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REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA

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REVISTA DADEFENSORIA PÚBLICA

Edição especial sobre: Temas multidisciplinares

Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo - EDEPERua Boa Vista, 103 - 13º andarCEP 01014-001 - São Paulo-SPTel.: (11) 3101-8455e-mail: [email protected]

Revista da Defensoria PúblicaAno 5 - n.1 - 2012 - ISSN 1984-283X

Defensora Pública GeralDaniela Sollberger Cembranelli

Diretora da EDEPECristina Guelfi Gonçalves

Defensoras Públicas Assistentes de Direção da EDEPEAndrea Perencin de Arruda Ribeiro Rios

Mônica de Melo

Conselho EditorialAlvino Augusto de Sá

Ana Elisa Liberatore Silva Bechara Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer

Celso PrudenteFlávia Piovesan

Gustavo Octaviano Diniz Junqueira Ingo Wolfgang Sarlet

Juliana Garcia BelloqueLilia Moritz Schwarcz

Maria Cristina Gonçalves VicentinMarilda Lemos

Paulo Cesar EndoTiago Fensterseifer

A EDEPE, em suas revistas, respeita a liberdade intelectual dos autores e publica integralmente os origi-nais que lhe são entregues, sem, com isso, concordar, necessariamente, com as opiniões expressas.

Sumário

INTERCESSÕES PSICOLOGIA E JUSTIÇA: POR UMA AÇÃO ÉTICO-POLÍTICAMaria Cristina Gonçalves Vicentin, Renata Ghisleni de Oliveira..................................9

VIOLÊNCIA CONTRA MULHER E A MULHER ENCARCERADA SISTEMA JUDICIÁRIOGabriela Reyes Ormeño.............................................................................................23

ALGUMAS DAS DEMANDAS DO DIREITO À PSICOLOGIA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA: DESAFIOS E POSSIBILIDADESMarina Rezende Bazon, Maria Cristina Maruschi......................................................33

A RESSURGÊNCIA DA TIRANIA COMO ELEMENTO ORIGINÁRIO DA POLÍTICAPaulo Endo................................................................................................................53

O ENCONTRO ENTRE A PSICANÁLISE E O DIREITO NAS PRÁTICAS JUDICIAISMara Caffé.................................................................................................................61

O TORTO E O DIREITO: DESAFIOS DO TRABALHO INTERDISCIPLINAR NA DEFENSORIA PÚBLICAMarilia Marra de Almeida...........................................................................................71

ENTRE A LEI E A VOLUNTARIEDADE: O MODELO INSTITUCIONAL DE RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS EM DEFENSORIAS PÚBLICASRicardo César Franco, Paulo Keishi Ichimura Kohara...............................................81

DA VISÃO TRICOTÔMICA À VISÃO COMPLEXA DO DIREITO - UM NOVO PARADIGMABruna Molina Hernandes da Costa............................................................................103

LIXO E INCINERAÇÃO: UMA VISÃO MULTIDISCIPLINAR SOBRE A DESTINAÇÃO AMBIENTALMENTE ADEQUADA DOS RESÍDUOS SÓLIDOSWagner Giron De La Torre........................................................................................119

INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA COMPULSÓRIA: A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULOCarolina Gomes Duarte, Luciano Pereira de Andrade, Dayana Coelho Souza, Marco Antonio de Oliveira Branco.......................................157

O CONSENSO PUNITIVO NO CASO JOÃO HÉLIOVinicius da Paz Leite................................................................................................183

NOTAS PARA UM ESTUDO DAS FACÇÕES CRIMINOSAS BRASILEIRAS À LUZ DA PSICANÁLISEBruno Shimizu..........................................................................................................199

O RECONHECIMENTO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO E A INTERNAÇÃO HOSPITALAR DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDEElisabete Gaidei Arabage Cirilo, Michelle M. Machado Miranda.............................217

A DEFENSORIA PÚBLICA COMO LUGAR DE APRENDIZAGEM: INTERAÇÕES, INTERLOCUÇÕES E CONFLITOS NUM ESTÁGIO DE PSICOLOGIAMaria Cristina Rocha.......................................................................................233

CONVERGÊNCIAS ENTRE AS EXPERIÊNCIAS DE PSICÓLOGO JUDICIÁRIO E PESQUISADOR: DAS PRÁTICAS CLÁSSIFICATÓRIAS EM PSICOLOGIA À PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOSMaurício Ribeiro de Almeida...................................................................................241

OS OLHARES DA PSICOLOGIA SOBRE O DIREITO ouo ponto de vista do Psicólogo sobre o DireitoSidney Kiyoshi Shine................................................................................................247

PSICÓLOGOS NA DEFENSORIA PÚBLICA. OLHARES

DA PSICOLOGIA SOBRE O DIREITOEsther Maria de Magalhães Arantes.......................................................................255

INTERCESSÕES PSICOLOGIA E JUSTIÇA: POR UMA AÇÃO ÉTICO-POLÍTICA

Maria Cristina Gonçalves VicentinPsicóloga, Professora Doutora do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUC-SP; coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Lógicas Institucionais e Coletivas; atua no campo da defesa e garantia dos direitos da criança e do adolescente.

Renata Ghisleni de OliveiraPsicóloga, Professora do Curso de Psicologia da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC); Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS; Doutoranda e Bolsista CAPES do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da PUC-SP com a pesquisa Fazer Direito, Fazer Psicologia: produções do “entre” na formação profissional em práticas de assistência jurídica; atua no campo da análise institucional e da interface Direito e Psicologia.

INTRODUÇÃO

O termo intercessor, aqui grafado de modo que talvez tenha causado estra-nheza, com dois s, não deve ser associado à interseção, com ç, de uso corrente na matemática, associado a sínteses ou ainda a coincidências parciais entre conjuntos limitados e isolados. O conceito de intercessor deve ser remetido a interceptar com as conotações de desvio ou deriva que ele comporta ou ainda com a conotação de interceder, na sua acepção de correlação (RODRIGUES, 2010). Deleuze, num texto intitulado Os intercessores (1992), é quem nos sugere a perspectiva da interferência criativa como o modo de pensar uma relação ao contrário da sobreposição de códigos ou de territórios, operando efeitos de sobrecodificação de um campo sobre o outro. Esta interferência criativa abre um leque de possibilidades de articulação dos regimes de verdade existentes ou, ainda, de invenção de outros regimes, de invenção de novas formas de coexistência e de transformação.

Neste texto, a ideia de intercessor será acionada para pensar a relação entre Direito e Psicologia. Assim, nos encaminhamos menos para uma perspectiva de inte-gração ou síntese entre estes dois regimes de práticas e saberes, ou ainda de uma especialidade - esta que se diz Psicologia Jurídica- e mais na direção dos desvios, das derivas e das fronteiras que podem ser criadas e disparadas quando pensamos

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transversalmente (GUATTARI, 1987). Ou, quando pensamos na construção de um saber-fazer “em(tre)” relações1 (OLIVEIRA, 2010), no inter-vir, no sentido que lhe dá a análise institucional: vir-entre, atravessar os campos de saber e produzir estra-nhamentos ao que é tido como “natural” e evidente, possibilitando a emergência de outros possíveis nas diferenças (LOURAU, 1993; LOURAU, 2004).

Os intercessores que convocaremos neste trabalho são algumas ferramentas forjadas por Michel Foucault principalmente quando ele pensa nas fronteiras do Di-reito2, ou melhor, quando ele pensa entre o Direito e outros campos. Mas usaremos também as pistas que ele nos fornece para uma vida contrária a todas as formas de fascismo. No seu prefácio à edição norte-americana do O Anti-Édipo, livro de De-leuze e Guattari3, de 1972, intitulado exatamente Introdução à vida não fascista, ele comenta a dimensão ética do trabalho dos dois autores e nos fala dos adversários e dos perigos que nos ronda na direção contrária. Utilizaremos as pistas de Foucault para problematizar algumas formas que a relação psi-jurídica encarna. Tal será nosso foco na primeira parte deste texto. Na segunda, apontaremos algumas pistas para um lugar intercessor da Psicologia na relação com o Direito, especialmente num campo estratégico que é hoje a Defensoria Pública.

I. PROBLEMATIZANDO A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA RELAÇÃO PSI-JURÍDICA

M. Foucault, comentando a potência de O Anti-Édipo, nos diz que este livro é um livro de ética, que nos convoca a agenciarmos outros modos de pensar a vida. Especialmente o de uma arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, sejam as já instaladas ou as próximas de ser. Para tanto, ele elenca três adversários que este livro combateria:

1 Nesse caso, compreende-se a interdisciplinaridade como um exercício que implica uma construção feita nas relações entre campos de saberes. Ser “inter” é estar entre saberes e disciplinas (Oliveira, 2010).2 Embora M. Foucault tenha freqüentemente se referido ao direito e às formas jurídicas em seus trabalhos, para Ewald (1993), não há uma teoria do direito em sua obra, nem mesmo um objeto unitário e totalizante chamado “direito” que poderia ser inventariado no conjunto dos trabalhos de Michel Foucault. No entanto, pode-se extrair do método de Foucault, relativo às práticas da razão e da sua história, elementos para pensar tanto a historicidade do direito quanto para forjar uma atitude crítica frente ao direito (EWALD, 1993, p. 59). Fonseca (2002) propõe, em seu estudo sobre M. Foucault e o direito, que as diferentes “imagens” e “figuras” do direito, como prefere nomeá-las, sejam abordadas em relação a um outro conjunto de noções e mecanismos, presente também de diferentes formas nos escritos de Foucault: as noções de norma e normalização. Trazendo a analítica do poder em Foucault especialmente para o âmbito do direito, o autor sistematiza as três imagens mais pregnantes: na primeira, a do direito como legalidade, correlato do “mo-delo jurídico” do poder, em que se desenha uma relação de oposição entre direito e normalização (imagem visível quando ele contrapõe dois modelos ou duas representações do poder: o “jurídico-discursivo” e o “estratégico”); na segunda, a do direito normalizado-normalizador, quando se trata de uma relação de implicação, de “continuidade”, de “colonização recíproca” entre os mecanismos disciplinares e o domínio legal; e, finalmente, a de um “direito novo”, em que se configura uma “nova oposição entre normalização e direito”, mas oposição que se refere à possibilidade de pensar em práticas do direito que se oponham à normalização, isto é, que possam representar uma forma de resistência ao poder normalizador. Voltaremos à terceira forma mais a frente.3 Trata-se do texto “Introdução à vida não-fascista” (In: Preface. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. An-ti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977, p. XI-XIV. Tradução Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em: http:--vsites.unb.br-fe-tef-filoesco-foucault-vidanaofascista.pdf. Aces-so em: 2 ago. 2011.

1) os funcionários da verdade, os burocratas da revolução, os militantes som-brios, esses que gostam de preservar a ordem pura da política, do discurso político;

2) os lastimáveis técnicos do desejo, que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo às categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade.

3) e, enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico: o fascismo. E não somen-te o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar aquilo que nos domina e nos explora.

Vamos tomar estes três adversários, torcendo-os de modo a mostrar algumas formas atuais da relação psi-jurídica4, ou algumas linhas desta relação, que devería-mos arguir e combater.

A linha funcionários da verdade: referimos-nos aqui àquelas práticas que fazem da ação psicológica um método de extração da verdade a serviço da Justiça, em suas diferentes nuances: sejam as que buscam aferir a fidedignidade do relato do sujeito envolvido em um processo jurídico, em uma prática profissional voltada quase exclusivamente para a realização de perícia, exame criminológico e parecer psicoló-gico, em geral baseado no psicodiagnóstico; sejam as mais contemporâneas, como algumas modulações do chamado depoimento sem dano5, quando, nesses progra-mas, como problematiza Arantes (2008), o psicólogo não é chamado a desenvolver uma prática “psi” mais propriamente falando, mas a ter uma função de “duplo”, de “instrumento”, ou “boca” humanizada do juiz. Nesse caso, ele nos diz: tal depoimento não será “sem dano”, pois anulará o espaço onde a criança poderia existir de uma outra forma – inclusive, fora da conceituação jurídica de vítima.

A historiadora de Psicologia Ana Jacó-Vilela (2000), ao traçar alguns elementos sobre “os primórdios da Psicologia Jurídica”, aponta sua estreita ligação com o nasci-mento da Psiquiatria do século XVIII, especialmente com os estudos para explicar as degenerescências dos criminosos, como a frenologia de Galton e a antropologia cri-minal de Lombroso com suas interpretações sobre as capacidades humanas (caráter,

4 Por psi entenda-se aqui a função-psi (cf. FOUCAULT, 2001), portanto, não apenas o psicólogo: mas o conjunto de agentes, discursos, instituições, objetos que operam o dispositivo disciplinar, uma sujeição dos corpos e uma constituição dos indivíduos numa relação de poder que produz efeitos de normalização. Portanto, função psicológica, psicopatológica, psicossociológica exercidas por qualquer um.5 O Projeto Depoimento sem Dano é uma iniciativa da Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, implantado em 2003, para inquirição de crianças e adolescentes com o objetivo de “promover a proteção psicológica das vítimas, permitindo a realização de instrução criminal tecnicamente mais apurada. O DSD prevê a possibilidade de produção antecipada de prova no processo penal, antes do ajuizamento da ação, para evitar que a criança seja revitimizada com sucessivas inquirições nos âmbitos administrativos, policial e judicial (...) A sistemática permite a realização de audiência, simultaneamente, em duas salas interligadas por equipamentos de som e imagem. Em recinto reservado, a vítima presta depoimento a uma Psicóloga ou Assistente Social. Na sala de audiência ficam o Juiz, Promotor e partes. O magistrado faz as inquirições por intermédio do profissional que se encontra com a vítima que, dessa forma não se expõe a outras pessoas. Simultaneamente é efetivada a gravação de som e imagem em CD, que é anexado aos autos do processo judicial”. Disponível em: http:--jij.tj.rs.gov. Acesso em: dd mês. Ano.

13Intercessões psicologia e justiça: por uma ação ético-política12 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

funções intelectuais) por meio das características físicas do indivíduo (JACÓ-VILELA, 2000, p. 14). O campo jurídico se tornou, assim, para a Psicologia, uma possibilidade de aplicação de suas técnicas de exame e de avaliação, para além dos laboratórios. Leila T. Brito (1993) nos mostra que uma aproximação central da Psicologia com o Direito ocorreu no final do século XIX e fez surgir o que se denominou “psicologia do testemunho”. Esta tinha como objetivo verificar, por meio do estudo experimental dos processos psicológicos, a fidedignidade do relato do sujeito envolvido em um processo jurídico, isto é, se os “processos internos propiciam ou dificultam a veracidade do relato”.

Apesar de terem diversificado sua atuação [os psis] e produzido uma série de questionamentos, a atuação predominante da Psicologia continua sendo a confecção de laudos, pareceres e relatórios, no pressuposto de que cabe ao psicólogo, nesta interface, uma atividade basicamente avaliativa e de subsídios aos operadores da justiça (ARANTES, 2008).

Ao focalizar a linha funcionários da verdade, estamos alertando para o quanto o suposto conhecimento sobre “a verdade” dos sujeitos ainda seduz tanto psicólo-gos quanto operadores do Direito (SILVEIRA; OLIVEIRA; SIQUEIRA, 2010). A ideia presente nesta perspectiva é que se conheça a Psicologia para usá-la nos embates jurídicos, seja para descobrir as mentiras e os subterfúgios dos indivíduos, seja para manipular os fatos e os depoimentos em prol de seus argumentos.

Para Foucault (2005), a verdade passou a ter relação direta com as formas ju-rídicas por meio da constituição de três elementos: a prova, a testemunha e o exame. Foi pelo exame que a Psicologia ganha força produzindo testes, os quais passarão a se legitimar como provas científicas.6

Nesta perspectiva, a Psicologia aparece atravessada pela instituição7 da Jus-tiça, numa interseção que alguns estudiosos (POPOLO, 1996) chamam de modelo de subordinação, em que a Psicologia procuraria prioritariamente atender a demanda jurídica, como uma psicologia aplicada, cujo objetivo é contribuir para o melhor exer-cício do Direito. Trata-se de modelo de sobrecodificação da psicologia pela justiça.

Sintetizando, nesta categoria encontramos a utilização das práticas psicológi-cas a favor de uma criminologia clínica entendida como aquela que se ocupa do diag-nóstico e do prognóstico da conduta dos sujeitos, centrada nas “disfunções” sociais ou pessoais, como base para legitimar/justificar sanções/coerções/normalizações.

A linha técnicos do desejo: aqui veremos com mais clareza uma outra linha, na qual já se configura um continuum psi-jurídico, quando o saber psi é acionado na sua função normalizadora e o Direito é colonizado pela norma. Pois, para Foucault

6 Foucault (2006) procura mostrar que cada período histórico é atravessado por uma configuração espe-cífica de saberes e de práticas que produzem determinados modos de subjetivação. Dessa forma, pode--se entender que somos subjetivados em um processo de produção, no qual a ideia de trabalho nos é apresentada como algo individual, compartimentalizado e hierarquizado, e nas lutas para definição de uma ciência que seleciona e elege determinadas práticas discursivas como verdades possíveis, legítimas e, por vezes, absolutas. 7 De acordo com a análise institucional, a noção de instituição refere-se ao processo de produção cons-tante de modos de legitimação de práticas sociais. A instituição inclui também a maneira como os sujeitos concordam ou não em participar daquilo que regula suas vidas e condutas (LOURAU, 2004; PASSOS; BARROS, 2000).

(2005), o controle dos indivíduos e de suas virtualidades, desde a Modernidade, não poderia ser efetuado apenas pela própria justiça, mas engajaria uma série de outros poderes, como a polícia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção, tais como: as psicológicas, as psiquiátricas, as criminológicas. Tais poderes, apoiados na vigilância permanente e no saber elaborado sobre a conduta individual em relação à norma, constituem a base do mecanismo de controle do comportamento e da po-pulação: a sociedade disciplinar (século XIX). Diz Foucault (1977) que a finalidade de toda essa rede de instituições é antes fixar os indivíduos, fixá-los em um aparelho de normalização e produção, ligar o indivíduo a um processo de formação ou correção.

Mas vejamos com mais atenção a relação que se dá aí entre direito-disciplina, entre as normas do Direito e as normas disciplinares. Para o autor, “as disciplinas não são o mero ‘prolongamento’ das estruturas jurídicas”, nem apenas “a forma de os mecanismos da justiça chegarem até os pormenores da existência cotidiana”. Ao con-trário, as disciplinas inventaram “um novo funcionamento punitivo” que “teria, pouco a pouco, investido o aparelho punitivo do Direito” (1977b, p. 186). Assim, dirá Foucault “que aquilo que se vê concretamente em relação à prisão seria uma espécie de ‘tor-ção’ do ‘poder codificado de punir’ em um ‘poder disciplinar de vigiar’” (FOUCAULT, 1977, p. 187).

Trata-se, então, de uma penetração constante entre as regras e os procedi-mentos das estruturas jurídicas e as regras e os procedimentos das disciplinas. Uma vez que esses dois tipos de regras e procedimentos não se constituem em domínios independentes, mas, ao invés disso, fazem parte de um único processo, estão inseri-dos em um mesmo fluxo de poder, num único agenciamento de poder, é que se pode falar de uma colonização recíproca entre as normas disciplinares e as práticas e os saberes do direito formalizado (FONSECA, 2002, p. 191).

Acompanhemos tal colonização recíproca, por meio de um exemplo. Em seus estudos sobre o exame psiquiátrico em matéria penal, Foucault (2001) nos conta que desde a criminologia e a antropologia criminal com suas considerações sobre as motivações do crime e sobre os antecedentes da penalidade - as doenças, os desvios morais, os desejos, as irregularidades - estabeleceu-se, em torno do autor da infração, uma espécie de região de indiscernibilidade jurídica.

Não será mais um sujeito jurídico que os magistrados e os jurados terão diante de si, mas o objeto de uma tecnologia e de um saber de reparação, de readaptação e de correção (Idem, p. 26). Momento em que a “máquina penal não pode mais funcio-nar apenas com uma lei, uma infração e um autor responsável pelos fatos (...) (mas) pede-se ao infrator bem mais: além do reconhecimento, é preciso uma confissão, uma explicação de si, um esclarecimento daquilo que se é” (FOUCAULT, 2004, p. 2). Essa transformação, bastante visível no final do século XVIII e início do XIX, é o momento em que a relação entre direito e norma também se modifica, compondo aquilo que Foucault chamou de estratégia de normalização8.

8 Estamos nos referindo aqui à distinção que Foucault faz entre ordem da lei e ordem da norma. Na ordem da lei, o tipo de poder operado é essencialmente coercitivo, repressivo e busca extinguir e impedir o indesejável, o ilegal; na ordem na norma, ainda que ela possa incluir o aspecto repressivo, trata-se de uma vontade de controle, regulação e prevenção, que não se satisfaz com a pura abolição do indesejável, mas busca criar, estimular a produção de novas características corporais, sentimentais e sociais (FOUCAULT, 1977b, 1988).

15Intercessões psicologia e justiça: por uma ação ético-política14 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Esses procedimentos de controle levariam à entrada na idade do controle so-cial, momento em que a Psicologia será uma disciplina importante por fazer operar o dispositivo da individualização, da normalização e as violências técnicas ou doces, como gosta de dizer Basaglia (2005).

Nesta linha que chamamos, com Foucault, técnicos do desejo, encontramos a função psi de apoio aos processos de ressocialização, de reintegração, de huma-nização do aparelho penal. Linha que segue se atualizando, por exemplo, conforme assinala Arantes (2008), na introdução, pelo judiciário brasileiro, de programas que definem o tratamento como pena e a justiça como terapêutica. É o caso do papel do psicólogo no Programa de Justiça Terapêutica, em que o caráter do tratamento é compulsório e o foco do acompanhamento psicológico é o controle da abstinência, quando o psicólogo deve produzir prova que depõe contra o sujeito9. Trata-se, para a autora, neste caso, da identificação do sujeito psicológico com o sujeito de direitos, acabando com as arestas e disputas entre os campos, reduzindo um ao outro:

Sujeitar a norma psicológica a procedimentos judiciários, transformar a psicologia em direito, dizer a norma psico-lógica como se diz a lei, é o que o mal-estar atual entre os psicólogos jurídicos parece apontar. (ARANTES, 2008, p. 2)

Entre os funcionários da verdade e os técnicos do desejo aqui invocados há muitas proximidades e continuidades. Tomamos estas figuras não com o intuito de uma tipificação, mas para evidenciar alguns de seus efeitos, correndo o risco de al-gumas simplificações.

Mas vejamos o adversário estratégico: o fascismo em todas as suas formas, inclusive aquele que está em nós todos, que faz a amena tirania das nossas vidas cotidianas.

Para Michel Foucault, o fascismo e o nazismo não teriam sido possíveis caso as funções de repressão, controle e polícia não tivessem se capilarizado no campo social. Daí advém a noção de “microfascismo”, para se referir à molecularização das formas de repressão e de assujeitamento, seja nas formas do familialismo (DONZE-LOT, 2001) seja nos guetos de toda natureza.

Podemos ver este inimigo na forma mesma de racismo de estado10, quando setores da juventude pobre, por exemplo, são alvo de estratégias tanatopolíticas – fazer viver (os cidadãos) e fazer morrer (os inimigos), um em nome do outro. Este é o caso da Unidade Experimental de Saúde, quando, sob a perspectiva da proteção e do direito ao tratamento, criam-se simulacros de manicômios judiciários para jovens11.

9 A inclusão nos Programas de JT implica, dentre outros procedimentos, que o adolescente concorde em ser submetido a testes periódicos e aleatórios de urina, dado que a JT prega total abstinência de drogas ilícitas e de bebidas alcoólicas. 10 Por racismo de estado, nos referimos à ampliação que fez Foucault fez da ideia de racismo, que não se refere exclusivamente ao ódio entre raças ou a expressão de preconceitos religiosos, econômicos ou sociais, mas a um instrumento de implementação da ação mortífera dos estados (FOUCAULT, 1999). Por exemplo, no caso do Brasil: a transferência do aparato de tortura da ideologia de segurança nacional para a política de segurança pública e de produção do medo social. 11 A Unidade Experimental de Saúde, inaugurada em dezembro de 2006 no estado de São Paulo, é um

Mas podemos vê-lo encarnado também na:

- forma da abusiva criminalização do modo de vida das pessoas pobres, como é o caso da destituição do poder familiar, quando a pobreza é diagnosticada como situação de risco para a criança, respaldada em laudos técnicos eivados de pre-conceitos. De fato, as noções de “risco”, “negligência” e “abandono” veiculam um imaginário estigmatizante sobre as famílias (ROSEMBERG, 1994; FENATO, 2009; AVARCA, 2011).

- na criminalização da conduta exploratória dos adolescentes e jovens em relação às drogas, por meio de leis proibicionistas que desrespeitam a liberdade, a privacidade e a dignidade da pessoa humana e que se realiza na forma indiscrimina-da de internações compulsórias, a título de salvação.

- e na ausência ou precariedade da Defensoria Pública.

Frente aos perigos que rondam nossas práticas - o de operarmos como funcio-nários da verdade/ técnicos do desejo, legitimando tecnologias coercitivas/normaliza-doras, preconceitos e estigmas, definindo padrões de normalidade e anormalidade, - trata-se de ficarmos atentos às demandas de caráter instrumental feito à Psicologia, principalmente às nossas “redes invisíveis de subjetivação moral” (PAULON, 2003).

Mas, se nas sociedades ocidentais modernas as fronteiras entre a regra jurí-dica e a norma psicológica se imbricam, agenciam-se e colonizam-se, de outro lado, “sempre existiram tensões e disputas na área, favorecendo o avanço ora de uma ora de outra posição” (ARANTES, 2008)12.

De fato, já contamos, no Brasil, com uma reflexão consistente sobre a prática profissional da psicologia junto às instituições do direito e sobre as mudanças que aí têm ocorrido, principalmente a partir da década de 1980, quando, após longo período de regime militar, intensifica-se a discussão sobre a cidadania e os direitos humanos (ALTOÉ, 1999).

Estudiosos e militantes desse campo têm contribuído para imprimir uma pers-pectiva crítica à chamada Psicologia Jurídica13, problematizando sua hegemônica utilização a favor do controle social, quando o psicólogo constitui-se em agente acrí-tico de processos de exclusão social (ALTOÉ, 1999; ARANTES, 2004, 2008; BRITO,

convênio entre as Secretarias da Saúde, Justiça e Administração Penitenciária, destinada a oferecer aten-dimento para autores de ato infracional portadores de diagnóstico de transtorno de personalidade e-ou de periculosidade, durante o cumprimento de medida sócio-educativa de internação em regime de contenção. Tal atendimento não poderia, segundo os propositores da Unidade, se dar em hospitais psiquiátricos, já que esses últimos “obedecem às diretrizes da política de saúde mental do SUS, caracterizada por serviços que não dispõem de espaços físicos de contenção” (FRASSETO, 2008).12 De fato, o direito não é um universal; o que há positivamente são práticas jurídicas particulares: práticas normativas, práticas de coerção, práticas de sanção social. Ou seja, o direito designa uma multiplicidade de objetos históricos possíveis. Todo sistema jurídico está imerso na história e as práticas jurídicas tendem constantemente a modificar e a escapar do tipo de jurisdição do qual dependem (EWALD, 1993, p. 65).13 Psicologia Jurídica é uma das denominações dessa área da Psicologia que se relaciona com o sistema de justiça ou ainda com as condutas que são de interesse do jurídico ou do Direito (também nomeada como Psicologia Forense ou Psicologia e Lei) (FRANÇA, 2004).

17Intercessões psicologia e justiça: por uma ação ético-política16 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

1993, 2004)14. Tais perspectivas críticas têm possibilitado a emergência de novos arranjos e novos regimes de saber-fazer entre Direito e Psicologia.

Nesta direção, destacamos uma pista sugerida por Foucault: a possibilidade de um direito novo ou de uma forma ética do direito. Com esta noção, o autor refere-se às possibilidades concretas de certos saberes e de certas práticas do direito cons-tituírem um direito liberado simultaneamente da soberania e da normalização. Isto é, à possibilidade de pensar em práticas do direito que possam representar uma forma de resistência sejam às lógicas de poder normalizadoras, sejam às repressivas (FOUCAULT, 1999). Essa ideia de um “direito novo” emerge nas suas discussões em torno da ética15.

Para o autor, o termo “ética” diz respeito ao domínio da constituição de si como sujeito moral, como sujeito de sua própria conduta. Moral aqui não tem o sentido de um conjunto de prescrição de comportamentos, nem de uma maneira de viver em que o valor moral advém da conformidade com este código, mas de uma reflexão da própria moral ante outras morais, da elaboração de uma “estética da existência”, uma atitude crítica em relação às formas pelas quais somos governados. Foucault sinaliza que a moral como obediência à Lei ou conformidade às regras é uma possibilidade ética entre outras, mas a construção do sujeito moral pode se orientar por experiên-cias reflexivas e por exercício de si sobre si mesmo (FOUCAULT, 2004).

Cabe ressaltar que esse trabalho sobre si próprio não é um exercício solitário de autoconhecimento, mas uma prática social em que se conectam o trabalho sobre si mesmo e a relação com o outro, ou seja, uma prática social que objetiva intensificar relações sociais que proporcionem modificações dos elementos constitutivos do su-jeito moral, quando cada um é chamado a afirmar seu próprio valor por meio de ações que o singularizam (FOUCAULT, 2004).

Valoriza-se assim a possibilidade de uma “atitude crítica”, entendida como o “movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e (interrogar) o poder sobre seus discursos de verdade”. Valoriza-se

a responsabilidade com respeito às verdades que enun-ciamos, às estratégias políticas no interior das quais essas verdades se inserem, e responsabilidade com respeito às

14 Tais problematizações e críticas têm se dado em diversas direções: por uma insatisfação com o seu próprio fazer, restrito às atividades avaliativas (com questionamentos éticos sobre sigilo e o que significa fazer “perfis” psicológicos para a utilização de terceiros); em torno da fragilidade epistemológica do seu próprio campo de conhecimento (levando-o a constantes indagações sobre o objeto, método e técnicas da psicologia jurídica); em torno da falta de autonomia profissional (dada a subordinação hierárquica, real ou imaginária, ao magistrado) (ARANTES, 2008). Tem havido, por exemplo, uma preocupação, antes praticamente inexistente, com a promoção de saúde mental dos que estão envolvidos em causas junto à Justiça, como também na criação de condições que visem a eliminar a opressão e a marginalização dos sujeitos (ALTOÉ, 1999).15 Nas suas primeiras obras, Foucault (1988, 1989) abordou o processo de constituição do sujeito as-sujeitado por técnicas discursivas (saber) e mecanismos de normalização (poder). Nos seus trabalhos posteriores, especialmente com História da Sexualidade, estudando os gregos (“o cuidado de si”), Foucault (1984) tratou de pensar no sujeito que se autoconstitui a partir de práticas ou técnicas de si, em suas relações com o saber e o poder, podendo-se falar propriamente em “subjetivação”.

relações que estabelecemos conosco mesmos e que nos fazem nos conformar com as configurações existentes ou resistir a elas. (FONSECA, 2002, p. 278)

Essa forma “ética” do direito seria relativa “às práticas efetivas dos homens quando estes assumem a responsabilidade sobre algo que lhes é importante e com-põe sua existência concreta” (FONSECA, 2002, p.304, grifos nossos).

Foucault, que foi um pensador dos limites, exercitando uma atitude crítica sobre nós mesmos (ou sobre o que foi feito de nós), nos convida ao exercício permanente desta atitude-limite (FOUCAULT, 2004), de interrogação das evidências e das natu-ralizações, dos hábitos e das familiaridades, mas também de ativação das brechas e das linhas de escape, das linhas de invenção.

Entendemos que a Defensoria é um espaço intercessor no campo da Justiça que abre a possibilidade para que outras práticas sejam inventadas. Ou seja, é cam-po estratégico para a ocupação de outros fronts das práticas psi na interface com a justiça. Oferece-nos, portanto, possibilidades de um direito novo, que possa arguir os modos de governo (de si e dos outros), e também se arguir enquanto produtores mesmos destes modos e de suas variações.

Vejamos agora algumas pistas para este exercício crítico, para uma Psicologia no front, assumindo a polifonia deste termo: espaço de batalha, espaço de invenção de fronteira, espaço difuso, não totalmente delimitado. Tomem estas ideias apenas como pistas onde uma atitude-limite possa se exercitar, pois não se trata aqui de elencar prescrições.

II. FAZER PSICOLOGIA NA DEFENSORIA: POR UMA AÇÃO ÉTICO-POLÍTICA, FRONTEIRIÇA E INTERCESSORA

No front das práticas psi com os sistemas de justiça e especialmente no lugar estratégico que é hoje a Defensoria, trata-se de:

- implementar táticas orientadas estrategicamente à realização dos Direitos Humanos ou à redução de suas violações (ZAFFARONI, 1993), isto é, realizar a identificação das dimensões de violações de direitos e de seu impacto na vida dos envolvidos e propor modos de realizar transformações;

- trabalhar a favor de uma clínica da vulnerabilidade, que busca identificar a produção da vulnerabilidade individual/social ao sistema de justiça e que permita desenvolver saberes que colaborem para a redução dos níveis de vulnerabilidade (idem);

- no plano dos discursos e da produção de sentidos, frear todas as produções que comprimem e reduzem o espaço de debate entorno dos conflitos, tratando-os, por exemplo, apenas na sua faceta criminal ou ainda patológica e enfrentar a mul-tiplicação de medidas que ampliam a rede penal, propondo, onde for possível, uma alternativa social, sanitária ou educativa (WACQUANT, 2008, p. 104);

- não tomar o direito como forma de enquadrar ou codificar as lutas ou as forças instituintes e de resistência que se forjam de diferentes modos- transgressões, con-flitos, sintomas- mas enfatizar a justiça presente na luta e na resistência dos sujeitos (FOUCAULT, 1999, p. 121);

19Intercessões psicologia e justiça: por uma ação ético-política18 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

- articular os direitos humanos com a defesa ativa dos processos de singula-rização, porque a perspectiva mesma dos “direitos humanos” tem problematizado o princípio da universalidade do humano (como essência ou natureza) e a noção de indivíduo, como eixo organizador dos direitos. Dar lugar à discussão em torno da multiplicidade de configurações do humano e dos processos de subjetivação nessa relação com o campo dos direitos (COIMBRA; PASSOS; BARROS, 2002);

- militar por um direito novo, pela invenção de modos nem punitivos, nem viti-mizantes, mas de responsabilização. A desresponsabilização multiplica as situações ameaçadoras, incrementa as estratégias puramente defensivas e se reduz a tolerân-cia social à incerteza e ao risco (PITCH, 2003)16. Entendemos responsabilidade não como “um modo de regulação social ou uma técnica de sanção das infrações e de reparação de danos” (EWALD, 1997, p. 60), mas na sua dimensão ética: como possi-bilidade de engajamento na existência em comum, responsabilidade com respeito ao modo como nos conformamos com as configurações existentes ou resistimos a elas (FOUCAULT, 2004).

- trabalhar para a redução de violências e para a ampliação dos componentes solidários da vida em comum, mas com uma concepção menos excludente e mais solidária de “segurança”17:

Desde o ponto de vista jurídico, mas também desde o ponto de vista psicológico, seguros podem e deveriam ser, sobretudo, os sujeitos portadores de direitos fundamentais universais (o que não se limita aos cidadãos) (...). Seguros em relação ao desfrute daqueles direitos, frente a qualquer agressão ou não cumprimento realizado por parte de outras pessoas... (BARATTA, 1998 apud ANITUA, 2005).

- trabalhar pela construção de uma perspectiva transversalista (GUATTARI, 1987) da Psicologia na relação com o Direito, perspectiva que privilegia o campo e não a especialidade; a interferência criativa e as fronteiras e não a integração; as possíveis conexões, mas também dissensos ou conflitos18. Que privilegia a trans-

16 O tema da responsabilidade, segundo Ewald (1997), tem sido investigado na tradição jurídica como falta. Para este autor, a ideia segundo a qual há uma obrigação legal de reparação do prejuízo, estabelecendo--se uma dívida entre indivíduos, contribui para que a responsabilidade seja pensada como causalidade e falta. O “indivíduo responsável, no sentido filosófico, não tem nada a ver com a noção de falta, a qual a tradição jurídica por muito tempo a associou. Ser responsável descreve uma figura ética, um trabalho de si sobre si, uma ascese graças a qual um indivíduo se distingue dos outros pelo seu engajamento em sua palavra, que arrisca o futuro levando a incerteza do presente. O peso da responsabilidade está em que, nessa palavra, não engaja-se somente a si mesmo, mas os outros, que estão também numa certa relação de dependência” (EWALD, 1997, p. 70).17 As ideias de segurança, como designa Baratta (1997, p. 59), são “metáforas incompletas”, acompan-hadas de “hábitos mentais seletivos”, internalizados pela opinião pública, que resultam em aumento de políticas penais.18 A parcialização do conhecimento impediu perceber a relação entre conjuntos de fenômenos, produzindo diversos reducionismos. A superação desses reducionismos tem sido buscada pela abordagem inter ou multidisciplinar, com evidentes riscos. Por exemplo: A ótica disciplinar tende a definir-se como campo dado a priori, com seus próprios mecanismos de verificação, valoração e marco ético. O multidisciplinar impõe a estruturação (ou a pretensão de integração) de diversas disciplinas, com o risco de reeditar a perspectiva

versalidade da ação na Defensoria com outros campos em que as lutas (conselhos, fóruns, movimentos sociais) pela garantia de direitos, mas também pela produção de novos direitos possa acontecer.

De fato, como já nos dizia Guattari (1987), todos aqueles cuja profissão consiste em se interessar pelo discurso do outro, estão numa encruzilhada política fundamen-tal. As encruzilhadas são lugares potentes para a produção de desvios e invenções.

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VIOLÊNCIA CONTRA MULHER E A MULHER ENCARCERADA SISTEMA JUDICIÁRIO

Gabriela Reyes OrmeñoPossui graduação em Psicologia e Mestrado em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos. Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFSCar, pesquisadora do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência e Professora do Curso de Educação Especial na UFSCar. Sua experiência na área de Psicologia tem como ênfase o desenvolvimento social, atuando principalmente nos seguintes temas: crianças agressivas, escola, violência doméstica e mulheres encarceradas.

A violência, sem dúvida alguma, é um dos maiores problemas nos grandes centros urbanos. O Brasil, ao lado da Colômbia e do México é um dos países da América Latina no qual violência se apresenta de modo mais extremo. Nas últimas décadas a violência brasileira vem aumentando, o que causa um impacto significativo na economia do país (KAHN, 1999), tornado-se um problema tanto para a Saúde Pública, como para a Segurança, Educação, Sociedade, Município, a família e o in-divíduo. Assim compete a toda a sociedade realizar esforços para tentar diminuí-la.

Inúmeras ações são realizadas tentando entender e descrever as principais variáveis causadoras da violência, analisando os custos e as perdas direitas e indi-retas (KAHN, 1999; REDE DE CENTROS DE INVESTIGAÇÃO DE LA OFICINA DEL ECONOMISTA JEFE, 1999; CERQUEIRA et al., 2004; BELCHOR, 2007). No relatório do Banco Interamericano do Desenvolvimento (1999) são apresentados dados alar-mantes associados ao custo econômico da violência em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) de alguns países. Por exemplo, a Colômbia gasta 24,7% do seu PIB anual com violência, ao passo que México 12,3% e o Brasil 10,5%. A pesquisa realizada por Kahn (1999) mostrou que os custos com violência no estado de São Paulo equivalem a 8 bilhões e 96 milhões de reais ou 3% do PIB estadual, sendo que isso representa 2,7% vezes o gasto realizado pela Secretaria de Saúde e 21,7% vezes o gasto da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social em 1998.

Fazendo um paralelo entre os gastos com violência e investimentos em pes-quisa e educação, a Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado de São Paulo (FA-

25Violência contra mulher e a mulher encarcerada sistema judiciário24 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

PESP, 2008) financia seus projetos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico com o repasse de 1% do PIB do estado (contra os 10,5% do PIB do Brasil gastos com a violência). Dados do Tribunal Contas da União descrevem que os gastos com um es-tudante universitário é de R$ 790,00 mensais e, segundo os dados do Departamento Penitenciário (DEPEN), um presidiário custa em média R$ 1.000,00 a R$ 2.000,00 por mês, ou seja, quase o dobro de um estudante universitário (TELES, 2006).

Ao tentar compreender o fenômeno da violência como um todo, vários aspectos são abordados, como a pobreza, o baixo nível de escolaridade, problemas associa-dos a doenças mentais, desemprego, entre outros fatores de risco (MENDLOWICZ; FIGUEIRA, 2007).

Um dos centros de pesquisa e intervenção que estuda o fenômeno da violência é o Laboratório de Análise e Prevenção da Violência – LAPREV, que está vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, na cidade de São Carlos, São Paulo. O LAPREV tem um histórico de intervenções de êxito, envolvendo o Programa de Intervenção a Vítimas de Violência Doméstica, em andamento desde 1998, por meio de estágios supervisionados de alunos de gra-duação em Psicologia na Delegacia de Defesa da Mulher de São Carlos. No ano de 2000, tal estágio expandiu-se, passando a desenvolver atividades de atendimento a crianças e famílias do Conselho Tutelar de São Carlos e no ano de 2001, com a inauguração da Casa Abrigo em São Carlos, ampliou-se o atendimento a mulheres e crianças da Casa Abrigo Gravelina Terezinha Mendes. A partir de 2005, as mulheres e seus companheiros passaram a ser atendidos na USE (Unidade Saúde-Escola) da UFSCar, visando à interdisciplinaridade do atendimento. As atividades de estágio foram responsáveis pela apresentação de dezenas de trabalhos em congressos cien-tíficos em diversas cidades do Brasil e exterior.

Adicionalmente, o LAPREV está vinculado a dois Programas de Pós-Gradu-ação da UFSCar, a saber: Programa de Pós-Graduação em Educação Especial, na linha de pesquisa Atenção Primária e Secundária em Educação Especial: Prevenção de deficiências e Programa de Pós-Graduação em Psicologia, na linha de pesquisa Comportamento Social e Processos Cognitivos.

As atividades de pesquisa do LAPREV estão cadastradas no Diretório dos Gru-pos de Pesquisa na Plataforma Lattes, sistematizada no grupo de pesquisa: impacto da violência sobre o desenvolvimento humano: prevenção e intervenção. Atuando na avaliação de programas de capacitação e intervenção em populações de risco e/ou especiais, bem como a prevenção de violência junto à família, aos profissionais, à escola e à comunidade, como por exemplo: professores, conselheiros tutelares, profissionais da saúde e estudos descritivos e epidemiológicos sobre violência na família e/ou escola.

Todas essas atividades desenvolvidas foram responsáveis pela apresentação de dezenas de trabalho em congressos científicos em diversas cidades do Brasil e ex-terior, sendo que essas publicações científicas podem ser encontradas em periódicos nacionais e internacionais e em seu site, a saber: www.ufscar.br/laprev.

Neste trabalho serão abordados dois assuntos presentes na realidade atual e que são temas de estudo e análise no LAPREV, o primeiro diz respeito à violência contra a mulher e o segundo a situação da mulher encarcerada.

VIOLÊNCIA CONTRA MULHER

A violência contra a mulher em 1993 foi reconhecida, pelas Nações Unidas (ONU), como um obstáculo ao desenvolvimento, à paz e aos ideais de igualdade entre os seres humanos, sendo essa considerada uma violação aos direitos humanos (HERMANN; BARSTED, 2000). Ou seja, a violência contra a mulher é um problema social e de saúde pública, que consiste num fenômeno mundial que não respeita fronteiras de classe social, raça/etnia, religião, idade e grau de escolaridade.

Os episódios de violência contra a mulher comumente ocorrem no âmbito fami-liar, no espaço privado, e os agressores, em geral, são homens, na maioria das vezes seus parceiros, como pode ser visto nos dados de pesquisa da Fundação Perseu Abramo, os quais revelam que, no ano de 2001, a cada 15 segundos uma mulher foi espancada no Brasil, aparecendo os maridos ou parceiros como os principais respon-sáveis pelas agressões, ameaças físicas ou quebradeiras, seguidos dos ex-maridos e ex-companheiros (VASCONCELOS, 2002).

A prevalência de casos de violência é sempre uma questão complicada, pois, em geral, os números são subestimados, uma vez que por medo ou por intimida-ções de diversas naturezas, muitas mulheres não recorrem às delegacias de polícia para denunciar agressões, ameaças, espancamentos e outras formas de violência e muitas agressões não resultam em ferimentos que requerem cuidados médicos (LUTZKER, 2006; ARIAS; IKEDA, 2006; HERMANN; BARSTED, 2000).

Além disso, parte da dificuldade em se determinar a prevalência dos casos de violência contra a mulher ocorre devido ao fato de esta ser um problema complexo no qual diversas variáveis devem ser analisadas para que se consiga compreender e monitorar o fenômeno. Arias e Ikeda (2006) descrevem alguns pontos característicos desse fenômeno, os quais podem ser os responsáveis pelos problemas observados pelos pesquisadores da área. Em primeiro lugar, esse fenômeno envolve, no mínimo, duas pessoas – agressor e vítima, de tal maneira que são necessárias informações a respeito das características desses indivíduos, da relação entre eles e das circuns-tâncias que culminaram no episódio de violência. Ademais, existe a possibilidade de ocorrer uma única vez ou diversas vezes e poder ser perpetuado por um único parceiro ou por diferentes parceiros ao longo do tempo. Soma-se a esses fatos a existência de diferentes categorias (violência física, sexual e psicológica), o que pode dificultar na tomada de decisão sobre as definições a serem utilizadas, além de fo-mentar discussões sobre quais dados são apropriados para coletar. Além disso, a existência de diferentes fontes de informação (sistema de saúde e sistema judiciário, por exemplo) leva a necessidade de uma parceria efetiva para troca de informações entre os sistemas, o que nem sempre ocorre.

Entende-se violência física como o ato de agredir a mulher, sendo a forma mais fácil de identificar, a qual pode incluir empurrões, tapas, socos, atirar objetos ou lí-quidos, cabe mencionar que em algumas situações as agressões estão direcionadas para locais do corpo que não expostas, tais como osso púbico, crânio e solas dos pés (SINCLAIR, 2010).

Com relação à violência sexual podemos entendê-la como tendo início com a subestimação da mulher por meio de piadas, xingamentos e toques indesejados. Atividade na qual a mulher é levada a manter uma relação sexual forçada, em al-

27Violência contra mulher e a mulher encarcerada sistema judiciário26 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

gumas situações os agressores obrigam a vítima a realizar atos desagradáveis ou desprazerosos para ela (sexo grupal ou anal). Um fato peculiar é que as mulheres não se sentem abusadas sexualmente pelo fato de acreditar que precisam atender as necessidades de seu companheiro. Cabe mencionar que a violência sexual é comu-mente acompanhada de ameaças de violência física.

A violência psicológica tem como função causar medo na vítima, pois comu-mente no passado aconteceu algum incidente de violência física, este tipo de violên-cia pode se apresentar de diferentes formas, tais como controlar as suas atividades, forçá-la a realizar coisas desagradáveis, ameaçar de agressão seus entes queridos, animais ou propriedades. Esta situação falaciosa deixa a mulher confusa e sem clareza de atuação.

Finalmente uma violência que não é levada em consideração pela sociedade refere-se à destruição da propriedade, já que a agressão é direcionada para os objetos ou propriedades da vítima, mas na verdade o recado que o agressor esta querendo dizer é ande na linha por que na próxima vez será você. Fazendo uso destes compor-tamentos o agressor esta utilizando formas de intimidar os comportamentos que ele não aprova da mulher, a intimidando e amedrontando, deixando claro que ela precisa se comportar da forma desejada por ele. Embora cada uma das violências descritas tenha uma particularidade nefasta para a vida da mulher não podemos esquecer que todas podem terminar em assassinato.

Varias são as consequências da violência doméstica na vida da família princi-palmente quando há crianças no ambiente familiar, não podemos esquecer que há violência conjugal é um fator de risco para os maus-tratos infantis (WILLIAMS et al., 2009; HOLDEN, 1998).

Williams, Brino e Padovani (2009) apontam que vítimas de violência domésti-ca apresentam quadros depressivos e ansiosos, apreensão, dependência química, distúrbios de sono e de alimentação, queixas somáticas como dores de cabeça ou coluna, isolamento do convívio social, sensação ou sentimento de desamparo, senti-mentos de ambivalência e desesperança, muitas vezes sentem que ao mesmo tempo amam e odeiam ao agressor. Já com relação às crianças que presenciam e que se tornam vítimas indiretas da violência doméstica, as possíveis consequências seriam quadros de ansiedade e depressão, ideação e/ou tentativa de suicídio, baixa auto-estima, distúrbio de atenção, passividade ou agressividade, problemas somáticos, transtorno de estresse pós-traumático, uso de bebidas alcoólicas / drogas, desempe-nho acadêmico baixo ou excelente.

Dadas as circunstâncias o LAPREV trabalha com uma abordagem de interven-ção em saúde baseada na igualdade de gênero para auxiliar mulheres a ter controle sobre as suas vidas, libertando-se dos sintomas da violência. Além disso, ensinamos aos homens habilidades de resolução de problemas com uma perspectiva de gênero e dos Direitos Humanos, pois é preciso compreender a violência contra a mulher como uma manifestação concreta da desigualdade entre os sexos. Também traba-lhamos com crianças que foram expostas à violência – ou seja a criança cuja mãe sofreu violência de um parceiro íntimo - com o objetivo de prevenir que ela se torne agressiva ou excessivamente passiva no futuro próximo. Finalmente ensinamos a nossos estudantes universitários como trabalhar com esta população de forma pre-

ventiva. Além disto, fornecemos consultoria aos nossos profissionais de saúde de forma a conduzir intervenções adequadas na área da violência intrafamiliar, utilizando um modelo baseado em evidências.

Mulheres encarceradas

O ministério de Justiça aponta que em março de 2008 o número de mulheres encarceradas em todo o país ultrapassou 27.000 detentas. A Secretaria de Assistên-cia Penitenciária (SAP) descreve que a população carcerária feminina no Brasil vem aumentando consideravelmente. Em 2000, o número de mulheres sobre custódia da SAP era de 1.630, já em 2008 este número aumentou para 6.520, e somando-se ao número de mulheres sob custódia da Secretaria de Segurança Pública (SSP) o número final chega a 10.753 presas, só no estado de São Paulo;

A SAP caracteriza a mulher presa do estado de São Paulo com sendo jovem, mãe e com idades entre 18 a 30 anos em mais de 54% dos casos, chefe de família monoparental, sendo os principais crimes cometidos por elas: tráfico de entorpecen-tes e roubo. Ao descrever o parente que mais a visita durante o encarceramento na maioria dos casos é a irmã e o que menos visita é o companheiro, dado muito diferente na realidade masculina, pois a mulher e os filhos são em 90% dos casos o parente que mais visita o encarcerado.

A literatura internacional descreve a mulher presa como sendo jovem, em 80% dos casos essa mulher tem filhos e dois terços destes com idades inferiores a 18 anos, que moravam com ela no momento do encarceramento; possui baixa escolaridade, é afrodescendente, sofreu maus tratos na infância, (sendo o abuso sexual o tipo mais elevado de maus-tratos, ocorrendo em 55% dos casos), tem no seu histórico de vida o encarceramento de um ou ambos os pais, e relatam ter mantido relações sexuais na pré-adolescência, consequentemente um grande número ficou grávida antes dos 16 anos, relatam também ter sofrido violência doméstica por parte do parceiro, ser usuá-ria de drogas e/ou álcool. Todas estas características evidenciam os inúmeros fatores de risco a qual esta população esteve exposta durante a infância e no transcorrer de sua vida adulta (GREENE; HANEY; HURTADO, 2000; DALLEY, 2002; CRAIG, 2009; JOHNSTON, 1995).

Segundo Dalley (2002), se faz necessário tomar um cuidado especial com os filhos destas mulheres devido às condições enfrentadas por estes, já que são uma população muito vulnerável e de risco e se não houver uma intervenção podem vir a se tornar a próxima geração carcerária. Cabe mencionar que, nem todos os in-divíduos que presenciam ou se desenvolvem em situações adversas apresentarão consequências negativas.

O encarceramento agrava problemas já existentes. Nos casos de problemas com a maternidade prévios à prisão, cerca de 40% das mulheres já perdeu a guarda dos filhos pelo menos uma vez (DALLEY, 2002), deteriorando a relação entre mãe--filhos e acarretando em dificuldades emocionais, sociais e comportamentais das crianças. Adicionalmente surgem novos problemas, pois acompanha a mulher presa o estigma de ser uma “má” pessoa, e, consequentemente, não exercer seu papel de mãe adequadamente (DODGE; POGREBIN, 2001).

Além da influência da prisão sobre a maternidade, existe o sentido inverso – a maternidade pode ser um fator que influenciou a prisão das mulheres. Não apenas a

29Violência contra mulher e a mulher encarcerada sistema judiciário28 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

maternidade, mas a necessidade de prover melhores condições para os filhos em um ambiente de recursos escassos, o que pode levar mulheres a se envolver em ativida-des ilícitas, como o envolvimento no tráfico de drogas e em estelionato, pela emissão de cheques sem fundos para o pagamento de dívidas (FERRARO; MOE, 2003).

A pesquisa em andamento de Ormeno e Williams (2010), descreveu algumas características de 69 mães encarceradas em cadeias públicas pertencentes ao DEIN-TER 3 do Estado de São Paulo. Estas foram descritas como sendo jovens (idade média de 28,72 anos e DP 6,58), afro-descente em 67,11% dos casos, sendo que cerca da metade da amostra mantinha um relacionamento conjugal e a outra metade não tinha. Com pouca escolaridade (em 57,97% dos casos essas tinham cursado apenas até 4ª. série do ensino fundamental). Com relação à sua renda, 49,28% da amostra não tinha renda, 37,6% possuía renda, variando entre R$ 20,00 e R$500,00 e 7,25% tinha renda acima de R$1000,00. Apenas 10,14 % da amostra trabalhava com carteira assinada.

Um dos problemas enfrentados por esta população considerada mais vulne-rável é o consumo uso/abuso de substâncias lícitas e não licitas. As participantes foram questionadas sobre o uso de drogas, cigarros e bebida alcoólica. O resultado mostrou que 36,76% delas eram usuárias de drogas, em 25% dos casos o uso era frequente. Além disso, 39,14% fazem uso de bebida alcoólica e 68,15% das mulheres eram tabagistas, sendo que o uso, para 52,17% dessas, era elevado.

Com relação ao histórico de violência na infância das encarceradas, 36,24% das participantes relataram que seus pais nunca utilizaram a agressão como forma de educação. Em contraste, 60,27% das mulheres disseram que os pais utilizavam agressão, sendo que, em 17,64% dos casos a agressão acontecia de forma frequente e praticada por vários integrantes da família. Um dado interessante diz respeito à verbalização de uma participante: “nunca apanhei, por isso fiquei desse jeito”, corro-borando a crendice popular sobre a utilização do castigo corporal para poder educar.

Ao questionar sobre o início da vida sexual e reprodutiva, pode-se constatar que a idade da primeira gravidez foi em média 16.62 anos, sendo que essa variou de 12 a 24 anos. Em 20% dos casos as participantes engravidaram com idade entre 12 e 14 anos. Considerando que em 66% dos casos as mães iniciaram a sexualidade no início da adolescência, descortina-se a possibilidade de abuso sexual na presença da vida destas, embora na maioria das vezes, essas não percebam essa situação como abuso, expondo que elas queriam manter as relações com um parceiro. Cabe mencionar que uma participante identificou como tendo participado de “programa” de exploração sexual infantil.

Assistir violência entre seus genitores também se apresentou como uma das características presentes na infância das participantes. A Figura 1 a seguir indica que 47,8% das participantes assistiram seus pais se agredirem, o qual sucedeu de três formas diferentes: a agressão por parte de ambos os pais em 10,14% dos casos, pai contra mãe em 26,64% dos casos e das mães contra o pai em 13,04%.

10,14%

24,64%

13,04%

42,03%

0,00%

5,00%

10,00%15,00%

20,00%

25,00%

30,00%

35,00%40,00%

45,00%

Ambos seagrediam

Apenas paiagredia a mae

Apenas mãeagredia o pai

Não seagrediam

Pais se agrediam

Figura 1. Violência conjugal testemunhada na infância pelas participantes.

No que diz respeito ao número de filhos das 69 participantes, esse variou de 1 a 7 filhos por mulher, totalizando 209 filhos (114 meninos e 95 meninas), sendo que desses, 191 (91,3%) eram menores de 12 anos. A média de filhos por participante foi igual a 3,03 e o desvio padrão de 1,67. Cabe mencionar que em 76,81% dos casos as participantes relataram que não planejaram engravidar de seus filhos. Além disto, as mulheres relatam que em 80% dos casos, após o encarceramento as crianças passaram a ser cuidadas por parentes, sendo que, em mais de 85% dos casos as crianças residiam no estado de São Paulo. As mães mantinham comunicação com seus filhos em 75,36%, dos casos e, a forma maior de contato era por visitas com 56.5% e por meio de cartas, com 18,8 %. Assim sendo, em 24,6% dos casos as mães não tinham qualquer forma de comunicação com os filhos.

No que diz respeito à intergeracionalidade da violência intrafamiliar, os dados mostraram a existência de violência na vida das três gerações (mães das encarce-radas, encarceradas e a geração de seus filhos), pois todos estiveram expostos ou sofreram violência intrafamiliar, dados corroborados pelo estudo de Falbo e Caminha (2004), no qual os autores apontaram que ter sofrido maus-tratos por parte dos pais ou cuidadores foi favorecedor ao fato de se tornarem mães agressoras e, também, de envolverem-se em atividades criminais. Sendo assim, é preciso uma atenção especial urgente por parte do Estado para os filhos dessas mulheres, visando à possibilidade da ruptura da intergeracionalidade tanto da violência intrafamiliar como da intergera-cionalidade carcerária.

Com relação ao crime pelo qual estavam sendo julgadas, em 59,45% dos ca-sos esse envolvia tráfico de drogas, seguido por roubo com 13,04%. Adicionalmente, o delito envolveu assalto à mão armada (8,7%); associação à quadrilha (4,35%) e assalto (2,9%). Outros crimes também apareceram como: homicídio, estupro, furto, tráfico e corrupção de menor, mandante de crime com 1% cada. Ao indagar a sua

31Violência contra mulher e a mulher encarcerada sistema judiciário30 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

situação judicial, em 37,7 % dos casos as participantes estavam sentenciadas e em 47,83% as sentenças eram provisórias. Estes dados corroboram os da Secretaria de Assistência Penitenciária (2008) e os dados internacionais (CRAIG, 2009; JOHNS-TON, 1995), apontando o trafico de drogas como sendo um dos principais motivos pelo encarceramento mundial, principalmente da população feminina. Contudo, as situações de roubo precisam ser analisadas, pois no discurso das mulheres, esse está relacionado ao uso de drogas, isto é, elas roubaram para poder sustentar o vício, tal como descrito por uma participante. Sendo assim, o ato de roubar deveria ser encarado como problema de saúde e não de criminalidade.

Todos os dados descrevem os inúmeros fatores de risco aos quais as mulheres estiveram expostas durante a infância e a vida adulta, sendo necessário a implanta-ção de políticas públicas para mulheres encarceradas visando uma expectativa de melhora de vida para esta população.

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ALGUMAS DAS DEMANDAS DO DIREITO À PSICOLOGIA NA ÁREA DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Marina Rezende BazonMestre em Ciências pela Universidade de Montreal (Canadá); Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo; Docente do Departamento de Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (campus Ribeirão Preto). E-mail para correspondência: [email protected].

Maria Cristina MaruschiPsicóloga Judiciária, Comarca de Jaú – SP, Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, FFCLRP-USP.

