de Lrmontov, e que essamsica, e no outra qualquer, que a nossa pobre Rssia espera de vs.

    A medida que ele falava, os olhos dos colegiais que esta-vam de frente para o padre tornavam-se obnubilados, impe-netrveis: poder-se-ia pensar que todos esses olhos estavamprivados de qualquer expresso, se no se soubesse que jus-tamente essa falta de expresso expressava que no forameles que xingaram e que todas as palavras de censura no sereferiam a eles em absoluto. Mas enquanto os olhos e os ros-tos de todo o grupo ficavam cada vez mais indiferentes eaborrecidos, os olhinhos de Burkvitz, que acabava de che-gar silenciosamente, tornavam-se mais vivazes e mais traqui-nas, os lbios esticavam-se em fino e maldoso sorriso, e aspalavras do padre, como agulhas lanadas no semicrculo dosolhos e rostos petrificados, j independentemente da vonta-de da mo que as lanava, entrelaavam-se e grudavam num

  • 58 Romance com Cocana

    ponto magntico do sorriso de Burkvitz. Dava a impressode que foi Burkvitz quem xingou e que as palavras sobrePshkin e Lrmontov referiam-se inteiramente a ele.

    Padre, replicou Burkvitz com voz baixa e terrvel osenhor, pelo visto, conhece Pchkin e Lrmontov apenas pelas antologiasoficiais e considera desnecessrio um conhecimento mais profundo deles,

    porque ele desmentiria sua opinio. Sim, retrucou o padre com firmeza para vs eu conside-

    ro desnecessrio o conhecimento mais amplo desses escritores, como tam-bm considero necessrio cortar os espinhos da rosa antes de entreg-lanas mos de uma criana. isso mesmo. E agora permitam-me lem-brar-lhes que as palavras de baixo calo que eu ouvi aqui so inadmis-sveis e indignas de um cristo.

    As ltimas palavras ele pronunciou com rispidez, ajeitan-do com sua mo senil, um pouco trmula, o crucifixo sobre abatina lils. Porque ele continua aqui, por que no vai embora? pensei, mas olhei para Burkvitz e entendi. O rosto deBurkvitz emagreceu de repente, ficou cinza e repuxava-sepelo tique, os olhos encaravam o padre com dio penetrante. El vai esbofete-lo agora! pensei eu. Burkvitzconvulsivamente levou os braos para trs, como se pegassealgum atrs das costas, deu um passo frente e num tominesperadamente sonoro e resoluto comeou a falar.

    As palavras de baixo calo, como o senhor teve a gentileza denotar, no so dignas de um cristo. Bem, contra isso ningum temobjees. Mas j que o senhor, servidor de Deus, encarregou-se de noslevar para o bom caminho, no leve a mal se eu lhe perguntar onde, emque, quando e como manifestou o senhor mesmo esses mritos cristos porns desconhecidos, e cuja obrigatoriedade de cumprimento o senhor deci-diu nos inculcar? A propsito, onde estava o senhor com todos os seus

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    mritos cristos, quando dez meses atrs multides sanguinrias levan-do trapos coloridos invadiam as ruas de Moscou, multides das chama-das pessoas que, pela sua sede de sangue e sua estupidez so indignos deserem chamadas de manada de gado selvagem? onde estava o senhor,servidor de Deus, naquele dia horrvel para ns? Por que o senhor,defensor do cristianismo, no nos reuniu a ns, crianas, como est noschamando, aqui, dentro das paredes desta casa, na qual o senhortomou a liberdade de nos ensinar os mandamentos de Cristo, ondeestava o senhor, e por que, pergunto eu, por que esteve calado no dia emque a guerra foi declarada, no dia em que foi promulgada a leiincentivadora do fratricdio, e de repente comeou a falar agora, ao escu-tar um palavro aqui? No seria porque o fratricdio no contradiztanto, no se desvia tanto do seu conceito de dignidade crist, quanto opalavro pronunciado aqui? Eu reconheo: xingar assim, como aqui sexinga, inadmissvel para um cristo, e o senhor tem razo, tem todarazo, protestando contra a injria ouvida. Mas onde o senhor, servidorde Cristo, esteve todos esses dez meses, quando a cada dia e a cadaminuto das crianas tiravam, e continuam tirando seus pais e das mes tiram seus meninos e, ao separ-los contra a vontade, mandam para ofogo, para a matana, para a morte? Onde esteve o senhor todo essetempo, e por que o senhor no protestou em seus sermes contra todosesses crimes, pelo menos da mesma maneira como o senhor fez aqui, porocasio do palavro ouvido? Por qu? Por qu? No seria porque todosesses horrores no contraditem a dignidade crist? Por que o senhor,digno guardio do cristianismo, teve a insolncia de sorrir e fazer acenosestimuladores com sua cabea sagrada, quando um dia, passando peloptio, o senhor viu a ns, suas crianas, sendo ensinados diariamente nomanejo de espingarda, ensinados na arte do fratricdio? Para que osenhor sorria com tanto incentivo, olhando para ns? Por que se mantevecalado? No seria porque ensinar crianas a manejar espingardas