Nos últimos anos, nota-se a realização de um número considerável de even-tos relacionados a temáticas da Psicologia na interface com o Direito, indicando a existência de demanda crescente para a atuação do profissional Psicólogo junto às instituições e aos operadores do Direito. Não raramente, essa vem acompanhada de propostas a respeito das atribuições para o exercício profissional e, nesse pla-no, assisti-se a acalorados debates sobre o que podem ou o que devem fazer os Psicólogos em casos como, por exemplo, da atuação no sistema prisional e no da escuta psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência. A discussão é bastante profícua, pois coloca no centro do debate a relação entre a competência técnica e a competência política, ou seja, a relação entre o “saber bem” e o “fazer o bem”, que, segundo Rios (1993), remete à Ética da Profissão.

Acredita-se, contudo, que para haver avanços efetivos, no sentido de a Psi-cologia oferecer uma real e legítima contribuição à sociedade, o debate precisa ultrapassar o estágio de mero enfretamento de posições ideológicas e caminhar na

35Algumas das demandas do direito à psicologia na área da infância...34 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

direção das verificações e confrontação de evidências científicas. Posto isso, investir na produção de conhecimento específico é imprescindível, visto que as investigações na área ainda são em pequeno número, sobretudo as nacionais.

Com essa perspectiva, no presente trabalho busca-se apresentar e discutir duas temáticas bastante específicas, relativas a situações de violência envolvendo crianças e adolescentes, trazendo apontamentos de produções científicas disponibi-lizadas, razoavelmente consolidados, considerando que esses podem favorecer uma articulação mais coerente entre os posicionamentos da Psicologia e do Direito no tocante à atuação diante de situações concretas: em situação de vitimização domés-tica infantil, nos casos em que se questiona sobre a necessidade de afastamento de crianças de seus pais/responsáveis; e em “delinquência juvenil”, nas situações de tomada de decisão quanto à medida socioeducativa mais pertinente a um adolescen-te em conflito com a Lei.

Deve-se sublinhar que as temáticas são objetos privilegiados de investigações no Grupo de Estudos e Pesquisa em Desenvolvimento e Intervenção Psicossocial (GEPDIP), da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, na Univer-sidade de São Paulo.

A vitimização doméstica infantil e a questão do afastamento de crianças/ado-lescentes de seus pais/responsáveis

Para iniciar uma reflexão sobre esse tema específico, é preciso, primeiramente considerar que, nos últimos 40 anos, inclusive no Brasil, houve uma intensa produção científica que, sem sombra de dúvidas, promoveu avanços, mas que, infelizmente, apresenta o limite de encontrar-se encerrado num saber taxonômico, baseado em classificações mais ou menos lapidadas das situações consideradas como violência doméstica ou maus-tratos, uma vez que ainda não se conseguiu estabelecer con-ceitos para a delimitação do fenômeno e, menos ainda, teorizações suficientemente consistente (GONÇALVES, 2005).

No universo acadêmico científico, mas principalmente no dos programas e serviços de intervenção na área, se lida com vários e variados sistemas de de-finição das modalidades de violência/maus-tratos, o que gera um dos primeiros desafios a ser enfrentado, representado nas indagações que se seguem: As di-ferentes definições apresentam correspondência entre si, apesar das diferenças nos enunciados? Elas correspondem a concepções equivalentes do fenômeno? Elas são suficientemente específicas, porém adequadamente abrangentes para que englobem as situações concretas que devem ser englobadas? Elas são em algum grau operacionalizáveis, ou seja, têm capacidade de orientar a realização de diagnósticos da realidade?

Analisar situações concretas sem dispor de parâmetros suficientemente conso-lidados e sintetizados em conceitos / teorias é como trabalhar no escuro, o que, por si só, já seria um grande problema. A questão é que, ao tratar de violência doméstica / maus-tratos infantis, está-se na sombra enfrentando uma tarefa demasiado complexa (porque há muitos elementos que devem ser levados em conta, ao mesmo tempo), e suscetível aos próprios valores, crenças e preconceitos pessoais – e às vezes de classe social – no tocante ao certo e ao errado, ao adequado e ao inadequado à vida em família e à criação de filhos (VACHON et al., 1995; GONÇALVES, 2005).

Nesse cenário, é necessário considerar quão difícil é responder à demanda de avaliação para uma tomada de decisão que pode afetar de forma radical a vida da família e, principalmente, a da criança, como nos casos em que se cogita a retirada da guarda de uma criança de sua família, temporária ou definitivamente. A tarefa remete às seguintes questões: quando, em que situação justifica-se o afastamento de uma criança de seus cuidadores primários / responsáveis legais? Quais critérios devem guiar essa tomada de decisão? Na prática, a maior parte das ações diante dos eventos é pautada no “bom senso” de quem intervém, nessas situações, que não raro assenta-se sobre o “senso comum” e esse em crenças e valores mais ou menos esclarecidos sobre o “adequado”.

Do ponto de vista jurídico, destaca-se que o convívio familiar é um direito infanto-juvenil formalizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), por meio do enunciado que postula que toda criança tem “o direito de ser criada e edu-cada no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta”, atribuindo à instituição familiar o papel de agência social fundamental para a “efetivação dos (outros) direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade” (SZY-MANSKI, 1992, p. 3).

Esta postura reconhece a família como espaço privilegiado para o desenvol-vimento humano e as aprendizagens sociais (FERRARI; KALOUSTIAN, 1994), mas também a coloca no centro da discussão sobre as “suas qualidades”, ao considerá-la como responsável direta e imediata pela atualização dos direitos de seus filhos tor-nando-se, portanto, passível de sofrer intervenções de ajuda, de caráter psicossocial, mas também jurídicas, de natureza sancionatária.

Frente à detecção de problemas correlacionados à ameaça ou à violação de direitos das crianças e dos adolescentes, na cena doméstica, o ECA pressupõe que as intervenções visem prioritariamente à manutenção e o fortalecimento dos vínculos familiares, o que implica necessariamente ações de investimento na família como um todo, em seu conjunto. A própria Constituição Federal de 1988 fornece os elementos à consecução de tal princípio, ao ditar que a formulação das políticas públicas sociais deve centrar-se na família como totalidade (VALENTE, 2004).

Entretanto, nas palavras de Valente (2004), “nos deparamos constantemente com ações fragmentadas que não conseguem incluir o grupo familiar em suas ações protetivas” (p. 61). A orientação subjacente aos programas, fornecida pela política social mais ampla, favorece a implementação de ações especiais – compensatórias – para grupos de famílias considerados especiais, geralmente as pobres, reforçando os processos de exclusão social já existentes (ROSEMBERG, 1994). Ademais, estas geralmente negligenciam a necessidade de compreender o sistema familiar no seu contexto e por meio de seus valores, possuindo um caráter burocrático que tende a estigmatizar as famílias “beneficiárias” (TAKASHIMA, 1994).

Nossas investigações têm apontado para a hegemonia de intervenções técni-cas que se caracterizam, predominantemente, por uma abordagem da família a partir da identificação de problemas em seus membros, enfatizando, assim, os déficits dos indivíduos. A família não é concebida como um sistema no plano das interações/relações estabelecidas no seu interior e com o sócio-entorno. Portanto, as ações

37Algumas das demandas do direito à psicologia na área da infância...36 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

de intervenção que incidem sobre os adultos/responsáveis se caracterizam, em sua maioria, pelo levantamento de informações e encaminhamento destes a outros ser-viços, alguns especializados, sobretudo de natureza médico-psiquiátrica (BAZON et al., 2003).

Esse delineamento confirma a perspectiva que, embora superada no plano teórico, ainda predomina na prática relativa às explicações da violência doméstica, associando-a à psicopatologia dos adultos/responsáveis. Esta, além de reafirmar uma visão “medicalizante” do problema, perde de vista a dimensão multideterminada do problema (BAZON et al., 2003).

Assim, seria surpreendente que problemáticas tão complexas, concernindo ao cuidado e à proteção dos filhos, cedessem facilmente a ações de intervenção tão incipientes.

Neste sentido, a retirada de crianças e adolescentes de suas famílias (e co-munidades) de origem figura como uma solução quase inevitável e que é, paradoxal-mente, legitimada pela ineficiência das ações que deveriam lhe evitar. Esta dinâmica é confirmada pelo número elevado de abrigamentos efetivados (BAZON et al., 2003), na linha de uma tendência nacional assinalada por Rizzini e Rizzini (2004)1.

Neste contexto, a institucionalização de crianças e adolescentes em abrigos, independente da qualidade destes, é na melhor das hipóteses o reconhecimento dos limites metodológicos e técnicos disponibilizados para a intervenção de ajuda às famílias, e corre o risco de tornar-se um fim em si mesmo na medida em que parece configurar o ponto final das ações junto a muitos casos. Reiterando o colocado por Casas (1993), uma mudança efetiva na rede de serviços sociais, dirigidos às famílias, só poderá se consolidar se houver uma mudança profunda no delineamento dos ser-viços sociais primários e nos procedimentos de admissão de crianças e adolescentes em casas-abrigos, de modo que a rede desenvolva eficiência no plano da prevenção de maus-tratos domésticos, estando capacitada a uma detecção precoce das dificul-dades familiares.

Encarando o problema de um outro ângulo, este mesmo autor coloca que uma criança/adolescente só poderia ser retirada de sua família de origem se houver cer-teza que o que lhe será proporcionado, como contraponto, é, em todos os sentidos, francamente melhor (CASAS, 1993). Esta afirmação nos remete a pelo menos dois outros aspectos cruciais que merecem reflexão (e, sem sombras de dúvida, investi-gações): o da qualidade das instituições que executam o abrigamento e, o quê nos interessa mais de perto no presente, o dos critérios empregados no julgamento con-cernente às tomadas de decisão de retirada de crianças/adolescentes de seus pais/responsáveis primeiros.

Assim, respostas às questões sobre quando, como e por que abrigar uma criança fora de seu lar representam escolhas das mais complexas, às quais são con-frontados os membros do sistema de proteção (STEIN; RZEPNICKI, 1983, apud VA-

1 Cumpre aqui ressaltar que, para nós, o problema maior, em questão, diz respeito à tomada de decisão de suspender ou retirar a guarda de uma criança-adolescente de seus responsáveis-cuidadores. Neste sentido, o abrigamento, e mesmo a colocação em família substituta, são aspectos secundários, pois advêm como conseqüências deste processo primeiro.

CHON et al., 1995). Segundo Kufeldt (1993), o fato de não retirar a criança da família pode estar implicando toda uma série de perigos, desde a morte até a perpetuação de um sofrimento que pode marcar toda a sua vida. De outro lado, segundo Wightman (1991), a decisão de retirá-la assume o risco de expô-la, em um curto período de tempo, a um trauma. Ademais, se única alternativa for a institucionalização, é preciso prever que tal “remédio” tem seguramente efeitos colaterais e que, se mal administra-do, pode conduzir a uma situação de indecisão crônica quanto ao destino da criança.

Sabe-se que ao longo do século XX algumas correntes teóricas exerceram uma grande influência na organização dos serviços de proteção infantil, sobretudo no panorama internacional, gerando movimentos em prol da retirada ou da não retirada de uma criança de sua família de origem. Nos anos de 1950, um estudo americano que revelou a existência de um grande contingente de crianças esquecidas em insti-tuições, apesar da crença social (sempre presente na história) de que a instituciona-lização era evento temporário (MASS; ENGLER, 1959, apud VACHON et al., 1995) e da circulação dos conceitos e ideias de Bowlby sobre os efeitos negativos da privação materna. Com isso, nesse período histórico, inicia-se um movimento contrário à reti-rada de crianças e suas famílias, argumentando-se que uma família biológica, mesmo inadequada, era preferível à família de acolhimento e que esta, mesmo inadequada, era preferível às instituições (VACHON et al., 1995).

Em 1973, com o aparecimento da obra de Goldstein, Freud e Solnit, intitulada “No melhor interesse da criança?”2, a decisão de retirar um filho dos pais e abrigá-lo em instituição volta a ganhar certa sustentação pelo fato de os autores terem subli-nhado a incapacidade da Lei de supervisionar as relações interpessoais, os limites do conhecimento quanto as previsões de longo prazo dos abusos e negligências, e a necessidade de um vínculo psicológico estável de uma criança com um adulto que poderia também se dar com cuidadores profissionais, em contexto institucional (VACHON et al., 1995). Defendia-se, entretanto, que a retirada de uma criança de sua família de origem fizesse parte de um plano visando restabelecer uma situação es-tável para a criança, o mais rápido possível (permanency planning), enfatizando que “o tempo da criança” não é o mesmo do dos adultos envolvidos, querendo dizer com isso que o tempo de espera de uma definição é um “tempo em suspenso” e que esta vivência pode ser avassaladora às crianças, quanto mais jovens elas forem. Além disso, também defendiam o princípio de intervenção mínima do Estado na família, provocando um debate sobre a pertinência de ações coercitivas do Estado no âmbito doméstico, em nome da proteção da juventude (VACHON et al., 1995).

Com o tempo, a contribuição destes autores serviu para problematizar as dis-cussões na área e, em termos práticos, promoveu a difusão da ideia sobre a neces-sidade da tomada de decisão sobre a retirada e o abrigamento de uma criança fazer parte de um plano maior, visando à estabilidade relacional na vida da criança, fosse ela na família de origem ou numa substituta.

Contudo, ainda na década de 1970, alguns estudos demonstraram quão difícil era atingir o objetivo de fazer a criança retornar à família de origem ou mantê-la dentro de um recurso estável. Daí depreende-se alguns princípios que deveriam conjunta-mente reger a tomada de decisão: a opção deveria ser sempre a menos invasora da

2 GOLDSTEIN, J.; FREUD, A.; SOLNIT, A. No interesse da criança? São Paulo: Martins Fontes, 1987.

39Algumas das demandas do direito à psicologia na área da infância...38 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

vida familiar; a solução deveria ser a menos nociva à criança; dever-se-ia preservar o contato da criança com as figuras parentais; dever-se-ia levar em consideração a idade da criança, seu grau de desenvolvimento e a sua noção de tempo; e dever-se-ia pesquisar pela existência do recurso “pai/mãe psicológico”, ou seja, a presença de uma figura estável na vida da criança, na sua comunidade de origem, idealmente, na família estendida (VACHON et al., 1995).

Esta produção gerou, de certa forma, um consenso na área, que ainda vigo-ra: a retirada de uma criança de sua família e seu abrigamento deve ser uma ação excepcional, vislumbrada sempre como o último recurso, respeitando-se o genérico princípio “do melhor interesse da criança”, e instrumental, ou seja, um meio e não um fim em si mesmo, considerando que a mera separação de uma criança de seus pais, por pior que seja a relação, jamais será terapêutica em si. Isto posto, a ausência de um sistema coerente de critérios para a tomada de decisão tornou-se evidente (VACHON et al., 1995).

Pode-se afirmar que este ponto de estrangulamento marca igualmente a rea-lidade atual brasileira. Em nossas investigações, abrangendo a cidade de Ribeirão Preto (SP), conseguimos delinear diferentes padrões de argumentação das autori-dades envolvidas, quando remetidos à reflexão do “porquê e quando abrigar”. Uma primeira vertente, bastante recorrente, chamada de “legalista”, apoia seu discurso na Lei (ECA), repetindo basicamente o que dita a carta legal.

“O ECA é critério utilizado, entendeu? (...) se é esgotada todas as possibilida-des da criança ficar com a família, de acordo com o Estatuto, de acordo com os equi-pamentos que tem em cada cidade (...) aí, ele é colocado numa situação de abrigo...”

“(...) aplicar as medidas de proteção sempre que os direitos reconhecidos nessa Lei foram ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis em razão de sua conduta, quando é ato infracional, né?”

Como este raciocínio é bastante generalista, abre brechas para que cada si-tuação de intervenção seja avaliada a partir de considerações personalizadas, no sentido de não obedecerem a parâmetros pré-estabelecidos. Tanto é que se passa da explicação legalista, caracterizada pela generalidade e abrangência, para os exemplos de casos, sem que se consiga depreender critérios que demarquem uma situação limite, relacionada à retirada da criança do lar, seja abrigando-a ou inserindo--a em outra família.

“(...) cada um tem seu critério de avaliação...”

“[o critério] é muito subjetivo...é colocado o caso com todos os detalhes, todos os conselheiros, cada um dá sua opinião, aí, o que fechar em consenso a gente faz (...)”

Com uma postura menos legalista, porém não menos generalista, encontrou--se quem argumenta em torno do conceito “em situação de risco”, sem, contudo, explicitar: “em risco de quê ou por quê”.

“Quando a gente detecta uma situação de risco e que não é possível a perma-nência dele junto... com a família”

“O critério é esse, se a criança estiver numa situação de risco, seja físico, psicológico ou para a sua integridade, ou para a sua vida e não houver nenhuma medida no momento que possa ser anterior ao abrigamento.”

“(...) pra mim, o critério principal é esse, se a criança está em situação de risco e se ela precisa ser protegida (...) Essa família consegue proteger essa criança? Ou não? Se a família não consegue ela precisa de outro tipo de proteção...”

Considerando que a interpretação para “situação de risco” se correlaciona à possibilidade de ocorrência de problemas desenvolvimentais para a criança, tem-se que, neste contexto, fazer ponderações sobre a intensidade do abuso/negligência e grau de prejuízo previsto para a criança para avaliar quando uma criança deve ou não ser retirada, pois, a rigor, somente a detecção da “situação de risco” é insuficiente como critério.

Concernindo as modalidades de maus-tratos, duas parecem não gerar dúvi-das, fazendo unanimidade sobre a necessidade de afastamento imediato da criança do ambiente familiar, seja o de casos de suspeita ou de efetiva constatação de abuso sexual e nos casos de “abandono”, quando o adulto refere não querer a criança (ge-ralmente, recém-nascidos).

Frente às outras modalidades, a ação de afastamento da criança de seu lar parece pautar-se em raciocínios que consideram um número maior de variáveis, denotando-se uma variação maior da postura. As variáveis em jogo são: o fato de os adultos/responsáveis serem refratários às ações e intervenções; a frequência de ocorrência de atos (notificações/denúncias) num determinado espaço de tempo; a gravidade do ato em termos de prejuízos – geralmente físico – para a criança; a postura refratária da família frente à existência de indícios/evidências de algum tipo de maus-tratos.

O tipo que gera maiores dúvidas quanto à necessidade de afastamento/abri-gamento da criança do lar é a negligência, justamente por ser aquela de mais difícil avaliação a partir das variáveis acima expostas.

“Tem muitos impasses no abrigo por conta da negligência, nos outros casos não (...) caso de negligência pega! (...) a gente fica e fica discutindo, e vai lá e olha, e olha a ficha, e liga pra profissional, e tira mais alguma informação, a gente fica num impasse bem grande, quando é negligência, e a negligência tá ligada à pobreza!”

Parece haver uma clareza quanto ao risco de, tendo como pano de fundo a miséria, concluir erroneamente sobre a existência de negligência. O problema, neste plano, está, entretanto, no contraste entre esta reflexão/ponderação e a alta frequ-ência com que se abrigam crianças em razão de negligência. Nos nossos estudos, esta modalidade responde por 49% dos abrigamentos efetivados. Cumpre dizer que o mesmo padrão também é observado em vários países do mundo.

Ademais, admite-se que apesar da restrição legal, ainda abriga-se exclusiva-mente por motivo de miséria.

“Às vezes a criança pode ser abrigada por uma...os pais estão tendo dificul-dades de estar mantendo as necessidades das crianças, alimentação, etc. (...) en-tendendo que isso não é motivo pra abrigo, né? Porque essa violação não pode ser motivo pra abrigo.”

41Algumas das demandas do direito à psicologia na área da infância...40 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

“(...) infelizmente, não só em Ribeirão Preto, mas nas outras cidades, a gente vê que o abrigo acaba acontecendo por pobreza.”

De maneira explícita, o abrigamento é defendido como uma estratégia de pro-teção da qual se lança mão, em primeira instância, frente a determinadas situações: em casos de dúvidas sobre a efetiva existência de problemas familiares oferecendo risco à criança, mais a dificuldade de efetuar maior/melhor averiguação. Este tipo de situação geralmente se configura no contexto dos plantões de Conselheiros Tutelares.

“(...) numa situação que foi denúncia, mas não deu tempo de verificar aque-la denúncia que ocorreu no final de semana, vamos supor...ela vai pro abrigo pra protegê-la...”

Vale dizer que a literatura internacional tem enfatizado a importância de evi-tar as tomadas de decisão em tais situações, denominadas de “crise”. Como indica Bilodeau (1993), um abrigamento de urgência, mal preparado, quando a criança e seus pais não sabem exatamente o porquê, onde e até quando, é uma intervenção mal feita, geralmente imposta - e não proposta - à família, contrariando o princípio de que a decisão deve fazer parte de um plano de intervenção norteado por objetivos de curto e longo prazo.

Paralelamente, a retirada da criança é também pensada como uma estratégia da qual deve-se lançar mão, não para proteger a criança, mas para intervir junto aos adultos responsabilizados pelos maus-tratos, no sentido de mobilizá-los e torná-los mais suscetíveis às mudanças desejadas. Apesar da sutileza, a retirada e o abriga-mento, neste contexto, parece desempenhar um papel diferente daquele para o qual foi concebido.

“A gente realiza o abrigamento para tratar a família...”

“É uma violência tirar a criança da família, mas geralmente é uma medida de proteção obrigada, porque, infelizmente, a família só aceita um tratamento quando se vê à mercê de perder o filho (...) você abriga pra eles terem noção de que eles podem perder o filho pra uma família substituta.”

Além de configurar uma ação impositiva junto à família e, portanto, autoritária, esta fere a noção de colaboração que tem sido mais recentemente defendida para área, no sentido de promover a implicação dos atores na tomada de decisão e no tratamento do qual o abrigamento faz parte, bem como o conceito de autonomia (BA-RKER; APTEKAR, 1990).

Nesta direção, há em nosso meio quem ressalte o risco de abrigar uma criança quando isso não se faz premente. Em outras palavras, o abrigamento como estra-tégia de intervenção na família, e não como medida extremada de proteção infantil, pode virar um fim em si mesmo e desestimular o processo de busca de modelos de intervenção alternativos e eficientes (mais propriamente comunitários) para famílias que apresentam dificuldades/problemas/conflitos no que tange a criação de filhos.

Além disso, este uso estratégico específico da retirada e do abrigamento é extremamente arriscado quanto à possibilidade de, ao não produzir os efeitos dese-jados, criar um “beco sem saída” para a criança envolvida, conforme o anteriormente mencionado.

“Às vezes pedimos um abrigo que não seria necessário se tivesse funcionando tudo direito, articulado...Eu acho também que é porque nós não temos a prática da prevenção, trabalhar para que não seja o caso de abrigar...”

É preciso ter sempre em mente que “o afastamento da criança de seus pais/responsáveis não é o fim...”. Só o é, se a perspectiva for a da cessação do dano e não o da modificação das relações na família.

Considerando todos estes nuances detectados, pode-se imaginar, para o âm-bito do território nacional, que crianças e adolescentes são separados todos os dias de suas famílias/comunidades de origem, sob a alegação de maus-tratos, com base em avaliações que obedecem a diferentes critérios, alguns mais ou menos explícitos e outros mais ou menos pertinentes, perpetuando-se com isso a prática de “injustiças e violências simbólicas” que têm marcado o trabalho junto a famílias, na área social. Nesse cenário, muitas vezes, também, negligencia-se a dimensão subjetiva da crian-ça/adolescente que vive a ruptura e o desafio de enfrentar o novo, o desconhecido – seja este no contexto o de uma instituição ou o de uma família substituta. Como bem sintetizam Motta e Almeida (2004):

A separação de uma criança ou adolescente de sua família é dolorosa e angustiante. Sua dor estará sempre presente ainda que sua família tenha sido agressora, omissa, ne-gligente, ou seja sócio-economicamente carente. Quando chega a um abrigo, todos os rostos serão desconhecidos e o inesperado acontece a todo o momento, gerando temor e insegurança (p.15).

Da nossa experiência de intervenção e pesquisa na área, um fato chama rei-teradamente a atenção: poucas são as crianças e adolescentes que demonstram clareza e compreensão das razões que as levaram ao abrigo. À parte o senso de desorientação, possivelmente gerado por procedimentos de abrigamento decididos e executados à revelia dos sujeitos concernidos, a maioria das crianças/adolescentes expressa a crença de ali estar fundamentalmente devido a problemas financeiros da família ou de que estes estão na base dos outros problemas familiares e, assim, vivem uma profunda tristeza e mágoa quando as visitas não acontecem, quando o distanciamento da família de origem aumenta. De todo modo, expressam desejos e/ou expectativas de voltar a conviver, de estarem próximos de seus familiares.

No plano dos adultos responsáveis, tem-se notado a existência de diferenças em relação a como o evento do abrigamento dos filhos é vivido, dependentemente da modalidade de maus-tratos em questão. As famílias que apresentam maiores dificuldades financeira, geralmente os assinalados como negligentes, experienciam, quase que exclusivamente, a institucionalização de modo positivo, porque estes ge-ralmente percebem-na como a ajuda material de que precisavam para cuidar bem dos filhos. Corroborando os achados de Fonseca (1995), na lógica destes adultos a institucionalização é uma das alternativas encontradas para o cuidado de crianças num contexto de enorme precariedade material e de apoio comunitário inexistente. Neste sentido, compreende-se porque alguns abrigamentos são feitos a pedido dos próprios responsáveis.

43Algumas das demandas do direito à psicologia na área da infância...42 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

A maioria dos adultos assinalados pelas outras modalidades aprecia negativa-mente a retirada de seus filhos de sua guarda, expressando raiva e tristeza ante ao fato, parecendo sentir-se aviltadas em sua autonomia. Paralelamente, quase todos os adultos a que se teve acesso avaliam negativamente a prática educativa imple-mentada nos abrigos que acolheram seus filhos, questionando os métodos adotados e o impacto destes no comportamento da prole. Isso, de algum modo, denota seu posicionamento crítico e de engajamento face à criação dos filhos, o que deveria constituir-se em recurso para as intervenções visando à modificação das relações parento-filiais no contexto da própria família.

Em suma, a decisão de afastar uma criança de sua família é uma ação de grande repercussão e, por isso, exige uma avaliação / um julgamento criterioso. É importante avançar na discussão em torno de normas, protocolos e procedimentos a serem adotados, tendo por base o avanço no conhecimento – científico – do fenôme-no da vitimização infantil.

A “DELINQUÊNCIA JUVENIL” E A APLICAÇÃO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS AOS ADOLESCENTES INFRATORES

Com relação a essa temática específica, embora por problemas de difusão de conhecimento científico a impressão prevalente seja de se estar, ainda, num campo perpassados por muitas dúvidas e incertezas, a produção é significativa, sobretu-do em âmbito internacional, e essa se apresenta como uma contribuição irrefutável no sentido de clarear o objeto e poder orientar as discussões e as práticas sócio--jurídicas. Há, por exemplo, hoje, um consenso na literatura especializada em torno do fato de a grande maioria dos adolescentes cometerem algum(ns) ato(s) infracio-nais nesse período, constituindo o que se convencionou chamar de “delinquência comum”. O problema relacionado à delinquência juvenil, então, diria respeito a um subgrupo de adolescentes, não muito numeroso, cujo padrão de conduta delituosa teria a característica de persistir no tempo, manifestando-se, em geral, precocemente (no início da adolescência), apresentando uma alta frequência e diversificação, em termos de modalidades de delitos (MOFFIT, 1993; SZABO; LE BLANC, 1994; LOE-BER; FARRINGTON, 2000). Esse grupo constituiria o que se convencionou chamar de “delinquência distintiva”, sendo essa, em si, um dos preditores do envolvimento com a prática de crimes na idade adulta.

Assim, também de acordo a literatura, uma questão feita à ciência, represen-tativa de um dos desafios diariamente postos aos profissionais que atuam nesse campo, refere-se à possibilidade de identificar em meio aos adolescentes que são apreendidos pela polícia, e levados à Justiça Juvenil, a “delinquência comum” e a “distintiva”, sobretudo porque tal identificação deve influenciar a tomada de decisão sobre a medida socioeducativa que melhor lhe convenha, no sentido de transcender raciocínios puramente baseados na análise do delito cometido (sua gravidade), de modo que a medida da medida seja o benefício que pode aportar ao processo de desenvolvimento do jovem.

Os parâmetros legais estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990), em torno dessa problemática, sugerem esse tipo de análise. Segundo a Lei, o cometimento de crimes ou contravenções por menores de 18 anos é classificado como ato infracional, ficando eles sujeitos à responsabilização de natu-

reza judicial e à aplicação de medidas socioeducativas previstas no artigo 112. Neste tocante, frisa-se (no parágrafo 1º do art. 112) que “a medida aplicada ao adolescente deve levar em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração”. Nessa direção, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Admi-nistração da Justiça de Menores (Regras de Beijing, 1985), que serviram de norte para a elaboração do ECA (1990), preveem que o Sistema de Justiça da Infância e Juventude deve enfatizar o bem-estar do adolescente e garantir que qualquer decisão em relação aos jovens infratores seja não somente proporcional às circunstâncias do infrator e da infração, mas às circunstâncias e às necessidades do menor de idade em questão, e às necessidades da sociedade (regras 5.1 e 17.1). A regra 16.1 prevê, ainda, para a aplicação da medida, uma investigação completa sobre o meio social e as circunstâncias de vida do jovem, bem como as condições em que se deu a prática da infração.

Apesar do exposto, na prática, os critérios e as formas de avaliar os adoles-centes infratores, por ocasião das tomadas de decisão sobre as medidas socioedu-cativas, variam muito, o que equivale dizer que não há no Brasil uma sistemática que congregue as práticas nesse campo, prevalecendo diferentes entendimentos de Juízes e Promotores da Infância e Juventude, que podem conduzir a diferenças sig-nificativas na forma e no rigor de sua aplicação, em função de avaliações assentadas em critérios fundamentalmente subjetivos.

Assim, entende-se como necessária e urgente a discussão acadêmico-cien-tífica, bem como nos meios de prática, dos aspectos que devem ser considerados relevantes na avaliação do adolescente em conflito com a Lei e dos critérios que devem ser utilizados para nortear a aplicação de medidas, considerando que essa deve produzir informações que permitam ajustar a medida judicial às dificuldades e às necessidades do jovem, além de levar em conta o princípio da excepcionalidade da privação de liberdade, inerente à Doutrina da Proteção Integral que subjaz as legislações dos países que respeitam a Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente (1989).

Em contextos em que se pesquisa e se discute a avaliação de infratores há mais tempo, a ciência tem contribuído no sentido de promover a implantação de sis-temas em que a coleta e a interpretação de informações sobre o jovem obedecem a determinados quesitos e segue padrões, ou seja, é sistemática, sendo que um dos incontornáveis aspectos considerados para a realização dessas avaliações é a “do risco de reincidência”.

Obviamente que a proposição de “avaliar o risco de reincidência” é controversa e, por isso, merece muita reflexão e estudos. A expressão por si remete a uma rea-lidade de incerteza, sobretudo se se trata de adolescentes, uma vez que compõem um grupo muito heterogêneo e que estão em franco desenvolvimento, transformação. Ademais, a expressão e a prática de avaliar “risco” suscita o problema ético relaciona-do à predição de problemas humanos, na direção do que colocam Mrazek e Haggerty (1994), ao abordar o perigo da identificação precoce de indivíduos e sua consequente rotulação como estando a risco3.

3 Esse fato, por vezes, justifica a resistência de alguns profissionais a essa abordagem. Contudo, é preciso levar em conta que em termos profissionais o tempo todo está se diagnosticando e sugerindo tratamentos,

45Algumas das demandas do direito à psicologia na área da infância...44 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Contudo, focando tão somente o âmbito da Justiça concernindo aos adolescen-tes infratores, não se pode esquecer que, no Brasil, a partir do momento que o jovem é considerado autor de um ato infracional, esse é avaliado de diferentes formas, por meio de métodos os mais variados, e a partir daí, se tomam decisões que afetam de forma radical a sua vida. Assim, a possibilidade de conhecer fatores associados ao aparecimento e ao incremento da problemática do engajamento de adolescentes com atividades ilegais/criminais pode orientar a aplicação de medidas e a execução de programas eficazes, com vistas a evitar a reincidência de adolescentes que apresen-taram a conduta infracional (prevenção secundária), bem como orientar a proposição de políticas e programas que visem reduzir o aparecimento de novos casos em meio a indivíduos considerados vulneráveis (prevenção primária). Não se pode negar que os estudos epidemiológicos e longitudinais demonstram a possibilidade de predizer, com margem de segurança satisfatória, o desenvolvimento de determinadas proble-máticas psicossociais, a partir de indicadores consistentes de risco, o que oferece pistas relevantes para a prevenção, que não podem ser desprezadas (KERNBERG; WEINER; BARDENSTEIN, 2003).

Lavoie, Guy e Douglas (2009) citam que a Organização Mundial da Saúde estimou que, no ano 2000, aproximadamente 1,66 milhões de mortes ocorreram em razão da violência interpessoal e apontam a avaliação de risco de reincidência em eventos violentos como o caminho viável para conter o alto custo humano e financeiro que a violência representa nos dias de hoje. Os autores enfatizam que a aposta na avaliação de risco é muito alta, e que o custo associado aos erros são sérios porque a avaliação implica importantes valores sociais, como a proteção da liberdade pública e individual. Afirmam, contudo, que após três décadas de muitas mudanças e evolu-ção, o resultado de muitas pesquisas identificando fatores de risco específicos, com associação empírica robusta com vários tipos de trajetórias, fornece evidências da habilidade de se prever a reincidência infracional com muito mais precisão. Portanto, se bem conduzida, a avaliação tem o potencial de avaliar e administrar o risco de vio-lência futura e, mais do que isso, pode ter um importante papel também na prevenção da violência.

Vários países já adotaram essa perspectiva e passaram a investir no desen-volvimento de um processo integrado de avaliação e de intervenção junto a adoles-centes que praticam atos infracionais. Entre eles podemos citar os Estados Unidos, por exemplo, onde, apesar da não existência de um sistema único de Justiça Juvenil, segundo Schwalbe (2008), a utilização da avaliação de risco para justificar decisões sobre sansões e intervenções dos sistemas de justiça juvenil cresceu de 33% para mais de 86%.

O Canadá, cujos princípios do sistema de justiça juvenil são os de proteger a sociedade, reforçar valores sociais e dar ao jovem a oportunidade de ser um cidadão responsável e produtivo (CANADÁ, 2009), também utiliza instrumentos construídos para avaliar risco e necessidades, desde a avaliação preliminar do adolescente, para auxiliar no processo de intervenção junto ao adolescente em conflito com a lei e, no caso da avaliação pós-sentença, com o objetivo de apontar o nível de serviço

sejam os métodos adotados para isso mais ou menos explícitos. Assim, cientificamente, deve-se primar pela busca de parâmetros que ofereçam tais diagnósticos e seus correspondentes tratamentos do modo mais apropriado possível.

necessário, bem como de propor programas fundamentados nas necessidades do jovem (HANNAH-MOFFAT; MAURUTTO, 2003; CORRECTIONAL SERVICE CANA-DÁ, 2008).

Entre os Estados e Territórios australianos existem muitas diferenças nos siste-mas de justiça juvenil, porque também lá, como nos Estados Unidos, cada um deles tem legislação própria (AUSTRALIAN INSTITUTE OF HEALTH AND WELFARE, n.d.). No entanto, a região oeste da Austrália, influenciada pelo modelo norte-americano, desenvolveu-se uma metodologia de avaliação de risco de reincidência que conside-ram com uma etapa importante na gestão do caso (MALLER; LANE, 2002).

No Reino Unido, a Inglaterra e o País de Gales possuem um sistema de avalia-ção de adolescentes que infracionam conhecido como OASys (Offender Assessment System) que consiste em um processo padronizado de avaliação, cujo objetivo é aferir a probabilidade de o adolescente voltar a ter outras condenações, identificar e classificar os adolescentes infratores de acordo com as necessidades, de modo a construir um plano de supervisão e execução de medida (NATIONAL PROBATION SERVICE, 2003).

Os esforços feitos, nesse país, para o desenvolvimento da avaliação de risco têm permitido a elaboração de instrumentos com níveis cada vez melhores de valida-de preditiva e utilidade clínica, que contribuem com as decisões no âmbito da justiça juvenil, tanto no que se refere ao nível de intervenção necessário, considerando a medida judicial, quanto com relação às necessidades, no adolescente que pratica ato infracional, que precisam ser priorizadas pela intervenção de ajuda.

OS MÉTODOS DE AVALIAÇÃO DE RISCO

De acordo com a literatura científica, os métodos para avaliar risco de reinci-dência em adolescentes são os julgamentos clínicos não estruturados, as avaliações atuariais e o julgamento clínico baseado em um processo atuarial (ou método clínico estruturado). Cada um deles apresenta vantagens e desvantagens. A avaliação clí-nica, por exemplo, tem a vantagem de trazer à luz as características pessoais do adolescente e as dimensões afetivas e relacionais, o que fortalece a perspectiva da “personalização” no tocante às intervenções que devem ser realizadas com ele. Con-tudo, pelo fato de não ser estruturada, essa forma de avaliação padece da falta de referência a dados comprobatórios e, nesse sentido, um mesmo profissional pode-se dar ênfase a inúmeros aspectos, sem que tais aspectos estejam de fato associados à “delinquência”, ainda que relevantes. Por essa razão, a avaliação clínica não es-truturada, para ter validade com relação ao que se pede, no Judiciário, no tocante à aplicação das medidas socioeducativas, requer profissionais extremamente experien-tes (HUSS, 2011).

No que se refere aos métodos atuariais, as vantagens são as de serem rela-tivamente fáceis a manejar, na medida em que indicam a necessidade de busca de informação em torno de fatores/dimensões específicas. Por isso, permitem a orga-nização e a padronização da coleta, o que favorece enormemente a fidedignidade entre dois ou mais diferentes avaliadores, e propicia uma síntese e a comparação dos resultados obtidos a uma norma. O sistema atuarial, entretanto, produz resultados que precisam ser sempre tomados com cautela quanto à capacidade preditiva relativa

47Algumas das demandas do direito à psicologia na área da infância...46 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

ao risco de reincidência, de modo a evitar posicionamentos rígidos, classificatórios, sem que se faça nuances de natureza clínica (HUSS, 2011).

Posto isso, o sistema clínico estruturado é o que traz mais vantagens, pois a junção dos procedimentos clínicos e atuariais diminui o impacto das desvantagens presentes para ambos isoladamente. No presente trabalho, explana-se sobre um instrumento específico de avaliação de risco que tem sido investigado em pesquisas no GEPDIP, denominado Inventário de Nível de Serviço para Jovens / Gestão de Caso (Youth Level of Service / Case Management Inventory - YLS/CMI) (HOGE; AN-DREWS, 2005; ANDREWS; BONTA, 2006).

Baseando-se nas evidências sobre a existência de diferenças individuais em termos de trajetória de desenvolvimento da conduta delituosa, e da associação dessas a fatores relacionados seja à emergência e/ou à persistência do problema, os autores responsáveis pelo desenvolvimento do YLS/CMI propuseram um modelo que denominaram Psicologia da Conduta Criminal (PCC), cujo interesse maior era o de fornecer subsídios para o desenvolvimento de programas de prevenção e de tratamento, centrando a atenção nos fatores de risco ativos, ou seja, aqueles mais propriamente relacionados à probabilidade de repetição do comportamento. Com esse objetivo, os autores identificaram, a partir de inúmeros estudos de meta-análise, as dimensões de risco que apresentavam associação mais robusta com a persistên-cia da conduta criminal. Seriam esses: as atitudes e orientações, a associação com pares antissociais, o histórico de comportamento antissocial e os traços de persona-lidade, os quatro fatores com maior capacidade de predição. A família, os índices de realização escolar e no trabalho, o uso do tempo livre e o abuso de álcool e outras drogas seriam os quatro outros fatores com boa capacidade de predição.

Os autores reconhecem que há alguns limites no conhecimento empírico sobre o tema, ainda pouco documentado em alguns aspectos como, por exemplo, os mo-deradores específicos de variáveis da conduta criminal (ou seja, aquilo que faz variar o impacto de um fator de risco), ou os efeitos do meio social na conduta criminal. Asseguram, no entanto, que a escolha dos fatores de risco tem base empírica sólida, afirmando desconhecer qualquer estudo de corte transversal ou longitudinal no qual pelo menos um dos quatro fatores acima não seja indicado como preditor de reinci-dência, sendo que, na maioria dos casos, geralmente dois (2) ou mais desses fatores são identificados como preditores mais fortes.

A partir da identificação das oito dimensões de risco, os autores desenvolve-ram o instrumento YLS/CMI com o objetivo de avaliar adolescentes em termos de níveis de risco de reincidência para o comportamento infracional, com vistas a poder também identificar o nível de serviço mais adequado a estes, às suas necessidades e dificuldades. Possibilita, portanto, a identificação de adolescentes apresentando níveis diferenciados de dificuldades associadas à persistência do comportamento infracional, considerando-se a existência de fatores que podem indicar a probabili-dade de o comportamento infracional se repetir (persistir) e de haver agravamento da situação, e concebe que a medida de natureza judicial, se necessária, pode variar em intensidade e metas intermediárias a serem alcançadas. Esse funciona por meio de um levantamento de dados minucioso de informações em torno de indicadores de risco relativos às oito dimensões citadas.

O instrumento enfatiza a ligação entre a avaliação e a gestão de caso e, dentro disso, mais do que aderir ao conceito de risco, reconhece a importância de avaliar o papel das forças/recursos pessoais na formação de uma orientação pró-social e fatores de responsividade às intervenções de ajuda, com o objetivo de maximizar os benefícios do acompanhamento (ANDREWS; BONTA, 2006; BONTA; ANDREWS, 2007). Segundo os autores, a avaliação de adolescentes em conflito com a lei não pode se limitar a fazer julgamentos a respeito da exposição aos fatores de risco asso-ciados à reincidência, mas deve ser também um guia para a intervenção. A predição do comportamento infracional é talvez uma das atividades centrais do sistema de justiça criminal, já que a partir dela deriva a segurança da comunidade, a prevenção, o tratamento, a ética e a justiça propriamente dita. O propósito maior da avaliação de risco, entretanto, deve ser a classificação do infrator em subgrupos similares, tendo como objetivo assinalar o tipo e o nível de intervenção mais adequado a cada caso (ANDREWS; BONTA, 2006).

Nessa perspectiva de avaliação do adolescente, as variáveis associadas ao comportamento infracional assumem a linguagem de “risco”, “necessidade”, “respon-sividade” (responsivity, em inglês) e “ponto forte” ou recursos (strength factors), e são características chaves para programas de intervenção eficazes (ANDREWS; BONTA, 2006; BONTA, 1997). De forma breve, apresentam-se a seguir as definições de tais conceitos, conforme as proposições feitas por Andrews e Bonta (2006):

Risco criminogênico refere-se a características da pessoa e as circunstâncias que a envolvem, relativas às oito dimensões mencionadas, associadas ao aumento da probabilidade de reincidência no comportamento infracional. Esse conceito, se-gundo os autores, envolve dois aspectos principais. O primeiro deles é o fato de ser possível predizer o comportamento, embora não perfeitamente. O segundo aspecto é que o conceito de risco envolve a ideia de combinar níveis de intervenção com o nível de risco, sendo essa a essência do conceito de risco e a ponte entre a avaliação e o efetivo tratamento/acompanhamento. Por exemplo, para um adolescente que apresenta um alto risco de manter o comportamento infracional, a intensidade e a extensão dos serviços de ajuda devem ser maiores, diferindo de um adolescente com baixo risco, quando a intervenção deve ser reduzida ou, em alguns casos, até mesmo dispensada.

Necessidades criminogênicas são os fatores de risco dinâmicos, entendidos aqui como os fatores passíveis de intervenção que, quando modificados, estão asso-ciados a alterações na probabilidade de reincidência criminal. É importante ressaltar que as necessidades não criminogênicas também são dinâmicas, porém, a asso-ciação com a conduta infracional é fraca ou nula. Nessa perspectiva teórica, e em consonância com os princípios de proteção integral da juventude, considera-se que os adolescentes em conflito com a lei também têm direito a uma alta qualidade de serviço voltado à satisfação das outras necessidades (as não criminogênicas), porém esse não deve ser o foco do programa de intervenção. Essa distinção é fundamental quando se pensa em uma intervenção que decorre da aplicação de uma medida de responsabilização judicial. O serviço oferecido nesse contexto dever ter como objetivo reduzir a probabilidade de reincidência e, nesse sentido, a intervenção deve focar os fatores de risco associados ao comportamento infracional, ou seja, as necessidades criminogênicas.

49Algumas das demandas do direito à psicologia na área da infância...48 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

O princípio da responsividade é a consistência do programa de intervenção com vistas à sua adequação à personalidade, às habilidades e ao estilo de aprendi-zagem do adolescente em acompanhamento. Habilidade de leitura, autoestima, nível de ansiedade e motivação para o tratamento são exemplos de fatores de respon-sividade, que incluem também os fatores protetivos (pontos fortes/recursos) como maturidade emocional, interesse em esportes, receptividade ao apoio oferecido pelos adultos, entre outros. Esses fatores não estão necessariamente relacionados à ati-vidade criminal, mas são relevantes para indicar como o jovem reage a diferentes tipos de intervenção, já que a aderência do adolescente ao plano de intervenção é fundamental na redução do risco de reincidência. Os Pontos Fortes (ou recursos) são as características pessoais e circunstâncias de vida que estão associadas à redução na probabilidade de envolvimento infracional. São também chamados de fatores protetivos. Essas características, quando analisadas em conjunto com os fatores de risco, aumentam a validade preditiva da avaliação, uma vez que possibilitam verificar clinicamente a interação entre fatores de risco e de proteção e, no plano da interven-ção, possibilitam focar investimentos no reforço dos aspectos positivos.

Reiterando, nesse quadro teórico, o resultado positivo na redução da reinci-dência para infratores de alto risco, no entanto, é alcançado somente quando o nível de intensidade dos serviços oferecidos for correspondente ao risco. Nesse sentido, níveis intensivos de serviços para infratores de baixo risco, por exemplo, têm efeito mínimo ou até negativo (ANDREWS; BONTA, 2006; BONTA; ANDREWS, 2007). É fundamental sublinhar que “intensidade de serviços” não corresponde de modo algum à “severidade da medida”, no que diz respeito ao aspecto de maior ou menor restrição de liberdade. A intensidade corresponde aos esforços que se faz na direção do jovem, envolvendo frequência de encontros e duração da medida, concernindo também nú-mero de ações e de recursos acionados. Aliás, cumpre informar que, na atualidade, a decisão sobre o nível de restrição de liberdade imposto pela medida judicial, segundo revisões de literatura, vai mais propriamente ao encontro das avaliações de risco de comportamento violento, o que constitui um outro capítulo das discussões e pesqui-sas envolvendo adolescentes infratores (HUSS, 2011).

A importância dada pela ciência ao estudo dos fatores de risco associados à conduta infracional e o nível avançado de propostas de avaliação e de intervenção junto aos adolescentes em conflito com a lei, com base em tais conceitos - risco e necessidade -, em diversas partes do mundo, contrastam com inexistência de traba-lhos de investigação no Brasil sobre o tema. Dentro disso, no GEPDIP temos reali-zado estudos exploratórios sobre a “performance” do YLS/CMI em nossa realidade4, atendo-se, por enquanto, à sua capacidade preditiva no tocante à avaliação de risco e necessidades criminogênicas em amostras de adolescentes infratores que se apre-sentam na oitiva informal no Ministério Público. Os resultados dos quais se dispõem indicam a existência de adolescentes apresentando níveis diferenciados de risco para a persistência da conduta delituosa, em função dos indicares averiguadas nas oito dimensões. Ademais, demonstrou-se que todas as dimensões do instrumento medem

4 Para maior detalhamento de pesquisa realizada consultar Maruschi (2010). Avaliação de adolescente em conflito com a lei a partir dos conceitos de risco e necessidades associados à manutenção da conduta in-fracional. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Departamento de Psicologia, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.

o constructo a que se propõe e que ele possui boa capacidade preditiva (Z= -3,31, p=0,001). Adotando-se 18 como ponto de corte, chegou-se a um nível de sensibilida-de de 76,9% e de especificidade de 66,7%, o que pode ser considerando muito bom para instrumentos que aferem comportamentos. Esses convergem com pesquisas realizadas em diferentes países e mostram que o YLS/CMI se aplica satisfatoria-mente à realidade brasileira, comprovando a base empírica sólida do instrumento. Outros estudos são necessários para confirmar os resultados iniciais e para explorar os outros aspectos preconizados no instrumento, além do risco de reincidência.

Em suma, constatou-se a possibilidade de desenvolver instrumentos espe-cíficos de avaliação clínica estruturada para adolescentes infratores, adaptados a nossa realidade, observando-se que esse pode oferecer subsídios para minimizar a discricionariedade na forma e no rigor na aplicação de medidas socioeducativas, além de auxiliar a ajustar a medida às necessidades / dificuldades dos adolescentes.

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A RESSURGÊNCIA DA TIRANIA COMO ELEMENTO ORIGINÁRIO DA POLÍTICA*

Paulo EndoPsicanalista, Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP, pós-doutorado CEBRAP-CAPES, membro do Laboratório de Psicanálise, Arte e Política, do laboratório de Estudos sobre a intolerância e do GT Psicanálise: Política e Cultura. Expert junto ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional e membro do Grupo de combate à tortura e à violência institucional da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Talvez surpreenderia a alguns reconhecer no seio dos regimes democráticos contemporâneos elementos presentes em regimes tidos como ultrapassados, supe-rados ou mesmo esquecidos. Todavia, determinadas atribuições dadas ao regime político brasileiro, por exemplo, como não estado de direito, juridicamente constituído, mas que não se consolida na prática cotidiana e nas interações sociais,1 ou democra-cia disjuntiva que acumula conquistas sociais, políticas e jurídicas formidáveis com graus altíssimos de desrespeito a essas mesmas conquistas2 ou ainda, como sugeriu Angelina Peralva, democracia paradoxal em que a melhoria de alguns índices sociais como universalização da educação básica, melhoria do poder de consumo, urbaniza-ção das favelas, etc. não conduziram a uma maior ou mais consistente participação política, mas ao que ela denomina de individualismo de massa3. Essas ponderações indicam uma compactação entre formatos de organizações políticas distintas e apa-rentemente antagônicas, convivendo lado a lado e produzindo efeitos estapafúrdios e inconciliáveis. Ao mesmo tempo tais situações paradoxais geram letargia e impotên-cia diante da constante derrocada discursiva que se sucede na tentativa de conferir figuração para o imensurável, o irreconhecível, o irrepresentável.

O irrepresentável talvez seja particularmente interessante do ponto de vista da psicanálise, não como decorrente da experiência traumática tal como estamos

1 Cf. MENDEZ, J.E., et al. (2000).2 Cf. CALDEIRA, T., p. R (2000).3 Cf. PERALVA, A. (2000).

55A ressurgência da tirania como elemento originário da política54 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

habituados a reconhecer a partir da posição freudiana e da clínica psicanalítica, mas como uma zona tensa, paradoxal e estranha definida pelos sistemas, organizações e instituições cuja representabilidade e representação política é negada. Um cercea-mento dos laços sociais coibidos ao estado precário e débil. Aí é instalada a vida nua e o poder que a instala é o poder soberano.

Correlação que funda a dificuldade inerente em nomear o paradoxo relegando ao silêncio imensas e volumosas pilhas de atrocidades que podemos ver, cheirar, tocar, mas não podemos dizê-las, estancá-las, minorá-las ou combatê-las. São ob-jetos tabu – proibições sem arqueologia e sem história, como observara Freud em Totem e Tabu. Voltaremos a isso adiante. Retomaremos agora algumas proposições de Agamben fundamentais nesse debate.

Agamben retoma a conhecida distinção aristotélica entre bios e zóe, onde zoé é a vida natural, biológica que assemelha o homem aos outros animais, aproximati-vamente a autoconservação em Freud, e bios é a maneira própria do viver do grupo ou de um indivíduo, “uma vida qualificada, um modo particular de vida”, segundo Agamben ([1995] 2002, p. 9).

A bios seria a esfera da vida própria à política, à vida na polis, mas também o reino do prazeroso, do doloroso, o reino das escolhas e da fatalidade, em geral, consequência dessas mesmas escolhas e de um modo particular de viver a vida em comum. Trata-se do reino do desejo e da fatalidade. A bios é, portanto, o reino da ética, da moral onde se exprime e se a manifesta o juízo. Para a zoe, nada disso tem relevância e a própria cultura e a polis são expressões, podemos dizer assim, exteriores à vida biológica e natural.

O ponto de inversão e inflexão de Foucault, para Agamben, foi justamente revelar que a zoé, enquanto tal, fora absorvida, na modernidade, como elemento de controle político e como tal, biopolítico. Ou seja, as próprias condições naturais e animais do homem teriam sido absorvidas no campo dos elementos sobre os quais o poder político também se exerce.

Essas estratégias são tão flagrantes que se tornou necessário discutir, urgen-temente, o que se chama de bioética e que inclui, entre outras coisas, as discussões sobre o alcance do poder médico. Até onde podem ir as intervenções sobre os corpos sob a jurisdição médica no ambiente hospitalar, por exemplo, sabendo de tudo o que a medicina pode fazer com os corpos quando reduzidos à sua conformação biológi-ca? Ou seja, uma vez internados num complexo hospitalar, qual o limite possível e desejável da intervenção médica sobre o meu corpo e quais os instrumentos para controlar e coibir esse poder, a princípio, absoluto? Tendo hoje a medicina condições de revirar nossos corpos e costurá-los pelo avesso, como e porque ela deve ser coagida e controlada no exercício desse poder legítimo que lhe foi conferido para salvar vidas, no âmbito da biopolítica?

Trata-se, em linhas gerais, da mesma discussão que exigiu regulações tar-dias para impedir, por exemplo, que alguém seja internado num hospital psiquiátrico ou manicômio contra a sua vontade, já que até então era isso, precisamente o que ocorria (e ainda ocorre) a partir de categorizações apropriadas e definitivas de caráter médico – os diagnósticos.

As pessoas eram logicamente alijadas do convívio social porque antes um po-der, acima de qualquer outro, e representado pela psiquiatria, definiu que doravante a vida daquele sujeito será vivida sob regime de isolamento, internação e medica-lização constante. Essa intervenção sobre a vida e a esfera biológica é, sob todos os aspectos, como demonstrou Foucault, uma intervenção política onde o próprio corpo biológico tornara-se um elemento de controle heterônomo quanto mais outros supostamente sabem mais sobre ele do que nós mesmos. Submetidos aos que se especializam na dissecação do soma, da fisiologia e da morfologia de nosso ser bio-lógico. Esse saber, sabemos, veicula inerentemente, um poder.

No próprio Foucault ([1961) 1997), se vocês se lembram da História da lou-cura na Idade Clássica, especialmente do capítulo intitulado “O louco no jardim das espécies”, há a demonstração do processo no qual a biopolitização da loucura é triunfalmente realizada. A criação das taxonomias psiquiátricas, onde são inscritas as manifestações da loucura e seus tratamentos, perfazem o sistema de onde a loucura não mais se libertará.

Mas o ponto, a partir do qual Foucault e Agamben se afastam, e que nos in-teressará particularmente, já que é precisamente o ponto onde ele se aproxima de Freud, é o ponto em que, para Foucault, se deveria enfraquecer a noção de soberania nas análises sobre o poder, responsável por manter o protagonismo dos mecanis-mos jurídico-institucionais como ponto de partida e ancoragem nas análises sobre o poder. Foucault propõe o deslocamento para a análise da biopolítica, que passa a ser absorvida no âmbito dos micropoderes, dos dispositivos e das instituições onde esses poderes se exercem e se reproduzem. Ou seja, Agamben não concordaria com a mudança sugerida por Foucault,4 em que as formas de controle jurídico estariam cedendo lugar às formas de controle biopolítico. Mas Agamben também não discorda completamente nesse ponto.

Na verdade, a tentativa de Agamben será demonstrar que a análise do exercí-cio do poder jurídico repousa sobre bases biopolíticas, porém como formação para-doxal em que no próprio direito já se tem instalado os princípios da ativação radical da biopolítica pela via do estado de exceção e da soberania.

Portanto, trata-se de uma radicalização do argumento foucaultiano e não um confrontamento dicotômico ou oposicionista que nos conduziria a optar entre um e outro. No frigir dos ovos Agamben considera fundamental uma reflexão radical sobre a soberania a ser incorporada às teses sobre a biopolítica em Foucault. Agamben ([1995] 2002, p. 13) está de acordo e radicalizará esse argumento foucaultiano “na direção de uma análise sem preconceito dos modos concretos com que o poder pe-netre no corpo de seus sujeitos e em suas formas de vida”. Porém a pesquisa de Agamben se aterá ao “oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucio-nal e o modelo biopolítico do poder” (Ibidem, p.14), que, para ele, fora ignorado por Michel Foucault.

“Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contri-buição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana” (Ibidem, p. 14). Tese que Agamben tratará de

4 Recomendo ao leitor o texto de Laymert Garcia dos Santos (2007), Brasil contemporâneo: estado de exceção?.

57A ressurgência da tirania como elemento originário da política56 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

demonstrar em Homo Sacer I. As correções aqui ao trabalho de Foucault são duas: primeiro deslocando o problema da biopolítica para o campo da análise do poder soberano – o que será realizado a partir da pesquisa sobre o Estado de exceção que remonta ao direito romano arcaico5, depois destacando que a biopolítica não é nem um fenômeno moderno, como quer Foucault, e nem um fenômeno divorciado da análise sobre o poder soberano.

O ponto de tangência entre esses modelos será a análise que Agamben em-preenderá sobre a vida nua, retomando as análises de Walter Benjamin no texto “Para uma crítica da violência”, de 1921. Texto fundamental que receberá, por parte de Agamben, uma correção de princípio. A vida nua, tal como analisado por Walter Benjamin ([1921] 1986, p. 41), se constituiria no advento em que “cessa o domínio do direito sobre o vivente”. Para Agamben, diferentemente de Walter Benjamin, é preciso manter e afirmar o paradoxo: a vida nua consistiria nesse lugar onde só o direito, e exclusivamente ele poderia alcançar o vivente. Lugar de onde a vida foi excluída por sua inclusão, ou seja, onde a vida torna-se matável por obra do poder soberano, juridicamente constituído, e que assim determina, juridicamente, que o vivente seja excluído, aniquilado, destruído, manipulado, etc. Tal exclusão radical só pode se ope-rar por um efeito de uma inclusão radical onde o vivente pertence à esfera da ordem jurídica e só por ela poderá ser excluída. Vive nela e só por ela poderá ser eliminada.

Para Agamben a figura da soberania revela-se como particularmente evidente no seio daquilo que se pode nomear como o estado de exceção e que, orientados psicanaliticamente, poderemos reconhecer na exceção a forma e a expressão do excesso. Exceção, portanto com dois “s” (excessão). Isso nos obrigará a pensar em que a exceção constitui excesso para o psiquismo e quais as consequências dessa disjunção e desse desencontro.

Perseguimos a questão: mas o que, no estado de exceção, constituiria exces-so? O paradigma do estado de excessão, para Agamben são, como sabemos, os campos de concentração. É ali que o indivíduo é reduzido a pura zoé, animalizado, naturalizado biologicamente como corpo privado de sua própria diferenciação e, man-tido nessa zona indiferenciada, absolutamente controlado e absolutamente aniquila-do. Massa disforme aglomerada entre a vida e a morte sem destino e sem fatalidade, porque predestinada ao seu próprio extermínio e à sua própria aniquilação.

A radical assimetria que predefine a absoluta naturalização desses corpos – a serem aniquilados, usados, possuídos, experimentados, cerceados de sua morte, cerceados da possibilidade de proceder ao luto decorrente da vida que levara esses corpos à morte –, é o que se tornara um dos mais constrangedores exemplos sobre a banalização, ou desumanização da morte. Morte sem luto, sem história. Carcaça animal lançada à vala comum sem direito à recomposição psíquica, narcísica e ritual que garante aos que morreram, por intermédio dos que sobreviveram, a reapropria-ção da história do morto por aqueles que ainda vivem e foram testemunhas daquelas experiências causadoras da morte do sujeito.6

5 De maneira geral o direito romano arcaico pode ser datado entre os séculos VIII e II a.C.6 Remeto o leitor aos impressionantes vídeos que documentam o encontro das tropas aliadas com os campos de concentração nazistas. Uma das cenas impactantes é o enterro em massa de dezenas de mortos jogados à vala comum, sob o olhar aniquilado das tropas aliadas que logo após terem desativado

Impedir, negar o luto, o sepultamento é negar aos que participavam daquela vida que se foi o testemunho de uma história que recém termina, dificultando, desse modo o reconhecimento de uma herança simbólica, inscrita na cultura transmissível que, de certo modo, legitima o esforço em continuar vivendo e fazendo história em sua articulação com as pulsões de vida.

Abre-se um hiato no testemunho da própria história, esse hiato não é o efeito de um recalque, mas da aniquilação literal que abruptamente deixa de existir fundan-do o traumático. Experiência que colapsa o ego em suas funções de defesa e impede a rememoração daquilo que se revela como a própria história, que por um colapso mnêmico só pode ser relembrada pelos outros.

Passemos então à proposição do primeiro ponto bastante fundamental na argumentação de Agamben onde o diálogo com Freud é especialmente frutífero. Ele se inscreve no seio da argumentação do livro Homo sacer I, que cotejaremos com Totem e tabu em algumas de suas teses e argumentos.

A articulação entre o poder soberano e a vida nua tem de, necessariamente, passar por uma crítica tanto ao pensamento de Foucault, no que diz respeito ao en-fraquecimento do modelo jurídico nas análises sobre o poder, como vimos; quanto a uma revisão do estatuto jurídico da vida nua, tal como aparecia em Walter Benjamin.

O resultado disso é que a proeminência da soberania ou do soberano não recai sobre uma crítica ao Estado, mas a uma análise do próprio campo jurídico-biopolítico onde se articulam mutuamente soberania e vida nua; o soberano e o homo-sacer como figuras definidas por sua própria indistinção e impermanência. Indistinção que resulta num paradoxo capaz de enraizar essas figuras no centro da vida política e do ordenamento jurídico de forma praticamente inalterável. Essa imutabilidade repre-senta a transcriação de um sistema onde a violência descansa num lugar seguro e onde nada pode atingi-la, protegida que está na interioridade do sistema jurídico e, por essa via, em sua absoluta exterioridade.

Esse deslocamento das análises do poder que migram do Estado para as es-feras cotidianas, micropolíticas e que, para Agamben, são sobredeterminadas pelo campo prévio jurídico definidor, em última instância, da própria vida do ser vivente como vida biológica a ser controlada pelo sistema jurídico, é o fundamento que produ-ziria resultados aparentemente tão dessemelhantes quanto à prisão de Guantánamo, os campos de concentração nazistas, as áreas de desocupação de favelas no Brasil, o poder psiquiátrico e o trabalho escravo contemporâneo encontrado em diversas fazendas de plantio de soja e cana de açúcar no Brasil.

Nada incoerente ou distante dessa análise é fato recente no Brasil em que um juiz, Marcelo Testa Baldochi, dono de latifúndio no Maranhão. Esse juiz fora fla-grado praticando o trabalho escravo em uma propriedade sua próxima ao município de Açailândia. Ele entra na lista suja do trabalho escravo em 29/12/2008. Continua atuando no judiciário do Maranhão. Em janeiro de 2009, em substituição à juíza da

as atividades do campo e vencido a guerra, agora são obrigados a aniquilar a morte do morto, dos seus mortos, sepultando-os como carcaça em vala comum, como os próprios nazistas o fizeram tantas vezes. Uma herança identificatória inultrapassável é deixada pelos nazistas e a pergunta constrangedora: Poder-emos fazer diferente? Permanece sem resposta.

59A ressurgência da tirania como elemento originário da política58 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Comarca de La Roque, remeteu para a esfera federal o processo de Miguel de Souza Resende, um pecuarista também acusado de prática de escravidão, provavelmente a fim de favorecer a prescrição do crime nas idas e vindas entre as esferas estaduais e federais.

O envolvimento do juiz nesse caso, não se constitui em raridade no Brasil, mas o exemplo é interessante para destacar que o protagonismo do judiciário em situações de violação de direitos fundamentais no Brasil revela-se com clareza no momento em que a presença do juiz, não raro, é o que favorece a preservação do estado de exceção, onde toda a suspensão do ordenamento é garantido, precisa-mente pela presença de um agente jurídico, que evita que a justiça e a lei vigorem em regiões anômicas onde o vivente se constitui como escravo – vida nua. A descrição dos lugares em que vivem e trabalham os escravos é em geral constituído de tapera sem proteção e dívidas insolúveis que são contraídas com o comércio realizado na própria fazenda, também de propriedade do fazendeiro, para a compra de comida e materiais de proteção para o trabalho.

Será esse mesmo Juiz Marcelo Testa Baldochi que, ao lado dos policiais mili-tares, participa da desocupação de sua fazenda, para ofender e agredir fisicamente os ocupantes.7

O mesmo exemplo pode ser dado a propósito da aplicação da lei de tortura no Brasil. São frequentemente os juízes que não sentenciam ou reconhecem juridica-mente a tortura, tornando-a letra morta. O poder soberano, juridicamente constituído, da guarida à ilegalidade e se interpõe entre a lei e o corpo do sujeito, afirmando-o como corpo matável, torturável – vida nua.

Nos termos em que Freud analisou o poder tirânico em Totem e Tabu, o homo sacer pode ser traduzido como homem-tabu. Ou seja, como a figura que seria decor-rência do estado pré-linguageiro, pré-político vigente no sistema tirânico. O homem--tabu como a outra face inconsciente nas formações políticas da frátria, como advindo da realização dos primeiros acordos e pactos entre irmãos conciliados pela norma e pela lei. O homem-tabu, o homo sacer seria o anverso do irmão conciliado que para atingir a conciliação teve de matar o tirano, agindo, ele mesmo, como tirano. A lei que brota desse primeiro ordenamento pós-horda, sugerido por Freud é uma lei que se instituiu porque a força para violá-la acabou de demonstrar a sua potência na máxima violência necessária para consumar o assassinato do tirano. O não matarás será um sucedâneo da experiência hiperpotente de ter matado o tirano e, portanto, do risco a que estarão submetidos, doravante, todos os irmãos destinados ao convívio e à esfera desejante e pública que se inaugura entre eles.

Precisamente por isso é que a vigência do tabu carrega nas costas o risco de morte daqueles que violarem o tabu, como se a relação com o tabu fosse portadora de um poder de vida e morte para todos aqueles que o mantém. Vitae necisque potestas (poder sobre a vida e a morte) concedida ao soberano, mas que tem seu fundamento no pater famílias, no poder do pai sobre os filhos, sobre a mulher e sobre os escravos. Poder sobre vida e morte que Freud tão bem reconheceu na estrutura

7 Remeto ao leitor a vários sites de notícias sobre o assunto disponíveis na internet. Acessar especial-mente: http:--www.jornalpequeno.com.br-2009-8-22-Pagina119958.htm e http:--www.reporterbrasil.org.br-exibe.php?id=1481

familiar e no estado de horda, cujo herdeiro imediato é o Complexo de Édipo e os perigos de aniquilamento psíquico que estão em seu bojo. Vida e morte psíquicas como presenças constantes na trama edipiana fundada numa autorização prévia e consagrada: os pais tem poder absoluto sobre seus filhos. Cito Agamben ([1995] 2002, p. 96):

O que a fonte nos apresenta é, portanto, uma espécie de mito genealógico do poder soberano: o imperium (poder dos magistrados/ poder absoluto) do magistrado, nada mais é do que a vitae necisque potestas do pai (pater) estendida em relação a todos os cidadãos.

Nesse mesmo sentido em que Pater romanos traduz-se por imperador Roma-no. A compreensão de Totem e Tabu sem essa consideração me parece incompleta e ingênua.

A esse propósito Freud, ([1913] 1981, p. 1759) comenta que “os primeiros sis-temas penais resultam enlaçados com o tabu”,8 ou seja, o sistema penal nasce sob o signo de um fracasso prévio de regular o inconsciente e dominá-lo, sendo essa a sua ambição mais ousada e impossível. Tal como o tabu, de algum modo procura fazê-lo.

Se o sistema penal nasce enlaçado com o tabu e se os tabus veiculam uma ordem conflitiva e compartilhada que não pode ser esclarecida (proibições sem gene-alogia) então haveria um fundo paradoxal na própria lei que faria coincidir a sentença com a fundação de um novo tabu, para o qual não haveria perdão. Daí o fracasso sucessivo de reintegração social dos condenados à pena de prisão nas prisões do mundo inteiro. Isso não só porque eles são condenados exclusivamente pelos crimes que cometeram, mas porque eles são condenados a expiar um conflito inconsciente não explicitado. Matando o homem-tabu mata-se o conflito que ele representa. O homo sacer é um meio, tanto para o soberano quanto para seus súditos. Com ele se realiza o fantasma da unidade indivisível em que ele figura como excrescência, resto e paradoxo.

No processo de cumprimento de pena o que fica recalcado então é o fim da sentença, que jamais termina, mesmo após o criminoso ter judicialmente cumprido sua pena. Ele se transmuta em tabu, sacer, corpo matável9 que não pode ser re-conduzido ao convívio social e político assim como um tabu não pode ser desfeito sem que se esclareça o conflito inconsciente que ele oculta. O que se projeta sobre o corpo do homo sacer é o próprio conflito. Precisamente por isso é que a projeção

8 Cf. Tótem y Tabú, no capítulo “Algunas concordancias entre la vida de los neuróticos y la de los salvajes”.9 Sabemos que Giorgio Agamben, não considera as prisões como o exemplo do estado de exceção e sim os campos de concentração, mas novamente valeria reler a situação complexa e peculiar brasileira em que as execuções extra-judiciais-esquadrões da morte e penas de morte-dentro e fora das prisões - são expe-diente comum que contam ainda com forte apoio popular, implícita ou explicitamente. Isso indica não só que a sentença jurídica torna-se não raro uma sentença de morte, como a recondução ao campo da esfera social e política como protagonista está praticamente encerrado. O homem sentenciado é potencialmente o homem-morto- matável e tabu. Aquele que não pode ser tocado, assimilado e reconhecido a não ser como ex-criminoso (fora da lei). Aquele que violou uma ordem que ninguém deveria violar (tal como no pacto entre os irmãos da horda). A violação dessa ordem fundada no recalque, supostamente, põe em risco de vida todos os membros da comunidade.

60 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

tem força suficiente para constituir um tabu e não tão somente um monumento a ser idolatrado e preservado ou um inimigo a ser odiado e destruído.

Para a Psicanálise, o homo sacer revela-se como homem-tabu. Figura para-doxal definida com a própria instauração da lei e do ordenamento que revela a face latente da frátria, onde uns são menos irmãos que outros. Aquele que não deve ser tocado porque sujo, doente e malcheiroso pode, todavia, ser eliminado. Figura ao mesmo tempo psíquica, jurídica, política e social, que hipercondensa falsas distin-ções que sob seu efeito desaparecem.

O homem-tabu é aquele cingido pelas proibições de toda humanidade e que por isso mesmo não pode ser reconhecido como humano, nem desumano. Seu corpo é a evidência material de algo que não se deve tocar, salvo se e com o objetivo de eliminá-lo. Toque redentor que faria desaparecer uma certa representação do conflito – o corpo do homo sacer – mas que evita fazê-lo mantendo-o em relativa evidência tal como o sintoma. Nesse sentido o homem-tabu, o homo sacer é a manifestação do sintoma que, como tal deve ser preservado. É o resultado de uma mediação fracas-sada entre mecanismos de defesa psíquicos, sociais, políticos e jurídicos que entram em jogo para preservar os desvãos por onde escoa a pulsão de morte, sobre o leito dos que, como mortos-vivos, podem persistir sem existir.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Homo Sacer I: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1995, 2002.

BENJAMIN, W. Para uma crítica da violência. Documentos de cultura, documentos de barbárie. S. Paulo: USP, 1921, 1986.

CALDEIRA, T.P.R Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Edusp/editora 34, 2000.

FREUD, S Totem y tabu. In: Obras Completas de Sigmund Freud, T. II. Madrid, Biblio-teca Nueva, 1913, 1981.

FOUCAULT, M. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1961, 1997.

SANTOS, L.G. dos. Brasil contemporâneo: estado de exceção?. In: OLIVEIRA, C.; RIZEK, C.S. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007, p.289-352.

MENDEZ, J.E, et al. Democracia, Violência e Injustiça: o não estado de direito na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

PERALVA, A. Violência e Democracia: o paradoxo brasileiro, São Paulo: Paz e Terra, 2000.

O ENCONTRO ENTRE A PSICANÁLISE E O DIREITO NAS PRÁTICAS JUDICIAIS1

Mara CafféPsicanalista. Doutora em Psicologia pela USP.

Agradeço a oportunidade desta conversa com os profissionais da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, cujo propósito é a abertura para um diálogo interdis-ciplinar. Apresentarei, a seguir, algumas ideias sobre uma possível colaboração entre a Psicanálise e o Direito no âmbito das práticas judiciais. Antes de tudo, é preciso considerar que esta colaboração requer preparos, uma vez que ela não acontece es-pontaneamente, exigindo um esforço de adaptação das duas áreas em jogo. Trata-se, afinal, das relações entre dispositivos teórico-metodológicos muito diferentes, quais sejam, a escuta analítica e a função normativa jurídica. Como interagem estes dois dispositivos? Quais os efeitos produzidos em seu cruzamento? Questões complexas, ainda mais porque a relação entre ambos não se mostra apenas harmônica, coope-rativa, mas também conflitiva, disruptiva, tensa, estabelecendo jogos de mútuo reco-nhecimento e recusa. Em meus estudos, busquei identificar cada um dos dispositivos em jogo – a escuta analítica e a função normativa jurídica, o modo como se constroem na prática concreta dos seus agentes, e a peculiar relação que podem estabelecer no intuito de um trabalho conjunto. É sobre isso que gostaria de lhes falar hoje.

Os dispositivos referentes às práticas da psicanálise e do direito se assentam sobre uma certa noção de conflito e uma lida particular com este. Vamos delimitar, de modo geral, os topos em que se situam os referidos conflitos. A esfera jurídica lida com o conflito intersubjetivo que se expressa no plano da comunicação social, entre sujeitos cujos interesses colidem, gerando o que o direito chama de “alternativas in-compatíveis” e que pedem uma decisão. No caso da psicanálise, o conflito em pauta é aquele que se manifesta no plano da subjetividade, como oposição, no interior de um mesmo sujeito, de representações e forças psíquicas contrárias que procuram satisfação.

Ocorre que os conflitos específicos que serão abordados pelo psicanalista e pelo jurista não se encontram prontos, já formulados antes destes agentes chegarem.

1 Utilizei, neste artigo, algumas passagens do meu livro Psicanálise e Direito: a escuta analítica e a função normativa jurídica (São Paulo: Quartier Latin, 2003).

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Tanto na Psicanálise como no Direito, todo um conjunto de ações concretas é mobili-zado para instituir, respectivamente, o conflito jurídico e o conflito psicanalítico (mais adiante denominado “neurose de transferência”). Assim, tais conflitos se processam junto das soluções que se lhes oferecem, e decorrem de experiências bastante complexas, que compõem o quadro específico do trabalho de cada área. Tentarei demonstrar que a prática psicanalítica procura dispor o conflito que se lhe apresenta em termos interpretáveis, conforme o peculiar manejo clínico das relações com o pa-ciente, enquanto que a prática do direito busca dispor o conflito em termos decidíveis, conforme submete o conflito às normas jurídicas, ao seu dever ser. Emergem, assim, respectivamente, o conflito psicanalítico e o conflito jurídico.

As expressões “termos interpretáveis” e “termos decidíveis” indicam as metas visadas pelos dispositivos institucionais. Na prática clínica psicanalítica, o conflito interpretável é, pois, o conflito fabricado artificialmente por meio de uma série de pro-cedimentos bastante peculiares do analista. No caso das práticas jurídicas, procurar as condições de decidibilidade dos conflitos significa colocar o conflito que chega à instância judicial, visto como “alternativas incompatíveis”, nos termos de um conflito jurídico, ou seja, “alternativas decidíveis”. O conflito confrontado à norma, ao seu “dever-ser”, é o que processa o conflito em conflito jurídico, tornando possível a deci-são jurídica. Conforme as teorias pragmáticas do direito, o ato decisório põe um fim ao conflito jurídico, termina-o, ou seja, impede-o de continuar.

OS PROCEDIMENTOS PSICANALÍTICOS

O conflito em questão na clínica psicanalítica não é o dilema pessoal que pos-samos desenvolver entre duas posições conscientes antagônicas, e sobre as quais o sujeito consegue discorrer de modo razoável e compreensível. O conflito em questão na clínica psicanalítica é aquele que, em geral, dá margem à constituição de um sin-toma, conflito cujos termos se referem a conteúdos psíquicos inconscientes, sobre os quais o sujeito não detém um conhecimento direto. São conflitos cujas causas não são identificáveis pelo sujeito, pois os aspectos inconscientes nunca se deixam apreender direta e explicitamente pela consciência. Freud entendeu as formações sintomáticas como respostas a situações conflitivas intoleráveis ao sujeito, como negação e ao mesmo tempo expressão de desejos inconscientes, por um lado, como defesa e ao mesmo tempo realização parcial de desejos inconscientes, por outro. De acordo com a Psicanálise, a dissolução de um sintoma se dá a partir do reconhecimento dos seus sentidos, que apontam sempre para as causas afetivas e inconscientes que estariam recusadas ao próprio sujeito. Nesta linha, o psicanalista aborda os conflitos na pers-pectiva de obter um sentido, sentido que está inicialmente cifrado no sintoma, sentido disfarçado, que não se oferece desnudo e imediatamente à percepção dos sujeitos.

Mas quais os procedimentos pelos quais se chega aos sentidos originários do sintoma? O que faz o psicanalista? Pois bem. O psicanalista realiza um manejo bastante peculiar das relações que ele mantém com o paciente, as chamadas rela-ções transferenciais. No caso da clínica com as neuroses (não considero, aqui, o tratamento de outras psicopatologias como a psicose ou a perversão), este manejo leva à formação da “neurose de transferência”, formação típica da situação de aná-lise, espécie de sintoma que toma o campo das relações entre paciente e analista. Este novo sintoma, construído no vínculo com o analista, tem todas as características

dos sintomas ordinários do sujeito, de sua neurose, ou se quiserem, de sua neurose infantil (pois toda neurose adulta se fundamenta na história infantil do sujeito, momen-to em que se estabelecem as nossas fundações psíquicas). Os sentidos conferidos a esta experiência transferencial, que é a neurose de transferência, têm o efeito de dissolvê-la, em grande parte, e isto coincide com a cura. Então, estabelecida a neu-rose de transferência, o que se pretende é justamente a sua dissolução, por meio do reconhecimento e elaboração de suas causas inconscientes e afetivas. Vamos ver mais claramente como se constrói a neurose de transferência.

Basicamente, o método psicanalítico se dá num âmbito de conversas que se caracteriza pela manutenção da “regra da associação livre”, regra fundamental do processo de análise. De acordo com a regra fundamental, o paciente deve comuni-car ao analista tudo o que lhe vier à mente, sem se preocupar com os julgamentos da moral e com as exigências de um discurso lógico racional. Em contrapartida, o analista deve manter uma “escuta flutuante” acerca do que diz o paciente, sem dirigir a atenção para este ou aquele aspecto do seu discurso, nem se preocupar com o re-gistro concatenado das informações que surgem na sessão. Além disso, até onde for possível, o analista deve manter uma posição de “abstinência” em relação ao pacien-te, não oferecendo informações diretas sobre sua vida, seus valores e crenças, não respondendo às demandas do paciente, mas reconhecendo-as e dando-lhes suporte, e também não decidindo sobre os assuntos a serem tratados na sessão, deixando que o paciente escolha, ele mesmo, o roteiro da conversa. Desse modo, o paciente encontra um campo relativamente livre para as suas projeções características, não sendo influenciado em demasia pelas informações e demandas vindas do analista, até onde isto é possível. A utilização do divã pelo paciente, retirando a comunicação do habitual “face a face”, é um recurso técnico que auxilia, em parte, a posição de abstinência do analista, além de propiciar melhores condições ao cumprimento da regra fundamental da associação livre.

Pois bem. Podemos observar que estes procedimentos do analista instituem uma situação comunicativa particular. Por exemplo, com o recurso do divã são re-tirados do contato interpessoal os sinais das expressões fisionômicas, importantes norteadores do vínculo social trivial que indicam as respostas ou repercussões do que está sendo vivido entre os interlocutores. A isto se acresce o relativo “silêncio” do analista que, guardadas as diferenças de estilo, geralmente se pronuncia para pedir esclarecimentos ou para efetuar apontamentos e interpretações. Assim, no atendi-mento clínico não se verificam o modelo estímulo-resposta, a cadência e o ritmo que marcam os contatos verbais corriqueiros. Tais procedimentos, justificados como recursos ao estabelecimento da regra da associação livre, instituem uma verdadeira crise nos parâmetros de objetividade que regulam o contato social, promovendo ao mesmo tempo – e por isso mesmo - um “alto grau” de subjetivação que é caracterís-tico de uma análise. Na ausência dos sinais objetivos que reasseguram os vínculos interpessoais, o paciente responde com os seus recursos defensivos habituais, o que evidencia a sua neurose. Portanto, tal crise é necessária; sem ela, não há tratamento psicanalítico. E é importante dizer que esta crise atinge também o analista, aspecto que não desenvolverei no presente texto.

Um outro provocador da crise dos parâmetros de objetividade é o estabele-cimento da regra fundamental. Do ponto de vista da posição discursiva do pacien-

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te, podemos observar que a regra da associação livre apela para a produção de pensamentos que fogem ao modelo do pensamento lógico-racional da consciência, acionando os recursos da fantasia e do devaneio, formações mais próximas do pen-samento inconsciente. Neste sentido, aqui também se vêm constrangidos os aspec-tos racionais da comunicação analítica.

Nesta linha, ainda, podemos pensar que a crise dos referentes de objetividade no vínculo analítico produz uma experiência de temporalidade muito particular, que a retira dos termos lógico-racionais e a institui conforme outros parâmetros, aqueles do tempo do aprè-coup, da ressignificação, o que torna possível a construção da “neurose de transferência”, que traz para o presente a repetição de experiências pas-sadas e, ao mesmo tempo, inclui a produção de algo novo. Eis como Freud, em uma de suas definições, apresenta a cura, como liquidação da neurose primitiva a partir da liquidação da neurose de transferência, neurose artificial construída segundo os recursos da análise.

Com base nestas reflexões, cheguei a seguinte conclusão: a prática clínica psicanalítica visa instituir, através da crise de certos referentes de objetividade e ra-cionalidade, uma determinada subjetivação do discurso conflitivo, cuja expressão é a neurose de transferência, conflito este posto agora ao alcance de suas operações transformadoras (da psicanálise), na direção da cura. Porém, é preciso considerar que a crise de objetividade e racionalidade presente nas práticas psicanalíticas não destitui, completamente, esses parâmetros do contato entre os sujeitos, uma vez que tais parâmetros são intrínsecos e constitutivos de qualquer experiência humana. O que ocorre é que os parâmetros de objetividade e racionalidade ficam de tal modo constrangidos na situação comunicativa analítica que fabricam uma experiência sin-gular de subjetivação. A experiência de objetividade que se constrói nesta prática se-ria o próprio saber que resulta do processo da análise, aquilo que o paciente sustenta como a verdade do seu desejo e como narrativa da sua história singular, e também a própria teoria psicanalítica, que assim se produz no engenho da clínica.

OS PROCEDIMENTOS JURÍDICOS

Numa visão pragmática, o direito tem como objetivo decidir os conflitos sociais com o menor grau de perturbação possível e orientar a ação humana por meio de um procedimento normativo, sancionador e coercitivo. O dispositivo institucional do direito é a função normativa jurídica. Vamos surpreendê-la nas condições concretas do seu exercício.

Na abertura de um processo judicial, as chamadas “partes” devem, antes de mais nada, constituírem seus representantes jurídicos, os advogados, que são pro-fissionais especializados no manejo da linguagem jurídica, linguagem técnica dotada de grande formalidade e dramaticidade, que segue rituais e protocolos bastante es-pecíficos. Deste modo, no âmbito do processo, as partes não falam diretamente sobre seus conflitos, exceto nas audiências, ocasiões em que se apresentam pessoalmente ao juiz. Os advogados, então, no exercício de suas funções, tomam o discurso de seus clientes e elaboram estratégias de defesa e/ou acusação, o que produz um grau de modificação ao que foi trazido inicialmente. Há como que uma “descrição” do conflito das partes nos termos jurídicos. Porém, essa “descrição” não resulta de uma tradução pura e simples, como se houvesse uma clara equivalência entre cada

termo da linguagem mundana a partir da qual os litigantes expressam seus conflitos e os termos da linguagem jurídica, pela qual conversam os profissionais do direito. A “descrição” do conflito das partes, que a rigor culmina com a decisão do juiz, constitui, afinal, o cerne da prática jurídica.

Assim, o discurso das partes sofre distorções, acréscimos maiores ou meno-res, tudo para compor e se ajustar à estratégia da argumentação jurídica. Para isto, a parte deve renunciar a falar em primeira pessoa. Ela outorga a responsabilidade da sua fala a um outro, o advogado.

Dando sequência aos procedimentos jurídicos, observamos que as partes são obrigadas a se levarem em conta no plano da comunicação objetiva. Um processo judicial muitas vezes se inicia pelo fato da comunicação entre os sujeitos estar, por su-posto ou de fato, interrompida. A regra que se quer garantir, então, no trânsito jurídico é a chamada regra da exigibilidade da comunicação, ainda que a interlocução entre as partes seja vista como discussão-contra. A discussão-contra se caracteriza pelo fato de que o objeto da conversa é sempre dilemático, conflitivo, posto na condição de um impasse. O direito deve garantir condições para que esta discussão-contra não se interrompa, e que transcorra mediante regras claras, num contexto de comunicação racional e objetiva. Pois bem. Para isto, é necessário que a decisão sobre o dilema das partes seja formulada por um terceiro, o juiz, que é uma autoridade altamente ins-titucionalizada. Deste modo, as partes se eximem de formular a decisão sobre seus conflitos, sendo esta uma exigência mesma da prática jurídica. Desresponsabilizadas da tomada de decisão e deslocadas de falarem diretamente sobre suas questões, delegando este papel aos respectivos advogados, as partes submetem-se, assim, aos benefícios da instituição em foco.

Podemos observar que, ao contrário do que ocorre na psicanálise, a operação central nos procedimentos jurídicos define-se por uma racionalização e objetivação do discurso conflitivo das partes, acompanhadas de uma intensa “dessubjetivação”, de onde resulta o conflito jurídico. Entretanto, é preciso considerar que, a rigor, não há conflito humano definitivamente dessubjetivado. Toda e qualquer experiência hu-mana comporta uma subjetividade particular, de modo que o termo dessubjetivação não implica, aqui, ausência de subjetividade. Assim, utilizo este termo no sentido de que o conflito jurídico é processado na condição de um drástico afastamento de suas condições afetivas originárias, de seus parâmetros de singularidade, e pela forte racionalização dos seus termos. Vamos ver outros exemplos disto.

No processo judicial, o discurso das partes deve conformar-se a um grau má-ximo de objetividade, o que se garante, por exemplo, na exigência de prova jurídica aos fatos que são alegados. A prova constitui um modo de produção da verdade, e se realiza conforme meios específicos e controlados. O juiz decide os meios e as con-dições para a obtenção de prova, bem como os prazos para isto. O que não resiste ao dever de prova é descartado do processo. Assim, os elementos muito pessoais da interpretação das partes acerca do que ocorre deverão processar-se segundo os mecanismos racionais da instância jurídica, e se não “resistirem” ao dever de prova não encontram trâmite no processo judicial. Consequentemente, nem tudo pode ser conflito no âmbito judicial. Eis um poderoso dispositivo de “varredura” ou transforma-ção dos aspectos mais subjetivos presentes no discurso das partes. Isso não quer dizer que os afetos e a subjetividade desapareçam da experiência das partes – aliás,

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muito pelo contrário! O que procuro esclarecer, aqui, é o modo de construção do conflito jurídico sobre o qual o juiz vai agir.

Podemos ainda considerar que a prova jurídica é, na realidade, uma exigência na constituição mesma do discurso judicial, um dos seus elementos constantes, e não apenas uma requisição pontual do juiz. Basta observarmos as “alegações” das par-tes, formação discursiva estruturada de modo a apresentar provas do que se afirma.

Outra característica da comunicação judicial refere-se à propriedade do juiz de fazer com que o conflito seja suspenso e mantido ao mesmo tempo, “o que dá tempo para que seja discutido” (FERRAZ JR., 1973, p. 68), pois instaura uma temporalida-de específica no andamento da comunicação. Trata-se dos recursos de prazo, dos estabelecimentos de tempo em que a emissão fica separada da recepção por longos períodos. Assim, uma parte se manifesta por meio de petição e dias se passam até que a outra parte formule sua resposta, ou até que o juiz defira sobre o que foi juntado. De modo geral, o tempo que marca os processos judiciais é referido como um tempo lento e burocrático. Além disso, não há atropelos de fala, exceto nas audiências, eventualmente, quando a discussão pode ficar acalorada. Mesmo assim, o juiz não permite que isto se prolongue, sendo esta uma regra da comunicação judicial.

Vemos, mais uma vez, que o juiz assume deliberadamente, e de acordo com a demanda e o consentimento das partes, o lugar de saber e decisão sobre os conflitos em pauta, diferentemente do psicanalista, cuja posição consiste em retornar o saber ou a questão ao próprio sujeito. De qualquer modo, em ambos os casos, na psica-nálise e no direito, temos uma máquina discursiva imensa operando na produção de determinados conflitos como modo de resolver... conflitos!

O ENCONTRO ENTRE OS DISPOSITIVOS DA PSICANÁLISE E DO DIREITO

A psicanálise e o direito, práticas opostas em muitos aspectos, se aproximam ao menos neste ponto: ambas procuram colocar o conflito que se lhes apresentam nos termos de um novo conflito, a ser fabricado pelos próprios dispositivos institucio-nais, conflito este que se quer ter na propriedade singular de termináveis. Para tal, mobilizam procedimentos que impõem condicionantes aos discursos dos sujeitos, que os transformam, os restringe em determinados aspectos e estimula-os em outros, força-os em certa direção, compondo um jogo institucional de reconhecimentos e violência.

Uma vez esboçadas, de modo geral, algumas condições das práticas psica-nalíticas e jurídicas, pensemos, agora, o particular encontro que estabelecem no quadro de atividades conjuntas. Podemos considerar, por exemplo, as atividades de perícia psicológica judicial em varas criminais, de família ou de menores; os pedidos do juiz para que o psicanalista participe de audiências; a solicitação judicial para que o psicanalista acompanhe os primeiros reencontros entre pais e filhos depois de longo tempo de interrupção; os trabalhos psicanalíticos voltados para a mediação de conflitos judiciais, etc.

Estas situações implicam um campo de trabalho híbrido, em que jogam di-ferentes dispositivos, a escuta analítica e a função normativa jurídica, colocados na condição de colaboração, mas também, é fácil prever, na condição de disputa e resistências mútuas. Afinal, muitos dos seus procedimentos são opostos, sendo

bastante provável que a aliança entre eles não se deixe realizar harmonicamente. Pelo contrário, uma luta acirrada se instala quanto à posse do objeto institucional e não há como resolvê-la na ilusão de se manterem os purismos de cada área. Ora, o que se passa é que a sobreposição das duas cenas institucionais cria, na realidade, uma terceira cena, que não se deixa mais reduzir aos elementos iniciais.

Vejamos os paradoxos mais fortes desta parceria, tomando, como exemplo, o que se passa num processo de litígio familiar em que o juiz pede uma perícia psicoló-gica. Do lado do psicanalista: como acionar o dispositivo da escuta analítica estando ele fortemente instalado numa posição superegoica, dotada dos traços normativos e sancionadores que emanam do juiz, ou melhor, da instituição jurídica (dominante) em que a atividade da perícia acontece? Ou seja, de que modo o perito psicanalista pode reaver as condições para o seu trabalho, uma vez que o conhecimento das condições psíquicas e afetivas dos sujeitos apenas se coloca no quadro de uma certa abstinência do analista, o que se inviabiliza no caso dele estar identificado a posições normativas e sancionadoras? Afinal, isto prejudica o campo às projeções caracterís-ticas dos periciandos.

Do lado do juiz: como dar sequência aos procedimentos jurídicos de racionali-zação e objetivação da comunicação entre os litigantes, como assegurar condições para o seguimento da discussão-contra com “o menor grau de perturbação possível” instalando, no seio do processo judicial, uma perícia psicológica, ou seja, um disposi-tivo altamente subjetivante do discurso conflitivo?

Não é difícil notar que a própria montagem do dispositivo psicanalítico interfere profundamente no trabalho do operador do direito, e vice-versa, de tal modo que a aliança entre ambas as práticas inviabiliza a consecução dos seus modelos institucio-nais originários, estabelecendo uma terceira situação que resulta de um hibridismo. Em nosso caso, a composição não se faz com iguais pesos e medidas, pois a institui-ção jurídica é dominante, fornecendo o tom e o ritmo da “dança”. De qualquer modo, as cooperações entre ambas as áreas são esperadas, mas sempre na qualidade de colaboração e complementação. Ocorre que, para isto acontecer, outras naturezas de interferência são inevitavelmente mobilizadas, queiramos ou não, interferências que descaracterizam ambas as práticas em jogo, e que podem ter efeitos funestos. Dentre eles, por exemplo, há o caso do psicanalista agir como se estivesse no consultório, formulando seus laudos sob esta premissa. Ou então, pode ocorrer do juiz “outorgar” a sua decisão judicial ao perito (hipervalorizando o laudo), que não tem competência para tanto e nem está em posição institucional para fazê-lo. Devemos evitar estes desvios, psicanalistas e juristas, submetendo nossa aliança a uma rigorosa reflexão e a uma vigilância ética permanente.

Apontados os problemas, vamos refletir sobre alguns recursos desta parceria. Voltemos à situação prevista numa perícia psicológica judicial. Na cena transferencial instalada na perícia, vemos um psicanalista revestido de fortes traços superegoicos e normatizadores, que emanam da instituição dominante em que ele está, e que, portanto, não podem ser elididos por qualquer estratégia. De todo modo, o contexto híbrido institucional não o permitiria. A providência do nosso psicanalista deve ser outra: colocar estes atributos superegoicos a serviço do trabalho. E isto se faz consi-derando o seguinte: o saber produzido neste contexto híbrido retorna imediatamente à cena judicial, e não a uma situação genérica da história do sujeito, ou um possível

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lugar recôndito da subjetividade dos litigantes, que estaria a salvo da experiência judicial. Nada da situação pericial nos autoriza a interpretar determinados fenômenos como se estivéssemos no consultório, uma vez que a nossa posição se acha pro-fundamente arraigada às condições jurídicas da prova. Por outro lado, visto que as partes recorrem à instância jurídica, elas também demandam fortemente o encontro com os traços normativos da posição do perito, não sendo estes apenas impostos como dados externos à realidade subjetiva das partes. Ou seja, os sujeitos da perícia constroem ativamente este campo projetivo, o que retira o psicanalista de um lugar supostamente desavisado, que nada diga respeito às questões conflitivas em jogo. Desse modo, oferecendo eco às experiências singulares que se mobilizam frente aos atributos normatizadores e sancionadores, o psicanalista possui algumas condições para recriar na transferência, junto das partes, uma versão subjetivada do conflito judicial em curso, ou seja, uma nova versão da cena judiciária.

Assim, resgatamos algum potencial psicanalítico à posição do perito e ao mesmo tempo restringimos a sua ação ao campo específico do processo judicial. Como ilustração desse novo trabalho, e para diferenciá-lo da clínica convencional, lembro-me, aqui, de um caso de perícia psicológica judicial cuja questão era a disputa litigiosa pela guarda provisória de uma criança. Nas entrevistas periciais, produziu-se o efeito de um forte apagamento da filha no discurso dos pais, ao passo que sobrevi-nham muitas representações sobre outra ação judicial que tramitava na vara criminal, em que o pai acusava a mãe de traficar drogas. O processo na vara de família estava “engolido” pelo processo criminal. Os pais referiam-se aos crimes do tráfico, do adul-tério e do incesto (acusação da mãe ao pai), conforme traziam “provas” que a perita deveria “provar”, como fotografias, contas telefônicas, etc., o que tornava muito difícil abrir espaço para a discussão sobre a guarda da filha. Na forma e no conteúdo das entrevistas, o que se figurava à perita era um “caso de polícia”.

De qualquer modo, seria possível, a partir da perícia, concluir sobre a posição desta criança no desejo parental? Penso que, rigorosamente, esta pesquisa não é viável nas condições transferenciais de uma perícia judicial, o que não exclui o fato de que aí possa emergir uma escuta analítica. O que pôde ser trabalhado no exemplo citado foi uma nova versão da cena judiciária, construída na transferência com a perita, desobstruindo o caminho para que se instaurasse a discussão com respeito à guarda da criança. Os pais puderam operar minimamente sobre isso e o juiz pôde decidir. Enfim, a escuta analítica no campo da perícia está confinada aos limites da cena jurídica, e mantendo-se firme neste perímetro tem boas condições de alçar voo. O caso é que não podemos pretender a tradução do conflito judicial nos termos de um conflito subjetivo referido às coordenadas inconscientes e afetivas dos sujeitos envolvidos, tal como é possível no âmbito das análises clínicas. Cabe refrearmos as ambições psicanalíticas de colonizar as realidades conflitivas que se desenham fora do estrito contexto clínico. Assim, no âmbito de uma perícia, o que podemos almejar é a construção subjetivada/subjetivante da experiência judicial mesma, daquilo que está disposto no conflito judicial, dotando-o de sentidos psíquicos e afetivos que re-tornam ao processo institucional em curso. A perícia, no caso, promoveu a abertura do processo com respeito à guarda da criança.

Para terminar, trago a ilustração de um trabalho conjunto muito produtivo entre o perito e o juiz. Neste caso, que se tratava da regulamentação de visitas a menor

em um processo de separação litigiosa, tendo finalizado as entrevistas e formulado o meu laudo, fui surpreendida pela solicitação dos pais para que seguíssemos a con-versa, agora na condição de comparecerem juntos às sessões. Este pedido foi feito diretamente e em primeiro lugar ao juiz, em conversa tida durante uma audiência. Por meio do relato subsequente dos pais, pude notar a sensibilidade com que o juiz pa-recia alternar posições mais normativas e mais reservadas em relação ao movimento dos pais, adiando sua sentença e potencializando o trabalho da perícia.

A cena construída com a perita na segunda etapa do trabalho tornou evidente que o litígio judicial decorria de uma repetição muito vigorosa dos pais, qual seja, discutirem diante de terceiros. Daí a solicitação curiosa de comparecerem juntos ao consultório da perita, reeditando, em sua presença, as discussões infindáveis. Neste caso, a permanência litigiosa no fórum se justificava, dentre outras coisas, pelo fato de que aí as discussões são assistidas, no duplo sentido da palavra, ou seja, vis-tas e assessoradas. O reconhecimento deste importante aspecto da relação entre os pais (ainda que não o reconhecimento de suas causas inconscientes e afetivas, o que se daria em uma análise clínica) criou a possibilidade do encerramento do processo, sendo que eles próprios realizaram o acordo judicial, dispensando, neste ponto, o arbítrio do juiz, o terceiro da cena jurídica. Tal resultado produziu uma marca diferencial e bastante significativa na história dos pais, posto que finalizaram por si mesmos a questão judicial acerca da filha. Conforme conclui em trabalho anterior, isto foi possível também em razão da conduta bastante adequada do juiz, que pôde “recuar” na cena judicial quando isto se fazia sustentável, adiando sua sentença e relançando o trabalho da perícia, de acordo com as suas percepções e o pedido da família em audiência. Podemos ver, com este exemplo, que a atuação do juiz também se altera em presença deste parceiro que é o psicanalista. Também o juiz se achava numa rede transferencial híbrida em que a função normativa se deixava marcar por matizes diferentes daqueles da situação jurídica originária. Brincando um pouco com as palavras, podemos dizer que, neste caso, os pais compareceram juntos no lugar em que o psicanalista e o juiz trabalharam juntos, lugar simbólico construído no en-contro efetivo de dois dispositivos institucionais distintos.

O TORTO E O DIREITO: DESAFIOS DO TRABALHO INTERDISCIPLINAR NA DEFENSORIA PÚBLICA

Marilia Marra de AlmeidaPsicóloga. Agente de Defensoria Pública. Mestre em Psicologia pela USP.

São interdependentes e complementares as noções de Direito e de Torto. Por muito que pareça extraordinário, o Direito é essencialmente violável - e existe por graça de sua violabilidade. Se fosse impossível o Torto, desnecessário seria o Direito.

Del Vecchio.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a partir de abril de 2010, passou a contar com o trabalho do Centro de Atendimento Multidisciplinar - o CAM. Contando com profissionais da área da Psicologia e do Serviço Social, o CAM modifica as fron-teiras do atendimento realizado até então pela Defensoria Pública. Ao abrir as portas, o CAM recebe uma grande diversidade de demandas cuja identidade se constitui pela impossibilidade de resposta apenas no âmbito judicial. A Defensoria passa, então, por uma ampliação de sua escuta, aumentando seu potencial de intervenção frente àquelas demandas que chegam à justiça por motivos que transbordam a fronteira das respostas judiciais.

Farei uma apropriação metafórica dos termos de Del Vecchio, inspirada em sua lógica perspicaz, para refletir sobre os conflitos que chegam à Defensoria, passando a considerar o campo do “Direito” como o do caso padrão, que cabe na norma, cha-mando de “Torto” tudo aquilo que fica de fora: aquilo que o Direito, sozinho, não dá

73O torto e o direito: desafios do trabalho interdisciplinar na Defensoria Pública72 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

conta. Aquilo que sobra na tradução dos conflitos humanos para a linguagem jurídica. Desse modo, as demanda CAM são sempre tortas, constituindo-se em desafios ao trabalho interdisciplinar. Aos profissionais da área psicossocial coloca-se a questão de como exercer seu trabalho, cuja matéria apresenta formas e caminhos tortuosos, numa instituição jurídica a serviço do “Direito”.

As demandas da população que busca pelos serviços da Defensoria apresen-tam uma realidade complexa com diversas arestas que não cabem no corpo jurídico pré-definido. O acesso à assistência jurídica na instituição é definido pela hipossufi-ciência financeira, ou seja, a população atendida pela Defensoria é necessariamente pobre, na acepção jurídica do termo. O corte da renda familiar até três salários mí-nimos define quem pode ou não ser assistido1 juridicamente pela instituição. Esse é o primeiro desafio à assistência jurídica na Defensoria: opera-se numa legislação construída, em grande parte, para a regulação do patrimônio com uma população destituída de seu acesso.

Nossa última Constituição caminhou no sentido de ampliar o cobertor da lei brasileira ao contexto social do país. Porém, mesmo com o reconhecimento da união estável como entidade jurídica, que ampliou significativamente a cobertura do Direito de Família à nossa realidade2, muitas vezes as propriedades que constituem o pa-trimônio do assistido continuam fora da lei. A ausência de escritura dos imóveis, a posse de terreno público e o tipo de contrato que regula as transações comerciais no contexto social do assistido compõem o que estamos chamando de “Torto”.

A não observância das condições fundamentais para a dignidade da pessoa humana, em nosso contexto, marca gerações de famílias enredadas em histórias de opressão de um sistema desigual: ausência de acesso a educação, saúde, moradia e lazer. Tal ausência de acesso às condições de direito deixa marcas psíquicas que, em alguns casos, dificulta também o acesso a recursos simbólicos para lidar com o sofrimento. Para tecer algumas reflexões sobre a atuação interdisciplinar da Defen-soria Pública nesse panorama, partirei de uma possível contribuição da psicanálise na compreensão da relação do sujeito com a lei. Trata-se da diferenciação entre lei interna, do âmbito da organização psíquica do sujeito, e lei externa, do campo das organizações sociais. Essa diferenciação abrirá caminho para elucidar possibilidades da atuação psicossocial, em suas especificidades. Com isso, pretendo vislumbrar o âmbito da atuação psicossocial na instituição, diante das demandas jurídicas. Tra-çando a especificidade do trabalho do psicólogo, traremos à tona alguns limites e possibilidades dessa atuação na instituição jurídica, assim como apontaremos alguns limites do próprio Direito, no tratamento dos conflitos humanos. Ao fim, levantaremos

1 As pessoas atendidas pela Defensoria são denominadas assistidos(as): termo familiar aos operadores da instituição, porém problemático da perspectiva psicossocial. Esta foi uma primeira inflexão da escuta dos profissionais psicossociais ao chegarem na Defensoria: para nós, este termo carrega valor pejorativo pois remeteria a uma qualidade de passividade dos(as) cidadãos(ãs) diante dos serviços oferecidos. Trata-se de nomenclatura que, de nosso ponto de vista, remete à desvalorização dos saberes da pessoa, de caráter ideológico, com uma “aceitação tácita da incompetência dos homens como sujeitos sociais e políticos” (CHAUÍ, 1982). A diversa percepção terminológica coloca-se como desafio inicial ao trabalho interdisciplin-ar, pois assim como em relação ao termo “assistido”, a diferença de compreensão de outros termos atesta a diversidade epistemológica dos saberes em questão.2 Maria Berenice Dias, em Manual de Direito das Famílias, realiza importante reflexão sobre essa questão.

algumas questões referentes ao trabalho extrajudicial de resolução de conflitos que transitam por esses limites.

UMA CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE – A DIMENSÃO DA LEI INTERNA

Uma das formas que o conhecimento psicanalítico pode contribuir com o trabalho na área da Justiça é trazer elementos para a compreensão da relação do sujeito com a lei. Para Freud, explicar o funcionamento psíquico comparando-o a um aparelho busca tornar seus mecanismos complexos compreensíveis, dividindo este funcionamento e atribuindo cada função específica a uma parte constitutiva do apare-lho (FREUD, 1976). Trata-se de um modelo, entendido no plano da ficção, para expli-car as transformações de forças que movem a vida psíquica. Este modelo passou por diversas modificações ao longo da obra freudiana, encontrando um esquema de três instâncias, difundido no senso comum: id, eu e supereu. A concepção deste aparelho psíquico nos indivíduos apresenta uma instância particularmente ligada à função de lei: o supereu. Ainda que de maneira simplificada, farei uma breve explicação desse modelo para chegarmos a enunciados a respeito da dimensão interna da lei.

A força básica que move o psiquismo, da ordem da sexualidade, é regida pelo Princípio de Prazer, caracterizado pela busca de prazer e afastamento do desprazer. Tal busca, em si mesma, não possui limites. O conceito de pulsão3 (trieb) emerge na psicanálise para descrever, de forma singular, o motor da vida psíquica humana, descartando-se a noção de instinto como um padrão de comportamento pré-formado, regido por leis naturais e gerais. Uma pulsão não pode ser destruída nem inibida, uma vez tendo surgido, ela tende de forma coerciva para a satisfação. A essa dimensão das pulsões em busca de objetos, do feixe de energias que configuram o lugar do corpo e suas demandas, dá-se o nome de id.

Porém, o Princípio da Realidade colocará obstáculos a esse fluxo. A cultura e a vida em sociedade irão prover limites à busca pelo prazer, configurando a instância do funcionamento psíquico responsável pelas interdições às pulsões do id – o supereu. Essa instância caracteriza-se pela repressão, seja das ações que buscam satisfazer desejos, seja da própria consciência desses desejos. Segundo Luís Cláudio Figuei-redo (2009)

se o id é a representância primordial da natureza e da história da espécie no psiquismo individual, o campo su-praegoico é a representância primordial do intersubjetivo, das relações de objeto, do social e do cultural neste mesmo campo intrapsíquico.

Entre o embate dessas duas potências, id e supereu, está o eu, como repre-sentante da unidade somatopsíquica do indivíduo. Aquela instância que carrega sentimentos e representações de si, abrindo passagem entre o sujeito e o mundo.

3 Definição de pulsão, segundo Laplanche e Pontalis (p. 394): “Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir a sua meta”.

75O torto e o direito: desafios do trabalho interdisciplinar na Defensoria Pública74 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Importante ressaltar que a interiorização da interdição dos desejos abre caminho para a identificação com os representantes da lei, sendo que o supereu carrega também o modelo ideal para o eu. Enquanto ideal do eu, o supereu surge principalmente como uma instância que encarna uma lei e proíbe sua transgressão. Deste modo, o supereu surge como uma estrutura englobante que compreende três funções: auto-observação, consciência moral e função de ideal (LAPLANCHE; PON-TALIS, 2008). O supereu torna-se o representante da tradição cultural no psiquismo, carregando os juízos de valor que subsistem por meio das sucessões de gerações. Esse processo ocorre na construção do psiquismo da criança, sendo as figuras pa-rentais os representantes da lei para ela. A família encarna a tradição da qual faz parte perante cada novo membro. A interiorização de valores e regras está singularmente ligada à história das relações estabelecidas nessa família, nessa cultura.

Podemos dizer que há uma lei interna que articula as instâncias psíquicas, pela integração e simbolização do campo do supereu, organizando o processo vital de “fazer sentido”4 para o sujeito. Esse processo permite ao sujeito a transformação de forças no psiquismo. A força básica encontra seu quantum transformado em qua-lidades, em sentidos. Ou seja, a pulsão expressa-se qualitativamente na forma de afetos e sentimentos. Os afetos, ligados a representações, encontram a elaboração simbólica como recurso do sujeito (e de seus desejos) frente aos limites da realidade. A capacidade reflexiva do sujeito corresponde a suas possibilidades de simboliza-ção, podendo ser equacionada à existência dessa lei interna. A lei interna organiza estruturalmente a possibilidade da linguagem e comunicação. A lei interna, remetida à capacidade de estruturar-se como um sujeito, implica o reconhecimento de que para além de si há outro. O supereu figura como esse outro dentro do próprio psiquis-mo, conferindo ao sujeito a possibilidade de interditar, desde dentro, os excessos de forças que surgem como necessidades psíquicas. Deste modo, a possibilidade de convivência em sociedade estaria ligada à contenção de parte dos impulsos básicos frente ao outro.

Segundo Rodrigo da Cunha Pereira (1999),

A ordenação jurídica através de seus textos normativos (leis, decretos...) nada mais é que o estabelecimento de proibições ou permissões para organizar as relações so-ciais. A Lei Jurídica é um interdito proibitório dos impulsos inviabilizadores do convívio social. Elas se fazem necessá-rias, principalmente para aqueles que não têm lei interna e são incapazes, por si mesmos, de frearem ou conterem seus impulsos ou desejos em desacordo com a organiza-ção social.

Desse ponto de vista, a contenção dos desejos inviabilizadores do convívio no campo social necessita da presença da lei, seja ela interna ou externa.

A circulação da palavra entre os sujeitos sociais permite a negociação de seus

4 Considerações sobre o processo de fazer sentido podem ser encontradas em: FIGUEIREDO, L.C. A questão do sentido, a intersubjetividade e as teorias das relações de objeto. Revista Brasileira de Psicaná-lise, Volume 39, no 4, 2006, p. 79-88.

desejos e condutas, sendo o diálogo o meio pelo qual o campo social se organiza. Um diálogo verdadeiro implica escuta mútua, com atenção aos significados particulares que os termos carregam para seu interlocutor. Esse diálogo em que ocorre troca simbólica possibilita que as perspectivas da realidade se entrecruzem, produzindo a relativização e redimensionamento do próprio desejo frente ao outro. Observamos, no entanto, que muitas vezes esse diálogo não ocorre. Acreditamos que uma das sementes dos conflitos que chegam à Justiça é justamente a impossibilidade da troca simbólica. A lei externa geralmente é convocada como um limite frente ao outro pelo sujeito que busca a Justiça.

Diante do conflito, a psicanálise recorre ao simbólico. Entende que a cons-trução de circuitos simbólicos5 para os deslocamentos de sentidos, compõe a lei interna do psiquismo. A sustentação dessa lei ocorre pela circulação da palavra, pela possibilidade de comunicação. Na falha dessa função, a atuação psicossocial pode propiciar condições para supri-la, por meio de uma escuta qualificada6 que auxilie na construção da lei interna pelo sujeito, organizando a manifestação de seus desejos no campo social. Essa organização dos impulsos e desejos, quando ocorre pela via interna, produz um trabalho com o sofrimento desse sujeito, na negociação de seus desejos diante do mundo e dos outros. Aí reside a função terapêutica da organização da lei interna.

Porém nem sempre a comunicação é possível, existindo dimensões incomu-nicáveis e intratáveis no sujeito. Nesses casos, no limite da atuação psicossocial, observamos que o Direito tem uma função muito importante, podendo fornecer continência para a força disruptiva incomunicável de um sujeito que busca por uma lei objetiva que lhe dê contorno. É o “Torto” do psiquismo, para além do simbólico, encontrando passagem pelo “Direito”. Este tema abre mais um campo de investi-gação que não caberá no escopo deste trabalho. Aqui vale apenas apontar que a Justiça, para além de sua eficácia prática na resolução dos litígios, carrega também uma eficácia simbólica. Chamo atenção para o fato de que independentemente das decisões a que se chega ao fim de um processo, a cena vivida na instituição jurídica carrega significações que incidem na dimensão psíquica, produzindo diversa sorte de efeitos. Dentre eles, pode ocorrer inclusive a inscrição da função da lei na dimensão simbólica ou interna do sujeito, principalmente nos casos de transtorno mental grave.

O TORTO NAS FRONTEIRAS DA LEI

A elucidação da dimensão da lei interna aponta para a definição de uma das intervenções psicossociais de grande importância, no âmbito dos conflitos que che-gam à Defensoria, possibilitada pela atuação do CAM. Em nosso trabalho cotidiano, percebemos alguns usuários que buscam uma ação judicial como alívio para angus-tias pessoais, muitas vezes oriundas da insatisfação de seus desejos. Nesse caso, a busca pela lei poderia ser circunscrita no âmbito de sua dimensão interna, não haven-

5 Possibilidades interpretativas da realidade.6 É definida como escuta privilegiada que evita julgamentos, preconceitos e comentários desrespeitosos, com uma abordagem que respeite a autonomia dos cidadãos(ãs) e seu poder de decisão, procurando estabelecer uma relação de confiança entre usuário(a) e profissional do serviço. Esta definição para escuta qualificada encontra-se na Norma Técnica do Ministério da Saúde de Atenção Humanizada ao Abortamen-to (2010).

77O torto e o direito: desafios do trabalho interdisciplinar na Defensoria Pública76 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

do necessidade de recurso ao corpo jurídico. É importante diferenciarmos a garantia de direitos e deveres de demandas desse tipo. Um exemplo que pode ajudar essa diferenciação são aqueles casos em que a pessoa busca uma ação de danos morais frente a um parente que lhe ofendeu. Muitas vezes tais ofensas ocorreram dentro da esfera pessoal das relações familiares. Mas como a pessoa não conta com recursos simbólicos da lei interna para lidar com o conflito no seu âmbito privado, busca a esfera pública ou a lei externa como solução para tais angústias. Acreditamos que uma intervenção psicossocial, por meio da escuta qualificada e do diálogo, poderá ajudá-la a redimensionar suas demandas.

Porém, não podemos confundir uma falha na função da lei interna com as viola-ções objetivas de direitos. Há casos em que a pessoa busca a Justiça legitimamente à procura de uma resposta no âmbito da lei externa, mas esta resposta não existe, pois sua condição não foi regulamentada. Não há legislação que regula, por exemplo, um conflito entre pessoas que disputam a posse de um imóvel em terreno público. Esses casos também são encaminhados ao CAM, porém constituem outro tipo de de-manda. Não se trata de uma questão da ordem psíquica, de uma demanda “confusa”. Pelo contrário, pode tratar-se de uma demanda clara e objetiva que, entretanto, não tem respostas no âmbito da lei.

São casos que estão fora da norma, constituindo conflitos de difícil tradução para a linguagem jurídica. São casos “fora da lei”, não porque transgridam a lei externa, ou por qualquer questão psíquica relativa à lei interna, mas porque estão numa condição social que não é contemplada pelo Direito. São “Tortos” na lógica de funcionamento do sistema, estando à margem do “Direito”. Nesses casos, a atuação psicossocial pode ser importante, mesmo que não apresente soluções. Ainda que sejam acessadas as políticas públicas a favor de sua inclusão na esfera dos direi-tos sociais, de forma ampla, fica a questão sobre a legitimidade da inclusão de sua condição na lei. Essa questão se desdobra em perguntas sobre a possibilidade do Estado legislar sobre o marginal, por exemplo, sobre a posse de terrenos públicos, ou rever a legislação ordinária que trata das metragens de imóveis, de acordo com a realidade social do pobre. Haverá quem diga que não é a lei que tem que mudar, visto que é justo que todos tenham propriedades dignas, trabalho digno, vida digna, não fazendo sentido que se legisle sobre algo indigno. Porém, a realidade não é justa. Essa é uma dimensão do “Torto” que não cabe no “Direito”. Quanto à necessidade de reconhecimento legal da condição do pobre, uma necessidade de resposta objetiva para sua condição, essa continua fora do Direito7. Um grande passo foi dado com a implementação da assistência jurídica gratuita, mas ainda há um longo caminho para a efetividade da garantia dos direitos fundamentais da população.

Muitas vezes, casos como esses são encaminhados ao CAM para a tentativa de um acordo extrajudicial, visto que o conflito não encontra forma possível no cor-po jurídico. Aqui é importante diferenciar o âmbito de potencialidade da intervenção multidisciplinar do âmbito da impossibilidade de atuação do direito. O desafio está na constatação de que nem sempre estes âmbitos se coincidem. É certo que formam uma interseção, mas não são conjuntos completamente equivalentes. Vejamos.

7 Essa temática necessita de grande discussão para maior aprofundamento que não caberá no âmbito deste artigo. Reflexões nesse sentido podem ser encontradas em Marilena Chauí, Cultura e Democracia – o discurso competente e outras falas (Cidade: Editora Moderna, 1984).

O “TORTO” NA RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS

As pessoas envolvidas em conflitos que configuram impossibilidade de tra-dução em linguagem jurídica, cuja única solução está no campo extrajudicial, não necessariamente aceitam que sua demanda seja tratada no campo psicossocial. São os casos em que a impossibilidade de resolutividade do direito não casa com a possi-bilidade de atuação apenas psicossocial. São casos em que os envolvidos sentem-se excluídos do Direito e, de certa forma, estão. Os profissionais do CAM, nesses casos, acabam frustrados na possibilidade de celebrar um acordo frutífero, não por sua in-capacidade, certamente, mas pela inadequação da necessidade do usuário à forma de solução que lhe é proposta. Isso porque, geralmente o que ele busca na Justiça é, de fato, a lei externa. São aqueles casos das metragens irregulares de terreno, dos contratos de gaveta, entre outros. É importante ressaltar que o fato de não haver como propor uma ação judicial nesses casos não é sinônimo de que o CAM poderá resolvê-los.