  • 60 Romance com Cocana

    tampouco desagrada a sua dignidade crist? E como ousava o senhor,mascarando-se com o nome de Cristo, desprezar propositadamente osmandamentos Daquele, cujo nome iluminado o senhor usa querendo

    justificar sua vida miservel, como ousou pedir a Deus que o irmovencesse seu irmo, que o irmo subjugasse seu irmo, para que o irmomatasse seu inimigo? De que inimigo o senhor fala agora? No seria,por acaso, daquele sobre o qual o senhor falava com sua doce voz aindaum ano atrs, ensinando que ele deve ser perdoado e amado? Ou, talvezessa prece sobre a subjugao, a violncia, o homicdio e a aniquilao deuma pessoa por outra, tambm no contradiz seu conceito da dignidadecrist? Acorde, msero burocrata de igreja, que ficou embrutecido e seencheu de banha s custas do povo; acorde e no se justifique com o fatode que seus colegas correligionrios, arriscando a vida l, nos campos dohorror, do extrema-uno aos moribundos e apaziguam os que esto seesvaindo em sangue. No se justifique com isso porque tanto o senhorquanto eles sabem muito bem que sua tarefa, seu dever cristo apazi-guar no os doentes, no os que esto perdendo sangue, mas os sos, ques esto partindo para matar. No se assemelhem quele mdico quetratava as lceras de sfilis com o goldcream, e tambm no tentem se

    justificar, dizendo que so complacentes para com esse ato horrendo porlealdade ao monarca ou ao Governo, por amor ptria ou s assimchamadas armas russas. No se justifiquem, porque vocs sabem muitobem que seu monarca Cristo, sua ptria a conscincia, seu governo o Evangelho, sua arma o amor. Acordem, ento, e ajam. Ajam,

    porque cada minuto precioso, porque a cada minuto, a cada segundoesto atirando, matando, tombando. Acordem e ajam, porque todos as mes e os pais, os filhos e os irmos todos, todos esperam justamentede vocs, criados de Deus, que arriscando intrepidamente suas vidas,vocs intervenham nessa ignomnia, e, colocando-se entre esses loucos,gritem bem alto, alto, porque vocs so muitos, tantos que podem ser

  • M. Aguiev 61

    ouvidos pelo mundo intro: Gente, parem! Gente, parem de matar! nisso, nisso, nisso que est vosso dever.

    Vendo como Burkvitz agitou o brao de um modo es-quisito, tremendo terrivelmente e cambaleando, com a cabe-a jogada para trs, passou por ns e saiu pela porta para aescada, eu tinha um nico pensamento: Estperdido, voc estperdido. Eh! Coitado do Vsika.

    Somente aps um instante olhei na direo contrria e vicomo a batina lils num lindo arqueamento acariciou o ba-tente da porta e desapareceu.

    E no mesmo segundo, quando todos se jogaram uns paraos outros, emocionados, falando e agitando os braos, emalgum lugar l em baixo comeou um rudo surdo, crescendoameaadoramente, como se a gua do mar irrompesse noprdio, o rudo ia subindo, fazia tremer as janelas, as paredes,o cho, e, finalmente, tambm em nosso corredor esse rudoestourou em ribombo ensurdecedor abrindo as portas da sextae da stima sries. A aula acabou-se.

    9Para no comunicar os detalhes deste extraordinrio acon-

    tecimento s duas sries inferiores que encheram o corredorna hora do recreio, todos ns entramos na classe.

    - Mas ele um idiota, um perfeito idiota! dizia Stein, colocan-do no ombro de Iago sua mo branca, que no tecido pretoparecia uma mancha de creme de leite derramado.

    - No, Stein, voc no se meta, meu caro disse Iago afastan-do-o. Voc , pode-se dizer, europeu, mas o caso aqui asitico.Entenda, a interpretao do Talmude no foi violada, portanto vocno deve se alvoroar.

  • 62 Romance com Cocana

    Iago esperou que Stein, com ar ofendido, chegasse suacarteira e, em voz baixa , dirigiu-se turma agitada, que seagrupou perto da janela.

    Mas isso de se ficar admirado disse Iago o quanto nossosjudeus adoram o clero: no se pode tocar no pope, por Deus, seno todosos judeus se amotinam.

    Tamanha caencedncia balanou a cabea Takadjev, masningum riu. No grupo estava se passando uma acaloradatroca de opinies. Porm ningum tinha chance de falar at ofim; emocionados, todos interrompiam, discutiam, refutavam.Alguns diziam que Burkvitz tinha razo, que ningum pre-cisava dessa guerra, que ela perniciosa, s vantajosa paragenerais e intendentes. Outros, que guerra uma causa glori-osa, que se no houvesse guerras no haveria a Rssia e ocaso no de cair na choradeira, mas de bater-se. Outrosainda diziam que, embora a guerra seja uma coisa terrvel, nasituao atual ela necessria e que, se um cirurgio decepci-ona-se com a medicina durante uma operao, isso no lhed o direito de no terminar a operao, ir-se embora, aban-donando o doente. E havia aqueles que diziam que apesardessa guerra ter sido imposta, e o nome de um grande pasno permitir tomar iniciativa em negociaes de paz, a idiade Burkvitz era correta e que o clero do mundo inteiro, par-tindo dos princpios comuns do cristianismo, mesmo cor-rendo o risco de ser perseguido pela lei marcial, deveria pro-testar e lutar contra a continuao da guerra. Iago pronun-ciou-se contra essa ltima opinio:

    Eb, rapazes, dizia ele de quais princpios do cristianismovocs esto falando? J que Burkvitz preza tanto esses tais princpioscristos, por que ento, permitam-me perguntar, no trocou nem uma

  • M. Aguiev 63

    nica palavrinha conosco durante esses trs anos? Trs anos, pensem s!E, afinal, que mal ns lhe fizemos quando rimos dele? Vendo aqueleranho at cavalos dariam gargalhadas. Deus que me perdoe, nunca viranho daquele tamanho em toda minha vida! Por que ento ele olhapara ns como lobo, tentando morder a cada momento? No, meu