Vejamos os casos em que há possibilidade de atuação psicossocial. São ca-sos em que a resolução pela via judicial geralmente também é possível, porém nem sempre eficaz. Muitas vezes a delimitação do conflito no plano das desavenças e ressentimentos ocorridos ao longo de uma difícil história de vida abre a possibilidade de resumir o litígio judicial. O esclarecimento das motivações subjacentes às deman-das que ganharam formas judiciais pode render uma reflexão sobre a necessidade e efetividade de um processo, no caso. Ou ainda, o recurso à efetivação de políticas públicas pode reconfigurar uma situação, apresentando novas possibilidades de ha-bitação, renda, que são decisivas para a existência do conflito.

Nesses casos pode-se encontrar toda sorte de arranjos para solucionar o conflito. Um desafio que encontramos ao lidar com tais conflitos, numa instituição da Justiça, reside no deslocamento que a atuação psicossocial sofre. Trata-se da redução do acordo em termos jurídicos. Uma das formas dessa redução materializa--se no termo de acordo extrajudicial que surte seus efeitos na forma do artigo 585, inciso II, do Código Processo Civil. Ou seja, é um “extra” judicial que está incluído na lei. Regulado pela lei, ele impõe ao profissional psicossocial algumas dificuldades técnicas. Mesmo nos casos de conciliação em matérias das Varas de Família, em que o termo de acordo não é extrajudicial, já que é homologado pelo juiz, a resolução dos conflitos não pode ser muito “alternativa”, afinal de contas, precisa ser aceita pelo juiz, devendo atender às formas previstas pela natureza da ação.

O trabalho psicossocial pauta-se nas relações entre pessoas, entendendo os conflitos como emaranhados de sentimentos, pensamentos, crenças e falência de soluções sociais do contexto em que vive essa pessoa. Sendo assim, o trabalho com o conflito pode deslocar-se completamente da matéria jurídica objeto do enca-minhamento ao CAM. Para abarcar a demanda jurídica, a resolução extrajudicial de conflitos, como tem ocorrido na instituição, acaba distorcendo a forma do trabalho psicossocial com o conflito, adquirindo feição jurídica e necessitando de assessoria jurídica. O que pode criar um problema, pois o encaminhamento ao CAM pode estar carregado da expectativa do fim da atuação do defensor no caso, por tratar-se de uma solução não judicial, fora do âmbito de trabalho dos profissionais do Direito. Porém o encaminhamento acaba por apresentar-se como algo tortuoso e estranho, que continua a exigir sua atuação, porém de forma diversa, o que muitas vezes pode produzir sensações incômodas entre os profissionais no trabalho interdisciplinar.

79O torto e o direito: desafios do trabalho interdisciplinar na Defensoria Pública78 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Tomemos como exemplo um caso de regulamentação de visitas em que os genitores estão em conflito porque um deles impede o outro do contato com a criança. O trabalho do CAM será elucidar os motivos que subjazem essas atitudes, trazendo à tona, geralmente, conflitos do relacionamento do ex-casal que continuam a produzir efeitos no âmbito da relação com a criança. O trabalho nessa dimensão onde reside o conflito deve ser lento e cuidadoso. Ao remexer os sentimentos e ressentimentos envolvidos na história, pode haver abertura para a resolução do motivo aparente do conflito - as visitas - ou ainda haver a potencialização do litígio, caso não haja disposição dos envolvidos de rever posições e atitudes. Ou seja, tratar o conflito na dimensão psicossocial implica a disposição para confrontações que podem se apre-sentar turbulentas. Atravessando essas dificuldades e conquistando a possibilidade de um acordo entre as partes, o profissional psicossocial não necessariamente terá se preocupado em discutir a hora em que a criança deverá ser retirada do lar do guardião e nem com quem a criança deverá passar o natal dos anos ímpares. Por isso, reduzir o acordo aos termos jurídicos foge de uma atuação psicossocial. Os termos jurídicos regulam detalhes práticos que não seriam problema numa relação onde a possibilidade de comunicação foi resgatada ou construída.

Para o profissional do Direito, poderá parecer que o trabalho do CAM rendeu a ele ainda mais trabalho, pois o acordo jurídico não vem pronto. O CAM trabalha a dimensão do conflito, que, se estiver digerido, facilitará o trabalho de tradução aos termos da lei, visto que haverá uma melhora no diálogo das partes. Deste modo, entendemos que o trabalho psicossocial não substitui o do Direito, mas se soma a ele para uma ação mais eficaz e prolongada no tempo. A atuação interdisciplinar ganha em qualidade ao ampliar o raio de cada atuação isolada. Porém não é fácil e dá mais trabalho. Devemos olhar para além dos resultados imediatos para medir seu valor.

Para potencializar o trabalho interdisciplinar é importante traçarmos a espe-cificidade de cada área de atuação, apontando para as diferenças, no sentido de esclarecer o âmbito de atuação de cada uma delas. Nem sempre o limite de uma área coincide com o potencial da outra, mas há casos em que isso ocorre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao trazer a atuação psicossocial para dentro da Instituição, a Defensoria passa por mudanças, com o desafio de construir uma atuação interdisciplinar. Adentrando na especificidade da Psicologia, naquilo que ela se aproxima do Direito, apresenta-mos uma perspectiva de trabalho no âmbito da lei interna ao sujeito. Esse trabalho pode refinar a atuação do Direito, no sentido de diferenciar a demanda jurídica das demandas psíquicas. Acreditamos que a atuação do psicólogo na Defensoria pode contribuir para a diferenciação desses âmbitos, evitando a judicialização de conflitos subjetivos e oferecendo outras possibilidades de encaminhar o tratamento dessas questões, seja no âmbito da saúde mental ou no âmbito de questões sociais que incidem sobre a pessoa. Para isso a aproximação das redes sociais de que ela faz parte, incluindo a rede de serviços públicos, é de essencial importância, assim como o estímulo a sua autonomia frente à realidade social. Isso fortalece a necessidade do trabalho interdisciplinar Psicologia e Serviço Social.

Refletimos também sobre os casos de conflitos em que não há possibilidade de regulação legal. Apontamos para a necessidade de repensar a legislação em nosso

contexto social, em busca de estratégias que garantam os direitos humanos funda-mentais. Passamos pela resolução extrajudicial de conflitos, explicitando as diferen-ças da abordagem psicossocial e do Direito para delinear o campo de atuação comum e os campos de desencontro. Concluímos com o reconhecimento de que a parceria dos saberes do Direito, da Psicologia e do Serviço Social potencializa a atuação da Defensoria Pública em seus objetivos principais, quais sejam: a orientação jurídica integral, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e cole-tivos, em todos os graus, judicial e extrajudicial. Construir tal parceria apresenta-se como um desafio que exigirá certamente muito trabalho. Como psicóloga, acredito que o caminho dessa construção seja o verdadeiro diálogo, no qual é imprescindível interesse e disponibilidade dos profissionais envolvidos a se escutar. Certamente uma construção que exigirá a capacidade de reconhecer o “Torto” que habita o “Direito” de cada um.

REFERÊNCIAS

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Atenção Humanizada ao Abortamento: Norma Técnica. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Área Técnica de Saú-de da Mulher. 2ª edição. atual. e ampl. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Editora Moderna, 1982.

CUNHA PEREIRA, R. Direito de Família – Uma abordagem psicanalítica. Belo Hori-zonte: Livraria Del Rey Editora Ltda, 1999.

DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Trad. Antônio José Brandão. Vol.1, p.72-73. Coimbra: Arménio Amado, 1959.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5ª edição. Editora Revista dos Tribunais ltda., 2009.

FIGUEIREDO, Luis Claudio Mendonça. As diversas faces do cuidar – novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta, 2009.

FIGUEIREDO, Luis Claudio Mendonça. A questão do sentido, a intersubjetividade e as teorias das relações de objeto. Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 39, n.º 4, 2006, p. 79-88.

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.4-5, 1900, 1976.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da Psicanálise / Laplanche e Pontalis; sob a direção de Daniel Lagache; tradução Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

ENTRE A LEI E A VOLUNTARIEDADE: O MODELO INSTITUCIONAL DE RESOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE CONFLITOS EM DEFENSORIAS PÚBLICAS

Ricardo César FrancoDefensor Público. Especialista em Direito Processual Civil.

Paulo Keishi Ichimura KoharaPsicólogo. Agente de Defensoria Pública. Mestre em Psicologia pela USP.

Temática relativamente antiga na história do direito brasileiro, os meios alter-nativos à jurisdicionalização de litígios apresenta-se atualmente com ares renovados. Métodos como a conciliação e a mediação passam cada vez mais a ser instituciona-lizadas pelo sistema de justiça, apresentando-se como alternativas interessantes não somente para a pacificação e resolução mais adequada dos conflitos, mas também para a redução do número de processos que hoje congestionam os tribunais.

No âmbito das Defensorias Públicas, a solução extrajudicial de conflitos alcan-ça status de função institucional, na medida em que estas devem “promover, priorita-riamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos”1.

Ainda que seja simples estabelecer como premissa a conveniência da atuação da Defensoria Pública em prol da solução extrajudicial de litígios, a implantação de um modelo institucional que concretamente promova e priorize à autocomposição de conflitos é tarefa muito mais complexa. Consonante à priorização da solução extraju-dicial de conflitos, seria legalmente possível estabelecer como regra que todo cidadão

1 Inciso II, art. 4º da Lei Complementar Nº 80, organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências.

83Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...82 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

que buscasse atendimento em Defensoria Pública fosse inicialmente atendido por um setor de conciliação? Ainda que legal, seria a regra institucional adequada aos prin-cípios da pacificação de conflitos? Estas são as questões que se tentará esclarecer.

BREVE NOTÍCIA HISTÓRICA

Revisitando a legislação da Metrópole, encontrar-se-ão disposições várias nas Ordenações Filipinas2, as quais remetem as partes de determinados litígios3 à possi-bilidade de apresentação de seus pleitos a juízes árbitros4.

Poder-se-á, ademais, verificar que os artigos 160 e 161, da Constituição Im-perial de 18245, os quais, respectivamente, tratam da possibilidade de as partes em litígio cível ou cível ex delicto eleger árbitro, para solver a questão lastreada em direi-tos disponíveis, e da necessidade de se fazer constar da tentativa de reconciliação prévia, como condição sine qua non para a admissão do futuro processo.

Por curioso, dispositivos análogos não foram previstos pelo projeto de Consti-tuição de 1823 e pelo Texto de 1891.

As hipóteses indicadas revelam, notadamente, casos em que a efetiva ou ten-tativa de solução do conflito ocorrem em momento anterior ao ingresso das partes junto ao Poder Judiciário, de forma estimulada, com a clara finalidade de compor de cortesmente os interesses disponíveis em perspectivo embate, satisfazendo seus atores.

Exemplos análogos podem ser encontrados em instrumentos normativos infra-constitucionais ao longo da história da República, tais como: 1) o emprego de árbitros para solução extrajudicial de conflitos, nos termos prescritos pela Lei n.º 9.307/96; 2) as comissões de conciliação prévia, no âmbito do direito do trabalho, criadas por sin-dicatos e empresas, as quais, inclusive, guardam a necessidade de prévia tentativa de conciliação antes de se levar o conhecimento da lide às varas do trabalho (artigo 625-D, CLT); 3) a previsão do Código Civil brasileiro, que trata da possibilidade, nos termos da legislação especial, estabelecerem os contratantes cláusula arbitral, para que eventual lide seja solvida extrajudicialmente, com as garantias que são inerentes à espécie. Exemplos outros, diversos da raiz histórica delineada pela Constituição imperial, todavia, podem ser depreendidos de instrumentos infraconstitucionais.

2 Waldemar Martins Ferreira, em sua obra História do Direito Brasileiro, relata o quão longevas foram as filipinas, as quais perfizeram 264 anos de vigor em Portugal, até 1 de julho de 1867, momento em que D. Luiz promulgara o Código Civil lusitano. No Brasil, mantidas em vigor por lei de 20 de outubro de 1823, conheceram de revogações pontuais durante os séculos XIX e XX, até revogação total, em 1 de janeiro de 1917, quando já contavam com 312 anos de existência (FERREIRA, Waldermar Martins: História do Direito Brasileiro. Tomo II. Rio de Janeiro: Freitas Bastos S.A, 1952, p. 329-335).3 Livro III, Título XV.4 Posto que as partes compromettam em algum Juiz, ou Juizes arbitros, e se obriguem no compromisso star por sua determinação e sentença, e que della não possam appellar, nem aggravar, e o que fizer pague à outra parte certa pena, e ainda que no compromisso se diga, que paga a pena, ou não paga, fique sempre a sentença dos arbitros firme e valiosa” (Livro III, Título XV).5 Respectivamente: “Nas civeis e nas penaes civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juizes Arbitros. Suas Sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes e sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum.”

Vale notar que, embora apresentem finalidade análoga, os exemplos ante-riores revelam mecanismos e locais onde terão assento bastante diversos entre si, tais como: 1) a previsão de juízes leigos e de conciliadores para atuar nos juizados especiais cíveis, na qualidade de auxiliares da Justiça, conforme se depreende dos artigos 7º c/c 24 e ss, da Lei n.º 9.099/95; 2) nas lides processadas de acordo com o rito sumário, nas quais o Juiz de Direito, ao receber a exordial e citar o demandado, deverá definir data para a audiência de tentativa de conciliação, nos termos dos arti-gos 277 e 278, CPC; 3) a tentativa de conciliação durante a audiência preliminar, na hipótese de versar a causa sobre direitos disponíveis, conforme o artigo 331, CPC; 4) a audiência de conciliação realizada segundo o rito especial da Lei n.º 5478/68, nos termos dos artigos 5º e ss; 5) (...), os quais têm como característica ser levados a efeito no âmago do Poder Judiciário, diferentemente do primeiro grupo de exemplos, os quais ocorrem sem aporte do Poder Constituído, senão a posteriori.

Medida sui generis revela-se nos Centros de Conciliação referidos pela Reso-lução 125/10, do Conselho Nacional de Justiça, os quais, em que pese realizados por conciliadores e, mormente, em etapa pré-processual, valem-se de estrutura mantida ou conveniada do poder Judiciário (Artigo 5º, Res. CNJ. n.º 125/10), fazendo com que, ao menos a olhos destreinados, vale dizer, de significativa parcela daqueles que se valerão desse serviço público, possa-se confundir a autoridade, o momento e o resultado daquele advindos.

Em linhas sumárias, após a breve avaliação histórica acima ofertada, as formas alternativas para solução de conflitos ainda revelam características estrita-mente vinculadas à sua origem, mas se deve notar a significativa variabilidade dos instrumentos para sua consecução na diuturna atividade jurídica, das decisões que deram a tônica à política desenhada, além da representatividade das instituições que cerraram esforços para levá-la a efeito, que indicam como única em sua espécie.

Importantes premissas para compreensão e análise do tema surgem quando do estudo do conteúdo jurídico de um dos princípios constitucionais que tutelam o acesso à Justiça, fincado no Ordenamento Jurídico pátrio pelo artigo 5º, XXXV, CF/88.

Primeira impressão que demanda comentários do intérprete recai na conjun-ção de palavras, mediante enunciado negativo, que adverte a existência de direito fundamental expresso e a impossibilidade de a ordem jurídica permitir, em momento posterior a esse, limite negativo ao direito de ação. Conforme se depreende da reda-ção do dispositivo em comento, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

A doutrina de José Afonso DA SILVA interpreta o princípio de acordo com a visão acima exarada, segundo a qual o dispositivo contém dupla significação e, portanto,

... releva (...) que cabe ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, pois sequer se admite mais o contencioso administrativo que estava previsto na Constituição revo-gada. A segunda garantia consiste no direito de invocar a atividade jurisdicional sempre que se tenha como lesado ou simplesmente ameaçado um direito, individual ou não, pois

85Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...84 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

a constituição já não mais o qualificada de individual6, no qual andou bem, porquanto a interpretação sempre fora a de que o texto anterior já amparava direitos, p. ex., de pes-soas jurídicas ou de outras instituições ou entidades não individuais, e agora hão de levar-se em conta os direitos coletivos também7.

O exercício do direito fundamental enunciado dependerá, portanto, ainda em estado abstrato, da conjunção de comportamentos positivos e, complementarmente, negativos de certo número de instituições públicas8, cujas funções transitem entre a guarda da Constituição e do acesso e efetivação da Justiça9.

Tal apanágio dos direitos fundamentais encontra referência na obra de José Carlos Vieira de Andrade, para o qual

6 Interessante nota sobre a relevância da expressão individual para a exegese do Texto revogado é encon-trada em Pontes de Miranda: “Procurando-se no passado, encontra-se pensamento semelhante ao do art. 150, § 4º, da Constituição de 1967, na Constituição vurtemberguesa de 1819, § 95(...). Há de comum entre o art. 150, § 4º, da Constituição brasileira e o § 95 da Constituição de Vurtemberga tratar-se de pretensão à tutela jurídica. O Texto brasileiro tem a mais: não se limita ao recurso: não se assegura somente aos titu-lares de direito privado, mas a quem quer que seja lesado em direito individual, lato sensu.” (Idem, Ibidem, p. 99). No caso, verifica-se que a enunciação direito individual dedicava-se a esclarecer a inafastabilidade do exame jurisdicional em hipóteses superiores às pretensões baseadas em direito privado e em face de outros particulares. Os atos do Poder Público que causem reveses ao administrado não poderão, ante tal cláusula, ser excluídos da apreciação pelo Poder Judiciário, vedando-se, portanto, ao legislador infracon-stitucional e-ou reformador realizar norma na qual se afaste a legitimidade passiva daquele. Conclusão análoga resta presente na obra de Carlos Maximiiano, que assevera: “Também não se admite que uma norma ordinária declare insusceptível de revisão, pelo Poder Judiciário, um ato de Govêrno ou Adminis-tração, no ponto em que diga respeito a direitos individuais ou se contraponha ao mesmo. As atribuições chamadas discricionárias do Executivo, ou do Congresso, mantêm-se e acatam-se, porém quando não firam interesses legítimos de particulares” (MAXIMILIANO, Carlos: Comentários à Constituição Brasileira. Vol. III. 4.ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1948, p. 61).7 DA SILVA, José Afonso: Curso de Direito Constitucional Positivo. 23.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 430.8 Duguit definiu o Estado de Direito (do alemão, Rechtsstaat) segundo a concreta conjugação de comporta-mentos dos Poderes constituídos que o compõem: “On a montré que, pour réaliser le droit, L´Etat intervient de trois manières: 1º em faisant la loi, c´est-à-dire em constatant lês règles de droit et em formulant dês règles generales destinées à en assurer la réalisation (législation normative et législation constructive); 2º em faisant des actes juridiques propement dits qui prennent le nom d´actes administratifs; 3º enfin en faisant des actes jurisdictionales” (DUGIUIT, Léon. Manuel de Droit Constitucionnel. 4.ed. Paris. E de Boccard, Éditour, 1923, p. 209).9 Não se olvide, todavia, na esteira da afirmação proposta por MANCUSO, de que o princípio em comento não deturpa a lógica do sistema processual-judicial, pois “não implica, para o Estado-juiz, nenhum engaja-mento com a resolução do mérito das pendências (a solução adjudicada estatal) e, aliás, nem poderia ser de outro modo, porque o direito de ação é abstrato, e, por isso, sua higidez não poderia ficar condicionada a que a pretensão material seja ou não fundada. Não por acaso, o constituinte, acertadamente, valeu-se do verbo apreciar, justamente por sua conotação de neutralidade, já que a apreciação do meritum causae em Juízo tanto pode redundar numa avaliação positiva, como negativa. Aliás, o julgamento do mérito do objeto litigioso (...), implica num reconhecimento implícito de que a ação veio revestida de suas condições de admissibilidade, tendo sido veiculada num processo existente e válido” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo: Acesso à Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 195).

A afirmação de que os preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias “vinculam as entidades públicas”, para não ser uma banalidade, deve ser entendida como um reforço do caráter obrigatório daqueles preceitos constitu-cionais. Referindo a vinculação aos “agentes públicos” e não apenas à actividade, a Constituição parece sublinhar a existência de um dever específico de respeito, de proteção e de promoção dos direitos fundamentais1011.

A assertiva se afirma, com maior vigor, quando apreciada à vista do cotejo entre realidades jurídicas estritas e seus sustentáculos históricos12, vale dizer, com o posicionamento do direito fundamental em estudo na classe de evolução que lhe é afeta, isolando-se, por conseguinte, os mecanismos de efetivação que lhes são peculiares.

Recorrendo à clássica redação das declarações de direitos das democracias ocidentais, não se ignora que aquelas possuem como finalidade expressar determi-nado núcleo de direitos, relevantes para dada sociedade no contexto histórico em que

10 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4.ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 205-206.11 Pontes de Miranda, ao comentar o §4º, do Artigo 150, da Constituição Federal de 1967, sob o aspecto da interação dos Poderes constituídos, afirmara que: “Nenhuma lei pode vedar ao Poder Judiciário aplicar a Constituição, ou qualquer lei. Só o Poder Constituinte pode alterar a Constituição. Se o Congresso Nacional entende que a CEI precisa ser ab-rogada, ou derrogada, ab-rogue-a, ou derrogue-a. não pode determinar que o Poder Judiciário não aprecie qualquer caso em que a lei vigente incidiu ou vai incidir” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968, p. 99).12 Sobre a variabilidade dos direitos afirmados de acordo com determinada realidade histórica, denota Bobbio: “O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, coma a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios dis-poníveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc (...) Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar, como o direito de não portar armas contra a própria vontade, ou o direito de respeitar a vida também dos animais, não só dos homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas” (BOBBIO, Norberto: A Era dos Direitos. 6.tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 18). Não se deve ignorar, todavia, o aviso de Bobbio, presente na página 47 da referida obra, segundo o qual “ a filosofia da história está desacreditada, particularmente no ambiente cultural italiano, depois que Benedetto Croce lhe decretou a morte (...) Mas, diante de um grande tema, como o dos direitos do homem, é difícil resistir à tentação de ir além da história meramente narrativa (...) De acordo com a opinião comum dos historiadores, (...) fazer filosofia das história significa, diante de um evento ou de uma série de eventos, pôr o problema do ‘sentido’, segundo uma concepção finalística (ou teleológica) da história (...), considerando o decurso histórico em seu conjunto, desde sua origem até sua consumação, como algo orientado para um fim, para um télos. José Carlos Vieira de Andrade, por sua vez, observa que os direitos fundamentais surgem como resultado da luta histórica e que a sai cosagração exprime o poder directo ou indirecto que os seus titulares e beneficiários dispõem na sociedade. Os direitos fundamentais dependem, na sua realização histórica, de factores económicos, sociais, políticos e até biológicos ou geofísicos, e por vezes o seu alcance concreto é determinado pelo ‘poder negocial’ de que dispõem as forças políticas e sociais no momento da sua condensação em normas ou no da aplicação destas” (idem, ibdem, p 104).

87Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...86 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

se encontra, o qual poderá o indivíduo13 opor ao Estado14.

Sob a ótica da contemporânea doutrina processualista, o direito em análise mantém em sua órbita de efeitos os caracteres que já lhe eram típicos quando da formulação de seu objeto, na aurora dos direitos do homem.

Significativos são os efeitos que advêm do reconhecimento da estabilidade de seu cerne, cuja análise, novamente, remete à origem das formas dos direitos funda-mentais.

Ao se referir sobre a filosofia motora das declarações do século XVIII, cujo espírito ainda se vislumbra em enunciados contemporâneos, Norberto Bobbio asse-vera que: “em relação aos indivíduos, doravante, primeiro vêm os direitos, depois os deveres; em relação ao Estado, primeiro os deveres, depois os direitos”.

A substituição, em França, do Ancien Régime pela proposição de valores re-publicanos democráticos impusera, in tese, na sustação de fórmulas administrativas, legislativas e judiciárias diversas dos princípios adotados pela Revolução e a suces-são de tais métodos por outros, adequados à nova ordem.

Etapa importante no processo de estabilização dos direitos fundamentais em dada sociedade revela-se na escolha dos meios necessários à modificação do mo-delo esposado previamente, para outro, de índole democrática. Trata-se de definir, mediante escolhas dirigidas a tal finalidade, quais mecanismos são mais idôneos para realizar os direitos dos indivíduos e os deveres dos Estados e vice-versa.

Rodolfo de Camargo Mancuso, ao dissertar sobre o conteúdo do dispositivo em comento, infere que:

o citado inc. XXXV (...) se coloca na esteira de outros ante-riores textos de análogo teor, sendo que, numa visão sere-na e isenta, por aí não se pretende generalizar, prodigalizar ou banalizar o acesso à Justiça, e sim fazer com que aquele dispositivo opere como válvula de segurança do sistema, ou um elemento de contenção em face do Legislativo, ao proibir que certos conflitos sejam, a priori, subtraídos à cog-nição judicial; de outro lado, as disposições daquele gênero

13 Bobbio, ao se referir à Revolução Francesa e os Direitos do Homem, infere que a forma de emanci-pação pretendida pela Declaração de 1789 ao povo francês se baseava em princípios individualistas, cujos alicerces se encontram na obra de Locke, Hobbes (com diferenças significativas de conceito) e de Rousseau. Para o autor: “Concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e não este feito pelo Estado (...). Nessa inversão da relação entre indivíduo e Estado, é invertida também a relação tradicional entre direito e dever (...) na concepção individualista, (...) justo é que cada um seja tratado de modo que possa satisfazer as próprias necessidades e atingir os próprios fins, antes de mais nada a felicidade, que é um fim individual por excelência” (op. cit. p. 56-57). O apontamento que se faz sobre a influência da filosofia individualista afirmada durante o século XVIII é particularmente importante tanto para a compreensão das Declarações que se observam naquela época, quanto as que hodiernamente são anunciadas. Os elementos da referida filosofia influenciaram a linguagem como são verbalizados os direitos que as tais Declarações, representando, assim, importante instrumento de exegese.14 Nessa esteira: Pontes de Miranda, op. cit., Tomo IV, p. 625.

têm a ver com o fato de a nossa Justiça ser unitária, nesse sentido de aqui não ter sido implementado o Contencioso Administrativo15.

Não raro, busca-se efetivar um direito mediante a inação estatal em determina-das realidades da vida humana, com base em normas que revelam, expressamente, o dever de se evitar dado comportamento do ente público.

A prescrição negativa e, por conseguinte, a inação do Poder Legislativo demo-crático nessa seara, seria de todo desnecessária se não se verificasse, de sua parte, vigília permanente para que de sua ação ou omissão indevidas restasse vilipendiado o referido direito, mesmo em perspectiva.

Nelson Nery Júnior corrobora a visão acima delineada, ao asseverar que:

Embora o destinatário principal da norma seja o legislador, o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá à juízo deduzir pretensão (...) Isso quer dizer que todos têm acesso à justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativamente ao um direito. Estão aqui contemplados não só os direitos individuais, como também os difusos e coletivos.

Indelével o traço que o principio em comento apôs na história dos meios de acesso à justiça e, notadamente, da proteção dos demais direitos fundamentais da pessoa humana.

FORMAS ALTERNATIVAS PARA SOLUÇÃO DE CONFLITOS E PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO: NÃO CARACTERIZAÇÃO DE INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA OBRIGATÓRIA

A preocupação e, por conseguinte, o debate sobre a questão nasce a partir da leitura do artigo 5º, XXXV, na Norma Magna, a qual, na primeira etapa do exame exegético, prescreve que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Pergunta-se: Afrontaria a adoção de programa próprio de pacificação extraju-dicial de conflitos da Defensoria Pública, o direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário?

A resposta surge quando da aplicação àquela primeira etapa hermenêutica dos princípios que envolvem o direito em comento.

Nelson Nery Júnior destaca a importância do referido dispositivo para a então nascente democracia brasileira ao se referir sobre a abrangência dedicada pelo Texto de 1988 ao princípio a inafastabilidade da constituição, ao dizer que

A CF. de 1988 não repetiu a ressalva contida no texto revo-gado, de modo que não mais se permite, no sistema cons-

15 Op. Cit, p. 219.

89Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...88 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

titucional brasileiro, a denominada jurisdição condicionada ou instância administrativa de curso forçado (92). Apenas quando às ações relativas à disciplina e às competições esportivas é que o texto constitucional exige, na forma da lei, o esgotamento das instâncias da justiça desportiva (art. 217, § 1º, CF).

Mais adiante, conclui:

O fato de as partes poderem constituir compromisso arbitral, não significa ofensa ao princípio constitucional do direito de ação. Isto porque somente os direitos disponíveis podem ser objeto de compromisso arbitral, razão por que as partes, quando o celebram, estão abrindo mão da faculdade de fazerem uso da jurisdição estatal, optando pela jurisdição arbitral. Terão, portanto, sua lide decidida pelo árbitro, não lhes sendo negada a aplicação da atividade jurisdicional16 (...) Disto se pode concluir (...) que a atividade jurisdicional é típica, mas não exclusiva do Poder Judiciário17.

Gilmar Ferreira Mendes, ao enfrenta o tema, concluir que a enunciação acima aposta não constituiu prerrogativa oponível pelo Poder Judiciário ao jurisdicionado. Tal exegese é obtida a partir do comentário à sistemática da Lei n.º 9.307/96, que institui o sistema nacional de arbitragem:

Com o advento da Lei da Arbitragem abriu-se uma nova via de resolução de conflitos, alheia à jurisdição estatal. A arbitragem consiste em mecanismo extrajudicial de solução de controvérsias, segundo a qual as partes litigantes in-vestem, por meio de uma convenção arbitral, uma ou mais pessoas de poderes decisórios para resolver seus conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. A determinação decorrente da instância arbitral possui eficácia de sentença judicial e, portanto, não sujeita a posterior homologação pelo Poder Judiciário (...) Assim, tema relevante na pers-pectiva da proteção judicial efetiva colocou-se em torno da constitucionalidade da Lei de Arbitragem em face do que dispõe o art. 5º, XXXV, da Constituição18.

Refere-se, ao término do raciocínio, sobre o leading case19, levado ao conheci-

16 NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 1992, p. 86.17 Ibidem, p. 67.18 In: Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva; 2008, p. 497-498.19 EMENTA: 1.Sentença estrangeira: laudo arbitral que dirimiu conflito entre duas sociedades comerciais sobre direitos inquestionavelmente disponíveis - a existência e o montante de créditos a título de comissão por representação comercial de empresa brasileira no exterior: compromisso firmado pela requerida que,

mento do plenário da Corte Suprema, que concluiu pela constitucionalidade da norma e, assim, pela viabilidade da via arbitral para resolução de conflitos patrimoniais.

A afirmação da constitucionalidade dos dispositivos legais era de rigor.

Entendimento análogo é apresentado por Mancuso, que assevera, longe de declarar a existência de um monopólio para o Poder Judiciário, o princípio expresso pela norma em comento adverte sobre a existência um direito individual oponível ao legislador infraconstitucional ou reformador, que deverá pautar seu lavoro de acordo com tal preceito:

Em boa medida, o dissenso que se registra acerca do que realmente se contém no inciso XXXV do art. 5º da CF/88 (dita garantia da universalidade, indeclinabilidade ou inafas-tabilidade da jurisdição) deriva do vezo de se extrair daque-le enunciado mais do que nele se contém, incluída a (vã) tentativa de aninhar o direito de ação, quando na verdade aquele dispositivo não tem como precípuo destinatário o jurisdicionado, e sim o legislador, prevenindo-o para que se abstenha de excluir da apreciação jurisdicional, a priori, certos históricos de lesão ou ameaça a afirmados direitos. Aquela visão constitucional, portanto, não tem o condão

neste processo, presta anuência ao pedido de homologação: ausência de chancela, na origem, de auto-ridade judiciária ou órgão público equivalente: homologação negada pelo Presidente do STF, nos termos da jurisprudência da Corte, então dominante: agravo regimental a que se dá provimento,por unanimidade, tendo em vista a edição posterior da L. 9.307, de 23.9.96, que dispõe sobre a arbitragem, para que, homologado o laudo, valha no Brasil como título executivo judicial. 2. Laudo arbitral: homologação: Lei da Arbitragem: controle incidental de constitucionalidade e o papel do STF. A constitucionalidade da primeira das inovações da Lei da Arbitragem - a possibilidade de execução específica de compromisso arbitral -não constitui, na espécie, questão prejudicial da homologação do laudo estrangeiro; a essa interessa apenas, como premissa, a extinção, no direito interno, da homologação judicial do laudo (arts. 18 e 31), e sua conse-qüente dispensa, na origem, como requisito de reconhecimento, no Brasil, de sentença arbitral estrangeira (art. 35). A completa assimilação, no direito interno, da decisão arbitral à decisão judicial, pela nova Lei de Arbitragem, já bastaria, a rigor, para autorizar a homologação, no Brasil, do laudo arbitral estrangeiro, inde-pendentemente de sua prévia homologação pela Justiça do país de origem. Ainda que não seja essencial à solução do caso concreto, não pode o Tribunal - dado o seu papel de “guarda da Constituição” - se furtar a enfrentar o problema de constitucionalidade suscitado incidentemente (v.g. MS 20.505, Néri). 3. Lei de Arbitragem (L. 9.307-96): constitucionalidade, em tese, do juízo arbitral; discussão incidental da consti-tucionalidade de vários dos tópicos da nova lei, especialmente acerca da compatibilidade, ou não, entre a execução judicial específica para a solução de futuros conflitos da cláusula compromissória e a garantia constitucional da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário (CF, art. 5º,XXXV). Constitucionalidade declarada pelo plenário, considerando o Tribunal, por maioria de votos, que a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória, quando da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar o compromisso não ofendem o artigo 5º, XXXV, da CF. Votos vencidos, em parte - incluído o do relator - que entendiam inconstitucionais a cláusula compro-missória - dada a indeterminação de seu objeto - e a possibilidade de a outra parte, havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, recorrer ao Poder Judiciário para compelir a parte recalcitrante a firmar o compromisso, e, conseqüentemente, declaravam a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 9.307-96 (art. 6º,parág. único; 7º e seus parágrafos e, no art. 41, das novas redações atribuídas ao art. 267, VII e art. 301, inciso IX do C. Pr. Civil; e art. 42), por violação da garantia da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário. Constitucionalidade - aí por decisão unânime, dos dispositivos da Lei de Arbitragem que prescrevem a irrecorribilidade (art. 18) e os efeitos de decisão judiciária da sentença arbitral (art. 31) (STF. AgR n. 5206. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Tribunal Pleno. DJ. 12-12-01).

91Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...90 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

(nem a finalidade) de densificar conceitualmente o direito de ação, nem isso seria viável, dada a competência atribu-ída ao legislador ordinário para dispor sobre matéria pro-cessual (CF/1988, art. 22, I) (...) É dizer (...) não se traduz, nem implica, direta ou indiretamente, em qualquer laivo de monopólio estatal na distribuição da justiça (...)20.

Diferentemente do que expressa o conteúdo negativo da norma constitucional em comento, a institucionalização da arbitragem, assim como de outros métodos lícitos de composição de conflitos, visa, mediante célere e equânime intervenção, pacificar relações humanas marcadas por litígios.

Tal realidade, reconhecida por Ginover, Dinamarco e Cintra, tem como carac-terística fundamental

... a ruptura com o formalismo processual. A desformaliza-ção é uma tendência, quando se trata de dar pronta solução aos litígios, constituindo fator de celeridade. Depois, dada a preocupação social de levar a justiça a todos, também a gratuidade constitui característica marcante dessa tendên-cia. Os meios informais gratuitos (ou pelo menos baratos) são obviamente mais acessíveis a todos e mais céleres, cumprindo melhor a função pacificadora. Por outro lado, como nem sempre o cumprimento estrito das normas contidas na lei é capaz de fazer justiça em todos os casos concretos, constitui característica dos meios alternativos de pacificação social também a delegalização, caracteri-zada por amplas margens de liberdade nas soluções não jurisdicionais (juízos de equidade e não juízos de direito, como no processo jurisdicional) (...) Da conciliação já se falava a Constituição Imperial brasileira, exigindo que fosse tentada antes de todo o processo, como requisito para sua realização e julgamento da causa. O procedimento das reclamações trabalhistas inclui duas tentativas de concilia-ção21. O Código de Processo Civil atribui ao juiz o dever de “tentar a qualquer tempo conciliar as partes” (...). A Lei dos Juizados Especiais é particularmente voltada à conciliação como meio de solução de conflitos, dando a ela especial destaque ao instituir uma verdadeira fase conciliatória no procedimento que disciplina: só se passa à instrução e julgamento da causa se, após toda a tentativa, não tiver sido obtida a conciliação dos litigantes nem a instituição do juízo arbitral (...) A conciliação pode ser extraprocessual ou endoprocessual. Em ambos os casos, visa a introduzir

20 op. cit., p. 219.21 Sobre a visão da doutrina trabalhista, vide ARRUDA, Hélio Mário de et al. A Conciliação Extrajudicial Prévia. Belo Horizonte. Editora Líder; 2002.

as próprias pessoas em conflito a ditar a solução para a sua pendência. O conciliador procura obter uma transação entre as partes (mútuas concessões)22...

Em respeito à voluntariedade das partes, evita-se a submissão da demanda às hastas dos Tribunais, virtualmente preterindo o acesso ao Poder Judiciário, vale dizer, a formalização de uma demanda em processo, que se torna de todo desnecessário em favor de formas mais eficazes para solucionar o conflito posto.

Tal assertiva encontra expresso suporte no próprio Texto Magno, notadamente em seu art. 98, II, o qual prescreve à União, aos Estados, Distrito Federal e Territórios a criação e manutenção da justiça de paz, formada por cidadãos eleitos diretamente pelo voto popular, com mandato de 4 (quatro) anos e com atribuições conciliatórias, sem caráter judicial23. Vale dizer: os sistemas socialmente espontâneos para com-posição de litígios não são proscritos pela ordem constitucional em vigor, a qual, igualmente, informa às unidades federadas a necessidade de manter serviço público destacado para tal mister, donde se conclui a presença de princípios implícitos que referendam vias alternativas para evitar a judicialização excessiva dos conflitos. Não fosse suficiente a ilustração acima, arrematam GRINOVER e colaboradores:

Já a autocomposição, que não constitui ultraje ao monopólio estatal da jurisdi-ção, é considerada legítimo meio alternativo de solução de conflitos, estimulado pelo direito mediante atividades consistentes na conciliação. De um modo geral, pode-se dizer que é admitida sempre que não trate de direitos tão intimamente legados ao próprio modo de ser da pessoa, que a sua perda a degrade a situações intoleráveis.

Canotilho, ao tratar do referido princípio, com especial atenção à cristalização do conflito em verbo e, por conseguinte, sua formalização perante órgão público im-parcial, conclui que

A intervenção do Estado para defender os direitos dos particulares perante os outros particulares torna claro que o particular só pode, em geral, ver dirimidos os litígios perante outros indivíduos através de órgãos jurisdicionais do Estado. Dissemos “em geral” porque hoje se assiste ao desenvolvimento de outras formas de acesso ao direito fora dos esquemas organizatórios estatais. Essa “dependência” do direito de prestações estatais justifica a afirmação cor-rente de que o conteúdo essencial do direito de acesso aos tribunais é a garantia da via judiciária (= “garantia da via ju-dicial”, “garantia da proteção judicial, “garantia da proteção através dos tribunais”)24.

22 In: Teoria Geral do Processo. 21.ed. São Paulo: Malheiros; 2005, p. 30.23 Na Constituição de 1988 é prevista a restauração da antiga Justiça de Paz, com “atribuições concili-atórias, sem caráter jurisdicional” (Idem, Ibidem. p. 30).24 CANOTILHO, J.J.G. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina; 2006, p. 496.

93Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...92 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

A conclusão lusitana é compartilhada pela doutrina d´além mar. Depreende--se da lição de Mancuso25, por exemplo, que o verbo do direito fundamental contido no inciso XXXV, Art. 5º, CF/88, destina-se a salvaguardar o jurisdicionado de ação prejudicial do Poder Legislativo de imitir na ordem jurídica pátria hipóteses de lesões ou ameaças a direitos individuais, lato sensu, difusos e coletivos, que, a priori, exclua a possibilidade de levar ao conhecimento do Poder Judiciário.

LINHAS GERAIS SOBRE A POLÍTICA DE PACIFICAÇÃO ALTERNATIVA DE CONFLITOS: PODER JUDICIÁRIO E DEFENSORIA PÚBLICA

O Poder Judiciário nacional, em que pese a existência de inúmeras determina-ções legais para o desenvolvimento e gestão de núcleos ou procedimentos extrajudi-ciais para a resolução de conflitos, quedou-se inerte durante o correr dos 22 (vinte e dois) anos desde a promulgação do Texto Maior, salvo exemplos episódicos26.

Doutrina recomendada indica que os países de cerne latino mantêm forte cul-tura baseada na submissão de conflitos à análise judicial. Não por outro fundamento, crê-se na maior efetividade e imperatividade dos pronunciamentos judiciais, que se substituem à vontade dos interessados e, paternalmente, dispõe o bem da vida de acordo com a ascese peculiar ao processo.

Lia Regina Castaldi Sampaio e Adolfo Braga Neto indicam que:

Em todos os países de língua latina é notória a existência do paradigma de que a justiça ou acesso à justiça é sinônimo de recorrer ao Poder Judiciário para que este delibere sobre as questões. Tal fato leva a ilusão de que o sistema judicial atende a todos os direitos, interesses e necessidades dos cidadãos. Com isso, fica de lado a possibilidade de alcan-çarem seus objetivos pelo emprego de outros instrumentos mais pacíficos, cuja característica básica é a negociação. A falta de tradição nesses países (...) leva a compreensões equivocadas do que são os institutos da mediação e da conciliação27.

Tal realidade tende a ser modificada, haja vista que, em 12 nov. 2010, por ato da Presidência do C. Conselho Nacional de Justiça foi publicada a Resolução n.º 125, que instituiu o projeto nacional de conciliação. Conforme se depreenda do diploma em comento, aquele deverá ser levado a efeito pelo Poder Judiciário, mas com a colaboração dos atores indicados pelo seu art. 5º, VI. Vale notar, ainda, que, por seu artigo 7º, cometeu o C. Conselho o dever de todo Tribunal pátrio estabelecer, em um

25 Vide nota n. 17.26 “A conciliação extraprocessual, tradicional no Brasil mediante a atuação dos antigos juízes de paz e pela obra dos promotores de justiça em comarcas do interior, ganhou especial alento com a ‘onda renovatória’, voltada à solução das pequenas causas. Foram inicialmente os Conselhos de Conciliação e Arbitramento, instituído pelos juízes gaúchos, depois, os Juizados informais de Conciliação, criados em São Paulo para tentar somente a conciliação de pessoas em conflito sem nada julgar em caso de não conseguir con-ciliá-las” (GRINOVER et al., op. cit. p. 30).27 SAMPAIO, Lia Regina Castaldi et al. O que é mediação de conflitos. São Paulo: Brasiliense; 2010, p. 17.

prazo de 30 (trinta) dias contados de sua edição, setor permanente para Solução de Conflitos e Cidadania, cujas atividades primordiais serão a conciliação e a mediação.

Idêntico raciocínio pode ser estabelecido em face dos princípios institucionais da Defensoria Pública nacional.

Segundo a lição de Paulo César Ribeiro Galliez, o princípio da independência funcional

assegura a plena liberdade de ação ao Defensor Público perante os órgãos da administração pública, especialmente o judiciários (...) o princípio em destaque elimina qualquer possibilidade de hierarquia em relação aos demais agentes públicos do Estado, incluindo os magistrados, promotores de justiça, parlamentares, secretários de Estado e delega-dos de polícia (...) Segundo Sílvio Moraes, pelo princípio da independência funcional, a Defensoria Pública cumpre seu dever constitucional de manutenção do Estado Democrático de Direito, assegurando a igualdade substancial entre todos os cidadãos, bem como instrumentalizando o exercício de diversos e garantias individuais, representando, junto aos Poderes constituídos, os hipossuficientes, não raras vezes contra o próprio Estado, situação em que é necessário que a Defensoria Pública guarde uma posição de independência e autonomia em relação aos demais organismos estatais e ao próprio Poder ao qual se encontra, de certa forma, vinculada.

E, como perfeito exemplo da realização do supracitado princípio, aduz

Como corolário da independência funcional, seguem-se as prerrogativas dos Defensores Públicos e sua finalidade consiste em adequar a eficiência do serviço com a demanda existente, haja vista o volume de ações judiciais propostas e o acompanhamento de processos,cuja movimentação nos foros de diversas comarcas atinge o percentual de 80% (oitenta por cento)28.

A análise dos parágrafos acima, permite concluir de que a inovação está rigorosamente concorde com o princípio em apreço, o qual não veicula matéria ilícita e compreende medida análoga à tomada pelo Poder Judiciário. Ademais, temos, a título de exemplo, que, no Estado de São Paulo, as práticas de conciliação compreendem deveres funcionais tanto dos Defensores Públicos29 do Estado quanto dos Agentes dos Centros de Atendimento Multidisciplinar30.

28 In: Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 5.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2010, p. 53-54.29 Artigo 5º, VI, a, Lei Complementar Estadual n. 988-06.30 Artigo 69, Lei Complementar Estadual n. 988-96, c-c artigo 5º, VIII, da Del. CSDP n. 187-10.

95Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...94 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

DAS FORMAS ALTERNATIVAS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E DA VOLUNTARIEDADE DAS PARTES

Como acima se observa, a Resolução CNJ n.º 125/10 indicou como formas de resolução de conflitos tanto a conciliação quanto a mediação. Conforme a lição de Liabe Maria Busnello Thomé,

A forma de enfrentar os conflitos pode determinar a dife-rença nas soluções dos impasses surgidos das relações entre pessoas no seio familiar, profissional e social (...) O Poder Judiciário, usando, de suas faculdades legais, tem por objetivo dar fim ao conflito, decidindo os assuntos postos pelas partes, sob o enfoque jurídico da procedência ou da improcedência da ação, ou seja, do ganhador e do perdedor da demanda. Nessa solução tradicional, o Judi-ciário não escuta os anseios, desejos, aflições, angústias e expectativas das partes, apenas decide o processo, pon-do fim à lide. No Judiciário não há espaço para oferecer atenção às carências emocionais das partes envolvidas em conflito (...). Resta um hiato entre o desejo de cada parte de ser ouvida e compreendida no seu conflito quando ingres-sa no judiciário e a solução imposta no julgamento (...) As soluções impostas, quando não adequadas à realidade e desejo das partes, tendem a não ser cumpridas, especial-mente no núcleo familiar, onde existem regras próprias de comportamento assimiladas e seguidas pelos membros da família que, mesmo frente a uma decisão judicial, deixam de cumprir o estabelecido na sentença31.

Para a autora, portanto, à parte da existência de um Poder constituído, cuja finalidade é exatamente conhecer e julgar pedidos, o resultado final da lide não será verdadeiramente satisfatório às partes, as quais, em que pese envolvidas na discus-são do feito, falam por meio de profissionais habilitados. Têm seu momento verbal privado e, dessa forma, a pendência anterior permanecerá inculcada e, em outras palavras, não resolvida.

A resolução da lide, sugere a autora, deveria ser observada mediante a aplica-ção de um método alternativo, o que mais adequado ao caso posto em análise.

Ao dissertar sobre os meios alternativos de solução de conflitos, infere que:

É comum (...) a confusão acerca da prática da mediação, com a prática da negociação, da conciliação e da arbitra-gem. A negociação busca a solução de um conflito por meio da comunicação direta e aberta entre os envolvidos no im-passe, sendo um elemento importante e muito utilizado nos relacionamentos humanos (...) A conciliação é outra forma

31 THOMÉ, Liane Maria Busnello. Dignidade da Pessoa Humana e Mediação Familiar. Porto Alegre: Livrar-ia do Advogado, 2010.

de solucionar o conflito e tem previsão em nosso sistema jurídico, de forma ampla no artigo 125, inciso IV, do Código de Processo Civil, de forma mais restrita no artigo 331 do mesmo diploma legal, e de forma obrigatória nos Juizados Especiais Cíveis (...). O conciliador busca a aproximação entre as partes, sugerindo alternativas, tendo em vista a composição do litígio. A conciliação significa uma discussão aberta e direta entre as partes, podendo acontecer, antes de ser instaurado um processo litigioso, como alternativa de aproximação das partes, em razão de sua força e poder em estabelecer um relacionamento harmonioso entre as partes em conflito, influindo no acordo, ou após estabele-cido o contencioso (...) A mediação vem se apresentando como uma escolha das pessoas que recorrem a um terceiro imparcial, encontrando na figura do mediador um auxiliar na construção de um acordo elaborado pelas próprias partes com soluções adequadas e satisfatórias a ambas, estimu-lando o singular caminho de cada pessoa encontrar seu bem-estar naquela situação de conflito32.

E conclui:

A mediação representa uma ferramenta de concretude do princípio da dignidade da pessoa humana, trazendo para a solução de conflitos os princípios da solidariedade, da pluralidade, da isonomia, da liberdade e da autonomia da vontade nas relações familiares, possibilitando o desenvol-vimento dos valores de cooperação, colaboração mútua, sem hierarquia de pessoas, com liberdade para escolherem se responsabilizarem e se vincularem a ajustes próprios para suas famílias no momento da ruptura33.

A doutrina especializada, na mesma esteira dos práticos das medidas alterna-tivas para solução de conflitos, ressalta a fundamental diferença entre os efeitos apu-rados em um processo judicial instaurado, no qual a vontade das partes, verbalizada por terceiros, é submetida à figura imparcial sem que se dedique àquelas a possibili-dade de influir positivamente na resolução da lide. Ao contrário, os meios alternativos acima indicados têm como principais atores as partes em conflito, as quais, de forma equânime, apresentam suas demandas, seus pontos de vistas e obtêm solução para o caso e para o conflito humano em que estão inseridas.

Considerando a legalidade de um programa próprio de pacificação extrajudicial de conflitos da Defensoria Pública, resta discutir a compatibilidade deste com uma proposta concreta que, além de consonante com a concepção de um acesso à justiça de forma ampla, possa de fato promover o incremento de resoluções autocompositi-vas no âmbito da Defensoria Pública.

32 In: Dignidade da Pessoa Humana e Mediação Familiar. Porto Alegre: Do Advogado; 2010, p. 114-116.33 Ibidem. p. 129.

97Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...96 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Um aspecto fundamental dessa discussão que se pretende destacar refere--se à entrada do cidadão nos serviços de resolução extrajudicial de conflitos, seja pela forma da conciliação, da mediação ou outra. Considerando “o paradigma de que a justiça ou acesso à justiça é sinônimo de recorrer ao Poder Judiciário para que este delibere sobre as questões” (SAMPAIO; BRAGA, 2010), como implantar um serviço que de fato se proponha a modificar esse contexto cultural? Sem prejuízo da absorção da demanda espontânea da população pela formalização de uma solução consensual do conflito, como viabilizar que partes verdadeiramente em litígio possam sentar conjuntamente em uma mesa de negociação?

Uma primeira hipótese que poderia ser utilizada nas Defensorias Públicas, em analogia à experiência dos tribunais de Justiça em conciliações e mediações no âmbito processual e atuação dos juízes, seria estabelecer como porta de entrada do cidadão ao serviço de resolução autocompositiva de conflitos o encaminhamento e orientação dos Defensores Públicos. Desse modo, ainda que o cidadão compartilhe do paradigma de uma Justiça que seja restrita a deliberação do Poder Judiciário sobre suas questões, a experiência de uma negociação autocompositiva do conflito, mesmo que restasse infrutífera, passaria a integrar o rol de etapas para o desenvol-vimento de sua pretensão. Considerando que certamente parte dessas negociações que restarão frutíferas e que, nos demais casos, ao menos o cidadão terá conhecido método alternativo para resolução de futuros litígios, parece, à primeira vista, tratar-se de uma hipótese consonante com os objetivos que visam fomentar a pacificação de conflitos e a superação do paradigma de Justiça ora vigente.

Entretanto, é possível discutir mais profundamente a inserção dos métodos alternativos de resolução extrajudicial de conflitos no âmbito das instituições do siste-ma de Justiça. Ainda que a orientação e o encaminhamento do cidadão a um serviço de conciliação ou mediação se pautem na dimensão da análise técnica do Defensor Público sobre o caso concreto, é possível identificar que uma decisão balizada exclu-sivamente por esses parâmetros implica contradição com uma proposta que pretende fomentar a resolução autocompositiva dos conflitos. Isto porque a efetividade de um processo de resolução autocompositiva do conflito, seja ela por meio da conciliação, da mediação ou da negociação direta, tem como premissa fundamental a voluntarie-dade das partes. Dessa maneira, o processo autocompositivo a ser deflagrado por decisão heterônoma, ainda que técnica, do Defensor Público resultaria nos seguintes obstáculos a uma proposta de fomento da resolução autocompositiva de conflitos:

a) prejuízo quanto à efetividade do processo autocompositivo. O resultado fru-tífero de um processo autocompositivo, antes da disponibilidade das partes em conciliar, depende da disponibilidade em negociar. O descarte dessa voluntariedade, preliminar ao processo autocompositivo, por consequência, implicará esvaziamento do processo de negociação, além de torná-lo mais desgastante e potencialmente infrutífero;

b) prejuízo quanto ao acesso aos trabalhos de resolução autocompositivas de conflitos. Se o Defensor Público em seu entendimento não considera a conciliação como a orientação jurídica mais adequada, ainda que seja possível no caso concreto uma autocomposição, esta não será apresentada como alternativa ao usuário, que por consequência não terá a possibilidade de optar por ela.

Em relação ao primeiro tópico, destaca-se que a voluntariedade é um dos prin-cípios norteadores do processo autocompositivo. A autonomia de vontade das partes ou o princípio da consciência relativa ao processo ou simplesmente a voluntariedade referente ao processo autocompositivo da mediação, estabelecem que as partes devem estar cientes das consequências de sua participação no processo autocom-positivo. Segundo Sampaio e Braga (2010):

O caráter voluntário do Processo de Mediação deve ser entendido no patamar máximo em que essa expressão é compreendida. Significa garantir às partes o poder de opta-rem pelo processo uma vez conhecida essa possibilidade, administrar o conflito da maneira que bem desejarem ao estabelecer diferentes procedimentos e total liberdade de tomar as próprias decisões durante ou ao final do processo. (p. 35)

Cabe ressaltar que o caráter voluntário vale também para os processos de conciliação ou de mediação avaliadora ou diretiva (ALMEIDA, 2003)34, uma vez que apesar dessas metodologias implicarem uma participação mais ativa do terceiro facili-tador, ainda permanece o impedimento de que nessa intervenção não se pode decidir pelas partes (impedimento não só metodológico como também legal). Ao se observar que o processo voluntário será inevitavelmente observado no decorrer do processo, torna-se a premissa de voluntariedade das partes já no momento do encaminhamen-to aos trabalhos de resolução autocompositiva dos conflitos, mais do que afirmação ideológica, uma racionalidade e economia de procedimentos. Alguém disposto a ne-gociar seus pedidos explícitos em prol da efetivação de seus interesses (muitas vezes latentes) aceitará a tentativa de conciliação ou mediação seja ele questionado no momento do seu encaminhamento, seja na data de retorno para a sessão com o me-diador/conciliador. O mesmo ocorre na situação inversa, com o prejuízo de que nesse segundo caso a negativa pode amplificar o conflito, o desgaste das partes com a situação, além de resultar em um dispêndio de recursos da instituição e dos usuários para realização de uma tentativa de acordo fadada desde o princípio ao fracasso pela indisponibilidade das partes em negociar. Para enfrentar esse problema, portanto, é possível concluir que antes mesmo do encaminhamento do usuário aos trabalhos de conciliação ou mediação deve-se garantir a voluntariedade das partes para o início de uma tentativa de resolução autocompositiva do conflito. Porém, o problema do estabelecimento desse quarto parâmetro situa-se em: como garantir voluntariedade? Questionar o usuário dos serviços da Defensoria Pública se este aceita participar de uma conciliação seria garantir voluntariedade?

Para discutir essa questão podemos recorrer a outro princípio da mediação téc-nica, estritamente ligado a possibilidade de escolha da parte: o princípio da decisão informada. Sobre o princípio da decisão informada (AZEVEDO, 2010):

34 ALMEIDA, F, P. L. de - A teoria dos jogos: uma fundamentação teórica dos métodos de resolução de disputa. In: AZEVEDO, A. G. Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Vol 2. Brasília: Grupos de Pesquisa, 2003.

99Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...98 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

o princípio da decisão informada estabelece como condição de legitimidade para a autocomposição a plena consciência das partes quanto aos seus direitos e a realidade fática na qual se encontram. Nesse sentido, somente será legítima a resolução de uma disputa por meio de autocomposição se as partes, ao eventualmente renunciarem a um direito, tiverem plena consciência quanto à existência desse seu direito subjetivo.

A partir dessa concepção, percebe-se que a legitimidade de uma autocomposi-ção está intrinsecamente associada ao conhecimento que a pessoa detém das reais possibilidades sobre as quais ela pode decidir. Se este princípio legitima as decisões da parte quanto aos interesses que vem pleitear junto a Defensoria Pública, pode ser utilizado também para tornar legitima sua decisão sobre a maneira com a qual deseja que a Defensoria Pública atenda seus interesses.

Contudo, o esclarecimento ao usuário sobre a realidade fática das possibilida-des de encaminhamento do seu conflito que inclua o reconhecimento da via pacífica, não é tarefa que se supere com o simples enunciado sobre a existência dos trabalhos de autocomposição. Ainda sobre o cumprimento do princípio da decisão informada observa-se que “frequentemente as partes têm suas percepções quanto aos fatos ou aos seus interesses alteradas em razão do envolvimento emocional de uma disputa” (AZEVEDO, 2010). Exige-se então do profissional responsável por informar ao usuário sobre a via de resolução pacífica do conflito, tanto o conhecimento objetivo das van-tagens que o processo autocompositivo oferece, quanto habilidades comunicativas mínimas, utilizadas nos próprios processos de autocomposição. A implicação prática desse raciocínio é que o conhecimento técnico do trabalho autocompositivo, mais do que ser confinado a setores especializados de conciliação e/ou mediação, deve ser absorvido pelo próprio sistema de atendimento inicial das Defensorias Públicas.

Quanto ao segundo aspecto em comento, relacionado ao acesso do usuário da Defensoria Pública aos trabalhos autocompositivos, quando se discute que a decisão técnica do Defensor Público no caso concreto pode obstaculizar um trabalho poten-cialmente frutífero de resolução extrajudicial autocompositiva, não se pretende com isso ignorar ou contrapor a existência de situações em que a tentativa de resolução extrajudicial não deva ser utilizada, como, por exemplo, nos casos em que há risco de perecimento de direito. No entanto ponderamos que o convite à conciliação ou à mediação que tem como premissa a decisão técnica da melhor alternativa, se é indispensável para avaliar se a via extrajudicial de resolução de conflitos prejudicaria o pleito jurídico, legitima também decisões onde a ação judicial pode ser a opção tomada pelo Defensor Público no caso concreto sem que via extrajudicial causasse prejuízo ao direito pleiteado pelo usuário da Defensoria. Nesses casos, seria a análise técnica instância necessária ou adequada para selecionar os casos em que deverão ser oferecidos os trabalhos de resolução autocompositiva?

Primeiramente destaca-se que a hipótese que pressupõe a análise técnica do Defensor Público como parâmetro de decisão para o convite aos trabalhos de conciliação e mediação não apresenta inovação, mas apenas estende a esta seara padrão de funcionamento já existente no atendimento da Defensoria Pública para

outras demandas que cheguem à instituição. A proposição de uma outra maneira de se processar essa decisão, portanto, passa pela discussão dos fundamentos que permeiam a organização de atendimento da própria Defensoria Pública.

Apesar dos avanços e inovações legislativos e institucionais no caminho para uma visão de acesso à justiça amplo, o sistema de atendimento das Defensorias Públicas ainda preservam em sua organização suas raízes historicamente ligadas à lógica do sistema jurisdicional, que privilegia a prestação da assistência judiciária individual, e na qual não é pela palavra direta do interessado que se efetiva o direito. A proposta de um trabalho de resolução autocompositiva do conflito diverge desta lógica e por essa razão, mais do que se acomodar como alternativa dentro do sistema, exige a critica de seus paradigmas. A título de ilustração, no contexto prático pode-se ob-servar que ao socorrer-se da Defensoria Pública no estado de São Paulo, o cidadão, que passa a ser identificado como assistido (cuja própria denominação evidencia o caráter passivo de sua posição), tem como primeiro efeito de seu pedido sua tradução em demanda jurídica que possa, ou não, ser representada. Todos os demais atos ou desdobramentos seguintes partem dessa primeira avaliação. Em caso afirmativo, de demanda que possa ser representada pelo Defensor Público, este imediatamente as-sume o lugar de representante jurídico e oferece o que em sua avaliação é a melhor alternativa técnica para a demanda em questão, momento no qual, se inseriria a alter-nativa de resolução extrajudicial do conflito. No entanto, a resolução autocompositiva dos conflitos não deve corresponder à alternativa equivalente às demais orientações jurídicas a serem realizadas pelo Defensor Público. Estas, se têm como finalidade a preservação do direito em si, têm também como ponto de partida um problema já traduzido em demanda jurídica e, nesse contexto, já partem da premissa da delega-ção da responsabilidade sobre o problema ao saber técnico Defensor Público. O que a resolução autocompositiva de conflitos oferece é uma alternativa que é anterior a submissão dos interesses do usuário à decisão técnica de qualquer ordem. Seguindo esse raciocínio, em um serviço de resolução consensual dos conflitos administrativa-mente coerente aos princípios da autocomposição dos litígios, o oferecimento deste ao usuário da Defensoria Pública não deve estar submetido à avaliação técnica do Defensor no caso concreto, mas sim ser apresentado em todos os casos onde o serviço é aplicável, como alternativa à tradução do conflito em demanda jurídica. De outro lado, esse entendimento busca afastar também qualquer interpretação em que o esclarecimento do usuário sobre as formas alternativas de solução do conflito pudesse ser visto como vinculação da atuação técnica do Defensor Público em sua atividade-fim. Diferentemente, tratar-se-ia de uma alternativa institucional a ser ofere-cida preliminarmente ou concomitantemente ao início da atuação jurídica do Defensor Público no caso concreto.

Conclui-se que uma proposta institucional de atuação da Defensoria Pública que estimule a resolução extrajudicial de litígios, para além de sua legalidade, deve se coadunar com os princípios dos métodos alternativos de resolução autocompositiva dos conflitos. São premissas que podem nortear a implementação desses serviços: a) que se garanta a voluntariedade das partes para o início de uma tentativa de resolução autocompositiva do conflito; b) que o oferecimento do serviço de conciliação ao usuá-rio da Defensoria se paute pelo princípio de decisão informada, com a apresentação tecnicamente adequada do trabalho; c) como corolário, que o conhecimento técnico do trabalho autocompositivo, abranja conciliadores, mediadores e demais atores do

101Entre a lei e a voluntariedade: o modelo institucional de resolução extrajudicial...100 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

sistema de atendimento inicial da Defensoria Pública; d) que o trabalho de conciliação ou mediação seja oferecido em todos os casos onde a resolução autocompositiva é aplicável.

CONSIDERAÇÕES FINAISComo fundamento comum às questões debatidas, destaca-se ainda que o

fomento de resoluções autocompositivas de conflito ultrapassa o mero oferecimento de um serviço especializado, demandando também uma atuação de educação em direitos. Trata-se de grande desafio trabalhar no sentido de uma responsabilização das pessoas para a resolução de seus conflitos porque não se trata de fenômeno espontâneo, principalmente em um contexto sócio-histórico no qual o ideal de conhecimento e Verdade centra-se na figura do especialista (que, por sua condição especial, teria o poder de “escolher melhor”) e para uma população (na qual estamos todos incluídos) cuja cultura de desigualdades econômicas, injustiças sociais e políticas paternalistas nos acostumaram a modelos decisórios hierárquicos e verticais. Ainda sobre a voluntariedade, aponta o professor André Gomma Azevedo, no Manual de Mediação Judicial “a participação voluntária se mostra necessária, em especial em países que ainda não desenvolveram uma cultura autocompositiva adequada, para a obtenção de resultados legítimos”. Mais do que garantir a legitimidade dos resultados deve-se enfrentar o desafio de intervenção na cultura, ao menos naquilo em que a missão institucional impele às Defensorias Públicas realizar.

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DA VISÃO TRICOTÔMICA À VISÃO COMPLEXA DO DIREITO - UM NOVO PARADIGMA

Bruna Molina Hernandes da CostaDefensora Pública do Estado. Especialista em Direito Processual Civil. Mestranda na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em Direito das Relações Sociais, subárea direitos difusos e coletivos.

INTRODUÇÃO

A dicotomia Direito Público versus Direito Privado, ainda ministrada nas facul-dades de Direito, encontra-se mais do que superada. Com o surgimento da sociedade moderna, massificada, consumerista, desenvolveu-se a visão tricotômica do Direito, que alia a estes dois conceitos a categoria dos direitos Difusos, categoria esta que abrange princípios tanto do Direito Privado quanto do Direito Público.

O que se buscará no presente artigo é superar também a visão tricotômica do Direito, por meio da demonstração de um novo paradigma. Apresenta-se, assim, como base teórica desta nova visão, chamada visão complexa do Direito, a teoria da complexidade, desenvolvida pelo filósofo francês Edgar Morin.

Importante frisar que não iremos discutir a teoria da complexidade, não tendo esta sido pesquisada na visão de outros estudiosos. Baseamos nossas divagações apenas nos ensinamentos de Morin, visando utilizá-los para melhor entender as divi-sões do direito e sua necessidade de superação.

SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA DIREITO PÚBLICO VERSUS DIREITO PRIVADO

O Direito Romano, base de toda nossa estrutura jurídica, se baseava em uma tutela de interesses estritamente individuais, posto que eram os interesses individuais que estavam no centro das atenções da sociedade antiga. Após a revolução france-sa, se acentua a ideia do direito individual como fundamento da tutela jurisdicional.

Foi no Corpus Iuris Civilis Justinianeu, em definição de Ulpiano1, que se diferen-ciou o Direito Público e o Direito Privado como aquele referente ao Estado e à pessoa,

1 Reale (2002, p. 339).

105Da visão tricotômica à visão complexa do direito - um novo paradigma104 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

respectivamente. Todo pensamento jurídico antigo e contemporâneo estruturaram-se pautados neste conceito.

Assim, tradicionalmente, a classificação do direito é dividida entre público e privado.

Na lição da professora Rosa Nery, “as situações jurídicas privadas pautam--se pela igualdade e pela liberdade, enquanto as situações jurídicas públicas têm embasamento em princípios diferentes, dos quais os da autoridade e da competência são os mais marcantes”2. Ainda no dizer da citada jurista, tal diferenciação entre as situações privadas e públicas acabou por resultar na diferenciação e divisão das disciplinas, jurisdições e ramos de atividade profissional em segmentos do Direito Público e do Direito Privado.3

Tal diferenciação baseia-se em diversos critérios, a saber, o tipo de interesse jurídico que se busca resguardar, a natureza jurídica do sujeito de direito sob análise ou a qualidade da posição jurídica de tal sujeito.4

Muitos defendem que a finalidade da criação deste dualismo foi a necessidade de se resguardar o indivíduo dentro da sociedade e face ao Estado. As regras de Direito Público diriam respeito às estruturas de poder, enquanto às regras de Direito Privado buscariam a mantença da liberdade, intimidade e dignidade do homem, sem a ingerência das sobreditas estruturas de poder.

Já o professor Miguel Reale entende que “toda ciência, para ser bem estudada, precisa ser dividida, ter suas partes claramente discriminadas”5. Assim, ele defende a distinção entre Direito Público e Direito Privado, distinguindo tais categorias de acordo com o conteúdo ou objeto da relação jurídica e quanto à forma da relação existente6.

Ocorre que, com a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra na segunda me-tade do século XVIII e difundida para outros países, deu-se o ponto de partida para o fenômeno da massificação social, caracterizado por grandiosas transformações que culminaram na edificação da chamada sociedade de massa.

2 Nery (2002, p. 91-92).3 Nery (2002, p. 92).4 Na lição da professora Rosa Nery, “quem opta pelo primeiro critério de distinção parte do pressuposto de que o sistema de Direito público visa à proteção de interesses públicos, enquanto o sistema de Direito privado corresponderia à proteção de interesses privados. Na seqüência, o segundo critério busca distin-guir o Direito público do privado a partir da natureza do sujeito de Direito, o que implica dividir as normas jurídicas a partir dos sujeitos aos quais elas são endereçadas. Se dirigidas ao Estado, são normas de Direito Público; se endereçadas aos particulares, normas de Direito privado. Num terceiro momento, con-sidera-se de Direito público a situação jurídica vivenciada pelo sujeito que atua com poderes de autoridade (ius imperii), e de Direito privado a situação de quem atua sem a invocação desses poderes” (NERY, 2002, p. 93).5 Reale (2002, p. 339). 6 Na lição do professor, “Quando é visado imediata e prevalecentemente o interesse geral, o Direito é público. Quando imediato e prevalecente o interesse particular, o Direito é privado. Se a relação é de co-ordenação, trata-se, geralmente, de Direito Privado. Se a relação é de subordinação, trata-se, geralmente, de Direito Público” (REALE, 2002, p. 340).

A estrutura social dos países que adotaram a industrialização foi alterada radi-calmente, resultado da agregação do trabalho de máquinas ao humano e transforma-ção da fábrica no centro da vida social e econômica. Em consequência, acelerou-se a urbanização, bem como os problemas próprios de cidades sem a organização e gestão adequadas para proporcionar uma vida digna aos seus habitantes. Dessa massificação, evidenciaram-se interesses e conflitos de massa, os quais, respectiva-mente, exigiram do Direito o reconhecimento e a criação de instrumentos adequados de tutela.

Em decorrência desta massificação social, intensificada após a Segunda Guer-ra Mundial, os conflitos, principalmente ligados às relações de trabalho, ao consumo, ao meio ambiente, à saúde, à educação, ao transporte, à tributação, à moradia e à segurança, ganharam dimensão ampliada, de massa, não mais se limitando à di-mensão meramente individual. Assim, verificou-se que tais conflitos evidenciavam a existência de uma nova espécie de interesses – os metaindividuais -, cujo traço mais característico é a plurissubjetividade, tendo peculiaridades que não permitiam o enquadramento conceitual em nenhuma das duas categorias de direitos até então reconhecidas pelo Estado, isto é, os direitos públicos e privados.

Os ditos interesses metaindividuais, compreendem aqueles que extrapolam a órbita individual, para se inserirem num contexto global, na ordem coletiva

Dessa forma, a lei desloca a atenção do indivíduo para o fato, concentrando--se em regular os fatos sociais, fazendo com que os acontecimentos da vida em sociedade se submetam ao regramento legal, sem com isso estabelecer previamente a fórmula de sua solução, mas oferecendo caminhos diversos.

A própria essência do conceito de interesses difusos nos leva a uma nova caracterização dos direitos.

A dicotomia público/privado destoa dessa moderna concepção de direito, pois leva em conta a qualidade jurídica da pessoa sem se preocupar em atentar para a lesão por ela sofrida, sua abrangência, e, por via de consequência, sem atentar para a reparação do dano em si mesmo, globalmente.

A antiga classificação entre direito público/privado não leva em conta a lesão nem sua forma de reparação, mas apenas as pessoas envolvidas no litígio, estrei-tando o espectro jurídico, deixando de contemplar aqueles direitos que não estão na esfera pública ou privada, mas que dizem respeito a todos indistintamente.

Isso ocorre em razão da forma tradicional de enfrentar as questões jurídicas a partir do individualismo encravado na sociedade que se reflete na lei, na medida em que o ordenamento jurídico é espelho de seu tempo.

A classificação que emerge com o novo ordenamento jurídico é resultado da sociedade de massa que surge no século XX e se aprimora no século XXI, na qual as relações jurídicas não se projetam em indivíduos determinados, mas em fenôme-nos coletivos, cujos danos são de uma nova espécie, cuja extensão e a forma de reparação não podem mais ser determinadas individualmente. A complexidade cada vez maior da sociedade moderna e pós-moderna dá lugar a atividades que podem trazer prejuízos aos interesses de um grande número de pessoas, fazendo surgir

107Da visão tricotômica à visão complexa do direito - um novo paradigma106 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

problemas ignorados às demandas individuais. E tais lesões têm-se tornado cada vez mais frequentes em nossa sociedade de consumo e de massa.

Assim, com o surgimento dos direitos metaindividuais, transindividuais ou di-reitos difusos lato sensu, percebeu-se o verdadeiro abismo existente entre Direito Público e Direito Privado.

Os direitos difusos não se inserem em nenhuma dessas categorias, vez que possuem caracteres típicos de ambos os conceitos doutrinários, mostrando que, atu-almente, tais conceitos são amplamente coligados.

Atentamos para a publicização do Direito Privado e para a privatização do Di-reito Púbico. Evidências deste fenômeno estão no Direito do consumidor e no Direito ambiental, que visam proteger um bem difuso e coletivo, o direito a um produto que não cause danos à saúde e segurança, a uma biosfera saudável, por meio de dispo-sitivos do Direito Público. Também, este novo fenômeno é explicitado pela entrada da empresa na atividade pública, notoriamente pelas parcerias público-privadas (PPPs). Isso traz ao Direito Público institutos caracteristicamente privados.

Com a superação da citada dicotomia, muitos autores apontam para o surgi-mento da divisão tricotômica no direito moderno que, ao lado dos direitos públicos e privados, passa a dar tratamento autônomo e diferenciado aos interesses transindi-viduais, os quais, para os defensores desta corrente, não se confundem nem com os direitos privados, tampouco com os direitos ditos públicos.

Diferencia-se do direito privado por abranger situações em que interesses de mais de uma pessoa estão sob proteção, e não apenas interesses de um indivíduo. Ainda, protegem-se, nestes casos, interesses gerais, de toda a sociedade, que per-tencem a todos e a ninguém ao mesmo tempo.

Diferencia-se do direito público, pois, quando se fala em público, pensa-se em algo que não é do indivíduo, mas que é do governo, que é do Estado, e não da sociedade enquanto tal, por vezes até mesmo contraposta ao Estado. E este não é o caso dos direitos difusos, que pertencem à sociedade, por vezes possuindo o Estado como parceiro, e não se opondo a ele.

Porém, ao mesmo, tempo, há diversas zonas de intersecção dos direitos ditos difusos tanto com o direito público quanto com o direito privado, vez que até entre estes mesmos existem tais coincidências.

Atualmente, na vida prática, tais diferenciações têm perdido o sentido, vez que, cada vez mais, o direito deve ser entendido como um todo. Está ocorrendo uma mudança de paradigma.

BREVE OLHAR SOBRE A TEORIA DA COMPLEXIDADE, DE EDGAR MORIN

Edgar Morin é um filósofo francês da atualidade, nascido em Paris, em 1921, e formado em História, Geografia e Direito, tendo migrado para a Filosofia, Sociologia e Epistemologia após ter participado da resistência ao nazismo durante a segunda Guerra Mundial.

Em seu livro O Método, composto de seis volumes, o autor desenvolve a cha-mada teoria da complexidade. Entretanto, o próprio filósofo redigiu um resumo de sua

teoria no livro intitulado Introdução ao Pensamento Complexo, livro utilizado para o desenvolvimento do presente trabalho e para a exposição sucinta da citada teoria.

A Teoria da Complexidade surge com a percepção pelo citado filósofo de que, embora adquiramos conhecimentos cada vez maiores sobre o mundo físico, bioló-gico, psicológico, sociológico, no entanto, por todo lado, erro, ignorância e cegueira progridem ao mesmo tempo que os nossos conhecimentos.

O conhecimento científico (incluindo aqui as ciências sociais) tem como missão dissipar a complexidade apresentada pelos fenômenos, tornando simples e inteligível o que antes era obscuro. Buscamos sempre a clareza do real, sendo que “a palavra complexidade só pode exprimir nosso incômodo, nossa confusão, nossa incapacida-de para definir de modo simples, para nomear de modo claro, para ordenar nossas idéias”.7

Entretanto, estes cortes, mutilações do real e do conhecimento, na verdade, não exprimem as realidades, pelo contrário, apenas produzem mais cegueira, erros e ignorância.

Para Edgar Morin, precisamos tomar consciência, entre outras, de que “a causa profunda do erro não está no erro de fato (falsa percepção) ou no erro lógico (incoerência), mas no modo de organização do nosso saber num sistema de ideias (teorias, ideologias)”8.

Descartes, à sua época, formulou o que o autor estudado chama de paradigma da simplificação, paradigma essencial do Ocidente, onde imperam os princípios da disjunção, redução e abstração, operando por seleção de dados significativos e rejei-ção de dados não significativos.

Assim, chegou-se a uma outra simplificação do pensamento, qual seja, a hipe-respecialização, que fragmenta ainda mais o tecido complexo das realidades.

Porém, os adeptos não se ativeram à ideia de que

o pensamento simplificador é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo. Ou ele unifica abstrata-mente ao anular a diversidade, ou, ao contrario, justapõe a diversidade sem conceber a unidade. Assim, chega-se à inteligência cega, que destrói os conjuntos e as totalidades, isola todos os seus objetos do seu meio ambiente (...) As realidades-chaves são desintegradas. Elas passam por entre as fendas e separam as disciplinas. As disciplinas das ciências humanas não têm mais necessidade da noção de homem.9

A simplicidade vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o principio da simplicidade separa o que está ligado

7 Morin (2007, p. 5).8 Morin (2007, p. 9).9 Morin (2007, p. 12).

109Da visão tricotômica à visão complexa do direito - um novo paradigma108 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

(disjunção) ou unifica o que é diverso (redução).

Então, o que seria a complexidade? O próprio autor elabora um conceito para sua teoria onde, em resumo, explica que a complexidade é a teoria que aceita o acaso, a imprecisão, a ambiguidade, a contradição, a incerteza, a fim de melhor es-tudar os fenômenos sociais, sem cortes, sem mutilações, de modo a não provocar “cegueira” e não retirar o aspecto complexo do real10.

A incerteza, o acaso, as contradições são ínsitas aos limites de nosso conheci-mento e aos fenômenos naturais. “É preciso aceitar certa imprecisão e uma impreci-são certa, não apenas nos fenômenos, mas também nos conceitos.”11

Observe que o pensamento complexo não recusa de modo algum a clareza, a ordem, o determinado. Ele apenas os considera insuficientes, sabendo que não se pode programar a descoberta, o conhecimento, nem mesmo a ação.

Importante, neste momento, não confundir complexidade com completude. É verdade que a complexidade não isola os objetos, pois entende que tudo é solidário, possuindo um caráter multidimensional da realidade. Porém, a própria consciência da complexidade nos faz compreender que jamais poderemos escapar da incerteza e que jamais poderemos ter um saber total, completo.

Edgar Morin, em sua teoria, propõe substituir paradigmas; substituir um para-digma de disjunção/redução, por outro que permita distinguir sem disjungir, de asso-ciar sem identificar ou reduzir, tendo sempre em vista que um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes.

A patologia moderna está na hipersimplificação do conhecimento, na racionali-zação, que encerra o real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral, e que não sabe que uma parte do real é irracionalizável12.

Assim, Morin propõe uma ideia de sistema aberto, onde entende que “as leis de organização da vida não são de equilíbrio, mas de desequilíbrio, recuperado ou compensado, de dinamismo estabilizado”13, e mais, que

a inteligibilidade do sistema deve ser encontrada, não pe-nas no próprio sistema, mas também na sua relação com o meio ambiente, e que esta relação não é uma simples

10 “A um primeiro olhar, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituições heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, de-terminações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, da desordem, da ambigüidade, da incerteza... Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecio-nar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus” (MORIN, 2007, p. 13-14).11 Morin (2007, p. 14).12 Morin (2007), p. 15.13 Ibidem, p. 22.

dependência, ela é constitutiva do sistema, posto que conceber todo objeto e entidade como fechado implica em uma visão de mundo classificadora, analítica, reducionista, numa causalidade unilinear14.

Essa visão se instaurou na física do século XVII ao XIX.

Homem e objeto não são entidades que se anulam, pelo contrário, se comple-mentam, são constitutivos um do outro.

Essa é a visão do sistema aberto, onde o sujeito deve per-manecer aberto, desprovido de um principio de decidibilida-de nele próprio; o objeto deve permanecer aberto, de um lado sobre o sujeito, de outro lado sobre seu meio ambien-te, que, por sua vez, se abre necessariamente e continua a abrir-se para além dos limites de nosso entendimento.15

Assim, homem e objeto devem ser concebidos em seu ecossistema e, mais amplamente, nem mundo aberto, que o conhecimento não pode preencher.

O discurso torna-se multidimensional, e não fechado em uma doutrina, teoria autossuficiente e, portanto, insuficiente, “aberto para a incerteza e a superação; não ideal/idealista, sabendo que a coisa jamais será totalmente fechada no conceito, o mundo jamais aprisionado no discurso”16.

A ciência deve ser capaz de apreender, ao mesmo tempo, unidade e diversida-de, continuidade e rupturas, e não estar fechada em doutrinas prontas, simplificadas, especializadas, que evitam o real complexo, mutilando o conhecimento e o próprio real.

Para isso, necessária uma visão indisciplinar, que vai além da transdisciplina-riedade, vez que escapa ao campo das ciências fechadas, atravessando as discipli-nas. Necessário que a ciência possa integrar, articular, refletir sobre seus próprios conhecimentos, sem deixar de lado outras ciências que proporcionam outros conhe-cimentos sobre a mesma realidade, vista de forma diferente.

No desenvolvimento desta teoria, Morin estabelece três princípios que ajudam a pensar a complexidade.

O primeiro é o principio dialógico. Tal princípio nos permite manter a dualidade no seio da unidade. Ele associa dois termos ao mesmo tempo complementares e antagônicos. Morin dá como exemplo a ordem e a desordem que, num primeiro olhar, são termos antagônicos, que se suprimem, porém, que em certos casos, também se colaboram e produzem organização e complexidade.

O segundo princípio é o da recursão organizacional. “Um processo recursivo é um processo onde os produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores

14 Ibidem, p. 23.15 Ibidem, p. 44.16 Ibidem, p. 49-50.

111Da visão tricotômica à visão complexa do direito - um novo paradigma110 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

do que os produz”.17 Para melhor explanar este segundo principio, Morin dá como exemplo o homem e a sociedade. Explica que o indivíduo produz a sociedade que produz o indivíduo. Somos ao mesmo tempo produtos e produtores. Rompe-se com a ideia linear de causa/efeito, produto/produtor, “já que tudo o que é produzido volta--se sobre o que produz num ciclo ele mesmo autoconstrutivo, auto-organizador e autoprodutor”18.

Por fim, o terceiro princípio é o hologramático.

Explica o autor que

num holograma físico, o menor ponto da imagem do holo-grama contém a quase totalidade da informação do objeto representado. Não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte. O principio hologramático está presente no mundo biológico e no mundo sociológico. No mundo bioló-gico, cada célula de nosso organismo contém a totalidade da informação genética deste organismo. A ideia pois do holograma vai alem do reducionismo que só vê as partes e do holismo que só vê o todo. É um pouco da ideia formulada por Pascal: Não posso conceber o todo sem as partes e não posso conceber as partes sem o todo.19

O todo está na parte que está no todo.

No Direito, podemos verificar tal principio na máxima a ninguém é permitido ig-norar a lei, a qual impõe a presença forte do todo social sobre cada indivíduo, mesmo se a divisão do trabalho e a fragmentação de nossas vidas fazem com que ninguém possua a totalidade do saber social.

Por fim, Edgar Morin entende que essa mudança de paradigma, de um pa-radigma reducionista, simplificador, para um paradigma complexo, não ocorre da noite para o dia. Necessário todo um desenvolvimento cultural, histórico, civilizatório para que o pensamento, as ciências, a visão unidimensional se alterem. Necessário todo “um conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas, de novas reflexões que vão se acordar e se reunir”20. Para ele, a complexidade não é a resposta, a solução, e sim o desafio, desafio de pensar através da complicação, através das incertezas e das contradições.

Importante ressaltar que o autor entende necessária a simplificação, a fim de aprofundarmos o conhecimento especializado. Porém, tal simplificação deve ser re-lativa, no sentido de que essa redução seja consciente de que ela é uma redução, “e não uma redução arrogante que acredita possuir a verdade simples, atrás da aparen-te multiplicidade e complexidade das coisas”21.

17 Morin (2007, p. 74).18 Ibidem, p. 74.19 Ibidem, p. 74-75.20 Ibidem, p. 77.21 “A complexidade é a união da simplicidade e com a da complexidade; é a união dos processos de simplificação que são seleção, hierarquização, separação, redução, com os outros contraprocessos que

Para encerrar, Edgar Morin leciona:

para mim, a ideia fundamental da complexidade não é a de que a essência do mundo seja complexa e não simples. É que esta essência seja inconcebível. A complexidade é a dialógica ordem/desordem/organização. Mas, por trás da complexidade, a ordem e a desordem se dissolvem, as distinções se diluem. O mérito da complexidade é o de denunciar a metafísica da ordem.22

UM NOVO PARADIGMA: DA VISÃO TRICOTÔMICA À VISÃO COMPLEXA DO DIREITO

A visão tricotômica do direito, como já dito acima, surgiu com a necessidade de desenvolvimento de novas áreas do direito, como o Direito do Consumidor, o Di-reito Ambiental e o Direito da Criança e do Adolescente. Tais áreas do conhecimento jurídico encerram, em si mesmas, microssistemas que aglutinam várias disciplinas jurídicas23.

Devido a esta junção de disciplinas e a criação de microssistemas, os ditos direitos podem ser classificados ora como submetidos aos princípios de Direito Pri-vado, ora como submetidos aos princípios de Direito Público. Logo, por aglutinar a dicotomia antes existente, por meio da junção de conceitos de Direito Público e de Direito Privado, é que surgiu uma terceira categoria nesta classificação: os Direitos Difusos, que não se enquadram nem na categoria de Direito Privado, nem na cate-goria de Direito Público, formando uma categoria autônoma e instituindo, ao invés da antiga visão dicotômica, a visão tricotômica do direito.

Entretanto, será que estas categorias, estas distinções teóricas, constituem-se em sistemas fechados de conhecimento? Será que as disciplinas nelas embutidas re-almente respeitam seus conceitos (interesse público versus interesse privado/Estado versus indivíduo/subordinação versus coordenação)?

Atualmente, com a complexidade da sociedade moderna, os interesses indivi-duais, sociais e estatais assumem contornos de difícil separação.

Mesmo se didaticamente tratados em separado, não há como negar que o público e o privado se complementam. Não se deve perder de vista, outrossim, que o público não se esgota no estatal.

É certo que a distinção entre privado e público está em profunda crise, pois em uma sociedade como a atual é tarefa bastante difícil localizar um interesse privado que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse público. Essa dificuldade aumenta ainda mais diante das categorias de interesses difusos, coletivos

são a comunicação, que são a articulação do que foi dissociado e distinguido; é a maneira de escapar à alternação entre o pensamento redutor que só vê os elementos e o pensamento globalizado que só vê o todo” (MORIN, 2007, p. 102-103).22 Morin (2007, p. 104).23 Nery (2002, p. 94).

113Da visão tricotômica à visão complexa do direito - um novo paradigma112 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

e individuais homogêneos.

Veja como exemplo: a disciplina Direito Constitucional, tida como afeta ao Direito Público, não pode mais assim ser exclusivamente tratada, ante as diversas normas que afetam diretamente o indivíduo, isoladamente, protegendo sua honra, intimidade, dentre outros. Do mesmo modo, o Direito Civil, tido como disciplina afeta ao Direito Privado, não mais assim pode ser considerado, visto que, p. ex., os con-tratos, considerados a expressão máxima da volição da pessoa, são hoje totalmente atrelados à sua função social, fato geralmente atribuído ao Direito Público.

Vê-se, a todo momento, a inter-relação existente cada vez mais entre as áreas do Direito, o que demonstra que as classificações, as reduções, as especializações tradicionalmente feitas e estudadas não mais tem guarida (se é que um dia a teve por completo).

Tome-se o Direito Ambiental que, nas palavras do jurista Edis Milaré é

um ramo novo e diferente, destinado a embasar novo tipo de relacionamento das pessoas individuais, das organiza-ções e, enfim, de toda a sociedade com o mundo natural. O Direito Ambiental ajuda-nos a explicitar o fato de que, se a Terra é um imenso organismo vivo, nós somos a sua consciência.24

Ainda na lição do citado doutrinador, o Direito do Ambiente é multidisciplinar, estando em contato direito com a Ecologia (estudo de caracterização dos ecossiste-mas, p.ex.), a Economia (avaliação econômica do dano ambiental, por exemplo), a Antropologia (levantamento de populações indígenas, por exemplo), dentre outros. Também, dentro do estudo jurídico, mantém estreitas relações com o Direito Consti-tucional, que disciplina regras de competência, dispõe o ambiente como direito funda-mental, etc.; com o Direito Penal, que prevê a existências de crimes ambientais; com o Direito Administrativo, que dispõe sobre licenças, alvarás relacionados à matéria ambiental25.

Assim, como se vê, as áreas do Direito, tomando-se como exemplo a disciplina do Direito Ambiental, são muito mais amplas, abrangentes do que os cortes nela realizados, saindo, até mesmo, fora do Direito, buscando guarida em outras áreas do conhecimento.

Com isso, temos a consciência de um novo paradigma26.

Deixamos o paradigma simplificador:

o paradigma simplificador é um paradigma que põe ordem no universo, expulsa dele a desordem. A ordem se reduz

24 Milaré (2004, p. 132).25 Milaré (2004, p. 155).26 Na lição de Edgar Morin, “a palavra paradigma é constituída por certo tipo de relação lógica extrema-mente forte entre noções mestras, noções-chaves, princípios-chaves. Estas relações e estes princípios vão comandar todo os propósitos que obedecem inconscientemente a seu império” (MORIN, 2007, p. 59).

a uma lei, a um princípio. A simplicidade vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o principio da simplicidade se-para o que está ligado (disjunção) ou unifica o que é diverso (redução)27.

E partimos para uma visão complexa do Direito.

Devemos, primeiramente, abandonar a razão, a racionalidade e a racionaliza-ção absolutas do nosso pensamento.

Para Edgar Morin, “a razão corresponde a uma vontade de ter uma visão coe-rente dos fenômenos, das coisas e do universo”28.

A racionalidade é o jogo, é o diálogo incessante entre nossa mente, que cria estruturas lógicas, que as aplica ao mundo e que dialoga com este mundo real. Quando este mundo não está de acordo com nosso sistema lógico, é preciso admitir que nosso sistema lógico é insuficiente, que só en-contra uma parte do real. A racionalidade, de todo modo, jamais tem a pretensão de esgotar num sistema lógico a totalidade do real, mas tem a vontade de dialogar com o que lhe resiste.29

Já a palavra racionalização “consiste em querer prender a realidade num siste-ma coerente. E tudo o que, na realidade, contradiz este sistema coerente, é afastado, esquecido, posto de lado, visto como ilusão ou aparência.”30

Temos uma tendência inconsciente de afastar de nossa mente o que possa contradizê-la, conturbá-la, ir contra o que temos por correto, racional. Tendemos a mi-nimizar ou rejeitar os argumentos contrários. Exercemos uma atenção seletiva sobre o que favorece nossa ideia e uma desatenção seletiva sobre o que a desfavorece.

Por isso, criamos teorias, doutrinas, ideologias. Partimos para a especializa-ção, para a hipersimplificação do real. Esquecemo-nos das incertezas, dos acasos, das contradições existentes na sociedade, base estrutural do Direito.

Se a sociedade é complexa, como pode o Direito querer deixar de sê-lo?

Nas palavras de Edgar Morin, “o que o pensamento complexo pode fazer é dar, a cada um, um lembrete, avisando: ‘Não esqueça de que a realidade é mutante, não esqueça que o novo pode surgir e, de todo modo, vai surgir’”31.

27 Morin (2007, p. 59).28 Ibidem, p. 70.29 Ibidem, p. 70.30 Ibidem. p. 70.31 Ibidem. p. 83.

115Da visão tricotômica à visão complexa do direito - um novo paradigma114 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

O Direito, a todo tempo, está em desenvolvimento. Modifica-se juntamente com a sociedade, com seus anseios. E a teoria da complexidade nos mostra exatamente isto, que não podemos nos fechar no contemporaneísmo, isto é, na crença de que o que acontece hoje vai continuar indefinidamente. E o Direito é fruto desta contínua mudança. Mudança esta, atualmente, despertada pelo desenvolvimento dos chama-dos Direitos Difusos.

No Brasil, a tutela de tais interesses começa a ser tratada já na década de 1960 pela Lei n.º 4.717/65 – lei da Ação Popular, pois a defesa do erário constituía, já na-quela época, um interesse metaindividual, na medida em que se trata de bem público.

Mais tarde, na década de 1980, é editada a Lei n.º 7.347/85 – lei que disciplina a Ação Civil Pública, instrumento importante no combate à lesão ao meio ambiente, consumidor, além de outros direitos de interesse difuso.

Em 1988, a Constituição Federal, marco histórico da redemocratização do país, revela enorme preocupação com interesses que dizem respeito a todas as pessoas indistintamente. Mais especificamente, o artigo 5º da nova Constituição Federal esta-belece os Direitos Individuais e Coletivos, cuja abrangência se mostra metaindividual, rompendo com o modelo estatal inflexível experimentado até então.

É no inciso XXXII do artigo 5º da Constituição Federal que encontramos a ordem para que o Estado promova, na forma da lei, a defesa do consumidor, o que se deu por meio da edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), que se constitui em mais uma demonstração inequívoca da vocação difusa embutida na Carta Magna.

Ainda na Constituição Federal, se verifica no artigo 225 a fixação das bases institucionais para o desenvolvimento dos direitos difusos ao determinar que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder publico e à cole-tividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Temos várias outras normas que assumem claramente a característica ou natu-reza de direitos transindividuais, de natureza indivisível de que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. Assim, o princípio de que todos são iguais perante a lei; o uso da propriedade, a higiene e segurança do trabalho; a educação, incentivo à pesquisa e ao ensino científico e amparo à cultura; a saúde; o meio ambiente; o consumidor; a proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico e paisagístico; família, criança, adolescente e idoso e mesmo algumas regras vincula-das à comunicação social demonstram a existência e preocupação do legislador na tutela constitucional destes direitos transindividuais em sua ótica material.

Frutos das novas disposições constitucionais surgem o Código de Defesa do Consumidor sobredito, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Estatuto do Idoso, leis ambientais esparsas, leis de amparo às pessoas portadoras de deficiência, dentre outros.

Tais inovações legislativas demonstram, ainda mais, a complexidade da socie-dade moderna e a necessidade da criação de sistemas abertos, o que hoje chama-mos de microssistemas.

As leis que amparam os direitos ditos difusos não se esgotam em si mesmas, necessitando de complementação legislativa para sua correta e possível aplicação.

Assim, a lei de Ação Civil Pública imiscuiu-se na lei de Ação Popular, no Código de Defesa do Consumidor, no Código de Processo Civil, na Constituição Federal, por óbvio, e também em conceitos estranhos ao Direito, como exemplificamos ao tratar do Direito Ambiental acima. Somente com essa complementação legislativa nos é possível aplicar a citada lei em sua inteireza e atingir os objetivos visados.

Esta é a visão de Edgar Morin sobre sistema aberto:

Duas conseqüências capitais decorrem da ideia de siste-ma aberto: a primeira é que as leis de organização da vida não são de equilíbrio, mas de desequilíbrio, recuperado ou compensado, de dinamismo estabilizado. A segunda consequência é que a inteligibilidade do sistema deve ser encontrada, não penas no próprio sistema, mas também na sua relação com o meio ambiente, e que esta relação não é uma simples dependência, ela é constitutiva do sistema.32

A noção de microssistemas torna ainda mais fácil o entendimento dos sistemas abertos.

Os sistemas abertos devem ser estudados como estruturas inter-relacionáveis, nunca como entidades radicalmente isoláveis. Trata-se da superação do sistema por um metassistema.

Enquanto isso, as demais disciplinas do Direito encontram-se em sistemas fechados, implicando uma visão “classificadora, analítica, reducionista, numa causa-lidade unilinear”33.

Vê-se, claramente, que os Direitos Difusos em muito se aproximam da visão complexa do Direito, sendo vistos como a vertente mais moderna do ordenamento jurídico.

A ciência jurídica deve ser tida como única, apreendendo ao mesmo tempo unidade e diversidade, continuidade e rupturas, lacunas, antinomias.

Devemos superar a ideia de Norberto Bobbio que diz que “um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele ‘normas incompatíveis’. Aqui, ‘sistema’ equivale à validade do principio que exclui a ‘incompatibilidade’ das normas. Se num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas”34.

Numa visão complexa de sistema, o entendimento externado por Bobbio, data máxima venia, necessita ser revisto.

Um sistema complexo admite sim as contradições, as incertezas, tendo em vista que o real, a sociedade que embasa todo o ordenamento jurídico, possui tais características.35

32 Morin (2007, p. 22).33 Morin (2007, p. 23).34 Bobbio (1995, p. 80).35 Na lição de Edgar Morin, “Infelizmente - ou felizmente – o universo inteiro é um coquetel de ordem,

117Da visão tricotômica à visão complexa do direito - um novo paradigma116 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

A irregularidade, a desordem, a imprevisibilidade são necessárias para a evo-lução do conhecimento.

Tomemos um exemplo. No Código Civil de 1916 regiam os contratos o prin-cipio da liberdade contratual e o pacta sunt servanda, ou seja, o principio de que o contrato fazia lei entre as partes. Com o surgimento da sociedade de consumo, ante a completa submissão dos consumidores aos fornecedores, necessário se fez a criação de um Código de Defesa do Consumidor, onde se previa a possibilidade de alterações nos contratos consumeristas ante a simples existência de cláusulas onerosas ao consumidor, abusivas, em completa mitigação ao principio do pacta sunt servanda, tudo devido ao principio da função social do contrato. Ainda, o principio da boa fé objetiva prevê a existência de deveres anexos aos contratos, embora neles não escritos, como a obrigação de se observar os deveres de lealdade, confiança e cuidado.

Assim, devido à evolução da sociedade, às contradições antes existentes no sistema jurídico, que submetiam os consumidores a leis estagnadas e atentatórias a seus anseios, e à desordem surgida deste cenário, necessário se fez a criação de novas regras, incompatíveis, a princípio, com as normas anteriores, mas que propor-cionaram a evolução do ordenamento jurídico.

O próprio Norberto Bobbio, em sua obra Teoria do ordenamento jurídico, ao tratar do dever de coerência das normas jurídicas, constata que, há casos em que tal dever inexiste. É o caso das normas de mesmo nível, contemporâneas36.

Assim, resta demonstrado que devemos superar a visão tricotômica do Direito, que hierarquiza, reduz, especializa e simplifica, rumo a uma visão complexa do orde-namento e da ciência jurídica.

CONCLUSÃO

Como já disse Morin, a complexidade é o desafio, e não a resposta. A com-plexidade não busca estabelecer uma nova ordem, novas teorias, novas doutrinas; pelo contrário, visa demonstrar a desordem, as contradições, a incoerência existentes dentro de toda ciência, dentro de todo sistema.

Ainda mais quando tratamos da ciência jurídica, ciência que surge da socieda-de, das mudanças, e que visa estabelecer regras para o convívio de uma sociedade pós-moderna repleta de novas ideias, de novos anseios; ideias e anseios estes que se alteram a todo tempo. O acaso, o imprevisível, o incerto são ínsitos à sociedade pós-moderna, logo, partes do Direito.

Através da complexidade, vamos enxergar a necessidade de uma perspectiva transdisciplinar, sendo que transdisciplinar significa hoje indisciplinar.

desordem e organização. Estamos num universo do qual não se pode eliminar o acaso, o incerto, a de-sordem. Nós devemos viver e lidar com a desordem. A ordem? É tudo o que é repetição, constância, invariância, tudo o que pode ser posto sob a égide de uma relação altamente provável, enquadrado sob a dependência de uma lei. A desordem? É tudo o que é irregularidade, desvios com relação a uma estrutura dada, acaso, imprevisibilidade. Num universo de pura ordem, não haveria inovação, criação, evolução. Não haveria existência viva nem humana (MORIN, 2007, p. 89).36 Bobbio (1995, p. 112).

Para Morin: “como dizia Pascal: ‘Considero impossível conhecer as partes enquanto partes sem conhecer o todo, mas não considero menos impossível a possi-bilidade de conhecer o todo sem conhecer singularmente as partes’”37.

Assim, a teoria da complexidade entende a necessidade da especialização, da simplificação, a fim de melhor se estudar e se compreender as partes, porém, sem nunca perder de vista que estamos tratando de uma redução, um conhecimento parcial, que necessita se inserir no todo para melhor se compreender o real.

As disciplinas jurídicas precisam umas das outras. Urgentes são as mudanças no modo de se ensinar e de se aprender o Direito. Os cortes, reduções, especiali-zações ensinados nas faculdades geram uma inteligência cega nos bacharéis, que fragmentam e despedaçam o tecido complexo das realidades.

Depois de formados, inseridos no “mundo real”, tais profissionais são incapa-zes de bem atuar, de modo abrangente, utilizando-se de tudo o que aprenderam, pois deixaram de aprender o mais importante: a visão do todo, de como unir as disciplinas jurídicas, de como aplicá-las sem cortes, sem reduções, visto que o dia-a-dia das pessoas, a “vida real” vai além do Direito administrativo, do Direito penal, do Direito tributário, do Direito processual. Os problemas do mundo real unem todos esses ramos em um só emaranhado. Entretanto, os atores do Direito não são preparados para atuar de modo completo, sem rupturas, e pior, um pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes.

A atuação, não só do profissional, mas do indivíduo perante a sociedade em que se insere, tem que buscar o bem comum, sentimento e atitude de solidariedade.

O individualismo, característico da pós-modernidade, deve dar lugar ao ato de partilhar. Afinal, o indivíduo reflete a sociedade que reflete o indivíduo; um no todo e todo no um.

A complexidade é a união da simplicidade e com a da com-plexidade; é a união dos processos de simplificação que são seleção, hierarquização, separação, redução, com os outros contraprocessos que são a comunicação, que são a articulação do que foi dissociado e distinguido; é a maneira de escapar à alternação entre o pensamento redutor que só vê os elementos e o pensamento globalizado que só vê o todo.38

E por fim, temos que ter em mente que ainda “estamos na pré-história do espíri-to humano. Só o pensamento complexo nos permitirá civilizar nosso conhecimento”39. “Talvez estejamos no fim de um certo tempo, e nós o esperamos, no começo de novos tempos.”40

37 Morin (2007, p.103). 38 Morin (2007), p. 102-103.39 Morin (2007), p. 16.40 Morin (2007), p. 120.

118 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

REFERÊNCIAS

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LIXO E INCINERAÇÃO: UMA VISÃO MULTIDISCIPLINAR SOBRE A DESTINAÇÃO AMBIENTALMENTE ADEQUADA DOS RESÍDUOS SÓLIDOS

Wagner Giron De La TorreDefensor Público.

A ideologia da sociedade industrial, baseada em noções sobre o crescimento econômico, padrões de vida cada vez melhores e fé nas soluções tecnológicas, a longo prazo é inviável. Ao mudarmos nossas ideias, temos que adotar como objetivo uma sociedade humana em que a popula-ção, o consumo de recursos, a eliminação dos resíduos e o meio ambiente estejam num equilíbrio saudável.

Acima de tudo, temos que encarar a vida com respeito e as-sombro. Precisamos de um sistema ético em que o mundo natural tenha valor não apenas para o bem-estar humano, mas para si e em si.O universo é algo interno, tanto quanto externo.

(Crispin Tickell, citado por James Lovelock em A Vingança de Gaia)

121Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...120 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

I - SUBSTRATOS DO ANTROPOCENO

Vivemos em um universo onde a vida é rara.

Pela singular combinação de circunstâncias determinantes em meio a um uni-verso tão estéril - de órbitas elípticas ou semicirculares, localização em uma zona de conforto no sistema solar interno e seu equilíbrio gravitacional - nosso planeta foi contemplado com um poder espantoso de gerar a biodiversidade, mesmo que vagando nos arrebaldes mais distantes da galáxia, flutuando em um cosmo onde a reprodução dessas precisas condições para a vida e sua evolução se afeiçoa bastan-te improvável.

Nosso planeta é único em todo o sistema solar1. Nossas manhãs são ímpares.

Como observa Carl Sagan, somos – todos os seres vivos que habitam a Terra – filhos das estrelas, posto que todos os elementos químicos naturais que conformam a vida2 provêm de explosões solares3.

Nessa rara combinação de conformações físicas e químicas foi que a vida vice-jou neste planeta, e evoluiu para o nível atual de consciência principalmente porque, nos últimos 12 mil anos, o clima planetário se manteve estável.

Mas essa estabilidade climática, tão essencial à vida, está sendo vilipendiada pela “civilização” humana.

1 Carl Sagan, grande astro-físico norte-americano, utilizando-se sempre de linguagem multidisciplinar que abarca noções de astronomia, física, sociologia, história, matemática, biologia e antropologia, foi um ícone do esforço na democratização do conhecimento científico, compartilhando-o, em linguagem acessível, com um número cada vez mais amplo de leitores e telespectadores em todo o mundo. No capítulo IX da série televisiva “Cosmos”, dirigida por Adrian Malone, Sagan, com base em equações matemáticas bastante plausíveis, revela que em nossa galáxia existem cerca de 400 bilhões de estrelas, sendo o nosso sol uma das estrelas mais insignificantes, em dimensão e composição química, das existentes neste quadrante do cosmo. Levando em conta as características da evolução biológica na Terra, as condições necessárias de equilíbrio climático para o desenvolvimento do primeiro ser monocelular e outros fatores, os cientistas estimam que entre bilhões e bilhões de possíveis planetas em nossa galáxia apenas 10, não mais do que 10 deles, distantes milhões de anos-luz cada qual, possam apresentar mecanismos básicos para a evolução da vida, ainda que em escala meramente bacteriológica. No mesmo sentido: DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das letras, 2006, p. 190.2 Porto-Gonçalves observa que até o fim da segunda guerra mundial a humanidade usava somente entre 20 a 25 dos elementos químicos da tabela periódica. Hoje são usados todos os 90, além dos 26 sintéticos produzidos pela indústria e ciência ocidentais (A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 115).3 Dawkins ensina que “estrelas relativamente pequenas, como nosso Sol, são capazes de produzir ape-nas elementos leves como o hélio, o segundo mais leve da tabela periódica, depois do hidrogênio. São necessárias estrelas maiores e mais quentes para gerar as altas temperaturas necessárias para forjar a maioria dos elementos mais pesados (...)Essas grandes estrelas podem explodir na forma de super-novas, espalhando seus materiais, inclusive os elementos da tabela periódica, em nuvens de poeira. As nuvens de poeira cósmica acabam se condensando e formando novas estrelas e planetas, como o nosso. É por isso que a Terra é rica em elementos sem os quais a química – e a vida – seria impossível.” (op. cit., p. 193). Carl Sagan realça nossa origem cósmica pontuando: “à exceção do hidrogênio, todos os átomos que compõem cada um de nós – o ferro no sangue, o cálcio nos ossos, o carbono no cérebro – foram fabricados em estrelas vermelhas gigantes a milhares de anos-luz no espaço e a bilhões de anos no tempo. Somos feitos, como gosto de dizer, de matéria estelar” (O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 31).

Por mais paradoxal que possa parecer, o nível de evolução tecnológica combi-nado com um processo de desenvolvimento econômico altamente predatório e insa-no, estão pondo em risco o sistema natural de autorregulação climática do planeta4.

Na década de 1930 do século passado, cientistas norte-americanos e alemães, inventaram uma classe nova de moléculas não presentes no mundo natural, para substituírem a amônia ou dióxido de enxofre nos sistemas de refrigeradores e outros artefatos da indústria humana, como, exemplo, aparelhos de ar condicionado, aeros-sóis, etc.

A essa nova substância sintética, deram o nome de clorofluorcarbonetos ou simplesmente CFCs.

Em 1974, os pesquisadores F. Sherwood e Mario Molina constataram que os milhões de toneladas por ano de CFCs que eram emitidos na atmosfera estavam destruindo a camada de ozônio. Segundo seus diagnósticos, uma única molécula de CFC seria capaz de destruir mais de 100 mil moléculas de ozônio (O3)5, e poderia persistir por mais de cem anos na atmosfera.6

A eliminação gradual da camada de ozônio da estratosfera não se limita, ape-nas, na geração de câncer de pele em seres humanos.7

Como enuncia Carl Sagan,

Quando expostas à luz ultravioleta, as moléculas orgânicas que constituem toda a vida sobre a Terra se desfazem ou formam ligações químicas nocivas. Entre os seres que habi-tam os oceanos, os mais difundidos são minúsculas plantas unicelulares que flutuam perto da superfície da água – os fitoplânctons. Eles não podem se esconder da UV, mergu-lhando mais fundo, porque se sustentam colhendo luz (...) As medições preliminares das populações dessas plantas microscópicas nas águas antárticas mostram que ocorreu recentemente um declínio impressionante – de até 25% - perto da superfície do oceano.8

4 Locelock: “chamo Gaia de um sistema fisiológico porque parece dotada do objetivo inconsciente de regular o clima e a química em um estado confortável para a vida” (A Vingança de Gaia. Ed. Intrínseca, 2006, p. 15). Releva pontuar que a teoria de Gaia foi reconhecida, inclusive, na Convenção Sobre a Diver-sidade Biológica – 1992 – que em seus considerandos demarca: “Conscientes, também, da importância da diversidade biológica para a evolução e para a manutenção dos sistemas necessários à vida na biosfera”, promulgada pelo Decreto n. 2.519-98.5 O ozônio, em baixa altitude, é um elemento químico extremamente nocivo à vida. Mas, na estratosfera, a cerca de 25 Km do solo, é vital à vida planetária, funcionando como um escudo natural aos raios ultravioleta do Sol (SAGAN, 1997, p. 105).6 Sagan: “Em 1978, os propulsores de CFC em latas de spray foram considerados ilegais nos EUA, Norue-ga, Suécia e Canadá” (op. cit, p. 108).7 “Hoje, o rombo na camada de ozônio, abarca mais do que dois terços da Antártica” (SAGAN, 2009, p. 108).8 Bilhões e bilhões. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 1991, p. 105.

123Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...122 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

As algas e fitoplânctons são os principais produtores de oxigênio no planeta, e sua aniquilação subtrai da Terra sua capacidade de absorver o dióxido de carbono da atmosfera, contribuindo para o aquecimento global.9

Em agravo aos efeitos deletérios do lançamento, pelo homem, de moléculas sintéticas e poluentes na atmosfera, constatou-se, mais tarde, que além das algas marinhas e fitoplânctons, animais unicelulares (zooplânctons) que habitam as super-fícies oceânicas, estão sendo alvejados pelos raios ultravioleta.

Ainda com amparo nas ponderações de Carl Sagan, podemos hoje afirmar que a aniquilação massiva dos zooplânctons pela ruptura na camada de ozônio pode levar ao colapso no sistema de vida em escala global, posto que estão eles na base da cadeia alimentar.10

Até o início da era industrial (por volta de 1750) a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera – isto, nos últimos 12 mil anos – girava em torno de 272 ppm11. Hoje, essa concentração encontra-se no patamar de 380 ppm, sendo que só nos últimos 50 anos o lançamento de gases nocivos ao efeito estufa na atmosfera, como CO2, metano (CH4) e óxido nitroso (NO2) se intensificou a ponto de desestabi-lizar a capacidade de autorregulação natural do clima pelo planeta, fazendo com que as temperaturas globais se elevassem, em média, 0,74º.

Ainda que a humanidade repense o modelo de desenvolvimento econômico fomentado pela queima irrefreada de combustíveis fósseis, e desde já, cesse a combustão de petróleo, carvão, gás natural, queima de resíduos, etc., ainda assim a temperatura do orbe terrestre aumentará em cerca de 2,4º até o ano de 2050.12

São as alterações climáticas, hoje cientificamente comprovadas como sendo fruto da intervenção humana nos rumos dos sistemas de equilíbrio climático da Terra.

Em sua obra Direito Constitucional Ambiental, os juristas Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer nos contam sobre

9 SANTOS, Maria Raquel Pereira; HELENE, Maria Elisa Marcondes. “Atmosfera, fluxos de carbono e fertilização por CO2”, artigo contido no “Projeto Floram”, de coordenação do Prof. Azzis Ab’Saber, Instituo de Estudos Avançados da USP, maio-agosto de 1990, p. 207-208. No mesmo sentido, ver Sagan (2009, p. 106).10 Carl Sagan esclarece que a extinção dos zooplâncton decorre, também, da aniquilação dos fitoplâncton, que são a base alimentar daqueles organismos monocelulares. “por sua vez, os zooplânctons são comidos por pequenos crustáceos (os Krill), que são comidos por pequenos peixes, que são comidos por peixes grandes, que são comidos por golfinhos, baleias, pessoas. A destruição das plantinhas (fitoplânctons) na base da cadeia alimentar causa o colapso de toda a cadeia” (Bilhões e bilhões, p. 106).11 PPM – parte por milhão.12 Fontes: IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, vinculado às Nações Unidas – ONU, composto por mais de 2800 pesquisadores espalhados por todo o orbe terrestre: www.ipcc.ch. CNBB – Campanha da Fraternidade de 2011 sob o título Fraternidade e a Vida no Planeta, Brasília: Ed. CNBB, 2011, p. 17-25; LOVELOCK, James. A Vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Ed. Intrínseca, 2011, p. 15-29; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. São Paulo: RT, 2011, p. 27; SANTOS, Maria Raquel Pereira; HELENE, Maria Elisa Marcondes, in “Atmosfera, fluxos de carbono e fertilização por CO2”, artigo contido no “Projeto Floram”, de coordenação de Azzis Ab’Saber, Instituto de Estudos Avançados da USP, maio-agosto de 1990, p. 207-208.

a situação-limite a que chegamos ou que talvez até mes-mo já tenhamos ultrapassado, em termos de mudança climática, desencadeada especialmente pela emissão de gases geradores do efeito estufa (greenhouse effect), como dióxido de carbono (CO2) e o metano, que são liberados na atmosfera especialmente pela queima de combustíveis fósseis e pela destruição das florestas.

Advertem referidos juristas que – O fenômeno das mudanças climáticas, como resultado da ação humana – agora já oficial e mundialmente reconhecido pela comu-nidade científica no âmbito do Painel Intergovernamental Sobre Mudança do Clima (IPCC) da Organização das Nações Unidas – inclui, entre os seus efeitos, a maior intensidade e frequência de episódios climáticos extremos, a alteração nos regimes de chuvas, como ocorre na hipótese de chuvas intensas em um curto espaço de tempo, um desregramento climático cada vez maior e imprevisível, caracterizado, entre outros aspectos, pela constante queda de recordes de temperaturas altas em todo mundo, pelo desaparecimento paulatino das camadas de gelo, acompanhado ainda de um aumento no nível dos oceanos e do nível médio de temperatura do globo terrestre, entre outros eventos, como a perda da biodiversidade global 13

Cientistas que monitoram os oceanos alertam para o acentuado declínio das algas nos mares em função do aumento das temperaturas.14 Jamais podemos nos esquecer de que as algas marinhas são as principais fontes de oxigênio no planeta. São responsáveis por cerca de 80% do oxigênio presente na atmosfera, os outros 20% provêm das florestas continentais.

No atual nível de aquecimento global, qualquer acréscimo de calor, seja de que fonte for, terá um efeito exponenciado nos diversos ecossistemas que estamos a aniquilar, comprimir, suprimir, devassando-os todo o santo dia.

Essa relação de causa e efeito é nomeada por James Lovelock como fee-dbacks positivos, no sentido de que, quando os efeitos são desencadeados suas consequências tendem a se amplificar em um ciclo vicioso.

Para as alterações climáticas, dimensionadas pelo modelo desenvolvimentista implementado pela humanidade, James Lovelock enumera os seguintes feedbacks positivos:

1 - O feedback do albedo do gelo proposto originalmente pelo geofísico russo M.J Budiko (“albedo” se refere à reflexividade de um objeto ou uma superfície). O solo coberto de neve reflete de volta ao espaço quase toda a luz solar que o atinge e, portanto, permanece frio. Mas, uma vez que a neve nas bordas (nos polos) começa a derreter, o solo escuro que emerge absorve a luz solar e, portanto, fica mais quente. Seu calor derrete mais neve, e com o feedback positivo o derretimento se acelera até que toda a neve desapareça. Quando a tendência líquida é para o resfriamento, o

13 op. cit., p. 29-30. James Lovelock pondera, ainda, que “suspeitamos da existência de um limite, fixado pela temperatura ou pelo nível de dióxido de carbono no ar. Uma vez ultrapassado, nada que as nações do mundo façam alterará o resultado, e a Terra mudará irreversivelmente para um novo estado quente” (2011, p. 19).14 LOVELOCK, op. cit., p. 42.

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mesmo processo atua de modo inverso. Atualmente, o gelo flutuante da bacia polar vem derretendo com rapidez, sendo um exemplo atualmente do efeito de Budiko.

2 - Com o aquecimento do oceano, aumenta a área coberta por água pobre em nutrientes, tornando o oceano menos amigável às algas. Isso reduz a taxa de dióxido de carbono absorvido e a geração de nuvens estratos marinhas refletoras da luz solar.

3 - Em terra, o aumento da temperatura tende a desestabilizar as florestas tropicais e a reduzir sua área coberta. A terra que substitui a floresta perde seus mecanismos de resfriamento e é mais quente, de modo que, como a neve derrete, a floresta “derrete” e desaparece.

4 - Richard Betts, em artigo de 1999 para a Nature, foi o primeiro a observar que as florestas boreais da Sibéria e do Canadá são escuras e absorvem calor. Com o aquecimento do mundo, elas estendem seu alcance e, portanto, absorvem mais calor. 15

5 com a morte de ecossistemas florestais e de algas, sua decomposição libera dióxido de carbono e metano no ar. Num mundo em aquecimento, isso também age como feedback positivo.16

6 grandes depósitos de metano são mantidos em cristais de gelo dentro de vazios de tamanho molecular, denominado clatratos. Estes são estáveis somente no frio e sob alta pressão. O aquecimento da Terra aumenta o risco de que esses clatra-tos derretam, com o escapamento de grandes volumes de metano que é um gás de estufa 24 vezes mais potente que o dióxido de carbono.17

E, os maiores emissores desses gases poluentes são os países ricos, indus-trializados, do hemisfério norte, que respondem com cerca de 70% das emissões globais, muito embora, a mais poluente dessas potências, os Estados Unidos da

15 Sob o manto de gelo do território siberiano encontra-se soterrado quantidade incomensurável de matéria decomposta em gás metano, conhecida como permafrost. O metano é um dos principais causadores dos agravos ao efeito estufa. O derretimento do gelo sobre a Sibéria, segundo advertências de pesqui-sadores, pode liberar grandes quantidades de metano na atmosfera, contribuindo para a irreversibilidade do aquecimento global. O gás metano é reconhecidamente 21 a 25 vezes mais poluente do que o dióxido de carbono. Nesse sentido ver: Lavratti, Paula Cerski e Prestes, Vanêsca Buzelato em “Diagnóstico da legislação:identificação das normas com incidência em mitigação e adaptação e resíduos sólidos” (BRA-SIL, 2009, p. 13, disponível em: www.planetaverde.org.br). Ainda: WALDMAN, Maurício. Lixo, cenários e desafios (São Paulo: Cortez editora, 2011, p. 109. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. op. cit., p. 334, www.wikipedia.org.).16 Segundo o livro sobre o tema, confeccionado pela CNBB na campanha da fraternidade de 2011, “o des-matamento da floresta amazônica é monitorado por diversas instituições e com diferenciadas metodologias. Nas décadas de 1980 e 1990 constatou-se que o desmate médio atingiu 20 mil Km2, em 1995, registrou-se um pico de 29.059 Km2 e, em 2004, outro número assustador: 27.400Km” (op. cit., p. 33). Estamos a falar da maior floresta tropical do mundo. Como pontua Carlos Walter Porto-Gonçalves, a floresta amazônica não é, simplesmente, um efeito da pluviosidade abundante, da insolação intensa, ou de solos ricos. Não, a floresta participa do clima, o conforma com a evapotranspiração, com a fixação de carbono (em média 70 toneladas por hectare) redefinindo a relação da incidência da radiação solar com a refração dessa energia (albedo) e, assim, interferindo não só no balanço hídrico da região pela evapotranspiração como no equilíbrio térmico, contribuindo, desse modo, para o equilíbrio térmico do clima global” (op. cit., p. 74).17 LOVELOCK, 2011, p. 43.

América do Norte, por imperativos econômicos e interesses meramente internos, até hoje se recuse a subscrever o Protocolo de Kyoto, instrumento internacional conce-bido para fixar limites nas emissões de gases de efeito estufa, fator que contribuiu, enormemente, para que o ano de 2010, segundo dados levantados pela ONU, fosse o recordista em termos de emissões e de agravamento da crise climática global.18

São as contradições entre democracia e capitalismo, como assinala Carlos Walter Porto-Gonçalves, que nos relata que mesmo diante da mais grave crise am-biental vivenciada em razão direta do modelo civilizatório imposto pelo ocidente, mul-tinacionais das mais predatórias que há no orbe, como a Royal Dutch Shell, Dupont, British Petroleum, Ford, Daimler Chrysler, Texaco, General Motors dentre inúmeras outras que se locupletam à custa do exaurimento dos recursos naturais e da queima de combustíveis fósseis, em 1997 criaram uma ONG internacional, nominada como Coalização Global do Clima e, à mercê de intensas ações publicitárias veiculadas, em especial, nos EUA, pressionaram o governo norte-americano, à época capitaneado por Bill Clinton e Al Gore, no sentido de subordinar a administração do país, impe-lindo-a a não assinar o Protocolo de Kyoto. Até hoje, essa miríade de corporações detratoras do meio ambiente têm experimentado incrível sucesso em seu sinistro intento.19

Mas, a insanidade desse ciclo predatório só se aprofunda quando divisamos a massiva urbanização planetária, pressionando e aluindo com ecossistemas, ex-tinguindo milhões de espécies e debilitando a capacidade da Terra em ofertar os recursos indispensáveis à vida.

Entre 1800 e 1950 a população mundial multiplicou-se 2,5 vezes. No mesmo período, a população urbana cresceu cerca de 20 vezes. No início do século XIX a aglomeração citadina era de apenas 1,7% da população. Em 1950 passou para 21% e saltou para 41,5% em 1980. Ao término do século XX os citadinos passam a representar a maior parcela da humanidade.20

Averba Maurício Waldman, que

Cidades como Londres, que reúne 12% da população britâ-nica, com o fito de provisionar seus habitantes dos recursos e bens de que necessita, requer superfície 120 vezes maior do que aquela que ocupa para satisfazer suas demandas. Este índice significa que, de fato, essa metrópole ocupa uma área de vinte milhões de hectares, o que seria equiva-lente ao total de terras produtivas da Grã-Bretanha. Outros cálculos indicam que Vancouver, no Canadá, exige um espaço 174 vezes maior do que o de sua jurisdição direta

18 Folha.com, 21.11.2011.19 op. cit., p. 336-337. A hipocrisia se agrava com o mimo que a academia Sueca ofereceu a Al Gore, em 2007, concedendo-lhe o prêmio Nobel da Paz naquele ano em função de seu “ativismo” em prol do meio ambiente global. Note-se, premiação a um gestor público que se recusou a subscrever tratado dessa importância. Vide SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. op. cit., p. 28.20 SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geogra-fia. São Paulo: Ed. Hucitec, 1988, p. 41.

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para ser mantida. Não fosse suficiente, as 29 cidades euro-peias de maior destaque requisitam áreas entre 565 a 1.130 vezes mais extensas do que ocupam para satisfazer seus reclamos de recursos naturais, energia e confinamento dos rejeitos que produzem.

Com base nesses parâmetros – conclui Waldman – salta aos olhos que as cidades são mantidas à custa da apropriação dos recursos de extensões repetidas vezes mais amplas do que suas áreas urbanas, granjeando-lhes, em uma reflexão sucinta, a condição de indutoras de alterações ambientais globais, dado factível a partir do próprio ‘déficit ecológico’ que as sustenta (...). O meio urbano constitui o âmago da ordem econômica, social e geopolítica existente, eixo pulsante da tecnos-fera, a esfera técnica que surge a partir da resoluta propensão da modernidade em artificializar o Planeta.21

Para ofertar ações concretas à altura do necessário enfrentamento a essa crise ambiental como, por exemplo, investimento global e massivo em fontes limpas de energia, como a solar22 e imediata cessação da queima de combustíveis fósseis, quase nada, nestes últimos 20 anos, desde a realização, neste país, da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – a Rio-92 – foi concretizado, a não ser discursos inanes como o afeto ao vago “desenvolvimento sustentável” ou a criação de mecanismos para capitalizar, ainda mais, a natureza, qual os famigerados “créditos de carbono” que só prestam para que as corporações que mais devassam os ecossis-temas no plano terrestre possam colher dividendos investindo no cultivo de florestas tímidas no terceiro mundo.

Com a precisão de sempre, sobre os MDL (mecanismos de desenvolvimento limpo), outro dos paliativos introduzidos pelo sistema capitalista por meio do insosso Protocolo de Kyoto, Carlos Walter Porto-Gonçalves ressalta:

Em relação à diluição dos objetivos do Protocolo de Kyoto e o MDL, Ignacy Sachs afirmou que ‘bem mais grave, pelas suas implicações éticas e práticas, é a instituição de um mercado de direitos de poluir sob o pretexto de que esta se-ria a maneira de reduzir os custos da operação. Em vez de despoluir no lugar onde poluem, os poluidores passarão a comprar os direitos de poluir daqueles que estão abaixo de suas cotas e se dispõem a vendê-las a um preço inferior ao que teria custado a despoluição in loco’ (...) Mais alucinante ainda resulta imaginar a captação direta pelos bosques da Costa Rica do excedente de carbono da Holanda – que desta maneira paga a ultrapassagem de sua pegada eco-

21 Lixo: cenários e desafios, São Paulo; Ed. Cortez2010, p. p.54-55.22 O Brasil é a maior nação solar do mundo. Diariamente se espraia pelo país, ofertada gratuitamente pelo astro-rei, energia solar equivalente à gerada por 320.000 hidrelétricas como a de Itaipu (VIDAL, José Walter Bautista; VASCONCELOS, Gilberto Felisberto. O Poder dos Trópicos. Cidade: Ed. Casa Amarela, 2001, p. 20). No entanto, os formuladores de políticas públicas só mencionam, em suas retóricas, fontes altamente impactantes como hidrelétricas, termelétricas, petróleo do pré-sal, etc...

lógica23- através do arbitrário valor que adquire no mercado de certificados de emissões de gases de efeito estufa.24

O sistema capitalista, ao invés de criar a consciência de seus erros e urdir instrumentos capazes de amenizar as catástrofes que produziu, ainda forja modos de ganho com a crise planetária gerada, sempre à mercê de um discurso construído sobre conclamas impalpáveis e inócuos como o “desenvolvimento sustentável” que só se evidencia diante da destruição de ecossistemas e da queima de combustíveis fósseis, perpetuando o circulo vicioso que ora se tenta explicitar.

O dogma do “desenvolvimento sustentável” já não engana mais ninguém. Os extremos climáticos circundantes são a prova irrefutável disso.

Andressa Caldas e Sandra Quintela sintetizam esse sentimento ao assestarem que:

A história é sempre repetida nesses manuais de empreen-dedorismo vendidos em livrarias de aeroporto: em algum idioma chinês, o anagrama para as palavras ‘crise’ e ‘oportunidade’ é o mesmo (...) De fato, é impressionante a capacidade criativa que as grandes empresas e instituições financeiras têm de se reinventar e auferir ainda mais lucros nos momentos de instabilidade política, de grandes tragé-dias sociais ou catástrofes naturais.

Estados, corporações, ONU fazem questão de esconder o óbvio: a atual ‘crise ecológica’ é conseqüência direta da ex-pansão da pecuária e do agronegócio, com uso intensivo de agrotóxicos, das indústrias de mineração, petróleo e side-rurgia, entre outras, e das grandes obras de infraestrutura que governos têm impulsionado para atender às demandas forjadas por essas companhias. E principalmente que, como se vê, essa onda verde não retrocede em nada na crise, que só poderia ser freada com uma revisão profunda nos modelos de desenvolvimento hegemônico no mundo de hoje.25

Não há, no planeta, possibilidade alguma de haver compatibilização entre de-senvolvimento econômico, na ótica capitalista, e sustentabilidade ambiental.

23 Pegada ecológica, também conhecida como ecoespaço ou ecological footprint, é um conceito criado nos anos de 1990 por dois especialistas em planificação ambiental, Mathis Wackernaget e William Rees. Ref-ere-se à área equivalente de terra produtiva e ecossistemas necessários para produzir bens requeridos por um determinado padrão técnico, social e cultural, assim como para dimensionar o aniquilamento ambiental gerado por esse sistema de produção. Sobre o tema, ver WALDMAN, op. cit., p. 54.24 op. cit., p. 345-346.25 “Esverdeando o Capitalismo: a farsa das corporações para a Rio mais 20”, artigo publicado no jornal Le Monde Diplomatique Brasil, edição de dezembro de 2011, p.16 e 17 do suplemento especial ‘Sustentabil-idade e Desenvolvimento’.

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Tal fato não é novo, foi constatado desde 1960 pelo chamado Clube de Roma, grupo corporativo empresarial, formado por conhecidas transnacionais, como a Xerox, IBM, Fiat, Remington Rand, Olivetti, entre outras, que foram advertidas, no relatório Meadows, concebido por respeitados cientistas de uma das mais renomadas instituições acadêmicas estadunidenses, o MIT – Massachusetts Institute of Techno-logy – sobre os limites do crescimento econômico diante dos limites planetários em oferecer os recursos naturais26.

Ainda sobre o mote, nos conta Maurício Waldman:

Sendo os recursos terrestres finitos e desmedida a ambição humana em extraí-los, é de se esperar que se esgotem ou sejam sobre-explorados. Contabilizar este saque do meio natural levou os especialistas a criarem o conceito de Glo-bal Overshoot Day – Dia da Ultrapassagem Global. Segun-do cálculos da ONG Canadense Global Fotprint Network, as necessidades da humanidade começaram a exceder as capacidades produtivas da Terra no ano de 1986. Deste modo, o primeiro Global Overshoot Day foi registrado em 31 de dezembro de 1986. Isto significa que tudo o que foi pro-duzido pelos ecossistemas terrestres foi esgotado naquele final de ano (...) Detalhando melhor o significado do Global Overshoot Day, no ano de 2008, quando se anunciou sua ocorrência em 23 de setembro, isso significou que entre os dias 1º de janeiro e 23 de setembro a humanidade consu-miu todos os recursos naturais que a natureza produziu na-quele ano e, pior, avançou sobre o que seriam as reservas da natureza. Isto significa peixes que não chegam à idade adulta, árvores de menor porte e retirada de recursos hídri-cos sem a devida reposição ou recarga. Metaforicamente, a humanidade está raspando o fundo do tacho. Depois disso, irá raspar o quê.27

Nunca antes na jornada da Terra registrou-se alterações climáticas tão pro-fundas e em lapso tão curto de tempo como este, insuflado pela humanidade sobre todas as espécies e ecossistemas, num átimo temporal amplamente desprezível na história da formação geológica do planeta, conduzida por um modelo econômico que, somente nos últimos dois séculos, produziu os mecanismos tecnológicos necessários para exaurir, em escala industrial, os recursos naturais28.

A essa era, Paul Crutzen, ganhador do Nobel de Química em 2000, deu o nome de antropoceno.

26 PORTO-GONÇALVES, op. cit, p.67-68.27 op. cit., p. 119.28 James Lovelock pondera que o fundamento desse sistema desenvolvimentista insano lastreia-se nas “crenças religiosas e humanistas que acham que a Terra existe para ser explorada em prol da humanidade” (op. cit., p. 17).

Nunca antes, nenhuma catástrofe natural ou cosmológica agiu sobre o sistema autorregulador da vida na Terra a ponto de desestabilizá-lo com tamanha eficácia.

Conseguimos mudar o mundo. Ou, como melhor sintetizado na metáfora alhu-res citada, estamos a raspar o tacho.

Isso é o antropoceno: raspar o tacho.

Desde a realização, no Rio de Janeiro, da Convenção Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92), absolutamente nada, em termos de regulação e controle da infinda capacidade de destruição dos recursos naturais pelo modelo econômico hegemônico, foi materializado no mundo e, em especial, no Brasil que, in-suflado pelo discurso dominante de ser o país “a bola da vez” em termos de emersão como a “nova potência econômica no orbe terrestre”, tem intensificado, nos últimos anos, uma política desenvolvimentista pautada no domínio amplo sobre a natureza, vislumbrando os ecossistemas como meros obstáculos ou formas de mercadorias destinados a simplesmente servir para o aprofundamento desse modelo econômico fincado na flexibilização do acervo normativo voltado à tutela ambiental, ao avanço do agronegócio exportador de produtos primários, como as commodities forjadas dos vastos monocultivos, monumentais sumidouros de água, solo, ar e vicejadas por uma incidência extraordinária de agrotóxicos que levou o país a titularizar a posição de maior consumidor mundial de venenos agroindustriais.29 30

29 Consoante reportagem veiculada pelo jornal Le Monde Diplomatique Brasil, edição nº 33, junho de 2010, o Brasil “é o maior mercado de agrotóxico do mundo e representa 16% de sua venda mundial. Em 2009, foram vendidas aqui 780 mil toneladas de agrotóxicos, com um faturamento na ordem de 8 bilhões de dólares. Ao longo dos últimos 10 anos, na esteira do crescimento do agronegócio, esse mercado cresceu 176%, quase quatro vezes mais que a média mundial. As 10 maiores empresas do setor de agrotóxicos do mundo concentram mais de 80% das vendas no país” (op. cit. p. 3). A propósito do tema, Carlos Walter Porto-Gonçalves, ao tratar dos efeitos da “revolução verde”, destaca o descompasso existente entre o aumento do consumo de agrotóxicos e fertilizantes químicos e os efeitos em termos de produtividade. No que se refere ao uso de fertilizantes, segundo o autor, baseando-se em dados da FAO, entre 1950 e 2000, enquanto a produção de grãos aumentou três vezes, o uso de fertilizantes aumentou 14 vezes, o que faz a relação produção de grãos-uso de fertilizantes cair de 42 toneladas para 13 toneladas de grãos para cada tonelada de fertilizante utilizada no campo. Alguém está ganhando com isso, e certamente não são nem o meio ambiente, nem os camponeses (apud MARCOS, op. cit., p. 194). Ainda sobre os deletérios impactos socioambientais gerados pelo avanço irrefreado do agronegócio ver: DE LA TORRE, Wagner Giron. “De-fensoria Pública e Meio Ambiente: os impactos socioambientais decorrentes do avanço do agronegócio...”, artigo inserido na coletânea Uma Nova Defensoria Pública pede passagem, coordenada por José Augusto Garcia de Souza (Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2011, p. 427 e ss); DE LA TORRE, Wagner Giron. “Eucalipto: o verde enganador”, artigo publicado na Revista Eletrônica dos Geógrafos Brasileiros, seção Três Lagoas-MS, nº 13, ano 8, maio-2011, sobre o “I Simpósio do Complexo de Celulose e Papel do Mato Grosso do Sul”, de coordenação da pesquisadora Professora da UFMS Rosemeire de Almeida; e TRINDADE, Damião de Lima Trindade. Os Direitos Humanos na perspectiva de Marx e Engels. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 2011, p. 307. 30 Uma das maiores tragédias, em termos de política governamental para fomentar o triunfo do agroneg-ócio fundado na expansão de monoculturas industriais, como a soja transgênica, milho transgênico, eu-calipto para exportação de pasta de celulose, cana de açúcar para o biocombustível e o açúcar de sempre, encontra-se no projeto, relatado pelo deputado federal Aldo Rebello, de retaliação do Código Florestal, reforma destinada a limitar os espaços de proteção ambiental, aumentar a área de desmatamento nos diversos biomas, isentar latifundiários e senhores rurais das multas e sanções pelas históricas violações aos ecossistemas, dentre outras barbáries ecológicas. Não por acaso, João Paulo Capobianco denomina a reforma do Código Florestal como “o código do atraso”, artigo publicado pelo jornal Le Monde Diplomatique Brasil, edição n. 46 de maio de 2011, p. 8. Para Rodrigo Guimarães Nunes, é essa mutação ideológica que

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Ou seja, o velho modelo de desenvolvimento econômico fundado na queima de combustíveis fósseis, aumento de terras destroçadas pelo desmatamento, aniqui-lação massiva de ecossistemas via escala assombrosa de monocutivos mercantis e instalação de megaobras de infraestrutura energética31, como imensas hidrelétricas que só reproduzem erros ambientais do passado, e tudo para servir aos interesses de uma reduzida plutocracia nacional e estrangeira.

Nas fronteiras desse “progresso econômico” tributado pela humanidade ao orbe terrestre, estão a eclodir as alterações climáticas que só para rememorar, no Brasil, nos últimos anos, aniquilaram milhares de vidas na região serrana do Rio de Janeiro, destruíram o maior parque de prédios históricos tombados do estado de São Paulo, a cidade de São Luiz do Paraitinga, onde, até hoje, mais de duzentas famílias encontram-se sem alternativa habitacional e os casarões ostentam ruínas desabridas; centenas de mortes e milhares de desabrigados em Angra dos Reis, o mesmo pano-rama em Minas Gerais, Alagoas, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, vitimada, todos os anos, principalmente na região do assolado Rio Itajaí com enchentes catastróficas além de ter recepcionado o primeiro furação tropical já registrado nestas paragens em 2004, nominado como Catarina32 que, por conta de seus tormentos, manifestados por rajadas de 180 km/h, causou prejuízos estimados em mais de 250 milhões de reais.

Essa, a face úmida das crises ambientais. Não nos esqueçamos das secas ab-surdas que nos últimos anos têm flagelado amplas regiões do Norte e Sul do país, cau-sando danos ambientais, humanos e materiais ainda não devidamente mensurados.

Como a dignidade humana, nesta pátria, é historicamente sonegada em face à sempiterna inexistência de políticas públicas preventivas, o poder dominante, por meio dos partidos hegemônicos, sempre tenta “responder” às catástrofes por meio da edição de leis.

“explica o comunismo transgênico de um Aldo Rebello, esforçando-se em aprovar uma reforma do Código Florestal construída diretamente por e para o agronegócio”, no artigo intitulado “Belo Monte e Jirau: por trás das represas”, publicado em 08.08.2011, na web, pela revista virtual Global Brasil, p. 3. 31 A construção de hidrelétricas não é tão inofensiva assim ao meio ambiente. Essas represas enormes causam a compulsória remoção de um número desmedido de populações originárias, quilombolas, camp-esinas, que em razão de enraizamentos culturais milenares ou seculares, e estrutura vital pautada na forte vinculação com as florestas ou meio rural devassado, não conseguem ser integradas em outras áreas ou mesmo no corpo social, até porquê os governos não se preocupam, jamais, na construção de mecanismos para tanto. Daí se sujeitarem, como sempre, no silêncio, conveniente, à prostituição, alcoolismo, mortes indiscriminadas e impunes, marginalização em suas mais variadas facetas. Ademais, o alagamento de vas-tas áreas de florestas causa a extinção da biodiversidade, a decomposição de organismos submersos que geram a emissão incontida de gases de efeito estufa, em especial do metano, que, como vimos, é cerca de 25 vezes mais letal do que o dióxido de carbono. Sobre o mote ver: NUNES, Rodrigo Guimarães. “Belo Monte e Jirau: por trás das represas”, revista Global Brasil, acessada na web em 08.08.2011; MONTEIRO, Dión Marcio C. “UHE Belo Monte: questões sem respostas no Rio Xingu”, acessada em 24.03.10 no site www.ecodebate.com.br; PRADO, Débora. “Hidrelétrica ‘Modelo’ Gera Danos Sociais e Ambientais”, Caros Amigos, nº 173, agosto de 2011, p. 10. 32 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, op. cit., p. 29. Nunca é demais repisar que a grande maio-ria de pessoas flageladas pelos extremos climáticos são pobres. Por conta da histórica inexistência de políticas ambientais e habitacionais sérias, consistentes, e preventivas, a imensa maioria dessas vítimas desterradas de suas moradas, destroçadas pelos desastres atmosféricos, até hoje encontram-se sem alternativa habitacional alguma.

Editar normas, na lógica neoliberal, é bem menos custoso do que implementar um combate consistente e necessário, por exemplo, ao cosmológico déficit habitacio-nal do país, ou a promover políticas ambientais efetivamente sérias.

Na práxis neoliberal, para tentar amenizar suas ingentes omissões, e, quem sabe, apascentar um pouco a opinião pública, governos federal e estadual editaram duas leis, quase gêmeas, ambas em 2009, instituindo suas respectivas políticas so-bre mudanças climáticas.

A primeira a vir à baila foi a Lei Estadual n.º 13.798 de 09de novembro de 2009, instituidora da “Política Estadual de Mudanças Climáticas” que, dentre um rosário de comandos jamais cumpridos, estabeleceu, em seu artigo 32, § 1º, um compromisso internacionalmente entoado por este Estado, que corporifica “o carro chefe da nação”, de reduzir em 20% as emissões de dióxido de carbono, no nível das lançadas em 2005, até o ano de 2020.

No plano federal, editou-se, como salientado, a Lei n.º 12.187 de 29 de dezem-bro de 2009 que, à semelhança do que empreendido pelos gestores de São Paulo entoou ao mundo - e ao âmbito jurídico interno, é claro -, a meta inafastável de reduzir as emissões nacionais de gases de efeito estufa no aporte de até 38,9% até o ano de 2020 (artigo 12).

Porém, como padecemos, nesta pátria, de uma alucinógena compulsão de vilipendiarmos as leis com a mesma profusão com que a criamos, o governo pau-lista anunciou33, no início de 2011, seu intento em fomentar a instalação de diversas termelétricas no Estado, sendo cerca de 10 delas animadas pela incineração de lixo.

Com certeza, tal intento é fruto da política estadual de incineração de resíduos sólidos, concebida em 2006 pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente em parceria com indústria alemã que detém a conveniente tecnologia.34

Na esteira dessa política pública imposta de cima para baixo, sem qualquer diálogo mais sério com a sociedade e com a comunidade científica, o governo já editou a Resolução SMA n.º 079/2009, reguladora do procedimento de licença am-biental para instalação dessas termoincineradoras, e tudo, para consolidar a mágica administrativa de transformar o lixo em energia elétrica.

A final, qual o louco que se oporia a essa brilhante solução, de transformar algo indesejável, como rebotalhos, em luz?

Ocorre que nosso sistema desenvolvimentista, além das sentidas e externadas agressões à biosfera, é prolífico em produzir lixo, resíduos, rejeitos, detritos em pro-fusão oceânica, como, mais detalhadamente, veremos a seguir.

Grande parte dos resíduos sólidos que produzimos, em especial os domésticos, é composta por fração úmida que, misturada com os restolhos de plásticos, compo-nentes de eletroeletrônicos, borracha, sintéticos corporificados em nossos monturos,

33 Informação disponíveis nos seguintes sites: Portal R7 (acessado em 06.08.11); wwwprogressosuste-ntável.com.br; Agência Brasil (acessado em 06.08.11); Portal IG (acessado em 06.08.11). 34 Segundo o aludido “Plano Estadual de Recuperação Energética” a partir da queima de lixo, a empresa fabricante dos incineradores que participou do programa é a “GMBH – Gerenciamento, Conhecimento e Serviços de Engenharia”, com sede na Baviera.

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ao serem queimados, além das toneladas e toneladas de gases nocivos ao efeito estufa, lançarão na já saturada bacia atmosférica das cidades, quantias indecentes e insuportáveis de elementos altamente nocivos à vida como o já referido ozônio de baixa altitude, dioxinas e furanos, poluentes largamente persistentes e visceralmente cancerígenos35.

Além de não ser a destinação adequada ao lixo, a instalação de grande número de incineradores em território excessivamente poluído, atenta aos aspectos sanitários da população, afronta os escopos de redução das emissões de gases poluentes, como previsto nas normas já referidas. E aqui, adentramos ao cerne da abordagem deste ensaio, desde já reafirmando a necessidade de debate sério e profundo dessa política incineradora com a sociedade36, haja vista seu potencial irreversível de acen-tuar, ainda mais, a crise climática.37

Pondo termo a este prefácio, ficamos com as advertências de James Lovelock, as quais não podemos ignorar no contexto aqui exortado, de que

35 WALDMAN. op. cit., p. 164.36 Um dos tópicos a serem considerados é sobre a pressa governamental em instalar, no território paulista, tamanho número de geradores de energia obsoletos e em desmonte nos países desenvolvidos. O Brasil dispõe de mais de 2.415 empreendimentos de geração de energia, com capacidade instalada para gerar 114.375.422Kw. Débora Prado, na reportagem já mencionada da Revista Caros amigos, à p. 11, informa que só no Rio Tocantins há a previsão de construção de 11 hidrelétricas de grande porte, sem falar nas de Belo Monte e Jirau. Para quê tanta pressa?37 No tocante ao anúncio oficial da instalação massiva de termelétricas, o debate e a transparência é o que menos importa na lógica empresarial abraçada pelo governo. Até agora, sabe-se do afã de erigir termelétricas, a partir da queima de lixo, nas cidades de São Bernardo dos Campos, São Paulo, São Sebastião-SP, São José dos Campos-SP, Taubaté-SP, Santa Branca-SP. O projeto mais acelerado, em termos de licença ambiental já emitida pelo Estado de São Paulo vincula-se à termelétrica de Canas, pequeno município da região do Vale do Paraíba, conferido à empresa norte-americana AES-Tietê, que irá investir cerca de 1,1bilhão de reais em usina, fomentada pela queima de gás natural, projetada para gerar 550MW de eletricidade ao sistema Nacional Integrado. Segundo estudos técnicos contidos no EIA-Rima dessa obra e em pesquisas críticas produzidas pela comunidade científica, essa usina, prevista para entrar em operação até 2016, lançará na atmosfera cerca de 2 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano, além de volume ingente de outros poluentes. Aniquilará cerca de 351 mil metros cúbicos de água por hora do já super-explorado Rio Paraíba do Sul, que abastece cerca de 20 milhões de habitantes entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, para servir ao seu sistema de resfriamento. Note-se que a licença concedida pelo CONSEMA-SP, em nenhum momento levou em consideração as críticas fundadas a essa obra lançadas pela sociedade civil, pelo Ministério Público e Defensoria Pública, bem como ignorou por completo a reduzida capacidade hídrica dessa bacia hidrográfica que servirá à refrigeração da usina, bem como desconsiderou, por completo, o projeto governamental de transpor, nos próximos anos, volume considerável da água do Paraíba para abastecer a região metropolitana de São Paulo, o que causará profundos e irreversíveis danos a esse já combalido sistema hídrico. Para urdir essa licença amplamente antidemocrática, a Cetesb (órgão controlador do procedimento de licença) realizou apenas 2 audiências públicas, recusando o pedido da DPE e MP em construir um número maior de audiências em cidades que serão diretamente impactadas pela termelétrica como S. José dos Campos, Taubaté, Cachoeira Paulista e Lorena, audiências essas que pela lei deveriam ser obrigatórias. Em razão da série infinda de nulidades no procedimento de licença ambiental emitida pelo Estado de São Paulo, o Ministério Público, através do GAEMA do Vale do Paraíba e a Defensoria Pública de São Paulo, através de sua regional em Taubaté, construíram conjuntamente a ação civil pública número 323.01.2011.008248-0, que corre perante a 1ª Vara da comarca de Lorena, visando a suspensão da licença prévia e anulação do procedimento ambiental.

somos, agora, 7 bilhões de indivíduos famintos e vorazes, todos aspirando a um estilo de vida de primeiro mundo. Nosso modo de vida urbano avança sobre o domínio da Terra viva. Consumimos tanto que ela já não consegue sustentar o mundo familiar e confortável a que nos habitua-mos. Agora ela está mudando, de acordo com suas próprias regras internas, para um estado em que já não somos mais bem-vindos.38

II O LIXO E SEUS VÁRIOS MUNDOS

No fim da década de setenta do século passado, a NASA lançou ao espaço duas naves não tripuladas, nominadas como Voyager I e II, cuja missão, era a de explorar e captar as imagens dos planetas localizados no sistema solar externo e mapear seus satélites naturais, para depois, já nos lindes do sistema, serem ejetadas para sempre, pela força gravitacional de Júpiter, ao espaço interestelar, onde estão a vagar até hoje. Seus projetistas inseriram nas Voyagers registros iconográficos deno-tando saudações em sessenta idiomas, centenas de imagens da vida na Terra e um acervo fonográfico com inúmeras canções, inclusive uma brasileira para, quem sabe, um dia esse acervo servir para que alguma forma de vida evoluída possa saber sobre os pequenos fragmentos de nossas vicissitudes.

Esses registros de dados foram projetados para resistirem à hostilidade do cosmo por cerca de 1 bilhão de anos.

Entalharam nas naves mapas indicando a localização exata do planeta no universo.

Hoje, pelo menos uma das Voyagers está a vagar, numa velocidade de 70 mil Km por hora, pelo vácuo interestelar39 rumo a seu destino. Com certeza se tornará mais um dos milhares de rebotalhos espaciais, como fragmentos de propulsores de foguetes, satélites com defeito, pedaços de ferramentas de astronautas, e sucata espacial que orbitam a Terra como adorno, e aviso, sobre nossa capacidade triunfal de a tudo poluir, sujar, produzir monturos não só no espaço cósmico como, também, em oceanos.

O sistema econômico é prolífico em produzir lixo, já que seu desenvolvimento é assentado no consumo compulsivo de produtos e engenhos em que a evolução tec-nológica impregna elementos cada vez mais poluentes, impulsionados por massivas propagandas que servem para turvar e aniquilar o senso crítico e conduzir a massa de potenciais consumidores a pautar suas existências no mundo do ter.

A cada engenhoca eletroeletrônica de cores rebrilhantes que é introduzida no sacrossanto mercado, a compulsão para a aquisição irresponsável introduz no meio ambiente uma desova imensurável de detritos cuja desaparição, em face aos consu-midores, é materializada na ação, singela, de lançar o descarte indesejável em um saco plástico, levá-lo aos monturos para que alguém, ou algum serviço público de limpeza, o afaste da visão de quem, um dia, o adquiriu.

38 op. cit. p. 20.39 SAGAN, op. cit., p. 266.

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Jamais nos preocupamos, ou refletimos seriamente, para onde vão esses re-botalhos.

O sistema é engendrado por teorias econômicas que veem os recursos natu-rais como simples mercadorias, com um potencial específico de valor. Nas teorias econômicas, os limites planetários e a vastidão oceânica de resíduos quase nunca são devidamente considerados.

Além da compulsão acerba de consumo que nos é imposta cotidianamente pelo modelo desenvolvimentista, expoente máximo desse mundo cuja modernidade coincide com a artificialização da natureza e de nossas vidas, o capitalismo é ainda estruturado pelo dogma da obsolescência programada, pela qual os produtos são projetados para terem uma durabilidade limitada, fomentando um ciclo massivo de consumo quando ultrapassado o prazo de funcionamento da mercadoria40.

A prática industrial de urdir um limite de funcionalidade nos produtos industriais começou na década de 20 do século passado, em um pacto enfeixado pelas indús-trias de lâmpadas.

Originalmente, as lâmpadas eram concebidas com a validade ilimitada. Existem até hoje lâmpadas funcionando perfeitamente após 100 anos de sua fabricação. Hoje, pela imposição desse cartel industrial, as lâmpadas têm a eficácia medida em horas.

Essa lógica se expandiu, no mundo capitalista, para quase todas as formas de fabrico, desde os alimentos até os utensílios domésticos, abarcando, nos dias que correm, os eletroeletrônicos e os aportes funcionais da informática.

Mauricio Waldman corrobora estas induções quando averba tratar-se da “ob-solescência planejada”:

Que transforma equipamentos como refrigeradores, rádios e aparelhos de TV em tralha em lapsos cada vez menores de tempo. Em 1997, a vida útil de um PC era em média de seis anos. Contudo, a corrida tecnológica abreviou a valida-de dos equipamentos para apenas dois anos. Assim, esta classe de detritos representa, nos dias de hoje, cerca de 5% dos resíduos sólidos domiciliares gerados no planeta. São 50 milhões de toneladas anuais de resíduos eletroeletrô-nicos, quantidade suficiente para lotar vagões ferroviários de carga dando a volta completa na circunferência terrestre (...) A carência de áreas para disposição final se agrava de-vido à lenta degradabilidade destes resíduos: um simples monitor pode requerer 300 anos para se decompor.41

40 Sobre o tema da obsolescência programada, ver documentário com esse mesmo nome, da cineasta Cosima Dannoritzer, produzido pela TVE-Televisão Espanhola: jornal o Estado de São Paulo, caderno Link, p.2, 23.01.2012. Ainda sobre o tema: Waldman, Mauricio, op. cit. p. 92. No referido documentário, a cineasta nos estimula a lutar contra essa lógica capitalista do consumo exacerbado, procurando meios e formas, factíveis, de repararmos os defeitos de nossos bens e estender-lhes a funcionalidade, evitando, dentre outras coisas, a produção de lixo.41 op. cit., p. 92.

A questão dos resíduos eletroeletrônicos carrega um outro agravante, já que tais restolhos da modernidade são compostos por metais pesados (cádmio, mercúrio, arsênio, cromo, chumbo), que não possuem função biológica nos organismos vivos e nos ecossistemas, não são biodegradáveis, tem ação bioacumulativa nos seres vivos e por isso são extremamente cancerígenos. Sua queima, misturada ao lixo comum, pode produzir a emissão de dioxinas e furanos na atmosfera, aumentando a propa-gação de doenças letais.42

Os escombros do modelo econômico não geram problemas somente no tocan-te à quantidade, mas absorvem grandes extensões de áreas a serem endereçadas à sua desaparição do mercado consumerista, desmedida sina de contaminação de diversos ecossistemas e o custo ambiental agregado na estrutura fabril dos produtos, talvez um dos mais perversos reveses do sistema de produção do lixo.

No que atine aos recursos hídricos, por exemplo, a pegada ambiental do siste-ma industrial é ciclópica, já que a absorção de água virtual, ou seja, não vislumbrada nas prateleiras dos supermercados mas necessariamente exaurida no processo de fabricação das mercadorias, é descomunal. Veja-se estes exemplos: a fabricação de cerveja consome de 4 a 7 litros de água para produzir 1 único litro da bebida; para a produção de 1 quilo de açúcar são necessários 100 litros de água; a fabricação de papel e celulose é uma das mais impactantes. Um quilo de papel significa o desper-dício de 250 litros de água. O alumínio, cada quilo consome 100.000 litros de água43.

Na agroindústria os impactos ambientais se multiplicam: a produção de 1 quilo de arroz reclama o consumo de 1.910 litros de água; cada quilo de milho exaure 1.400 litros, o trigo 900 litros de água para cada quilo; na pecuária só os bovinos exigem o consumo de 53 litros diários de água ou, em âmbito matemático, 16.193 litros de água para cada quilo de carne bovina posta nas prateleiras. Para a carne de galináceos, essa soma de refração do sistema hídrico alcança o número de 3.500 litros de água por quilo industrializado.

Por esses e outros motivos é que a luta ambiental pela redução na produção dos resíduos sólidos e sua reciclagem em escala global se intensifica. Na verdade, cada grama de lixo recuperado ou reciclado implica economia descomunal de recur-sos naturais, que deixam, com isso, de serem aniquilados no processo produtivo.

Para se ter ideia das ingentes dimensões dos problemas afetos à destinação dos resíduos, Mauricio Waldman nos conta que o descarte de pneus representa tor-mento ímpar em termos de solução ambiental.

Averba, mencionado pesquisador, que

Largados ao leú, propiciam a proliferação de insetos; jogados nos aterros, provocam instabilidade na massa acumulada de lixo por serem ocos e apresentarem baixa comprensividade, sendo, portanto resistentes à tração e ao

42 Mesma ameaça sanitária pode ser vinculada aos resíduos das lâmpadas fluorescentes, pilhas e baterias, seja de carros ou celulares, fontes intensas de metais pesados, radiação e dioxinas quando incineradas (WALDMAN, 2010, p. 93)43 WALDAMN, op. cit., p.115, PORTO-GONÇALVES, op. cit., p.217.

137Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...136 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

esmagamento; sua incineração é problemática por emitir volume de gases tóxicos e material particulado, o que ad-voga controle extremamente dispendioso e caro; enterrá--los é por definição um procedimento fadado ao insucesso, pois contendo muito óleo, eles emergem catapultados pela infiltração d’água. Não fosse suficiente, sua perdurabilidade é espantosa: acredita-se que um pneumático pode perma-necer incólume entre 1.000 a 10.000 anos (op.cit., p. 88)44

E tudo isso é descartado e misturado nos monturos das grandes e crescentes aglomerações urbanas que marcam nossa era.

A malha urbana mundial absorve cerca de 77% da água e energia produzidas no mundo, embora se espalhe por cerca de 6% da superfície terrestre.45

Seus resíduos atingem o assombroso patamar de 30 bilhões de toneladas, ano, entre rebotalhos domésticos e industriais.46

Os campeões de sujidades são os EUA, que descartam 230 milhões só de resíduos domésticos por ano, o que representa 31% do total global. Somados ao lixo doméstico da comunidade europeia e canadense, os países ricos são os responsá-veis por 56% do lixo urdido no planeta.

Nos EUA, a média é de produzir-se 2,3 Kg/habitante/dia. Nos países baixos, 1,25; Japão 1,06, No Canadá, 0,99, na Itália 0,96. A América Latina produz anualmen-te mais de 100 milhões de toneladas de resíduos domiciliares.

As classes ricas brasileiras igualam-se em sujidades com as do primeiro mun-do. Nós, nesse item, o alcançamos. Nossos ricos produzem 1,5Kg/habitante/dia de lixo, enquanto que nossa média é bem mais baixa no que se refere ao estamento pobre, que é de 0,3kg/hab/dia. A cidade de São Paulo é a campeã dos resíduos domiciliares, gerando 1,211 Kg/hab/dia, seguida pelo Rio, com 1,162 Kg diários por habitante.47

As pesquisadoras Paula Lavratti e Vanêsca B. Prestes constatam que, no to-cante ao lixo, a situação pátria é preocupante.

O primeiro dado refere-se à quantidade de resíduos coleta-dos, que indica que a massa de lixo coletada ampliou-se de 100 mil toneladas por dia em 1989 para 149 mil toneladas em 2000 – um crescimento de 49%, enquanto que entre 1991 e 2000 a população cresceu 16,43%48.

44 No Brasil, a disposição final de pneus é regrada pela Resolução Conama nº 416, de 30.09.2009. 45 Segundo o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, no mundo a quinta parta mais rica da população consome 45% de toda a carne e pescado produzidos no planeta; 84% de todo o papel, 74% das linhas telefônicas, detém 87% da frota mundial de veículos e consome 58% da energia planetária. Já a quinta parte mais pobre da humanidade, os números seriam 5% da carne e pescados, 1,1% do papel, 1,5% da telefonia e menos de 4% da energia (WALDMAN, 2010, p. 129)46 Ibidem, p. 45.47 WALDMAN, op. cit., p.40-41.48 op. cit., p. 9.

Apenas 32,2% dos resíduos coletados são destinados a aterros adequados, sen-do 13,8% endereçados para aterros sanitários e 18,4% para aterros controlados. A maior parte, ou seja 68,5% dos resíduos gerados são descartados em lixões sem controle.49

No Brasil existem mais de 15.000 lixões, que são depósitos irregulares, des-controlados e clandestinos de descartes.50

O correto, segundo as metas estabelecidas na Política Nacional de Resíduos Sólidos, introduzida pela Lei n.º 12.305/2010, após a implementação de políticas públicas voltadas à massificação da educação ambiental para reduzir a produção de resíduos, seria a concretização de ações para recuperá-los, reutilizá-los e reciclá-los, e somente a parte inservível, irrecuperável dos resíduos, nominada tecnicamente como rejeitos, deveriam ser destinadas a aterros sanitários devidamente legalizados, guarnecidos com mecanismos de contenção de infiltração do chorume nos sistemas hídricos e solos, adaptados com drenagem dos gases nocivos, como o metano, e a conversão desses elementos poluentes em adubo, no caso do material orgânico, e biocombustível, destinação ambientalmente adequada para o metano e outros gases defluentes da deposição dos rebotalhos.51

Como a maior parte dos resíduos produzidos é lançada sem qualquer trata-mento ou controle no ambiente, a contaminação de largas áreas de solo e o sistema hídrico, além, é claro, da atmosfera, são consequências inevitáveis da total ausência de políticas públicas consistentes no que tange à destinação dos restolhos da civili-zação.

Enfatiza Maurício Waldman que

O chorume é, ao lado do plutônio e da dioxina, uma das três substâncias mais perigosas produzidas pelo homem. O líquido (também conhecido como sumeiro, chumeiro, calda negra, líquido percolado ou lixiviado) se forma com a deterioração dos materiais putrescíveis presentes na fra-ção úmida do lixo. À medida que percola pelos monturos, o chorume arrasta consigo metais pesados que se despren-dem dos rejeitos que encontra pelo caminho. Por si só tal característica tornaria a calda negra uma ameaça direta ao meio ambiente e a todas as formas de vida. Porém, no que seria quase inacreditável, este fluido chega a ser, no tocante às demandas química e bioquímica de oxigênio, cerca de 200 vezes mais agressivo do que o esgoto. O lixi-viado literalmente devora o oxigênio das águas, eliminando a vida aquática e tornando-as impróprias para o consumo humano.52

49 Ibidem, p. 9-10.50 As pestilências, cujos vetores, habitam esses monturos, são: hantavirose, dengue, toxoplasmose, peste bubônica, tiquinose, teníase, leptospirose, malária, febre amarela...51 LAVRATTI, Paula; PRESTES, Vanesca B., op. cit., p. 12.52 op. cit., p.107-108. Waldman ainda alerta para a grande capacidade dos depósitos de lixo produzirem

139Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...138 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

O amontoado transbordante de resíduos se perfilam pelo ambiente, flagelando e matando os rios e acabando por desovar nos mares.

Conforme dados do Programa Ambiental das Nações Unidas (PNUMA) a cada 2,5 quilômetros quadrados da superfície dos oceanos se é possível encontrar 46 mil fragmentos de plástico, resíduo que responde por 70% da poluição das águas.53

Ainda com amparo em Maurício Waldman, no norte do Oceano Pacífico, espa-ço onde o problema alcançou um nível de gravidade verdadeiramente surrealista, o plástico estaria formando o primeiro continente artificial da história, um vasto território formado por 100 milhões de toneladas de refugos. Tecnicamente conhecido como Grande Vórtice de Lixo do Pacífico, este monturo flutuante é delineado pelas corren-tes marítimas, formando duas áreas de concentração de detritos – ocidental e oriental – ambas com metros de espessura nos seus pontos mais críticos.

Esse continente de lixo ostenta uma superfície de 15.000.000 de Km2, isto é, cerca de duas vezes a extensão total do território brasileiro.

Os componentes mais comuns, nesse continente, são tênis, brinquedos, tampinhas, garrafas PET, escovas e pastas de dente, chupetas, bolas de futebol, sacolinhas, quase tudo de plástico.54

Não sem razão, o geógrafo francês Jean Gottman chama nosso tempo de a Era do Lixo.

O antropoceno, como visto, inspira várias análises e denominações.

Uma delas poderia ser a Era da Injustiça Ambiental, posto que a maior parte dessas deposições de rebotalhos talhados pela modernidade é estocada, proposita-damente, nos ambientes povoados pelas comunidades pobres.

A construção do termo, nos conta Carlos Walter Porto-Gonçalves,

Teve como marco a experiência de luta concreta dos mora-dores de Afton, condado de Warren, na Carolina do Norte, EUA, em 1982. Ao tomarem conhecimento da iminente con-taminação da rede de abastecimento de água da cidade, caso fosse nela executado o plano de instalação de um de-pósito de policlorinato de bifenil, os habitantes do condado organizaram protestos, deitando-se diante dos caminhões que para lá levavam a perigosa carga. Com a percepção de que o critério racial estava fortemente presente na esco-lha da localização do depósito daquela carga tóxica, a luta radicalizou-se, resultando na prisão de 500 pessoas. Afton era composta de 84% de negros.55

o chorume. Ele noticia que em um aterro de S. Paulo o volume de chorume se perfaz no patamar de 780 litros por minuto, 46.800 litros por hora e 1.123.200 litros por dia (p. 108).53 Revista Veja, p. 94, 05.03.2008.54 Op. cit, p. 60-6155 “A globalização da Natureza...”, p. 386.

Um dos maiores ícones da Era da Injustiça Ambiental e da lógica capitalista que domina o antropoceno, é o relatório do economista-chefe do Banco Mundial, Lawrence Summers, que em atividades preparatórias para a realização da RIO-92, veiculou a seus pares, no plenário da instituição, em documento que deveria ser si-giloso, porém acabou vazando para a imprensa internacional, a seguinte proposição: “cá entre nós, não deveria o Banco Mundial estar incentivando mais a migração de indústrias poluentes para os países menos desenvolvidos?”.

Para fundamentar suas proposições, Lawrence Summers calcava seu texto nestas premissas:

1 - O meio ambiente seria uma preocupação “estética” típica apenas dos bem de vida;

2 - Os mais pobres, em sua maioria, não vivem mesmo o tempo necessário para sofrer os efeitos da poluição ambiental.

3 - Na ”lógica” econômica, poder-se-ia considerar que as mortes em países pobres têm custo mais baixo do que nos ricos, dado que os habitantes dos países mais pobres recebem salários relativamente mais baixos.56

É válido anotar que o absurdo intento discutido internamente pelos gestores do Banco Mundial sempre foi prática corrente em meio às empresas que mais degradam o planeta.

Marie-Monique Robin nos relata que a Monsanto, uma das maiores indústrias químicas do mundo, conscientemente despejou no canal de Snow Creck, na cidade de Anniston, Alabama, EUA, onde reside a maioria negra da cidade, milhares de tone-ladas de PCB – um dos elementos químicos mais letais já produzidos pelo engenho humano – causando a contaminação de milhares de pessoas pobres que residiam nas proximidades do canal, que morreram de cânceres e mutilações genéticas.57

Waldman, tantas vezes citado, ressalta que neste

Aspecto, a lógica da destinação dos resíduos, reforçando políticas de ‘punição da pobreza’, termina por deslocar os efeitos perversos do seu descarte para as áreas periféricas das cidades. Não haveria como desmentir: equipamentos como lixões, aterros, incineradores, depósitos de sucatas e ‘áreas de desova’ possuem localização preferencial exata-mente nas áreas habitadas pelos ‘de baixo’.58

O tema levou à consolidação da Convenção da Basiléia, em 1988, no intuito de se regrar a transposição de resíduos tóxicos, especialmente os provenientes da indústria química e de eletroeletrônicos, aos países pobres.

Todavia, por motivos de corrupção governamental, desdém sanitário, flexibili-

56 ACSELRAD, Henri. “O meio ambiente entre o mercado e a justiça”. Suplemento especial sobre desen-volvimento sustentável do jornal Le Monde Diplomatique Brasil, edição de dez-2011, p. 14 do suplemento.57 In: “O Mundo Segundo a Monsanto”, editora radical livros, SP 2008, p. 33.58 op. cit., p.63.

141Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...140 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

zação das normas protetivas ao meio ambiente, nações como Nigéria, Somália, Haiti, Iraque, Zimbabwe, recebem rejeitos perigosos em seus territórios.59

No mundo lixo, os restolhos, detritos, rejeitos, descartes, sujidades das mais variadas matizes fazem parte de quase toda e qualquer atividade humana.

Sejam os pacotes de pipoca, garrafas plásticas, sacos de batatas a decorar os ambientes após as sessões de cinema, teatros, congressos, jogos esportivos ou shows de rock, até o lixiviamento, invisível, mas infecto, penetrando pelos recônditos da terra, o lixo é o retrato mais fiel, a mais alta iconografia deste modelo econômico que se impõe e robustece pelo consumo exacerbado, desnecessário, mais das vezes inflado por um simples modismo ou singela vontade de ter.

Para o Antropoceno, o ‘mundo lixo’ talvez seja a metáfora mais fiel a esta nossa modernidade, onde escasseia inteligência e triunfa a mediocridade.

Talvez tenha faltado uma foto no acervo da Voyager.

III – INCINERANDO A LEI

Existe no país um acervo normativo que, de uma forma esparsa, tenta regrar a destinação adequada de alguns resíduos sólidos perigosos.

Essas normas instituíram um importante mecanismo nominado como Logística Reversa, que obriga o próprio produtor a ofertar a destinação ambientalmente ade-quada aos produtos, com potencial nocivo ao ambiente ou à saúde pública, após o término de seu ciclo utilitário.

Ou seja, é uma forma de obrigar o próprio sistema produtor do resíduo a dar cabo de sua destinação ambiental, seja reaproveitando-o, recuperando-o ou reciclan-do-o para nova introdução no mercado, isentando o Poder Público, em especial os contribuintes, de carregarem nas costas os custos severos dessa solução residuária de um rejeito que só proporcionou lucros ao sistema.

Alguns mecanismos de logística reversa há muito em vigência no país – mas convenientemente não divulgados como manda a norma – referem-se a materiais perigosos e amplamente impactantes ao meio ambiente como baterias automotivas ou de celulares, pilhas em geral cuja logística reversa é regulada pela Resolução CONAMA n.º 257/99; Pneus, pela Resolução CONAMA n.º 416/2009 e embalagens de agrotóxicos, tratada pela Lei n.º 9.802/89.

Por conterem metais pesados e outros componentes químicos altamente letais ao meio ambiente, esses produtos, quando encerrado o ciclo de vida de sua utilidade, devem ser, pelos consumidores, devolvidos aos estabelecimentos comerciais onde adquiridos, os quais, posteriormente, o encaminharão ao fabricante para a destinação

59 Lembra Waldman o rumoroso incidente envolvendo centenas de toneladas de lixo britânico enviadas ao Brasil em 2009, operação fraudulenta, licenciada com base em documentos que autorizavam o rece-bimento da carga para fins de ‘reciclagem’. Outro criativo expediente utilizado pelos países centrais tem sido a ‘doação’ de equipamentos fora de uso para populações carentes a título de ‘inclusão digital’. A cidade de lagos, na Nigéria, recebe diariamente 500 toneladas de equipamentos para esta finalidade. Em média, apenas 25% do material pode, de fato, ser aproveitado (op. cit., p. 102). Ainda sobre o tema veja o documentário, já referido, Obsolescência Programada.

ambientalmente adequada, uma logística que, como se percebe, aproveita toda a estrutura já existente no eixo de produção, distribuição e comercialização dos produ-tos, invertendo essa estrutura no momento de ordenar a destinação adequada dos resíduos.

Embora obrigatória a publicidade desse mecanismo, comando impresso em todas a resoluções e leis referidas, nem os governos (sem suas várias esferas) tam-pouco as indústrias ou comerciantes desses produtos, se preocupam em divulgar esse direito de indiscutível significado ambiental.

Essa prática de devolução desses materiais ao ciclo produtivo após o uso, deveria, obrigatoriamente, constar, em destaque, em todas as embalagens.

O tormentoso tema inerente à destinação dos resíduos sólidos vinha, desde a edição da Lei Federal n.º 11.445/2007, instituidora das diretrizes nacionais para o Saneamento Básico, sendo inserida nesse campo. Até então, o tratamento e destina-ção final do lixo doméstico e originário da varrição dos logradouros públicos, segundo o texto do art. 3º, I, alínea “c”, da mencionada norma, eram tratados na órbita do saneamento básico.

A responsabilidade direta pela gestão, fiscalização e execução das políticas e serviços públicos afetos aos resíduos sólidos é atribuída, pela Constituição Federal, aos municípios (art. 30, V).

Para emprestar regramento coeso e efetivo à matéria tão malbaratada no his-tórico da administração pública, e privada, do país, após mais de duas décadas de estagnação nos escaninhos do Congresso Nacional, adveio a Lei Federal n.º 12.305, de 02 de agosto de 2010, diploma de ordem pública e aplicação cogente, que tem por escopo estabelecer conceitos, objetivos, prioridades e instrumentos para a plena efetivação de uma Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Segundo a conceituação trazida pela norma, resíduos sólidos são conside-rados todo material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnicas ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível (inc. XVI, art. 3º)60

Esse diploma incorporou o consigna idealizado no campo da Educação Am-biental dos “3 Rs”: reduzir, reutilizar e reciclar,61 de modo a afastar a ideia de incine-ração que, como veremos mais detalhadamente adiante, é extremamente deletéria.

Esses escopos se evidenciam a partir do artigo 7º da Lei n.º 12.305/10, que preceitua serem objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos:

I proteção da saúde pública e da qualidade ambiental;

60 A conceituação é ampla e não está isenta de críticas. Maurício Waldman pondera que a definição é paradoxal, pois abarcaria os resíduos sólidos, semissólidos e líquidos. Segundo o pesquisador, “acontece que semissólido não é sólido, ainda que possa ser disposto e tratado como tal” (op. cit., p.75).61 LAVRATTI, op. cit., p. 6 e WALDMAN, op. cit., p.172. Este autor indica mais um “r”, que seria o primeiro: repensar o sistema.

143Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...142 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

II não geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos, bem como disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos;62

III estímulo à adoção de padrões sustentáveis de produção e consumo de bens e serviços;

IV adoção, desenvolvimento e aprimoramento de tecnologias limpas como forma de minimizar impactos ambientais;63

V redução do volume e da periculosidade dos resíduos perigosos.

VI incentivo à indústria da reciclagem, tendo em vista fomentar o uso de maté-rias-primas e insumos derivados de materiais recicláveis e reciclados;64

VII gestão integrada dos resíduos sólidos.

VIII articulação entre as diferentes esferas do poder público, e destas com o setor empresarial, com vistas à cooperação técnica e financeira para a gestão inte-grada de resíduos sólidos;

IX capacitação técnica continuada na área de resíduos sólidos.65

62 Importante frisar a diferença entre destinação e disposição final dos rejeitos. O lixo, ou seja os resíduos sólidos defluentes dos descartes do sistema “desenvolvimentista” devem, prioritariamente, seguir os esco-pos traçados pela norma: primeiro, através de educação ambiental eficiente e massiva, investir-se em um processo de conscientização populacional para reduzir a produção de resíduos. Segundo passo, reutilizar os resíduos subjacentes ao sistema. Reciclar àqueles insuscetíveis de reaproveitamento, e somente para os resíduos não redutíveis aos processos acima referidos, os absolutamente inservíveis para recuperação e reciclagem, chamados tecnicamente como rejeitos, estes sim, uma pequena dimensão dos rebotalhos, seriam, então, direcionados à disposição final em aterros devidamente adaptados e controlados. As fases de recuperação, reaproveitamento e reciclagem encampam o anseio de destinação ambientalmente ade-quada. Os rejeitos, inservíveis para essas etapas, são o objeto da disposição final em aterros sanitários. Nesse prisma, os aterros teriam sua vida útil estendida em função da diminuição da quantidade de rejeitos descartados.63 A obrigatoriedade de se adotar, nos processos de implementação da Política Pública de Resíduos, tecnologias limpas contraindica, e enquadra como amplamente ilegal, a instalação de incineradores acop-lados ou não com termelétricas (instrumentos do famigerado dogma oficial de ‘recuperação energética dos resíduos sólidos’, inserido, pelos interesses empresariais, no § 1º do art. 9 do diploma em referência) que, como veremos, são largamente impactantes à saúde e ao ambiente.64 O fomento à reciclagem é corporificado em vários dispositivos da lei como, ex., art. 8, III, IV, 9º, caput, 18, II, X, XI, etc.. Em vários desses preceptivos divisamos o dever dos Poderes Públicos em incentivar a formação de cooperativas de coletores de recicláveis, como forma de resgate da cidadania e expectati-va de trabalho digno a milhões de pessoas que vivem desse ciclo. Note-se que esses instrumentos de estímulo às ações de reciclagem dos resíduos também depõem contra os processos de queima do lixo que, para mostrar-se economicamente viável às empresas, via de regra estrangeiras, que irão operar os incineradores e geradores de energia, naturalmente aniquilarão todos esses escopos, desembocando num ciclo de aumento da produção do lixo para tornar viável a instalação, custosa, dos incineradores e usinas energéticas (termelétricas) queimando tudo o que vêem pela frente, inclusive a fração recuperável e reciclável dos resíduos, fator a aniquilar, repise-se, todos esses objetivos.65 Essa disposição tem sua importância no sentido que, como estamos a perceber, a compreensão dos fenômenos ambientais derivados da infinda capacidade de nosso modelo econômico produzir resíduos depende de uma visão multidisciplinar de todos os ramos da ciência enfeixados no tema dessa magni-tude. A ampla maioria dos municípios não têm agentes capacitados para empreender os mecanismos traçados pela Política Nacional. A larga maioria dos governantes, estaduais e municipais, vêem no lixo mera oportunidade de ganho, como incentivo empresarial de artefatos para sua incineração industrial ou, simplesmente, “varrendo-o” para debaixo do tapete que encobrem suas mediocridades administrativas.

X regularidade, continuidade, funcionalidade e universalização da prestação dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, com ado-ção de mecanismos gerenciais e econômicos que assegurem a recuperação dos cus-tos dos serviços prestados, como forma de garantir sua sustentabilidade operacional e financeira, observada a Lei n.º 11.445/2007.66

XI prioridade, nas aquisições e contratações governamentais, para:

a - produtos reciclados e recicláveis.67

b- bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis;68

XII integração dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo dos produtos;69

XIII estímulo à implementação da avaliação do ciclo de vida do produto.

XIV incentivo ao desenvolvimento de sistemas de gestão ambiental e empre-sarial voltados para a melhoria dos processos produtivos e ao reaproveitamento dos resíduos sólidos, incluídos a recuperação e o aproveitamento energético;

XV estímulo à rotulagem ambiental e ao consumo sustentável.

Para consecução destes escopos, o diploma normativo em testilha delineia, em seu artigo 8º, os instrumentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos, dentre os quais, destacamos:

I os planos de resíduos sólidos;70

66 Como já pautado pelo art. 37, caput, da CF. Cf. e artigo 22 do CDC, os serviços de coleta e tratamento ambiental dos resíduos sólidos devem ser prestados de maneira contínua, obrigatória, universal e eficiente, sendo um ônus, um dever dos municípios. Devem, como visto, abranger todo o território municipal, posto inserir-se na política sanitária e de saneamento básico, além da ambiental. Eventual omissão da admin-istração municipal em prestar tais serviços, em especial aos bairros pobres (universalidade) a sujeitará a eventual comando de ação civil pública, inclusive e em especial, manejada pelas Defensorias Públicas. Mesma hipótese se apresentará quando o gestor municipal descumprir seu dever de apresentar anual-mente o Plano Municipal de Resíduos Sólidos, traçado no art. 18 do mesmo codex. Isso tudo, sem prejuízo das penas de improbidade administrativa nos termos dos artigos 10 e 11 da lei nº 8.429-92.67 Mais um dispositivo a reforçar a obrigatoriedade do objetivo de reciclar o lixo.68 Mais um preceptivo que inviabiliza a contratação de obras para incinerar o lixo, posto que tais usinas energéticas são amplamente incompatíveis com os valores sanitários e com o meio ambiente equilibrado.69 Este dispositivo tem como objetivo inserir, obrigatoriamente, os coletores de materiais recicláveis no sistema da logística reversa, dimensionada no artigo 33 da norma. A logística, vimos alhures, é uma forma de sujeitar o sistema produtivo dos resíduos, a emprestar destinação ambientalmente adequada àqueles perigosos ou de difícil disposição. A logística reversa, quando regulamentada, não poderá ser implementa-da apenas pelo segmento empresarial, alijando os coletores de seu processo.70 Este preceptivo obriga à realização de planos permanentes e sistemáticos sobre os resíduos e sua destinação. Esses planos, segundo o art. 14, abarcam várias esferas da administração como plano fed-eral, estadual, municipal, intermunicipais e microrregionais. Registre-se, ainda, que há a garantia legal de transparência, mediante ampla publicidade e efetiva participação social (inc. VI, art. 14). Infelizmente, como visto, esse dever de transparência quase não é obedecido por governo algum. Exemplo disso encontra-se nessa política massiva, em S. Paulo, de incinerar o lixo em escala industrial, política implementada de cima a baixo, sem qualquer chance de debate com a sociedade civil e comunidade científica. Também, pelo que se sabe, não há movimentação alguma, em âmbito estadual e municipais, para elaboração desses planos,

145Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...144 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

II inventário e o sistema declaratório anual de resíduos sólidos.71

III a coleta seletiva, os sistemas de logística reversa e outras ferramentas relacionadas à implementação da responsabilidade compartilhada pelo ciclo dos produtos;72

IV o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou outras for-mas de associação de catadores de materiais e recicláveis;73

V o monitoramente e a fiscalização ambiental, sanitária e agropecuária.

VIII a educação ambiental.74

Juntamente com um Plano Estadual, agora é obrigatória a realização de Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos, cujo conteúdo mínimo deverá contemplar, dentre outros mecanismos, programas massivos de educação ambiental que permitam a concretização das metas básicas de não geração, redução, reutili-zação e reciclagem dos resíduos (artigos 9º c.c. 19, X); incentivo à participação de cooperativas de coletores de materiais recicláveis e reutilizáveis (XI, art. 19); metas de redução, reutilização, coleta seletiva e reciclagem (inc. XIV).

Fica evidente que a implementação do sistema de coleta seletiva em todos

através das necessárias audiências públicas, tendo em vista que a obrigatoriedade de sua consecução se operará a partir de agosto de 2012 (art. 55).71 Inexistem inventários eficazes de levantamento e monitoramento da produção de resíduos na maioria absoluta dos estados e municípios brasileiros. Até mesmo no âmbito federal os dados são precários. Sem a análise detalhada de todo o trajeto do lixo, desde seu sistema de fabrico, seus componentes eletrônicos, químicos, matérias-primas, hídrica, sua rede de consumo, quantidade declarada e capacidade de geração residuária, se tornará impossível o enfrentamento de problema desse jaez.72 Importante notar que por esse dispositivo a coleta seletiva se torna item obrigatório em todo plano municipal de resíduos sólidos a partir de agosto de 2012. Ver artigos 18 e 55 da norma, dentre outros preceptivos correlatos.73 Numa sociedade tão desigual, milhões de pessoas amparam sua existência, e de seus familiares, no serviço de coleta de material reciclável ou recuperável, prestando serviços inestimáveis à sociedade e ao ambiente. Segundo o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, em 2008, o Brasil contava com cerca de 1 milhão de pessoas que viviam da coleta seletiva (WALDMAN, p. 185). O dispos-itivo em foco obriga a inserção e estímulo organizacional, pelo Poder Público, inclusive, das cooperativas dos coletores de recicláveis, reconhecendo-os como importantes atores na implementação dessa política pública. A instalação de Incineradores, por seu turno, irá, literalmente, como já acentuado, queimar milhões de empregos no setor, aprofundando, ainda mais, a vulnerabilidade social desse segmento.74 No campo de luta pela preservação ambiental a Educação Ambiental é relevantíssima, talvez a principal ferramenta, infelizmente tão aviltada no país. A educação ambiental é regulada pela lei nº 9.795-99, e deveria ser efetivada, através de disciplina própria e por profissionais especializados, em todas as séries do ensino fundamental, médio e superior, tal a sua relevância, como temos visto ao longo deste ensaio. Infelizmente, sempre subserviente aos imperativos empresariais, econômicos, mercadológicos e políticos, essa lei, em seu artigo 10, § 1º, decretou a falência desse instrumento ao dispor que ‘a educação ambiental não deve ser implantada como disciplina própria específica no currículo de ensino. Assim, a educação ambiental é espraiada ao longo do ensino fundamental, por várias disciplinas, onde os professores não são capacitados para disseminar a vasta gama multidisciplinar subjacente ao tema. São disseminadas vagas noções, sempre do ponto de vista pessoal dos professores, aos alunos. Para conseguirmos a redução dos resíduos, como aconselhado pela norma, é necessária uma revisão imediata dessa limitação normativa, revisão essa que, infelizmente, não foi concretizada pelos governos posteriores. Educação ambiental no Brasil continua sendo uma quimera.

os municípios doravante é obrigatória. A omissão dos gestores municipais permite a aplicação das sanções afetas aos delitos de improbidade administrativa, como visto, e obstam o alcance, pelo município respectivo, a recursos federais específicos para esse segmento (art. 18).

É importante novamente ressaltar que esses planos devem ser produzidos à mercê de mecanismos que permitam ampla publicidade e transparência de seu con-teúdo, bem assim um mínimo de controle social, sob pena de nulificação.

A partir de agosto de 2012, todos os municípios do país e todos os Estados de-verão ostentar seus respectivos planos de destinação ambiental de resíduos sólidos (art. 55). Essa obrigação normativa ostenta nítido color positivo, de forma que a não observância do prazo e das normas que delineiam conteúdo mínimo a esses planos permite aos órgãos legitimados, em especial às Defensorias Públicas, o manuseio de ações civis públicas visando o cumprimento do encargo social, até por que a questão da destinação adequada do lixo é de interesse integral das comunidades pobres, da coletividade de coletores de material reciclável e ferramenta importantíssima em termos de saúde preventiva e ambiental.75

Infelizmente, neste Estado e na grande maioria dos municípios não se antevê movimentação alguma no sentido da construção desses planos essenciais em termos ambientais e sanitários.76

Ao contrário, como acenado desde o primeiro tópico do presente ensaio, em São Paulo e outros rincões do país, divisamos anúncios pirotécnicos atinentes à ins-talação de incineradores de lixo nos grandes aglomerados citadinos, como solução mágica, cômoda e fácil para a desaparição do lixo.

Só no Estado de São Paulo, como vimos, o anúncio governamental tende a impor à sociedade, sem debate algum, a construção de 18 usinas de incineração de resíduos.77

75 A título de exemplo, em meados de 2011 a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ajuizou, na co-marca de Taubaté, a ação civil pública nº 625.01.2011.005232-0, para compelir o município, que não conta sequer com um aterro sanitário, a efetivar políticas públicas para retirada, cercamento e limpeza de mais de 18 lixões clandestinos espalhados pelo município, fontes de pestilências mil, em especial a dengue, que assola a cidade de Taubaté desde 2007. Nunca é demais rememorar que todos os lixões, sem exceção, são urdidos nos bairros pobres.76 Curial assinalar-se que em São Paulo a lei nº 12.300, de 16.03.2006, instituiu a Política Estadual de Resíduos Sólidos, reproduzindo os velhos comandos de “uso sustentável, racional e eficiente dos recursos naturais” (inc. I, art. 3º), “preservação do meio ambiente e saúde pública” (II, art. 3º); “promover a inclusão social dos catadores nos serviços de coleta seletiva” (IV, art. 3º); “fomentar a implantação de coleta seletiva nos Municípios” (VII, art. 3º); O art. 2º, V, dessa norma proíbe práticas que gerem poluição e ordena à for-mulação de políticas tendentes a reduzir a geração dos resíduos, de modo a vedar a solução incineratória.77 77 Para De la Torre, em “Termelétricas e democracia” : “Para tentar conscientizar a população e promo-ver o debate até agora sonegado pela administração do estado e dos municípios envolvidos, a Defensoria Pública Regional de Taubaté e várias entidades da sociedade civil estão promovendo debates e seminários sobre o tema, enfrentando as conhecidas dificuldades que todos aqueles que lutam pelo fortalecimento dos princípios democráticos vivenciam neste país, como o ocorrido em Canas, no dia 06 de julho de 2011, quando os debates tiveram que se concretizar em uma rua da cidade, porquê a administração local, utilizando de seu aparato político e ameaças das mais variadas matizes, impediu que cidadãos e entidades na localidade disponibilizassem um espaço para abrigar o evento. Em que pesem as conhecidas ações antidemocráticas de nossos gestores face ao tema ambiental, o evento em Canas se realizou no único

147Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...146 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Nos eufemismos neoliberais, a solução incineratória do lixo foi batizada como “Plano de Recuperação Energética de Resíduos Sólidos”, que visa, em meio à magia impregnada na retórica oficial, transformar os resíduos em energia elétrica.

Fácil e simples não fosse o comando expresso da norma, como se vai repa-rando, em impor a obrigação de os Poderes Públicos velarem não para a queima literal dos resíduos, contribuindo significativamente com o aumento da poluição at-mosférica, mas sim em promover ações voltadas à reflexão, redução, recuperação e reciclagem dos resíduos, como ordena, em letras expressas, o caput do artigo 9º da sobredita Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos.

É certo que o parágrafo primeiro desse dispositivo (e é nele que se apegam os administradores) permite, sim, a chamada “recuperação energética dos resíduos”, mas compreendida em seu prisma ambiental, em transformar a fração orgânica do lixo, como já foi ressaltado aqui, em adubo por meio de mecanismos de composta-gens, e os gases defluentes, em especial o mais abundante deles, o metano, em biocombustivel, para reutilização na frota dos municípios e regiões metropolitanas.

Esse o sentido teleológico do preceptivo, até porque, como pontua a pesquisa-dora do ITA, Delma Vidal, via de regra a solução da queima, em grande escala, dos resíduos sólidos, é implementada em países com pequena disponibilidade de terri-tórios, e mesmo nestes, por pressão da população afetada, esse tipo de tecnologia, está sendo paulatinamente descartada em razão dos graves impactos ambientais, por isso, a tentativa das transnacionais que controlam a tecnologia dos incineradores em travarem acertos com nossos gestores para nos empurrar, goela abaixo, esses monstrengos em desuso no primeiro mundo, sempre, é óbvio, sem o necessário de-bate e transparência.78

Ademais, podemos também concluir que, para viabilizar economicamente a instalação dessas usinas de incineração – obras de grande porte e maciços inves-timentos – seria necessária a queima integral de todo o lixo produzido nas cidades, incluindo a fração recuperável e reciclável dos resíduos, o que nos encaminha para estas inafastáveis conclusões:

1 - A incineração literalmente queimará as possibilidades de concretização dos objetivos traçados na lei, já que a incineração de todo o lixo impedirá o atingimento das metas de redução, recuperação e reciclagem;

2 - A incineração literalmente queimará milhões de empregos de milhões de pessoas pobres que vivem da coleta de material recuperável/reciclável, afrontando um dos principais escopos normativos, que é o afeto a conferir expectativas de digni-dade de vida a esse segmento social;

espaço liberto das ingerências oficiais: a via pública. Das reflexões colhidas sobre a relevância do tema, a indagação que aflora é a de saber-se para quais interesses se vergam os formuladores de políticas públi-cas quando fogem do debate democrático como o mafarrico se evade da cruz? Antes que nossos gestores cometam a insânia de facilitar, com insólita celeridade, a instalação dessas termelétricas na região, se faz mais do que necessária uma prévia e ampla discussão sobre a capacidade de região, já saturada com tantas fontes poluentes, absorver o custo sanitário e ambiental dessas fontes sujas de energia”. Artigo acessível no blog www.progressosustentável.org.br.78 De acordo com VIDAL, Delma, estudo técnico, datado de 10.06.2011, sobre o projeto de instalação de incinerador de lixo em S. José dos Campos, juntado no procedimento de licença ambiental nº 11.220-11 da Cetesb. Sobre a desativação dos incineradores de lixo na Europa, ver www.wasteincineration.com-news.

3 - A incineração literalmente implicará o estímulo da produção do lixo nas ci-dades para alimentar, em um circulo vicioso, o funcionamento das usinas de queima, contribuindo para o aumento exponencial do lixo, e não sua redução.

4 - Como grande parte das cidades sede dessas usinas não terá a capacida-de de gerar o volume economicamente esperado de lixo (englobando todo o lixo, orgânico, reciclável, recuperado, componentes químicos, eletroeletrônicos, etc.) fica evidente que os incineradores anunciados pelo governo serão acoplados a termelé-tricas movidas a gás natural para cumprirem as metas de geração energética, o que multiplicará os impactos ambientais.

Sonia Hess, uma das mais destacadas pesquisadoras brasileiras na área dos impactos socioambientais derivados das operações das termelétricas fomentadas pela queima de gás natural, em especial o proveniente da Bolívia, destaca que esse elemento fóssil é detentor de compostos como o mercúrio, substância extremamente tóxica e letal à saúde, além de gerar, em suas operações, quantidades significativas de óxido de nitrogênio. Esses dados, segundo pontua a aludida pesquisadora,

são preocupantes, uma vez que milhares de artigos científi-cos têm revelado que os óxidos de nitrogênio estão envolvi-dos no surgimento de diversas condições patológicas, como impotência masculina, diabetes, supressão da imunidade, hipertensão, câncer, processos alérgicos e inflamatórios, problemas cardíacos, entre outros males.79

Importa considerar, ainda, que os incineradores são obras de grande porte, que exigirão a queima de todo o lixo produzido nos aglomerados urbanos onde instala-dos, abarcando o aniquilamento do conjunto de rebotalhos aqui inventariados como a parcela úmida dos restolhos, resíduos de plástico, eletroeletrônicos, componentes químicos, enfim, provocando a emissão de compostos químicos nocivos na já comba-lida atmosfera, tais como dioxinas, furanos, além de toneladas de gases agravantes do efeito estufa, num ciclo de poluição que será coroado com a presença de chuvas ácidas e outros males.

Uma das principais fontes de dioxinas no ar provêm da queima de lixo, em especial do material orgânico. Diferentemente dos países do hemisfério norte, nossos resíduos ostentam larga fração de compostos úmidos, cerca de 52% dos resíduos que geramos é constituída por material molhado.80

A incineração de resíduos gera pouquíssima energia elétrica em relação aos estragos ambientais que produz.

Nos EUA, por exemplo, para gerar eletricidade para 28.000 residências, a usi-na de Andover do Norte (Massachusetts) queima lixo produzido por meio milhão de pessoas. Calcula-se que se os EUA incinerassem todos os seus resíduos sólidos, a medida produziria apenas 1% da eletricidade consumida no país.81

79 “As usinas termelétricas de MS e a saúde pública”, artigo coletado em 15.06.2011 do site www.riosvivos.org.br.80 WALDAN, op. cit., p. 190.81 Ibidem, p. 165-6

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Mauricio Waldman pontifica que

A bem da verdade, os compêndios admitem ser a incineração responsável por componentes tóxicos presentes nos gases e nas cinzas da combustão do lixo. Dentre os poluentes em estado gasoso, constatam-se dioxinas e furanos, poluentes persistentes de natureza tóxica e carcinogênica. A estes, somam-se compostos clorados, metais pesados, gases sulfurosos, monóxido de carbono e óxidos de nitrogênio. No tocante às ejeções sólidas, as cinzas volantes, um material granulado muito fino, podem esgueirar-se incólumes pelos sistemas de despoeiramento e ganhar o ambiente externo aos incineradores. Quando inaladas, são fator potencial para doenças respiratórias e diversos casos de cânceres. Por sinal, muitas sobras apresentam elevado nível de con-taminação, criando embaraços para sua disposição final. Isto fica muito claro nas polêmicas internacionais como foco no descarte das cinzas da incineração, sistematicamente proibido pelas autoridades de grande número de países.82

Em dezembro de 2009, a revista científica Environmental Health, publicou o estudo, construído por mais de 10 anos de contínuas pesquisas, nominado como “Systematic Review Of Epidemiological Studies on Health effects associated with management of solid wast”, dos cientistas Daniela Porta, Simona Milani, Antonio I. Lazzarno, Castro A. Perucci e Francesco Forastiere, onde se conclui que a ocorrência de várias espécies de Cânceres pode aumentar na escala de 35% para as pessoas que residem num raio de até 10 Km das fontes de incineração, probabilidade mórbida que se intensifica na medida que a área de moradia se aproxima da fonte de com-bustão.83

Jamais poderemos deixar esvanecer nos horizontes neoliberais que as bacias atmosféricas das grandes cidades que sediarão essas termelétricas incineratórias estão extremamente saturadas, ou seja, não têm mais condições ambientais de ab-sorver tamanha carga de poluição.

Para agravar, ainda mais, a situação, a CETESB (órgão responsável, em São Paulo, pelo monitoramento ambiental) continua a utilizar parâmetros construídos nos anos 1990, erigidos na ultrapassada Resolução CONAMA n.º 03/90, para realizar as avaliações das emissões atmosféricas, o que faz com que, a região metropolitana de São Paulo, por exemplo, apresente ar irrespirável em quase 70% do ano84/85.

82 Ibidem, p. 164.83 Vide inicial da ACP nº323.01.2011.008248-0, ajuizada pela Defensoria Pública e Ministério Público per-ante a 1ª Vara Cível de Lorena-SP.84 Folha Uol de 09.08.201185 E a área do Vale do Paraíba ostente níveis preocupantes de saturação, conforme desponta a reportagem do jornal “O Vale”, de 18.6.11 (fls. 346), baseada em avaliações encetadas pela própria CETESB.

A OMS, em 2005, alterou os indicadores de avaliação da qualidade do ar para todo o Mundo, o que denota a defasagem em termos de controle de poluição atmos-férica pela maioria dos Estados brasileiros.

A reportagem veiculada pela agência folha em 08.11.2006, produzida pelo jor-nalista Thiago Guimarães, é bem elucidativa sobre a questão.

Dessa matéria destacamos os seguintes e emblemáticos excertos:

Novos limites para a poluição do ar fixados pela OMS (Or-ganização Mundial da Saúde) impõem um alerta ao Brasil: como a legislação nacional é menos exigente, o país pode estar respirando um ar mais perigoso do que se imagina.

(...)Dos poluentes estudados, MP(material particulado), ozônio, dióxido de enxofre e dióxido de nitrogênio, a OMS reduziu os limites dos três primeiros. A norma brasileira, de 1990, aceita concentrações mais altas para os quatro.

No Brasil, por exemplo, o limite considerado seguro de MP 10 – partículas suspensas da espessura de um quinto de fio de cabelo – é de 150 microgramas por metro cúbico de ar (média diária). A OMS informou que essa concentração causa 5% mais mortes do que o novo limite que fixou – de 50 microgramas por metro cúbico.

(...) Os padrões nacionais de qualidade do ar, fixados em resolução de 1990 do CONAMA, foram inspirados por pa-râmetros dos EUA.

O médico patologista da USP Paulo Saldiva, que estuda o impacto dos poluen-tes atmosféricos na saúde humana, disse que as oito capitais brasileiras que medem a poluição do ar seriam reprovadas pela OMS nas concentrações de MP e Ozônio.86

Incineradores de lixo, como proposto no pomposo plano estadual de “Recupe-ração Energética de Resíduos Sólidos” são, no limite, usinas termelétricas, já que se propõe a gerar eletricidade a partir da queima dos rebotalhos.

Para Oswaldo Sevá – pesquisador do Departamento de Energia da Faculdade de Engenharia Mecânica da UNICAMP, em Campinas-SP – uma das maiores autori-dades nacionais em fontes energéticas,

86 A própria OMS (Doc. 564) entoa a advertência de que “el aire limpio es uno de los requisitos básicos de la salud y bienestar humanos. Sin embargo, la contaminación atmosférica sigue suponiendo una impor-tante amenaza para la salud en todo el mundo. Según uma evaluación de la carga de morbidad debida a la contaminación atmosférica hecha por la OMS, cada año se producen más de 2 miliones de muertes prematura atribuibles a los efectos de la contaminación atmosférica urbana y la contaminación del aire de interiores (causada por la utilización de combustibles sólidos). Más de la mitad de esa carga recae sobre la población de los países en desarrollo”. Disponível no site da OMS, acessado em out-2011.

151Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...150 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

A avaliação das usinas existentes deve ser feita constante-mente, em muitos casos, diariamente (por exemplo, emis-sões pelas chaminés das termelétricas, níveis e vazões das represas). As melhores avaliações – as mais úteis para as empresas, para as autoridades, para os vizinhos das ins-talações são aquelas em que os avaliadores adotam todo o rigor no emprego das palavras, do jargão técnico, e no manuseio dos números que representam as grandezas físicas, e também comerciais. Ao avaliar estamos tratando de problemas e de atividades que podem significar custos econômicos e também ambientais e até em termos de saú-de e de vidas humanas. Não esquecer que combustíveis incendeiam e explodem: que usinas nucleares são também usinas termelétricas, e que podem desarranjar a ponto de emitir radiações ou até derreter o núcleo, como a usina de Tchernobyl, na Ucrânia, nos anos de 1980.87

Em resumo – mais uma vez fazendo uso das ponderações de Mauricio Wald-man – a incineração resgata pouquíssima energia e para consegui-lo, semeia de uma ponta à outra uma miríade de problemas. Suspeitosamente, o “resgate energético”, mais que propriamente uma benesse tecnológica, transparece antes como argumen-tação para aprovar a queima do lixo. Outra pontuação difícil de contestar é que o custo da incineração ultrapassa em muito a operação dos aterros. No Brasil, cotações de preço confirmam que a destruição térmica alcança preços cinco vezes superiores aos da construção de aterros sanitários. Isto, sem contar que seu funcionamento contribui para o aquecimento global e para a formação das deposições ácidas”.88

IV DERRADEIRAS REFLEXÕES

De todo o suscitado, resta evidente que a visão multidisciplinar acerca do tor-mentoso problema do lixo e sua destinação se faz imperiosa diante das incontáveis variáveis subjacentes à questão ambiental.

Ressuma irrefutável que a política oficial de incineração massiva dos resíduos sólidos atenta, não só contra o encargo maior de assegurar a incolumidade da saúde pública, como se mostra ilegal, não só porquê contraria os objetivos traçados pela so-bredita lei instituidora da Política Nacional de Resíduos Sólidos89, mas, em especial, impossibilita a redução das emissões de gases de efeito estufa ordenada tanto pela Lei Paulista n.º 13.798/2009 como pela Lei Federal n.º 12.187/2009, ambas editadas para instituir meios de aplacar os efeitos deletérios das mudanças climáticas no país.

É iniludível, sob o aspecto jurídico, que toda a normatização paulista, em es-

87 “Usinas Hidrelétricas e Termelétricas”, p. 203. Artigo que instrui a ACP nº323.01.2011.008248-0, ajuizada pela Defensoria Pública e Ministério Público perante a 1ª Vara Cível de Lorena-SP.88 op. cit., p. 166.89 Também contraria os objetivos traçados pela lei estadual instituidora da Política Estadual de Resíduos Sólidos, lei nº12.300-2006, como vimos.

pecífico a resolução SMA n.º 079/2009, urdida para formalizar a política incineratória do lixo, se afeiçoa irremediavelmente revogada pelo advento daquelas leis novas e específicas sobre tema tão relevante, normas que dispõem contrariamente à solução de queima dos resíduos como reduto final de sua destinação.

A principal solução no tocante à destinação ambientalmente adequada dos resíduos é a de redução de sua geração, além da materialização de políticas massi-vas de reciclagem que, no país, abarca muito pouco em termos de recuperação dos resíduos domiciliares, só 3% do total são reciclados90.

Em que pese os avanços das atividades de reciclagem, no Brasil ela, por ques-tões de viabilidade econômica, atingem, apenas, 5 segmentos, todos da fração seca do lixo: vidros, plásticos, aço, alumínio e papéis.

Não há uma política pública voltada para a intensificação da reciclagem. Esse mecanismo de recuperação dos resíduos continua subordinado à lógica mercantilista, o que é muito pouco face aos agravos ambientais e sanitários que estamos por divisar.

Os efeitos potenciais de massiva instalação de termelétricas no território nacional vão ser, com certeza, catastróficos, principalmente em face da notória ine-ficiência governamental em monitorar as atividades empresariais, motivo, pelo qual, é comum divisarmos as notícias sobre desastres atreitos a desabamentos de pré-dios, explosões de bueiros, restaurantes, enxurradas em todos os grandes centros urbanos, vazamento de petróleo, violações do limite de emissões por termelétricas, qualidade do ar saturada em todas as cidades brasileiras, extinção da vida em todos os rios de nossas capitais, isso, para não rememorar a indisfarçável precariedade dos procedimentos de licença ambiental no país.91

Lionel Tiger, antropólogo de renome, aduz que “há uma tendência dos seres humanos de ver conscientemente o que gostariam de ver. Temos literalmente dificul-dades em ver coisas com conotações negativas”.92

Talvez essa concepção genética explique a dificuldade de reconhecermos os

90 WALDMAN, op. cit., p. 110.91 Refletindo sobre a mera catadura formal e a fragilidade dos estudos de impactos ambientais de hoje, assim como o frouxo sistema de avaliação oficial, Carlos Bocuhy indaga, em artigo amplamente funda-mentado, sobre “Quais são as nossas salvaguardas? Infelizmente não são as melhores. Vamos refletir um pouco sobre o sistema de licenciamento. O órgão maior do sistema ambiental paulista é o Conselho Estadual de Meio Ambiente de São Paulo (Consema). Ao longo do tempo, para agilizar processos de licenciamento, torna-se cada vez mais apenas um apêndice burocrático do sistema de Meio Ambiente. Nos últimos dez anos, apresenta perda de instrumentos democráticos, como possibilidade de elaboração participativa de plano de trabalho para a construção dos EIA-RIMA – Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto ao Meio Ambiente. Até dois anos atrás, era possível que os segmentos da sociedade representados no Consema pudessem contribuir apontando quesitos e metodologia a serem utilizados na avaliação de impacto ambiental – inclusive solicitar nesta primeira fase audiências públicas, já que a percepção das comunidades é essencial na avaliação dos processos de licenciamento ambiental. Isso poderia interferir – e interferiu fortemente, nas alternativas locacionais que eram apresentadas nos planos de trabalho. Hoje essa fase do licenciamento tornou-se uma negociação de balcão entre empreendedor e governo e só haverá discussão pública quando o EIA-RIMA estiver pronto – sendo então apresentado à sociedade. Como receita de bolo pronto, neste caso dos incineradores será o governo propondo, proto-colando, licenciando e gerindo o processo” (“Termelétricas e Incineradores: por quê, onde e para quem?”, artigo de setembro de 2011. Disponível em: www.proam.org.br. Acesso em: 28 set. 2011, p. 6).92 Apud Dawkins, Richard, op. cit., p. 248.

153Lixo e incineração: uma visão multidisciplinar sobre a destinação ambientalmente...152 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

desastres ambientais que estamos gerando, bem assim a aversão atávica que carre-gamos para conviver com o lixo que produzimos.

Mas há a necessidade do enfrentamento do problema, e existem soluções. São mais custosas, do ponto de vista econômico, do que a manutenção do “Mundo Lixo”. Lutar pela preservação da biodiversidade dá mais trabalho do que destruí-la.

Algumas soluções já foram apontadas, e podem aqui serem assim resumidas:

1 - Esforços incondicionais para compelir os formuladores de políticas públicas a cumprirem as metas de redução de emissões fixadas pelas Leis estadual e federal de Mudanças Climáticas;

2 - Ações incondicionais para compelir os formuladores de políticas públicas (sempre abarcando todos os estamentos da administração) a cumprirem os objetivos e concretizarem os instrumentos traçados na lei instituidora da Política Nacional de Resíduos Sólidos, tal como exposto ao longo deste escrito, em especial materiali-zando os escopos de repensar a questão do lixo, reduzir sua produção, recuperar os resíduos e de massiva reciclagem.

3 - Ações intensivas para compelir os formuladores de políticas públicas a im-plementar a Educação Ambiental em todos os seus quadrantes, inserindo-a, obrigato-riamente, como instrumento primordial nos Planos Municipais, Estaduais e Federal de Resíduos Sólidos, posto ser ela essencial para conscientizar a sociedade a alcançar um nível essencial de redução dos resíduos.

É óbvio que inúmeros fatores poderiam ser aqui listados, mas, para os objeti-vos traçados neste escrito, a síntese acima declinada é suficiente para materializar a suma dos anseios ambientais cingidos ao tema proposto.

E as Defensorias Públicas, por tudo o que foi vertido, afloram como organismos essenciais na liça pela implementação das políticas ambientais a serem concretiza-das, já que as comunidades pobres que estamos destinados a defender, como visto, são, em regra, as primeiras vítimas dos desastres naturais defluentes da desestabi-lização climática.

Para por termo a este já extenso arrazoado – que segue longo pela relevância do assunto – mais uma vez faremos uso das sublimes reflexões tecidas pelo saudoso Norberto Bobbio, por nós já referidas em um anterior escrito93. O pensamento do filósofo italiano é tão preciso aos tempos que correm, que não resistimos, aqui, à sua reprodução. Sobre as vicissitudes aqui tantas vezes exortadas, Bobbio enunciou:

Alguma vez aconteceu que um pequeno grão de areia leva-do pelo vento detivesse a máquina. Mesmo que exista um milésimo de milésimo de probabilidade de que o pequeno grão, levado pelo vento, vá parar na mais delicada das en-grenagens, detendo o movimento, a máquina que estamos construindo é demasiado monstruosa para que não valha a pena desafiar o destino.94

93 DE LA TORRE, Wagner Giron. O direito à moradia. Revista da Defensoria Pública, n. 2, Edepe, São Paulo, 2009, p. 242.94 Diário de um século, p. 216.

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INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA COMPULSÓRIA: A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Carolina Gomes DuartePsicóloga. Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Regional Sorocaba

Luciano Pereira de AndradeDefensor Público do Estado de São Paulo- 14 Defensoria Pública Unidade Sorocaba (Cível, Família, Fazenda Pública e Juizado Especial Cível)

Dayana Coelho SouzaPsicóloga. Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Regional São José do Rio Preto

Marco Antonio de Oliveira BrancoPsicólogo. Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Regional Araçatuba

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende realizar uma reflexão sobre a internação no âmbito da saúde mental, principalmente para casos de abuso de álcool e drogas - uma das principais demandas atendidas pela Defensoria Pública - frente às atuais políticas públicas no cenário brasileiro.

O transtorno mental deve ser abarcado como um fenômeno complexo e histó-rico, atravessado pelas dimensões psicossociais que determinam o processo saúde--doença.

Para conceber a magnitude do problema no campo da saúde pública, o Re-latório Mundial da Saúde1 aponta estimativas iniciais que cerca de 450 milhões de

1 Organização Mundial da Saúde. Relatório Mundial da Saúde: saúde mental nova concepção, nova es-

159Internação psiquiátrica compulsória: a atuação da Defensoria...158 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

pessoas atualmente sofrem de perturbações mentais ou neurobiológicas ou, então, de problemas psicossociais, como os relacionados com o abuso de álcool e de dro-gas. Dentre eles, a depressão grave é atualmente a principal causa de incapacitação em todo o mundo e ocupa o quarto lugar entre as dez principais causas de patologia, a nível mundial. Além disso, 70 milhões de pessoas sofrem de dependência do álcool, cerca de 50 milhões têm epilepsia e outros 24 milhões, esquizofrenia.

Já no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde2, 3% da população (cerca de 5 milhões de pessoas) necessitam de cuidados contínuos em razão de transtornos mentais severos e persistentes, e mais 9% (totalizando 12% da população geral do país – aproximadamente 20 milhões de pessoas) precisam de atendimento eventual para transtornos menos graves. Quanto a transtornos decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas, a necessidade de atendimento regular atinge a cerca de 6 a 8% da população, embora existam estimativas ainda mais elevadas.

Diante de tamanha demanda, evidente que a rede de cuidados para essas pessoas deve ser substancialmente densa, diversificada e, sobretudo, efetiva. Enten-dendo-se este sujeito, conforme apontam Colvero, Ide e Rolim (2004), não constituído apenas de um aparelho psíquico que, eventualmente, necessite de diagnóstico e tra-tamento, mas sim um ser humano em sua integralidade, enquanto um sujeito dotado de subjetividade, de saberes e desejos próprios, o qual é ativo no processo saúde/doença, inclusive, permitindo a leitura dos fenômenos sociais de exclusão, de vulnera-bilidade social e subjetiva, os quais são também determinantes neste processo.

Com efeito, os cuidados voltados à pessoa em sofrimento mental sempre refle-tiram os valores sociais predominantes no que se refere à percepção social dessas doenças. Assim, para discutir o tema afeto à saúde mental precisam ser considerados os modelos que contribuíram para a apreensão da temática no atual momento, bem como das estratégias de intervenção utilizadas.

No mesmo sentido em que pese o acontecimento de mudanças, atualmente pode-se inferir que o momento de atenção à saúde mental é de transição, isto implica dizer que perduram duas lógicas opostas, quais sejam a da inclusão e a da exclusão. Ao mesmo tempo em que a rede de assistência à saúde mental é consubstancialmen-te comunitária, ainda existem hospitais psiquiátricos e outras instituições que atuam com reclusão e asilamento das pessoas.

Cabe destacar ainda que não é aplicado o princípio da igualdade seja no momento da entrada no hospital psiquiátrico quando este sujeito é considerado des-provido de razão, e portanto, não possui o status de cidadão; seja na saída quando a sociedade lhe propiciará um estigma que o identifica como um desigual perante os ditos cidadãos, dificultando a reinserção sociofamiliar. Tal realidade demonstra a complexidade de um problema crônico e, mormente, cultural ante ao tratamento que se dá para o cidadão em sofrimento mental.

Neste compasso, com o escopo de garantir a efetiva cidadania e por via direta alcançar um dos fundamentos Republicanos, é que a Defensoria Pública encontra a

perança. Lisboa: Organização Mundial da Saúde, 2001. Disponível em http:--www.who.int-whr- e Acesso em: 27 jan. 2012.2 Ministério da Saúde. Disponível em http:--portal.saude.gov.br-portal-arquivos-pdf-diretrizes.pdf

pertinência subjetiva para o desempenho de seu mister funcional-constitucional em prol dos hipossuficientes.

BREVE HISTÓRICO ACERCA DA ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL

Bem se sabe que o binômio saúde-doença ao longo dos tempos modificou-se. Foucault (1997) e Castel (1978) demonstram que a internação, enquanto um recur-so de ordem social, era praticada anteriormente ao desenvolvimento da psiquiatria. As casas de correção ou hospitais gerais eram os estabelecimentos destinados à reclusão e ao abrigamento daqueles que perturbavam a ordem social, quais sejam, enfermos, loucos, prostitutas, libertinos, pobres, insanos, ociosos, sem indicar nenhu-ma distinção entre eles.

Pode-se afirmar que somente com o surgimento da psiquiatria enquanto es-pecialidade médica, principalmente no final do século XVIII com Phillipe Pinel (na França), a loucura passou a ser considerada como doença, sendo a internação a fundamental estratégia de tratamento.

Além disso, a loucura começou a ser associada com periculosidade e até com criminalidade, situação que reforçou o encarceramento e afastamento da pessoa em sofrimento mental sob o argumento de que o isolamento era necessário para prote-ção da própria pessoa, da família e da sociedade.

Ao ser categorizada como doença mental, a loucura passava a estar sujeita ao domínio médico que, visando a uma melhor compreensão do fenômeno, valeu-se do método epistêmico então vigente: isolar, separar, classificar e agrupar de acordo com as características observadas O hospital assume, portanto, o lócus de conhecimento psiquiátrico e centro produtor de saberes e práticas (OLIVEIRA, 2002; ALMEIDA, 2002; BRITTO, 2004; ROCHA, 2005 apud GUIMARÃES, 2007).

Já no Brasil, a criação do primeiro hospício brasileiro data da segunda metade do século XIX, o Hospício Pedro II, inaugurado em 1852 no Rio de Janeiro. A despeito disso, somente na época do Brasil República que o louco e a loucura adquiriram status de doente e doença e passaram a ser objetos de especialistas, passível de tratamento (ROSA, 2003).

O atendimento das diversas demandas relacionadas à saúde mental era re-alizado juntamente com pessoas que deveriam ser retiradas do convívio social, tais como, mendigos, leprosos, tuberculosos, entre outros. Percebe-se, portanto, para moralizar as massas, sobretudo os focos de desordem e de miséria, a clássica asso-ciação estabelecida entre a psiquiatria e os projetos estatais de controle social.

Nesse sentido, afirma Resende (1992, p. 27):

o destino do doente mental seguirá irremediavelmente pa-ralelo ao dos marginalizados de outra natureza: exclusão em hospitais, arremedos de prisões, reeducação por labor-terapias, caricaturas de campos de trabalho forçado.

Esse modelo legitimou-se e culminou na eclosão dos hospitais psiquiátricos no Brasil como a única proposta de tratar as pessoas com transtorno mental pela inter-

161Internação psiquiátrica compulsória: a atuação da Defensoria...160 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

nação, muitas vezes, ad eternum. Vale ressaltar que esse modelo hospitalocêntrico e higienista persiste até os dias de hoje, conforme aponta Resende (1992, p. 37), a exclusão é a “tendência central da assistência psiquiátrica brasileira, desde seus primórdios até os dias de hoje”.

A guisa de comparação, indigitado tratamento de taxação e exclusão social, verificava-se, com outra parcela da comunidade hipossuficiente afeto às crianças e adolescentes, que à época eram marginalizados de forma tal, que o então Código de Menores (1979) albergava sob seu manto estigmatizador apenas os incapazes civis etários, quando envolvidos em atos infracionais ou em situação de rua, destinando-os a locais de convivência em comum sem qualquer distinção, revelando o total descaso com a questão da cidadania, ensejando como legado deste período o termo “menor”, que infelizmente contaminou-se e está arraigado nos dias atuais em petições, sen-tenças e artigos jurídicos.

Assim tem-se a Instituição Defensoria Pública, cuja nota é eminentemente de-mocrática, que em parceria com a sociedade civil busca concretizar os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil.

Outrossim, diante de incontáveis casos de exclusão e morte social, uma vez que o paciente era retirado do convívio social, perdendo muitas vezes seus vínculos afetivos e sua própria identidade, os movimentos sociais denunciaram as recorrentes violações de direitos, dando início ao movimento denominado Reforma Psiquiátrica.

COMPREENDENDO A REFORMA PSIQUIÁTRICA

É um movimento histórico de caráter político, social e econômico pautado na desinstitucionalização e no resgate da cidadania e do respeito à singularidade e sub-jetividade da pessoa em sofrimento mental.

O modelo de hospital psiquiátrico enquanto a única alternativa de tratamento passou a ser alvo de críticas contundentes. Denunciando as inconveniências do mo-delo sobre o qual se ergueu os paradigmas da psiquiatria clássica, pela primeira vez, usuários e familiares passaram a entrar na cena do debate político, sendo que esse empoderamento consolidou-os como atores e protagonistas da Reforma ao cobrar a construção de uma rede de serviços de atendimento substitutiva aos hospitais psiqui-átricos.

Entretanto, como inúmeras lutas na seara de Direitos Humanos, a Reforma psiquiátrica desenvolve-se há várias décadas no Brasil, mais precisamente a partir do final dos anos setenta. O episódio que se tornou marco ficou conhecido como “crise da DINSAM” – Divisão Nacional de Saúde Mental -, em 1978 no Rio de Janeiro, quan-do os profissionais de suas quatro unidades deflagraram uma greve geral, denuncian-do suas condições de trabalho com um quadro de pessoal defasado e profissionais graduados e universitários sendo contratados por meio de sistemas de bolsas pagas com recursos da Campanha Nacional de Saúde Mental. Denunciaram ainda o modelo assistencial psiquiátrico, as precárias condições de vida nas instituições asilares e a má qualidade da assistência aos internos (ROSA, 2003).

Papel de suma relevância nesse cenário coube às Conferências de Saúde. Com a I Conferência Nacional de Saúde Mental, o movimento ganhou maior projeção

com a proposta de revisão do modelo manicomial rumo aos serviços extra-hospita-lares, executados por equipes multiprofissionais e a progressiva diminuição, até a extinção, de leitos psiquiátricos asilares e sua substituição por leitos psiquiátricos em hospitais gerais públicos.

Assim, surgiu o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial sob o lema “por uma sociedade sem manicômios”, constituindo-se num espaço de lutas e conquistas inspirado na experiência italiana, tendo como objetivos, sobretudo, a desconstrução do manicômio e a implantação de serviços substitutivos às instituições asilares e segregadoras. Ampliando seu raio de ação, o Movimento congrega esforços na luta por mudanças no plano legislativo na busca de assegurar a atenção ao portador de transtorno mental em seu meio cultural e social, a construção de sua cidadania e poder de trocas sociais.

As décadas de 1980 e 1990 fomentaram um panorama de assistência à saúde mental com inúmeras experiências antimanicomiais inspiradas no modelo de Trieste--Itália. Novos serviços de caráter extra-asilar foram implantados em todo o país ao longo destas duas décadas, na tentativa de resgatar a singularidade e a complexida-de do adoecer psíquico (BELMONTE, 1998).

Desse modo, o século XXI desponta com o desafio de avançar na imple-mentação das propostas de desinstitucionalização, tão cara à luta antimanicomial, rompendo as barreiras da inércia habitual dos serviços públicos. Para tanto, há de se enfrentar grandes interesses econômicos financeiros que sustentam o modelo hospitalocêntrico.

Cabe frisar que a desinstitucionalização defendida pela Reforma Psiquiátrica não se restringe tão somente à substituição do hospital por um aparato de cuidados externos. Para além, exige que, de fato haja um deslocamento das práticas psiquiá-tricas para práticas de cuidado realizadas na comunidade. Pressupõe, portanto, uma mudança cultural, mormente por investimentos do Poder Executivo para atingir tal desiderato.

REDE SUBSTITUTIVA AOS MANICÔMIOS: OS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS)

No que diz respeito a outorgar cidadania às pessoas com transtorno mental e instituir os deveres do Estado para com elas, é um marco para a saúde mental a promulgação da Lei Nº 10.216, de 06 de abril de 2001, conhecida notoriamente como a “Lei da Reforma Psiquiátrica”.

Fruto de luta histórica após amplas discussões e mobilização social, a referida Lei, vigente há 10 anos, contribuiu sobremaneira para a transformação de um modelo falido de assistência à saúde mental para um atendimento comunitário e intersetorial, cujo foco está na reinserção social da pessoa e promoção de sua autonomia.

A partir de então, foram criadas linhas específicas de financiamento, bem como normatizações pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico, assim como novos mecanismos para a fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país.

163Internação psiquiátrica compulsória: a atuação da Defensoria...162 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Não se pode olvidar que muitos pacientes passaram anos a fio dentro de um hospital psiquiátrico internados compulsoriamente, principalmente, após o fecha-mento dos leitos e implantação da rede substitutiva. Evidentemente, o processo de desinstitucionalização é complexo e até que seja implantada uma rede sólida de ser-viços substitutivos ao hospital existem pessoas estigmatizadas submersas em uma cultura altamente institucionalizada.

A visão relacionada ao conceito de cura deve se referir a cuidar. E para tanto, a articulação em rede dos variados serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico é imprescindível para acolher a pessoa em sofrimento mental. Portanto, a construção dessa rede deve ser coordenada e paulatina, uma vez que fechar hospitais psiqui-átricos sem rede de serviços substitutivos é tão arriscado como criar alternativas comunitárias sem fechar estes hospitais.

Por meio da articulação em rede de diversos equipamentos em cada território é que se promove autonomia e se outorga cidadania às pessoas com transtornos mentais. O Ministério da Saúde dispõe, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), uma rede organizada de ações e serviços públicos de saúde regionalizada, conforme os níveis de complexidade.

No que tange à rede de atenção à saúde mental, existem os Centros de Aten-ção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência, Ambulatórios de Saúde Mental e Hospitais Gerais.

Os CAPS prestam atendimento clínico em regime de atenção diária às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços sociais do usuário em seu território, evitando, deste modo, as internações em hospitais psiquiátricos. Também promovem a inserção social das pessoas com transtornos mentais por meio de ações intersetoriais.

De acordo com o porte, a capacidade de atendimento, a clientela atendida, bem como o perfil populacional dos municípios brasileiros, os CAPS são estrutura-dos, sendo classificados em CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS i e CAPS AD.

Os CAPS I são os Centros de Atenção Psicossocial de menor porte, capazes de oferecer uma resposta efetiva às demandas de saúde mental em municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes. Os usuários e as usuárias são adultos com transtornos mentais severos e persistentes e transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Funcionam durante os cinco dias úteis da semana.

Já os CAPS II são serviços de médio porte, e dão cobertura a municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes e possuem as mesmas características do CAPS I, exceto pela maior capacidade de atendimento.

Por sua vez, os CAPS III são serviços de grande complexidade, uma vez que funcionam durante 24 horas em todos os dias da semana e em feriados, cuja implan-tação é nos municípios com mais de 200.000 habitantes. Com no máximo cinco leitos cada um, os CAPS III realizam, quando necessário, acolhimento noturno (internações curtas, de algumas horas a no máximo 7 dias). A equipe mínima para estes serviços deve contar com 16 profissionais, entre os profissionais de nível médio e superior, além de equipe noturna e de final de semana. Estes serviços têm capacidade para realizar o acompanhamento de cerca de 450 pessoas por mês.

O atendimento especializado de crianças e adolescentes com transtornos mentais acontece nos CAPS i, que são equipamentos geralmente necessários para dar resposta à demanda em saúde mental em municípios com mais de 200.000 habi-tantes. Funcionam durante os cinco dias úteis da semana.

E, para as pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas são previstos os CAPSad para cidades com mais de 200.000 habitantes, ou cidades que, por sua localização geográfica (municípios de fronteira, ou parte de rota de tráfico de drogas) ou cenários epidemiológicos importantes, necessitem deste serviço para dar resposta efetiva às demandas de saúde mental. Funcionam durante os cinco dias úteis da semana.

SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO PRIMÁRIA: ARTICULAÇÃO COM A ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA

O tratamento e a prevenção da dependência química e/ou sofrimento mental têm no território dos usuários um espaço privilegiado de atuação, desse modo, a atenção primária é um importante espaço de cuidados em saúde mental.

Destaca-se que a atenção primária em saúde é um modelo de porta de entrada que efetua atendimento para grande parte das demandas, atuando principalmente na área de prevenção e promoção da saúde. A partir disso, nota-se que os equipamentos de saúde da atenção primária devem efetuar a prevenção da dependência química, bem como, a participação no tratamento em articulação com os equipamentos psi-cossociais especializados.

Atualmente um importante modelo de atenção primária é a Estratégia de Saú-de da Família (ESF), que redireciona o modelo de assistência e gestão em saúde de modo a efetuar busca ativa das demandas e efetivando os princípios do Sistema Único de Saúde como integralidade, equidade e universalidade (BRASIL, 1997).

Vale ressaltar que a Portaria n.º 1886/GM, de 18 de dezembro de 1997, regu-lamenta que uma equipe de Saúde da Família (SF) é responsável pelo acompanha-mento de uma área de abrangência onde residam no máximo 1000 (mil) famílias ou 4.500 (quatro mil e quinhentas) pessoas, um número menor ao se comparar com o atendimento de uma Unidade Básica de Saúde. Sendo assim, apresenta melhores condições para o acompanhamento sistemático (BRASIL, 1997).

Na ESF trabalha-se com a vigilância em saúde, isso quer dizer que há uma busca ativa das demandas do e no território, não esperando que as famílias procurem pela Unidade de Saúde, mas indo até elas.

Rosa e Labate (2003) apontam que a ESF vem substituir o trabalho efetuado pelo modelo hospitalocêntrico, focado na doença, sendo que a clientela de tal es-tratégia é a comunidade e família e não somente a doença e um sujeito descontex-tualizado. Para a execução de tal trabalho recomenda-se que uma equipe de saúde minimamente composta pelos seguintes profissionais de referência: médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agentes comunitários de saúde (na proporção de um agente para, no máximo 150 famílias ou 750 pessoas (BRASIL, 1997).

Essa equipe mínima pode contar com o apoio de profissionais de outras áreas que atuam como consultoria, tal equipe compõe o Núcleo de Apoio à Saúde da Família

165Internação psiquiátrica compulsória: a atuação da Defensoria...164 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

(NASF) e pode contar com psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, farmacêuticos, educadores físicos entre outros que efetuam apoio as várias equipes de referência (BRASIL, 2008a).

Nota-se que o NASF tem como objetivo ampliar a abrangência de ações da atenção primária e sua resolutividade. Tal núcleo possui representantes da área da saúde mental que apoiam as equipes de referência ao traçar prioridades e plano de cuidados, além de possível atendimento no território, promoção e prevenção de saúde (BRASIL, 2008a).

A saúde mental efetuada na ESF apresenta diversas potencialidades como resgate do vínculo entre profissionais de saúde e os usuários do sistema, redução do uso indiscriminado de alta tecnologia na atenção à saúde, além da ampliação do controle social (BREDA et al., 2005).

Além disso, Nunes et al. (2007) ressaltam que a Saúde da Família serve como um importante articulador da rede de saúde mental, no sentido de rompimento com o modelo hospitalocêntrico, já que está presente no território e no cotidiano das famí-lias, podendo realizar ações de saúde que rompam com o modelo focado na doença.

Dimenstein et al. (2005) destacam que o cuidado em saúde mental no con-texto da ESF se configura como um espaço de produção de novas práticas porque propõe produção de cuidados culturalmente sensíveis, congruentes e competentes. As demandas de saúde mental requerem intervenção imediata podendo ser evitada a utilização de recursos assistenciais mais complexos de modo desnecessário.

O acompanhamento de casos envolvendo uso prejudicial de álcool e de outras drogas, os egressos de hospitais psiquiátricos, o uso inadequado de benzodiazepíni-cos, entre outros, pode ser incorporadas às atividades das equipes de ESF de modo estabelecer parcerias com os CAPS e superar o modelo psiquiátrico medicalizante e hospitalar (DIMENSTEIN et al., 2005).

Destaca-se que a ESF é um dos espaços de cuidado em saúde com maior po-tencial para efetivação da Reforma Psiquiátrica, visto que está presente no território estabelecendo vínculo com a comunidade, apresentando um conceito de saúde que vá além de ausência de doença, podendo atuar de modo à ressignificação cultural e inclusão do sujeito diferente dentro da comunidade bem como promovendo saúde e podendo prevenir intensos sofrimentos psíquicos.

A QUESTÃO DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Ao longo de sua História, a humanidade vem consumindo drogas psicoativas, isto é, substâncias químicas capazes de agir no sistema nervoso central provocando alterações de suas funções tais como sensopercepção, cognição, humor, etc.

O uso de drogas, portanto, é próprio do ser humano. Há uma extensa gama de contextos em que substâncias psicoativas são usadas, desde rituais religiosos até tratamentos medicamentosos, passando pelo uso para fins de recreação.

Do ponto de vista legal, estas drogas são classificadas em lícitas e ilícitas, ou seja, seu consumo é legalmente permitido ou proibido. Estas restrições legais variam entre os países. Em alguns países islâmicos, por exemplo, o consumo de álcool é

proibido e o da maconha é permitido. No Brasil, a situação é invertida. Em nosso país, além do álcool e tabaco (restritos a maiores de 18 anos de idade), é permitido o consumo de medicamentos psicotrópicos (ansiolíticos, antidepressivos, etc., desde que prescritos por um médico e com fins de tratamento), e proibidos os consumos de maconha, cocaína ou crack, ecstasy, dentre outros. O fato de uma droga ser consi-derada lícita não significa que ela seja menos prejudicial para a saúde das pessoas do que as drogas ilícitas. Qualquer substância psicoativa pode provocar danos às pessoas que as consomem.

É certo que todas as pessoas que consumirem uma substância psicoativa ex-perimentarão alterações das funções de seu sistema nervoso central. No entanto, as sensações causadas pelo consumo de drogas são variadas. Cada indivíduo terá sua própria experiência. Estas variações são decorrentes de múltiplos fatores, tais como composição biológica do indivíduo, substância utilizada, vias de administração, esta-do psicológico, contexto de consumo, expectativas em relação aos efeitos da droga consumida. A sensação de prazer provocada pela ação de substâncias psicoativas no cérebro é um dos fatores mais importantes para tornar um indivíduo dependente destas drogas.

É sabido também que nem todas as pessoas que consomem drogas se torna-rão dependentes.

A literatura científica aponta três padrões de consumo de drogas: uso, abuso e dependência (TAUB; ANDREOLI, 2004). O termo uso se refere ao consumo de uma substância psicoativa, mesmo que seja apenas uma única vez na vida de um indivíduo. Algumas pessoas, após experimentarem uma droga, podem passar a fazer uso ocasional dela, ou seja, seu consumo ocorrerá algumas outras vezes, podendo trazer prejuízos à saúde, mas não provocando intensos problemas sociais. Um exem-plo claro de uso ocasional é o consumo de bebidas alcoólicas em finais de semana, sem que este comportamento provoque prejuízos sociais graves aos usuários. Já o abuso é definido como um padrão de consumo de drogas em quantidade excessiva, aumentando o risco de danos à saúde e sociais. É o caso das pessoas que bebem álcool em excesso e dirigem um veículo, por exemplo. Além de danos ao seu próprio organismo, colocam em risco a integridade de outras pessoas. Por fim, o uso abusivo de drogas pode provocar um quadro de dependência, que discutiremos em seguida.

Estes padrões de consumo (uso, abuso, dependência) apresentam uma rela-ção de possível gradação, ou seja, o uso é o padrão menos prejudicial e pode evoluir para um abuso e deste para a dependência de determinada droga. No entanto, nem sempre ocorre esta relação. Um indivíduo que experimenta uma droga não neces-sariamente se tornará um usuário ocasional, abusivo ou dependente. A maioria das pessoas não percorrerá este caminho de aumento de prejuízos. A relação de um indivíduo com a substância utilizada e com o contexto social em que o consumo ocorre é que definirão o padrão de uso.

Segundo o Relatório Brasileiro sobre Drogas (BRASIL, 2009), publicação da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do governo federal, a partir do II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, rea-lizado em 2005, pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), órgão da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), temos o seguin-te panorama:

167Internação psiquiátrica compulsória: a atuação da Defensoria...166 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Prevalência de uso de drogas – BrasilDroga Na vida No ano No mêsÁlcool 74,6% 49,8% 38,3%Tabaco 44,0% 19,2% 18,4%

Maconha 8,8% 2,6% 1,9%Cocaína 2,9% 0,7% 0,4%

Crack 0,7% 0,1% 0,1%

A pesquisa foi realizada com 7.939 entrevistados de 108 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes. Fizemos na tabela acima um recorte de apenas algumas drogas que foram citadas na pesquisa. É possível perceber com bastante clareza a diferença entre a prevalência das pessoas que usaram ocasionalmente uma substância psicoativa, o uso no ano e no mês, sendo que os índices são drasticamen-te menores.

A mesma pesquisa aponta números ainda menores para a estimativa de pre-valência de dependentes, sendo o álcool (12,3%), o tabaco (10,1%) e a maconha (1,2%). Portanto, o percentual de pessoas que experimenta uma determinada droga e se torna dependente dela representa uma pequena parcela do total. Também é possível notar que as drogas consideradas lícitas (álcool e tabaco) lideram os índices, tanto de uso ocasional quando de estimativa de dependência.

O DSM-IV-TR - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 4ª Edição – Texto Revisado (ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA, 2002), re-ferência entre profissionais de saúde mental, aponta alguns critérios que necessa-riamente devem ser preenchidos para que se considere que uma pessoa esteja em situação de dependência química. O termo utilizado pela publicação é “Dependência de Substâncias”, que consiste em um agrupamento de sintomas cognitivos, compor-tamentais e fisiológicos que indicam que um indivíduo continua usando uma determi-nada substância psicoativa, apesar dos problemas significativos relacionados a ela.

Os critérios necessários são:

a) tolerância, isto é, necessidade de aumentar a quantidade de substância consumida para atingir o mesmo efeito experimentado no início do consumo ou expe-rimentar efeito menos intenso com o consumo da mesma quantidade de substância. Os graus de tolerância variam de acordo com a substância consumida.

b) abstinência, definida como um conjunto de sintomas fisiológicos e cognitivos (ansiedade, desânimo, lentificação, irritação, piora da concentração, insônia, sudo-rese, tremores, etc.), experimentados por um indivíduo que mantém uso prolongado de uma substância quanto o nível desta diminui em seu organismo. Muitas vezes o indivíduo volta a consumir a substância para aliviar estes sintomas.

c) a substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um período mais longo do que o pretendido.

d) existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso da substância.

e) muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção da substân-cia, na utilização da substância ou na recuperação de seus efeitos.

f) importantes atividades sociais, ocupacionais ou recreativas são abandona-das ou reduzidas em virtude do uso da substância.

g) o uso contínuo da substância, apesar da consciência de ter um problema fí-sico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pela substância.

Para a definição do diagnóstico de dependência de substâncias é preciso que três ou mais dos critérios elencados acima estejam presentes em qualquer momento, em um período de 12 meses. Os critérios de tolerância e abstinência, embora pre-sentes na maioria dos casos, não são obrigatórios para a definição da dependência. Embora não seja considerado um critério, quase todos os dependentes experimen-tam a sensação de fissura, definida como um forte impulsivo subjetivo para usar a substância.

TRATAMENTOS PARA DEPENDÊNCIA QUÍMICA: É REALMENTE NECESSÁRIO INTERNAR?

Cabe refletirmos sobre as necessidades e possibilidades de tratamento de pessoas que utilizam substâncias psicoativas. Quem precisa de tratamento? Se considerarmos que o uso indevido de drogas traz malefícios à saúde das pessoas, então concluiremos que todos os usuários de drogas precisam de tratamento, com a finalidade de interromper o uso. No entanto, sabemos que nem todos os usuários, principalmente os ocasionais, terão graves prejuízos com o consumo de drogas e dificilmente vão considerar o tratamento como necessário. Sendo assim, o tratamento deve estar focado na relação de um indivíduo com uma substância psicoativa e nos prejuízos que este consumo acarreta, o que implica concentrar esforços no atendi-mento a usuários abusivos e dependentes.

Uma das dificuldades significativas do tratamento de dependentes químicos é o momento da história de consumo de drogas de uma pessoa em que ele se inicia. Geralmente, o tratamento começa quando a situação está bastante grave, quase sempre com quadro de dependência química instalado há vários anos. E muitas vezes, a procura por tratamento apenas acontece quando severos prejuízos já acon-teceram e por pressão de terceiros (familiares, poder judiciário, etc.). Quanto maior a gravidade do quadro de dependência química, maior a dificuldade de que o trata-mento seja efetivo. Porém, dificuldade não significa impossibilidade. O atendimento a pessoas em situação de dependência química tende a contribuir positivamente com elas, independente do momento em que ele se inicia.

Importante frisar que as pessoas que apresentam dependência química de al-guma substância psicoativa são diferentes umas das outras. Portanto, os tratamentos ofertados para enfrentar a situação de dependência também devem ser diversifica-dos. Não há um modelo que possa ser considerado eficaz para todas as pessoas, nem sequer para a maioria delas. É preciso que a rede de atenção à saúde destas pessoas seja diversificada.

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A combinação de diferentes estratégias, de acordo com a melhor adesão de cada pessoa, deve ser buscada. A pessoa que está sendo tratada, bem como o con-texto social do qual ela faz parte, são peças fundamentais da efetividade das ações. É preciso considerar a expectativa do paciente em relação a si mesmo e ao seu tratamento e em que intensidade esse indivíduo acredita na sua própria reabilitação. A motivação para o tratamento é importante, e ela se apresenta em diferentes graus, que vão desde momentos em que dependentes químicos negam sua própria situação até momentos em que apresentam intenso esforço para interromper o uso de drogas. Como estes diferentes graus de motivação se alternam na vida do paciente, o trata-mento pode potencializá-los, ou seja, mesmo que um pequeno grau de motivação esteja sendo manifestado, o tratamento pode intensificá-lo, o que é essencial para a efetividade da reabilitação.

Atualmente no Brasil, a despeito dos esforços por modificação dos serviços de saúde mental provocados pela Reforma Psiquiátrica, o tratamento da dependência química ainda é predominantemente focado na internação psiquiátrica. Isto provavel-mente decorre da representação de familiares e profissionais de que a internação é a melhor ou única solução para o tratamento de dependentes químicos, acreditando que quando o paciente receber alta, ele estará “curado”. No entanto, o tratamento de dependência química não se limita à interrupção do consumo, mas envolve uma complexa mudança na vida do paciente.

A internação, quando necessária, não deve ser considerada o final do trata-mento. Ela pode ser o início, principalmente nos casos em que o dependente químico teve reduzida sua capacidade de fazer escolhas em decorrência do descontrole no consumo da substância. Se esta situação representar risco para a própria pessoa ou para terceiros, principalmente quando há intensa agitação psicomotora, agressi-vidade, ideação ou tentativa de suicídio, a internação é recomendada. Do contrário, o tratamento ambulatorial, oferecido principalmente pelos CAPS-AD, costuma ser o mais indicado.

A Lei Federal n.º 10.216/2001, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica, aponta em seu artigo 4º: “A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. § 1º. O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio (BRASIL, 2001, grifo nosso). Conforme se constata neste artigo, a internação deve ser utilizada como última estratégia, quando todos os recursos de atenção à pessoa em situação de dependência química não forem suficientes, sendo medida excepcio-nal com período de duração mais breve possível.

No entanto, infelizmente no Brasil ainda não há uma rede extra-hospitalar su-ficientemente instalada que possa oferecer atendimento adequado com estratégias que priorizem a promoção de saúde das pessoas sem retirá-las de seu ambiente. O número de serviços públicos de saúde em funcionamento é ainda bastante pequeno considerando a demanda de atendimento. Além disso, quando estes serviços estão instalados, percebemos uma precarização das condições de trabalho dos profis-sionais de saúde, com número reduzido de equipes especializadas, o que limita o alcance das ações propostas. Diante deste quadro de insuficiência, surgem análises que apontam que os serviços ambulatoriais de base comunitária, substitutivos aos manicômios, não são adequados ao tratamento de dependência química, reforçando

a ideia de que estes casos só podem ser tratados retirando as pessoas de seu con-vívio social.

Nos últimos vinte anos, com a inserção do crack como droga de abuso no Brasil, e a consequente exposição dos casos de dependência desta droga, retoma-se a concepção de uma parte da sociedade de que o Estado deve disponibilizar um maior número de vagas de internação para tratamento destes casos, reconsiderando a ideia de que esta é a única e definitiva estratégia de tratamento.

Conforme preconiza a Lei Federal n.º 10.216/2001, há três tipos de internação psiquiátrica: voluntária (com consentimento do usuário, mediante declaração assi-nada no momento da internação), involuntária (sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro, a ser comunicada ao Ministério Público em até 72 horas) e com-pulsória (determinada pela Justiça). O dispositivo legal ainda aponta que qualquer dos tipos de internação psiquiátrica somente será realizado mediante “laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos” (Art. 6º).

Diante da dificuldade de acesso a tratamento para dependência de crack e outras drogas, aumenta a demanda de familiares que solicitam o ajuizamento de ação judicial de internação compulsória, inclusive pela Defensoria Pública, quando são pessoas economicamente hipossuficientes.

Trata-se de uma busca pelo Poder Judiciário para solucionar um complexo pro-blema de saúde pública. Queremos, neste artigo, refletir acerca de alguns problemas decorrentes desse tipo de determinação judicial.

Na prática, em ações de internação compulsória, dificilmente há avaliação de equipe de saúde com laudo que aponte a necessidade de internação como única medida aplicável ao caso, caracterizando seus motivos, conforme aponta a referida lei. Sendo assim, muitas vezes o juiz competente decide pelo deferimento do pleito com base em informações do autor da ação, sem que o quadro seja avaliado do ponto de vista clínico. Por outro lado, também pode ocorrer a determinação judicial de internação compulsória para que a equipe de saúde do estabelecimento hospitalar que receberá o usuário proceda à avaliação do quadro clínico, apontando a necessi-dade ou não da medida de internação. Ocorre a inversão da ordem de atendimento. A pessoa em situação de dependência química, que deveria ter acesso a serviços de saúde antes de sua internação, só passa a tê-lo quando esta for efetivada.

Além disso, a internação compulsória pode atentar contra os Direitos Humanos das pessoas em situação de dependência química, quando impõe a elas um trata-mento forçado, que implicará limitação de sua locomoção, na medida em que será acolhida em instituições hospitalares fechadas, muitas vezes em situações precárias de atendimento.

Mesmo em instituições de saúde em adequada situação de atendimento, a internação compulsória não garante efetividade do tratamento, como seria desejado pelas pessoas que propõem este tipo de ação judicial. Isso ocorre porque a motivação do usuário para interromper ou diminuir o uso de drogas é inexistente, na maioria das vezes. Como abordamos anteriormente, a motivação é fator extremamente impor-tante para o sucesso do tratamento. Em termos de efetividade, internar uma pessoa em situação de dependência química contra sua vontade não garantirá sucesso na abstinência futura. Casos em que o usuário imediatamente volta a abusar de drogas em curto espaço de tempo após a alta hospitalar são muito comuns.

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Segundo Pedro Gabriel Delgado (2011), quando a Lei Federal n.º 10.216/2001 foi concebida e aprovada no Congresso Nacional, havia o entendimento de que a mo-dalidade de internação compulsória deveria ficar restrita aos processos criminais que implicassem medida de segurança para crimes em que o transtorno mental do autor tivesse relevância fundamental. Atualmente, mesmo para esses casos, há experiên-cias no Brasil de atendimento preferencialmente ambulatorial, dentro dos princípios da Reforma Psiquiátrica (BARROS-BRISSET, 2010; SILVA, 2010).

O que se percebe, ao longo dos dez anos de vigência da Lei, é que a modalida-de de internação compulsória passou a ser aplicada em larga escala na esfera judicial cível, quando familiares de dependentes químicos solicitam o ajuizamento de ações. Na prática, podemos definir esta situação como uma distorção do espírito da Lei, pois a justiça não deveria determinar este tipo de intervenção, já que a própria legislação prevê a modalidade de internação involuntária, quando a família solicita, o paciente não concorda, mas há indicação médica clara para tal medida.

Para ilustrar a tomada de decisão médica quanto à internação compulsória, reproduzimos o quadro e a tabela abaixo, retirados de Barros e Serafim (2009, p. 176-177).

Diante do panorama atual, podemos afirmar que a internação psiquiátrica só poderá vir a ser adequadamente utilizada em situação excepcional quando for garanti-da atenção à saúde mental das pessoas em situação de dependência química e seus familiares com qualidade e com fundamento na inclusão social. Portanto, evidente que uma rede de serviços de saúde mental diversificada, qualificada e articulada deve existir para que o tratamento seja efetivo e garantidor de Direitos Humanos.

A atual Política Nacional de Saúde Mental reserva aos Centros de Atenção Psi-cossocial – Álcool e Drogas (CAPS/AD) papel importante de referência no tratamento a pessoas em situação de dependência química. É este equipamento público que viabilizará atenção à saúde destas pessoas em um paradigma de respeito à dignida-de humana, sem conceber a retirada do convívio social como alternativa preferencial para tratamento (BRASIL, 2004a).

Os CAPS-AD contam com equipes de saúde multidisciplinares composta por médicos psiquiatra e clínico, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, pedagogos, dentre outros, que oferecem diversa gama de intervenções terapêuticas tais como tratamento medicamentoso, psicoterapia individual e grupal, grupos de orientação, oficinas terapêuticas, visitas domiciliares, entre outros (BRA-SIL, 2004b).

Toda a atenção prestada aos usuários destes serviços é organizada através de planos terapêuticos individuais, elaborados pela equipe de saúde em conjunto com o próprio usuário e seus familiares, de acordo com as necessidades particulares de cada pessoa atendida.

Os CAPS-AD devem estar inseridos em uma rede de saúde mental diversifi-cada, e, portanto, não são o único equipamento destinado à atenção de pessoas em situação de dependência química. Somam-se a ele as Equipes de Saúde da Família e Unidades Básicas de Saúde, dentre outros.

Apesar de não ser o único, o CAPS-AD deve ser o principal equipamento de saúde atuante deste contexto. Deve ser a referência para os usuários e seus familiares, sendo um serviço de “porta aberta”, isto é, sem a necessidade obrigatória de enca-minhamentos de outros órgãos para que o atendimento seja oferecido. Também é a equipe do CAPS-AD que direciona para tratamento por internação psiquiátrica, se for o caso. E, após período de internação, o usuário deve voltar a frequentar o CAPS-AD, sendo que tal intervenção deve estar prevista em seu plano terapêutico individual.

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Os CAPS-AD, assim como as outras modalidades de CAPS, devem contar com serviços de busca ativa de usuários, ou seja, por meio de visitas domiciliares, atender a pessoa em situação de dependência química onde ela estiver, com o objetivo de orientá-la e motivá-la a frequentar o tratamento. Suas ações devem estar voltadas para o território em que está localizado, com atividades externas ao espaço físico do equipamento de saúde, formando parcerias com outros órgãos e profissionais, para potencializar suas ações.

Na busca de seus objetivos, as equipes de saúde dos CAPS-AD podem utilizar a estratégia de redução de danos, cuja principal pretensão é o desenvolvimento de ações que busquem diminuir os danos provocados pelo uso de drogas, tanto para indivíduo quanto para sociedade. É uma alternativa para pessoas que não querem ou não conseguem parar totalmente com o uso de drogas, mas que desejam reduzir o risco ligado a elas. Considera-se a liberdade e autonomia do ser humano em relação ao seu próprio corpo e opta-se por serviços que não estigmatizem e não rotulem o usuário, estimulando a participação e engajamento. A abstinência não é o critério primordial do tratamento (JESUS, 2006).

O trabalho no território é fundamental, pois o vínculo formado entre agentes redutores de danos e usuários de drogas é a estratégia crucial para mobilização do indivíduo marginalizado e muitas vezes sem acesso aos serviços de saúde.

No trabalho de campo realiza-se a distribuição de insumos (seringas, agulhas, cachimbos) para prevenir a infecção dos vírus HIV e Hepatites B e C entre usuários de drogas; elabora e distribui materiais educativos para usuários de álcool e outras drogas informando sobre formas mais seguras do uso de álcool e outras drogas e sobre as consequências negativas do uso de substâncias psicoativas; os programas de prevenção de acidentes e violência associados ao consumo, entre outras.

Outra forma de tratamento para a pessoa em situação de dependência química é oferecido pelas comunidades terapêuticas. Como o nome sugere, trata-se de um local onde as pessoas convivem continuamente e esta convivência é a base para buscar uma alternativa de vida que não inclua o uso abusivo de drogas. Parte do pres-suposto do apoio do grupo para potencializar esta reformulação de comportamentos. No Brasil, estes locais quase sempre são propriedades rurais onde as pessoas em situação de dependência química concordam voluntariamente em submeter-se ao tratamento. Lá, elas participam de atividades que permitam refletir sobre suas traje-tórias pessoais, identificando fatores que facilitam o abuso de drogas e fatores que podem ser contribuir para evitá-lo. A duração do programa de tratamento é variável, mas geralmente é de nove meses.

Atualmente há uma grande discussão sobre a validade das comunidades te-rapêuticas. Em nosso país, a maior parte destas comunidades terapêuticas é gerida por organizações ligadas a diversas religiões, especialmente cristãs, que acabam utilizando práticas religiosas como parte (quando não exclusivamente) do tratamento. Isto, por vezes, não garante o direito à livre expressão de religiosidade, previsto na Constituição Federal.

As comunidades terapêuticas tradicionalmente estiveram ligadas mais a ações de assistência social que de saúde, tanto que a maioria das comunidades terapêu-ticas que recebem recursos públicos são atualmente conveniadas com secretarias estaduais e municipais de assistência social e não secretarias de saúde.

Na última Conferência Nacional de Saúde foi aprovada uma moção de repúdio contra o financiamento público das comunidades terapêuticas (CONSELHO FEDE-RAL DE PSICOLOGIA, 2011a). A maior razão para que diversos profissionais de saú-de sejam contrários às comunidades terapêuticas é que uma parte destas instituições pratica graves violações de Direitos Humanos de seus usuários.

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou recentemente a “4ª Inspe-ção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2011b), elaborada por meio de visitas realizadas em estabelecimentos de tratamento de internação, dentre eles comunida-des terapêuticas. No Estado de São Paulo, o CFP contou com a parceria do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE/SP) e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Neste trabalho ficam evidenciadas as práticas ina-dequadas de algumas comunidades terapêuticas tais como restrições de atividades de lazer e/ou aumento da carga de trabalho em casos de indisciplina, exigência de pagamentos para conseguir benefícios extras (carne nas refeições, por exemplo), agressões psicológicas e físicas, isolamento, obrigatoriedade de cavar um buraco do tamanho do corpo (que representaria uma cova, destino daqueles que desobedecem as regras), trabalho forçado, dentre outros. Isto, obviamente, é inadmissível.

Vale lembrar que existe uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) (Resolução RDC n.º 29, de 30 de junho de 2011) que deter-mina os requisitos de segurança sanitária para funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas (BRASIL, 2011). É preciso exigir que a fiscalização do cumprimento das normas desta resolução seja efetiva, não permitindo o funcionamento de estabelecimentos que não se adequarem a elas, inclusive com responsabilização legal.

Por outro lado, há comunidades terapêuticas que realizam trabalhos com-prometidos com a dignidade da pessoa humana. Desde que contem com equipe suficiente de profissionais da área da saúde, ofereçam condições seguras para a saúde das pessoas, respeitem as diversas expressões religiosas e a voluntarieda-de da permanência no tratamento, e sejam fiscalizadas pelos órgãos responsáveis (conselhos de políticas públicas, Sistema de Justiça), pode ser uma alternativa válida para o enfrentamento da dependência química. Não é indicada para a maioria das pessoas, pois tem um perfil específico de atendimento, exclusivamente destinado a pessoas que voluntariamente desejam permanecer na comunidade terapêutica, não apresentam comorbidades psiquiátricas e não possuam vínculos que impossibilitem a permanência contínua nas instituições, como alguma atividade de trabalho, por exemplo.

Outra estratégia que pode contribuir com a manutenção da pessoa longe de problemas com uso de drogas é a frequência nos chamados grupos de mútua ajuda, sendo os mais famosos os Alcoólicos Anônimos (A.A.) e os Narcóticos Anônimos (N.A.). Ambos surgiram nos Estados Unidos e atualmente existem numerosos grupos espalhados pelo mundo, inclusive em muitas cidades do Brasil. Trata-se de grupos organizados por dependentes químicos que conseguiram parar ou diminuir o uso intenso de drogas, e reúnem-se periodicamente para compartilhar experiências, com o objetivo de que os membros dos grupos ajudem-se uns aos outros. Muitas vezes, a

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pessoa que frequenta este grupo sente-se acolhida e fortalecida, o que contribui com a (re)organização de sua vida. Há também grupos de mútua ajuda para familiares (TAUB; ANDREOLI, 2004; BRASIL, 2008b).

Assim como as pessoas em situação de dependência química têm característi-cas diferentes, os tratamentos oferecidos devem ser qualificados e diversificados. Na maioria dos casos, a união de mais de um tipo de tratamento (ambulatorial, grupos de mútua ajuda, etc.) costuma trazer efeitos mais positivos que a utilização de uma única forma de tratamento.

Além disso, é comum que usuários de drogas em tratamento sofram recaídas, o que deve ser entendido como parte do processo de reabilitação. O acompanha-mento deve ser continuado e o paciente deve ser ainda mais motivado para retomar o tratamento quando elas ocorrem.

A ATUAÇÃO DOS CENTROS DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR (CAM) DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Segundo a Lei Complementar Estadual n.º 988, de 9 jan. 2006, que regula-menta a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP), os Centros de Atendi-mentos Multidisciplinares (CAM) são órgãos auxiliares e apresentam como principal objetivo ampliar assistência jurídica gratuita para que ela ocorra de modo integral (ESTADO DE SÃO PAULO, 2006).

Cada regional de atendimento da Defensoria Pública deve contar com um CAM, que pode ser composto por profissionais e estagiários das áreas de Psicologia, Serviço Social, Engenharia, Sociologia, Estatística, Economia, Ciências Contábeis e Direito, dentre outras. Atualmente os CAM´s contam com profissionais da área da Psicologia em todas as regionais, sendo que algumas delas possuem a dupla de profissionais psicólogo e assistente social.

A deliberação CSDP n.º 187, de 12 de agosto de 2010, regulamenta o fun-cionamento dos CAM´s e aponta que o órgão tem como princípios, entre outros: humanização; interdisciplinaridade e intersetorialidade; e articulação com a rede de atendimento psicossocial e outras políticas sociais e de saúde.

A interdisciplinaridade e intersetorialidade são conceitos que vêm sendo deba-tidos no sistema público da saúde e assistência social. Japiassu (1976, apud SHINE; STRONG, 2008) ressalta que o termo interdisciplinar caracteriza-se pela integração de profissionais e de disciplinas havendo uma superação das fronteiras disciplinares no estudo dos fenômenos, evitando-se um olhar compartimentado e reducionista sobre eles.

O trabalho interdisciplinar na assistência jurídica gratuita visa oferecer um aten-dimento que amplie o olhar sobre o cidadão para identificar suas necessidades para além da judicialização dos conflitos. O intuito é lidar com o problema de modo mais resolutivo, sem desestruturar o núcleo de conhecimento de cada saber.

Vale ressaltar que Shine e Strong (2008) apontam que o termo multidisciplinar consiste em uma justaposição de recursos e diferentes disciplinas sem que necessa-riamente haja um trabalho de equipe coordenado. Teoricamente, haveria pouca troca

de saberes. Os CAM´s, apesar de levarem o nome “multidisciplinar”, têm como meta a construção de um trabalho interdisciplinar.

Já a intersetorialidade é compreendida por Paula, Palha e Protti (2004) como sendo um atendimento que extrapola a atuação de uma equipe ou instituição. Trata--se de atender o cidadão de modo que haja o envolvimento de vários equipamentos e setores (saúde, assistência social, educação, entre outros). Portanto, trabalhar na lógica intersetorial consiste em atuar em parceria com outras instituições, na rede de atenção de diversos setores.

Na prática dos CAM´s busca-se compreender o fluxo de atendimento dos ser-viços presentes no território em que estão inseridos e trabalhar em conformidade à lógica deste fluxo. Pretende-se uma atuação que visa ao intenso contato com outros serviços de atendimento envolvendo a demanda do cidadão e elaborando plano de trabalho de modo articulado.

Destaca-se que os CAM´s iniciaram suas atividades em abril de 2010. Deste modo, importante frisar que o trabalho está sendo construído, mas já se nota grande potencialidade de atuação na área de resolução alternativa de conflitos, por meio das conciliações. Além disso, os profissionais psicólogos e assistentes sociais oferecem apoio psicossocial de modo articulado com os serviços de assistência social, saúde, educação e outros que integram o território de abrangência das regionais.

Dentre as demandas que chegam aos CAM´s, nota-se uma expressiva quanti-dade associada a pessoas em situação de dependência química. Ressalta-se que, no ano de 2010, correspondeu a 9% do total dos atendimentos realizados.

Familiares de pessoas em situação de dependências química procuram a De-fensoria Pública buscando a internação compulsória deles, com a expectativa de que esta modalidade de internação psiquiátrica seja um importante e efetivo recurso para tratamento. O atendimento de tais familiares envolve escuta e acolhimento, além de tentativa de articulação e inserção dos sujeitos em atendimento na rede substitutiva de saúde mental, tendo em vista a lógica da Reforma Psiquiátrica.

Entretanto, muitas regionais defrontam-se com a falta ou déficit no funciona-mento desses serviços destinados a pessoas com transtornos mentais e/ou depen-dentes químicos em seus territórios. Neste contexto, a internação compulsória acaba surgindo como uma resposta a uma demanda individual e coletiva, de modo paliativo, pois entra no lugar da atenção em saúde mental da rede substitutiva, que se apre-senta deficitária.

Os profissionais dos CAM´s atuam de modo a avaliar os casos e articular com o serviço pertinente, realizando encaminhamentos, sempre no sentido de evitar a reprodução do modelo hospitalocêntrico de atendimento em saúde mental e, princi-palmente, a internação compulsória.

Ressalta-se que cada CAM possui uma especificidade de demanda, o que ocasiona diversos modos de enfrentamento e atuação. Porém, há o consenso de que os atendimentos de triagem com solicitações de internação compulsória devem ser encaminhados para os CAM´s, a fim de oferecer uma avaliação e intervenção mais qualificadas dos casos, dentro da lógica antimanicomial.

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Os CAM´s também têm a atribuição de trabalhar com a capacitação dos servi-dores, estagiários e defensores públicos no que diz respeito às questões referentes à saúde mental e superação do modelo hospitalocêntrico de atendimento, bem como, articular o trabalho em rede para implementar atividades de educação na comunidade referentes aos direitos da pessoa em sofrimento psíquico e/ou situação de dependên-cia química.

ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA

Ante a exposição antecedente, não resta dúvida que a população em foco, se subsume as atribuições institucionais da Defensoria Pública, qual seja, tutelar os interesses das pessoas que encontram em situação de vulnerabilidade social, ex vi artigos 134 e parágrafos e 5º, inciso LXXIV, artigo 1 e incisos e 3 e incisos da Cons-tituição Federal, combinado com os artigos 1º caput, 3-A, incisos I, III e IV, 4º, incisos VI, VII, X da LC n.º 80/94, e artigos 2, 3, 5, incisos III, VI aliena b, c, i, l, VII, VIII, IX, todos da Lei Complementar 988/2006.

Ademais, em decorrência da omissão legal do procedimento da internação in-voluntária sem que haja pedido cumulado de interdição, mister se faz a aplicação por analogia e em caráter subsidiário dos dispositivos de direito substantivo do Código Civil.

No que toca à forma do desempenho do mister, depreende-se que pode se dar em dois pontos a saber:

a) Postulando ativamente a internação compulsória; ou

b) Exercendo a função de curador especial (curatela processual) nos termos do art. 9º, inciso I do Código de Ritos combinado com os artigos 1770 do diploma civil e 4º, inciso XVI da LC n.º 80/94.

No que tange ao primeiro aspecto, mister se faz apontar que, a atuação se dará em ultima ratio, consoante a legislação de regência, Lei n.º 10.216/01, em seus artigos 2, inciso III, V, VII e 4:

Para tanto, e conforme o aparato multidisciplinar da Instituição, imprescindível a participação do CAM, que será o órgão intermediador entre a família e o sujeito, que em tese, poderá ser internado, bem como verificará o esgotamento da rede de atenção à saúde mental (CAPS e outros serviços), e que somente diante da ineficácia dos meios auxiliares e com laudo médico circunstanciado, a demanda revestir-se-á de viabilidade jurídica para a propositura.

Não obstante, o acionamento judicial, os agentes do CAM, no transcorrer da demanda, poderão ser indicados como assistentes técnicos, bem como, se o caso recomendar e intermediar a composição do conflito. Nota-se que nesta situação, o Ministério Público atuará como curador do internando, consoante o art. 1770, segun-da parte, do Código Civil.

Noutro ângulo, a Defensoria Pública encontrará respaldo legal de agir, na qualidade de curadora especial consistente na fiscalização quanto ao preenchimento dos pressupostos legais para o cabimento ou não da medida, quando se tratar de hipótese da internação involuntária a ser pleiteada pelo órgão ministerial, mormen-

te na situação descrita no art. 8, parágrafo primeiro, da Lei n.º 10.216/01, vez que informado da necessidade de internação o Ministério Público deve acionar o Poder Judiciário para a tomada da providência cabível à espécie, conforme o princípio da inafastabilidade do controle judicial.

Outrossim, dispõe os artigos 1768 e 1769 do diploma civil:

Art. 1.768. A interdição deve ser promovida:I - pelos pais ou tutores;II - pelo cônjuge, ou por qualquer parente;III - pelo Ministério Público.Art. 1.769. O Ministério Público só promoverá interdição:I - em caso de doença mental grave;II - se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos incisos I e II do artigo antecedente;III - se, existindo, forem incapazes as pessoas menciona-das no inciso antecedente.

Pela leitura do texto legal, conclui-se que ao particular que não seja parente, cônjuge (companheiro) ou tutor fica vedado promover a interdição de alguém, e caso os legitimados não o façam, incumbirá subsidiariamente, tal mister, ao Ministério Pú-blico, portanto lhe acarreta a carência de legitimidade para pleitear indigitada medida e como conseqüência obter o abrigamento em hospitais psiquiátricos, o que revela uma vez mais a excepcionalidade da medida.

No entanto, caso alguém tenha notícia da necessidade de interdição/internação de alguém e não seja o legitimado a fazer, e caso queira promover a medida, deve levar ao representante do parque, para segundo a independência funcional analisar e patrocinar eventual demanda neste sentido.

E caso o faça, ao incapaz deve ser assegurado a intervenção do curador espe-cial (curatela processual) nos termos do art. 9º, inciso I do Código de Ritos combinado com os artigos 1770, primeira parte, do diploma civil e 4º, inciso XVI da LC n.º 80/94, vale destacar que por lei indigitada providência compete à Defensoria Pública, senão vejamos:

Art. 9o O juiz dará curador especial:I - ao incapaz, se não tiver representante legal, ou se os interesses deste colidirem com os daquele;Art. 1.770. Nos casos em que a interdição for promovida pelo Ministério Público, o juiz nomeará defensor ao suposto incapaz; nos demais casos o Ministério Público será o de-fensor.Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: XVI – exercer a curadoria especial nos casos previstos em lei;

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Diante deste cenário, emerge que a Defensoria Pública, invariavelmente cum-pre seu papel constitucional de zelar pela dignidade da pessoa humana e buscar concretizar a cidadania das pessoas envolvidas, de forma a fiscalizar e cumprir a legislação como estatuída, ou seja a internação é medida última, impondo-se o pres-tígio dos demais instrumentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se pode, pois, deixar de evidenciar a complexa interface entre a Psiquiatria e o Direito e seus conhecimentos utilizados em espaços de poder. Respeitar a pes-soa e o conhecimento dos usuários em relação ao próprio corpo e à própria saúde, conscientizando-se das consequências do poder atribuído ao saber técnico e tendo sempre presente suas limitações, são imprescindíveis para oferecer cuidados ade-quados.

Ver, compreender e tratar o ser humano para além de seu corpo, incluindo suas dimensões psicológica, social e cultural são pressupostos para qualquer atendimento que se supõe multidisciplinar. Contudo, não é uma tarefa fácil alcançar o objetivo de todo esse processo, o qual implica transformações culturais e subjetivas na sociedade.

Ao passo que as leis caminham em uma velocidade corriqueiramente lenta, as demandas da sociedade estão em um ritmo acelerado, deste modo, a Defensoria Pública também deve adequar-se ao lidar com a questão da internação psiquiátrica, libertando-se do discurso binário que o doente é capaz ou incapaz, necessita ser internado ou não, oferece ou não perigo.

Reiteramos que a Reforma Psiquiátrica que se almeja é pautada numa pers-pectiva de superação do modelo hospitalocêntrico; na implantação de uma rede de serviços substitutivos; na mudança de cultura de que os portadores de sofrimento mental devem ter, como todas as pessoas, uma trajetória de vida no espaço social; no incentivo à organização dos usuários e familiares; na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), entendendo a Saúde como direito do cidadão e dever do Estado.

Os serviços substitutivos devem constituir uma rede pública, destinada ao aten-dimento de todo e qualquer cidadão que os procure; na intersetorialidade, envolvendo diferentes aspectos na abordagem do sofrimento mental, tais como moradia, geração de trabalho e renda, lazer e educação; construção de uma rede que forneça suporte para as pessoas psíquica e socialmente mais vulneráveis.

Bem sabemos que a dependência de uma substância psicoativa provoca in-tenso sofrimento no usuário de drogas e em seus familiares. O enfrentamento deste complexo problema de saúde pública não perpassa soluções simplórias, mas sim por uma série de estratégias de reabilitação psicossocial que não somente a internação psiquiátrica como única forma de tratamento, especialmente se ela ocorrer sob a modalidade compulsória.

A Defensoria Pública, cumprindo sua missão constitucional de prestar assistên-cia jurídica integral e gratuita às pessoas carentes, deve utilizar estratégias judiciais e extrajudiciais que garantam a implantação e o funcionamento com qualidade de uma ampla rede de serviços públicos de saúde que ofereçam tratamento a pessoas em so-frimento psíquico e seus familiares, de modo a garantir-lhes seus Direitos Humanos.

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O CONSENSO PUNITIVO NO CASO JOÃO HÉLIO

Vinicius da Paz LeiteDefensor Público, Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia.

1. INTRODUÇÃO

No ano de 2007 ocorreu a morte de um menino em decorrência da prática de roubo de um veículo na cidade do Rio de Janeiro. Este caso foi amplamente divulga-do na mídia por dois motivos apenas aparentemente justificados: envolvia a vida de uma criança e o modus operandi. Ao realizar-se o assalto, os autores, após renderem a motorista (mãe da vítima), tomarem posse do veículo, saíram em disparada sem notar que o menino tinha ficado pendurado no cinto de segurança, sendo arrastado por várias ruas, fato que causou a sua morte.

Emprega-se tal expressão (apenas aparentemente justificado) porque os dados estatísticos relativos à tutela da infância e da juventude no país nos indicam que além de práticas sistemáticas de maus-tratos, muitas crianças no Brasil são diariamente assassinadas, vitimas de pedofilia e se encontram em condições miseráveis de vida, dependentes de craques e outras drogas,vivendo nas ruas de nossas cidades, sem que o Estado se preocupe em atuar em defesa de seus interesses. Não obstante, este caso chamou a atenção da mídia e a dramaticidade dessa morte foi explora-da incessantemente pelos meios de comunicação. A exposição exaustiva do caso caracterizou-se como uma campanha em prol de maior segurança pública (conceito, aqui, limitado ao combate da criminalidade).

A campanha foi declarada como uma exigência cidadã de respostas oficiais por parte das autoridades públicas. Pode-se perceber que, em resposta a exigências “cidadãs” midiáticas, em prol do “bem comum”, há uma pronta resposta estatal, dis-cursiva, formal e informal, em que se percebem reverberações discursivas, reitera-ções do mesmo discurso midiático propulsor dessas respostas.

O presente artigo pretende observar as funções manifestas deste discurso midiático, entendendo como o medo – categoria histórica estratégica para o controle social1 – fundado na criminalidade, constrói símbolos de uma conjuntura de pânico e

1 BATISTA, Vera Malaguti. Medo na Cidade do Rio de Janeiro - Dois tempos de uma história (Rio de Janeiro: Revan, 2003). Observa a autora que “a hegemonia na nossa formação social trabalha a difusão do medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. O medo torna-se fator de tomadas de posição estratégicas seja no campo econômico, político ou social”. Logo depois a

185O consenso punitivo no caso João Hélio184 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

de que forma se darão as reverberações dessas alegorias de desordem nos discur-sos, alusivos ao caso, de parlamentares, do Governador do Estado do Rio de Janeiro e do órgão judicial responsável pelo julgamento dos fatos.

Após discorrer brevemente acerca da metodologia, analisar-se-á o discurso produzido pela abordagem midiática envolvendo o caso João Hélio. Em seguida, as reverberações propriamente ditas desse discurso nas agencias judiciais, executivas e legislativas,

2. METODOLOGIA

Adota-se a perspectiva da criminologia crítica, em sua vertente abolicionista, para se analisar o caso em questão. Considera-se que a criminalidade não é uma qualidade pré-constituída, mas sim rotulação de certos indivíduos.

Foi feita uma análise de quatro discursos. Em um primeiro momento analisou--se a terminologia empregadas pela mídia ao veicular a informação sobre o caso. O corpus de análise foram reportagens, publicidade e colunas de jornais, veiculadas na mídia televisiva e impressa - com especial atenção à TV Globo - sobre o caso João Hélio. Textos jornalísticos que demonstram a repercussão do caso. Reportagens vei-culadas no sítio G1, a entrevista dada pelos pais de João Hélio à Fátima Bernardes no programa Fantástico e as reportagens e publicidades de jornais, veiculadas na mídia impressa (jornais O Globo, O Dia e Jornal do Brasil, de 08/02/07 e 09/02/072).

A recorrência ao sítio G1 e ao jornal O Globo, das Organizações Globo, dá-se pelo fato de constituir-se uma das mais acessadas fontes de informação no meio jornalístico.

Em um segundo momento, com base nos estudos sobre a sociologia judicial, foram identificadas as reverberações de tais discursos midiáticos nos discursos dos operadores jurídicos, abrangendo as alegações do promotor e da magistrada respon-sáveis pelo caso, além da análise do discurso das agências políticas, responsáveis pela criminalização primária e de cartas de leitores veiculadas no jornal O Globo, percebendo como se opera um verdadeiro processo de reificação do discurso, desa-guando num consenso punitivo em torno do caso,.

Os discursos das agências políticas serão tirados, no caso de Sérgio Cabral, de suas manifestações na própria mídia, e, no caso dos parlamentares federais, de suas manifestações no Congresso Nacional.

Repercussões alegóricas do medo na sentença prolatada pelo judiciário, em primeira instância e a busca por pequenos indícios processuais serão necessários para se chegar à compreensão da influência do discurso midiático na formação das meta-regras3.

autora levantará o papel histórico do medo na visão colonizadora da América. 2 A referência a tais dias deve-se ao fato de haver, como se exporá a diante, um aumento de espaço de divulgação do caso tanto na mídia impressa, como na televisiva. 3 O termo “meta-regas” é utilizado pelo autor Fritz Sack, citado por Alessandro Baratta como sendo o autor pertencente à recepção alemã do “Labeling Approach”. Segundo Baratta: “Na teoria do direito existe uma distinção semelhante (entre regras e meta-regras): ao lado do conjunto de regras gerais de comportamento,

Analisar-se-á a apropriação do discurso jurídico legal pelo discurso midiático; como e porque se dá uma diferenciação entre “amigos” e “inimigos” e o papel funda-mental da estética do medo para a difusão de um clima de insegurança necessário à administração do neoliberalismo.

A hipótese central é que a apropriação pela mídia de um discurso de legitima-ção e expansão da ideologia law and order gera consequências materiais, pautadas em símbolos subjetivos e ideológicos, conforme as necessidades do vídeo-capital financeiro, nas agências executivas, legislativas e judiciais do sistema penal.

A análise de discurso pretende, pois, identificar, nos mecanismos de controle de produção de discurso, o poder e o desejo proibido que escapam pelo ato falho, pela metáfora, pelo deslize, pelo equívoco, tendo-se por base que “o sujeito discur-sivo não é razão porque ele tem inconsciente e ideologia”4. A falsa impressão trazida pelo sujeito do discurso, a impressão de que nosso discurso é objetivo e neutro é denominada por ilusão do sentido literal e ilusão do efeito referencial, por Dea Rita Matozinho5. Tal enfoque toma grande relevância na abordagem do discurso midiático, que se pauta no ideal de completude e lógica nos argumentos de recrudescimento penal, mas que, na verdade, é articulado por um sujeito discursivo, que faz uma opção ideológica. “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indí-cios - que permitem decifrá-la. Ou seja, detalhes mínimos podem desvelar fenômenos mais profundos, processos mais essenciais.”6

Certos fatores vão influir nas condições de produção do enunciado, como a relação de sentidos (não há discurso fechado, ele sempre se relaciona com outros discursos); o mecanismo de antecipação (o locutor se antecipa, colocando-se no lugar do interlocutor, argumentando conforme o efeito que nele pretenda ou pense produzir) e as relações de força (o que o sujeito diz vai valer mais ou valer menos de acordo com o lugar de onde ele diz).

A identificação do “sujeito” e de seu “lugar” na sociedade não se dá tomando os sujeitos ou seus lugares físicos, mas “suas imagens que resultam de projeções” tomar-se-ão suas formações imaginárias.

existe um conjunto de regras de interpretação e de aplicação das regras gerais (...) Sack trata de deslocar a análise das ‘meta-regras’ do plano perceptivo da metodologia jurídica para um plano objetivo sociológico.(...) As meta-regras, pois, são regras objetivas do sistema social, que podem orientar-se para o que Sack chama ‘a questão científicas decisiva’, que se relaciona à diferença intercorrente entre criminalidade latente e criminalidade perseguida: o problema de como devemos representar o ‘processo de filtragem’ da pop-ulação criminal, ou seja, em ultima análise, ‘daqueles contra os quais, afinal, se pronuncia uma sentença em nome do povo’ ”. Continua o autor: “Neste sentido, as regras sobre aplicação (basic rules, meta-regras) seguidas, conscientemente ou não, pelas instâncias oficiais do direito, e correspondentes às regras que determinam a definição de desvio e de criminalidade no sentido comum, estão ligadas a leis, mecanismos e estruturas objetivas da sociedade, baseadas sobre relações de poder ( e de propriedade) entre grupos e sobre as relações sociais de produção” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 3ª edição. 2002.p. 156).4 MATHOZINHOS, Dea Rita. As Formas de Silêncio na Justiça Criminal Brasileira. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Cândido Mendes. 2003.p.28.5 op. cit. p.15.6 BATISTA, Vera Malaguti. Medo na Cidade do Rio de Janeiro - Dois tempos de uma história. Rio de Janeiro:Revan, 2003. p.13.

187O consenso punitivo no caso João Hélio186 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

O funcionamento do discurso é explicado focando a análise na articulação in-tradiscurso (o que está sendo dito agora, em circunstâncias dadas – o eixo horizontal) com o interdiscurso (a memória discursiva – o eixo vertical), tendo sempre em mente as formações imaginárias ou representações, ressaltando-se que as formações dis-cursivas são afetadas por formações ideológicas.

Enquanto a formação discursiva é o lugar de onde alguém fala, a formação ideológica é o imaginário, a projeção que este alguém faz das coisas.

Após esta etapa, passa-se então a analisar os efeitos de sentido do discurso, focando-se, nessas circunstâncias, quem o produz e a quem se dirige.

Vai-se considerar a “memória discursiva (interdiscurso), o já-dito e esquecido que vem da história, que alguém falou antes, em outro lugar, sem relação de depen-dência com a situação presente. O já-dito afeta o dizer de agora, pois a língua e a história nos afetam.”7

3. MÍDIA

Devido ao grande poder hegemônico de difusão, educação, informação e entre-tenimento desempenhados pelos meios de comunicação de massa uma questão que surge é a possibilidade de uma legitimação do estado de polícia, conclamada nas trans-missões com altos índices de audiência por meio da imposição de consenso em relação à normalidade de violações a princípios e garantias fundadoras do estado de direito.

Graças à imensa capacidade advinda da tecnologia eletrônica, podem ser criados espetáculos que oferecem uma oportunidade de participação e um foco com-partilhado de atenção a uma multidão indeterminada de espectadores fisicamente remotos, “o indivíduo se acha plena e verdadeiramente na presença de uma força que é superior a ele e diante da qual se curva”8.

Assim, surge a hipótese de que propagações, por parte da mídia, de discur-sos de exceção, próprios do direito penal do inimigo, seriam reiterados por parte de agentes estatais responsáveis pela implementação de políticas criminais. Diante deste quadro a mídia seria uma agência do sistema penal, que atua previamente às agencias legislativas, executivas e judiciárias. Procurar-se-á identificar como se dão os mecanismos de produção de um discurso único, propagado pelos mass media e legitimado por parlamentares , representantes do executivo e membros do judiciário.

4. O DISCURSO MIDIÁTICO

4.1. ANÁLISE DA MÍDIA IMPRESSA. PERSPECTIVA QUANTITATIVA E QUALITATIVA:

Primeiramente, ao analisarmos o enfoque da mídia impressa sobre o caso em questão, é relevante destacar a diferença do tamanho de espaço físico destinado à notícia da morte de João Hélio nos jornais dos dias subsequentes ao fato:

7 Op. cit. p.59.8 BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança o mundo atual. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2003, p.40

08/02/07 09/02/07

Jornal Capa InteriorO Globo 30x 20 cm 5 pagsJB 24x 23 cm 6 pagsO Dia 32x 27 cm 4 pags

Jornal Capa InteriorO Globo não 16x 15 cmJB não nãoO Dia 10x 6 cm 20x 8 cm

Fazendo uma análise quantitativa em relação ao espaço utilizado pelos jornais dos dias subsequentes à morte de João Hélio percebe-se uma diferença abrupta da quantidade de espaço destinado pelos jornais impressos do dia 08/02/07 para o dia 09/02/07.

Com base nesta diferença, comparativamente com conteúdo dos jornais de ambos os dias, levando-se em consideração que o evento morte ocorreu no dia 07/02/07, percebe-se que os fatos responsáveis pelo aumento de espaço destinado à cobertura do caso de um dia para o outro foram: a prisão de dois acusados e um suspeito de participarem do acontecimento e o enterro de João Hélio – “ao mesmo tempo em que João Hélio Fernandes era enterrado em Sulacap, seus assassinos chegava à delegacia de Marechal Hermes”9.

Desta forma, de acordo com os jornais impressos, infere-se que o evento morte teve menos relevância que os eventos prisão dos acusados e enterro da vítima. Esta polarização sofrimento das vítimas versus punição dos criminosos será a responsável pelo incremento de espaço físico destinado ao caso pelos jornais da semana.

Portanto, se os editores de jornais consideraram mais relevante a punição dos inimigos e o sofrimento das vitimas, a ponto de aumentarem em mais de dez vezes o espaço destinado à cobertura do caso, certamente eles estavam esperando com isso um aumento também na venda de jornais, o que é noticiado pelo Jornal do Brasil de 09/02/07, porém, reportando-se à emissora de televisão pertencente – assim como o Jornal do Brasil – à Editora Abril: ”A comoção foi tão grande que o programa Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, apresentado por José Luiz Datena, aumentou dois pontos de audiência em dois minutos ao exibir uma entrevista ao vivo com Diego“ (um dos acusados).

Na primeira página do jornal O Globo de 09/02/07, lê-se a manchete: “Barbárie contra infância”. Logo a baixo, vê-se a foto do menino branco e de cabelos lisos, filho da classe média, e um desenho feito por ele destinado à mãe e à irmã. Há um claro apelo emocional, utilizando-se de símbolos maternais, fraternais e infantis, para, num processo de ressignificação fratricida, na segunda página do jornal, contendo uma foto da irmã de João Hélio, desesperada, com a seguinte legenda: “Revolta de irmã: Aline, abraçada pelo pai, fala em “matar aqueles dois”. A catarse ainda é vivenciada na segunda página com a foto da mãe chorando, que ocupa a maior parte da página, situando-se em seu centro. Uma alegoria de dor e desespero, com a seguinte legen-da: “Lágrimas de mãe: amparada por amigos e parentes, Rosa Cristina F. Vietes, em desespero chora no enterro do filho”.

Lágrimas de mãe e revolta de irmã parecem ser o ponto alto – emoldurado pela manchete: ”A Cidade Chora por João” – da sequência emocional proporcionada pela

9 Jornal do Brasil de 09-02-07, p. A 15.

189O consenso punitivo no caso João Hélio188 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

ordenação de páginas. Ainda, aqui, não há qualquer indício explicitamente publicitá-rio; permanece o sentimento fraternal, contudo punitivo, fratricida.

Da emoção da mãe que chora e da irmã que pede morte, uma terceira página surge, com um mapa do caminho do arrastamento, abaixo dos dizeres: “Menino foi arrastado pelas ruas de 4 bairros”. No detalhe, a insistência em identificar agências do sistema penal – sugerindo uma ineficácia de tais agencias –, incluindo a menção a um fórum no caminho percorrido, como se o juiz ou o promotor pudessem sair como super-homens do fórum e impedir o arrastamento.

Logo a baixo, outra manchete: “Apenas dois PMs em todo trajeto”, em cima, uma foto em que se pode ver o secretário de Segurança e o comandante-geral da PM do Rio de Janeiro, sob a legenda: “O secretário Beltrame chega ao cemitério com o coronel Ubiratan”, o que demonstra mais uma vez um discurso implícito de embate entre as agências, numa clara cobrança por parte do jornal à instituição policial ca-rioca10.

Ainda nesta página pode-se perceber no espaço inferior esquerdo um anúncio do colégio pH, claramente dirigido aos pais de classe média que podem pagar caro para o ensino de seus filhos.

Na quarta página há a predominância da estética publicitária, com o domínio de um comercial da Chevrolet, com uma imensa placa de trânsito, onde está escrita a palavra “PARE”.

Placa de transito é destinada a carros. Um pare para a sequência do arras-tamento emocional proporcionado pelo encadeamento da notícia. Um pare, preste a atenção no que você precisa para ser um amigo. Em cima, na parte central da mar-gem superior, há a foto do menino, que por sinal é repetida em todas as páginas. Em baixo, letras garrafais escritas sob uma paisagem da cidade do Rio de Janeiro, com os seguintes dizeres: “COM TODO O RESPEITO”. Logo abaixo da placa “PARE”, os seguintes dizeres: “Rede Chevrolet informa: hoje você não pode comprar carro” – pare com todo o respeito na cidade do Rio, porque você hoje não pode comprar carro. Se não o seu filho consumidor é arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro, que possuem apenas dois policiais, na página anterior denunciados.

Aqui, a publicidade, apesar de predominante, não se caracteriza por sua inde-pendência. Ela depende do contexto da matéria. Uma coluna que fica espremida no canto direito e é retomada na pagina seguinte, o que nos faz crer que tudo faz parte de uma mesma estratégia: medo para consumir.

O grande mecanismo que se faz perceber no tocante à propaganda é a con-fusão entre entretenimento, informação e propaganda propriamente dita. A fluidez, a falta de limites entre a propaganda e a notícia fica clara quando da análise do jornal O Globo em que mais 80% da pagina do jornal era propaganda de carro e apenas 20%

10 O Estado, segundo Bauman, “não mais preside os processos de integração social ou manejos sis-têmicos que faziam indispensáveis a regulação normativa, a administração da cultura e a mobilização patriótica, deixando tais tarefas para forças sob as quais não tem jurisdição” – assim, a apropriação dos instrumentos de coesão nacional pela mídia de massa. ”O policiamento do território administrado é a única função deixada nas mãos dos governos dos Estados; outras funções ortodoxas foram abandonadas ou passaram a ser compartilhadas e assim são apenas em parte monitoradas pelo estado e por seus órgãos, e não de maneira autônoma”.

era noticia sobre o roubo do carro dos pais de João Hélio. É nítido o aproveitamento propagandístico da notícia do carro roubado pelo anuncio de um carro novo, configu-rando-se o latrocínio um verdadeiro garoto propaganda do automóvel ali anunciado.

Há, na sexta e última página, a volta para a notícia da prisão dos agentes envolvidos, sem publicidades. Pode-se ver uma foto em que três policiais seguram três meninos (nenhum branco) pelo pescoço, numa clara demonstração de que estão expondo seus rostos. Um dos jovens de calça aberta, mostrando a genitália, provavel-mente pelo modo violento com que foi capturado, embaçada. Sob a foto, a legenda: “PMs exibem os três presos no Morro São José da Pedra: o menor (à esquerda), o homem que foi liberado na delegacia e Diego (à direita)”.

Não sem remeter à apreensão do dito “menor”, que “deve ficar detido por ape-nas 3 anos”, segundo a manchete desta ultima página, contraposta na submanchete a “outro bandido, que tem 18 anos e confessou o crime” e que “pode ser condenado à pena de 20 a 30 anos de prisão”. O adolescente será ressignificado como “homem criminoso”, posteriormente, na carta que a irmã de João Hélio escreveu para o pro-grama Fantástico, da TV Globo, da semana. “Menino” e “homem”, aqui, variam não conforme a idade, mas sim conforme a necessidade de criminalização.

O que caracteriza a situação de amigo, de “menino de bem com a vida”, “uma criança muito feliz” é o fato de que “o menino ganharia este ano um quarto só seu, verde, sua cor preferida com a nova casa da família”, “cantava musica em inglês, decorava gibis da Mônica e do Cebolinha para contar à família”, enquanto os “seres abomináveis, (...) bárbaros, só com penalidade máxima”11. Até a linguagem radialista entra na dança da ressignificação.

“Na casa de dois andares - a mais luxuosa do condomínio, os banhos (de pis-cina) eram democráticos: Joãozinho sempre convidava a turma de amigos e ninguém dispensava” 12.Só os denominados “monstros”13 que não foram convidados para fes-tinha, a eles, “esses seres abomináveis ainda terão direito a banho de sol e visitas íntimas, isso se ficarem preso, não fugindo logo depois. Precisamos colocar esses bandidos trabalhando das 6h às 17h (...)” 14. Fica claro o pleno direito de lazer do consumidor e violação de direitos básicos ligados à dignidade humana e aos diretos sociais.

4.2. ANÁLISES DO FANTÁSTICO

Cabe, preliminarmente, apontar algumas dificuldades encontradas em relação ao acesso ao corpus escolhido para ser analisado neste trabalho.

No dia 8 de fevereiro de 2007 (dia seguinte ao fato que encadeia a análise) todas as edições dos telejornais da TV Globo relataram a morte de João Hélio. O interesse pelo caso surgiu no momento da percepção de que os discursos proferidos nos meios de comunicação relacionavam o crime ocorrido com as reivindicações de

11 Jornal O Globo de 09-02-07.12 Cartas do Leitor. Ibidem.13 Cartas do Leitor. Ibidem.14 Cartas do leitor. Ibidem.

191O consenso punitivo no caso João Hélio190 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

redução da maioridade penal. Partindo dos estudos anteriormente indicados sobre a o papel da mídia, levantamos a hipótese da configuração de uma possível programa-ção criminalizante relacionada ao caso João Hélio.

Contudo, houve dificuldade de acessar as matérias jornalísticas amplamente divulgadas no dia posterior ao crime. A rapidez na veiculação das informações torna--se, curiosamente na economia de mercado, um óbice para o seu acesso, criando a valorização da informação instantânea15.

Aquilo que um ano antes de se iniciar a análise deste caso era alardeado em todos os telejornais do dia - e disponibilizado em larga escala pela internet - não é mais possível de ser acessado com tanta facilidade. Por este motivo, analisar-se-á, neste artigo, somente a entrevista dada pelos pais de João Hélio à Fátima Bernardes no programa Fantástico.

O programa Fantástico é iniciado com a fala de Zeca Camargo: “Boa noite. Uma família viveu esta semana no Rio de Janeiro uma tragédia que abalou o país: quarta-feira à noite o menino João Hélio de seis anos voltava pra casa com a mãe Rosa Cristina e a irmã Aline”.

Analisando a materialidade linguística das palavras proferidas pelo apresen-tador, verifica-se que a mencionada “tragédia” não é descrita na sequência frasal. A forma como ocorreu sequer é mencionada pelo jornalista, sendo a simples menção ao nome João Hélio autoexplicativa. Esta leva o telespectador a reproduzir em seu imaginário o intertexto imagético do arrastamento, incessantemente reprisado, an-teriormente, naquela semana. Na verdade, a finalidade principal desta introdução à indumentária do medo é passar a sensação de sofrimento nacional, assim, há uma dupla função dialética consistente em união, de todo o país abalado versus exclusão, sob a figura de um inimigo. Tal dialética é assimilada sob um misto de espetáculo e informação “imparcial”, como uma profecia que se autorrealizará posteriormente, inclusive na sentença criminal, adiante analisada

A fala seguinte é atribuída à Glória Maria, que elucidará o motivo da comoção nacional, completando a frase propositadamente inacabada por Zeca Camargo: “O carro onde eles estavam foi assaltado e na fuga os bandidos arrastaram o menino, preso pelo cinto de segurança por sete quilômetros”.

É importante perceber que a frase não é iniciada fazendo alusão ao ato de arrastamento da vítima, mas, sim com a alusão a res furtivae, o carro assaltado. O arrastamento gesticulado pela apresentadora constitui mais um clichê emocional.

O que está em disputa em tais discursos são as alocações dos devidos lugares de verdade na estante do real: o pecado é a violação do direito de propriedade. A gradação dos fatos demonstra bem qual é o motivo de tanto alarde e medo: o ataque à propriedade, insculpido no artigo 157, parágrafo 3º, do Código Penal, cuja pena máxima é a maior do nosso ordenamento punitivo.

Podem-se sintetizar indícios de um único discurso proferido em dois tempos por duas pessoas diferentes: o que se quer é transformar um conflito local, vivido por uma família, num conflito patrimonial nacional; sentido por todos. Generalizar o direito

15 Cf. MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em “tempo real”: O fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002, p78.

de propriedade como sacro até para aqueles que nada possuem. A propriedade é, discursivamente, transformada em preocupação nacional.

Finalizando a fala, Zeca Camargo completa: “Ainda muito abalados, Rosa Cris-tina e Elton, os pais de João Hélio, conversaram com Fátima Bernardes”.

A referência direta a um nome de peso do Jornal Nacional e aos nomes dos pais de João Hélio gera uma intimidade, uma familiaridade que será afirmada também no verbo utilizado – conversar, em vez de entrevistar, um bate papo informal na sala – e na transposição de Fátima Bernardes do ambiente frio da bancada do jornal para, não somente à casa dos entrevistados, mas para à casa de todos os brasileiros que assistem ao programa: entretenimento, informação e remédio ao tédio que o domingo representa à massa desfalcada de seu cotidiano laboral.

O sofá, o ambiente caseiro e familiar, a conversa entre mães que é marcada pela imagem de um abajur cujas extremidades apontam cada uma para uma das mães, dividindo bem no meio a fotografia da cena, além de quadros na parede são artifícios para que os telespectadores se identifiquem com o que está sendo proposto pela Rede Globo, preparando caminhos simbólicos para a concretização do “abalar o país”.

A cena se passa na sala da casa dos pais do menino. Fátima Bernardes, mãe, conversa com outra mãe, vítima, que porta em suas mãos a imagem de uma terceira mãe: Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo. No único momento em que o pai do me-nino fala na entrevista a foto de Nossa Senhora é passada para suas mãos, como es-tandarte do que a jornalista denomina de “cruzada contra a impunidade”. Mais tarde, “o outro” será endemonizado, caracterizado como a expressão do mal. A utilização da imagem da santa que separa “nós”, o bem do mal, será reiterada diversas vezes no discurso analisado. Isso permite gerar uma identidade comum (unificadora- abalar o país) e justificar o poder punitivo.

Rosa Cristina: “O motivo mais importante de estarmos aqui é principalmente que os governantes tivessem alma, olhassem o João como filho, como filho, e não como mais um... Ah, morreu... Amanhã outro João morre!”.

Em seu discurso na entrevista, a mãe de João Hélio deixa implícito que há pessoas cujas mortes são banalizadas. Ela não quer que seu filho seja olhado exa-tamente como são olhados os não cidadãos, mortos diariamente em favelas do Rio de Janeiro. O não dito de seu discurso: os menores consumidores frustrados, como aquele que arrastou João Hélio, são os que mais morrem e mais têm sua morte banalizada, pois, segundo a própria mãe consumidora, “eles não têm coração”. Esta relação entre o dito e o não dito, explicitada na fala da mãe, demonstra uma dualidade perversa, típica dos sistemas penais do capitalismo tardio16.

A morte de seu filho, entretanto, não será banalizada: Tinha espaço pro João andar de bicicleta... Tava linda a casa! ”, “Tinha o quartinho dele, que a gente deixou ele escolher todos os detalhes...”, “O quarto que ele entrava e falava: Esse quarto é meu, esse banheiro é meu... é do Dexter!”. O menino é importante porque possuía, consumia plenamente.

16 BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio. Disponível em: <www.bocc.ubi.pt>. Aces-so em: 15 set. 008

193O consenso punitivo no caso João Hélio192 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

A morte não banalizada se reflete também na necessária mudança da lei. A mãe então utiliza a referencia ao seu filho para reivindicar uma mudança legislativa e mais adiante, como se verá, em uma reivindicação sobre o fundamento de uma futura sentença judicial.

Rosa Cristina continua: “Não pode... Tem que mudar, tem que acabar... tem que rever a legislação! O Rio de Janeiro não pode ser encarado... é um caso especí-fico... Estados mais violentos têm que ter uma legislação específica...”

O discurso é extremamente emocional e por isso desconexo, saltando-se lite-ralmente de um tema para o outro e retomando tema anterior quando se considera necessário.

Pergunta Fátima Bernardes: “Surge alguma revolta?

Mãe de João Hélio: Surge, surge uma revolta sim... Surge uma revolta porque eu vejo que não são todas as pessoas que têm uma alma boa, que têm amor no coração... eu vejo que não é assim, tem pessoas duras, tem pessoas que não têm coração, que têm uma pedra no lugar do coração... Não adianta, não tem como ar-rancar amor de uma criatura daquelas...”. “... Aquela criatura não tinha sentimento nenhum... Você vê que o que você acha que é impossível... Não, não tem coração... Se ela ficar solta na rua ela vai fazer de novo... Vai e ainda vai rir...”.

Aqui, percebe-se a total instrumentalização, pelo Fantástico, da vítima, que se transforma em especialista apta a propagar o consenso punitivo.

5. REVERBERAÇÕES DAS ALEGORIAS DE MEDO

5.1. AS AGÊNCIAS POLÍTICAS: EXECUTIVO E LEGISLATIVO

As reverberações do discurso único vindicativo do qual se utilizam os meios de comunicação de massa podem ser percebidas em discursos de membros de outras agências do sistema penal.

Ao discurso da mãe que reivindicava mudança na lei, segue-se a reposta das agencias estatais. A “vítima-especialista”, instrumentalizada pelo sensacionalismo midiático, clama pela federalização das normas penais, como bem visto à cima, e o governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, acatou de imediato, retirado do sítio G1: “É isso que eu estou falando permanentemente, que os governadores têm que discutir a autonomia legislativa dos seus estados”, “Eu, como pai, fico extremamente sentido consternado e solidário com os pais do menino João. Eu tenho um filho de nome João. Então, evidentemente que isso chocou a todos nós. Evidente que nós temos um desafio pela frente, que é aumentar o policiamento”.

“O governador do Rio, Sérgio Cabral, disse nesta sexta-feira (9) que os estados brasileiros deveriam ter autonomia para tratar de assuntos legais, como acontece nos Estados Unidos.”

“É uma barbaridade a concentração de legislação em Brasília. É isso que eu estou falando permanentemente, que os governadores têm que discutir a autonomia legislativa dos seus estados. Não dá para os estados terem a mesma legislação so-

bre transito, sobre penalidades que devem variar de acordo com a necessidade de cada estado. Isso a curto prazo.”17

A mídia simbolicamente estabelece suas leis.

O jornal o Globo do dia 10/02/07 já parece apontar para as possíveis consequ-ências legislativas posteriores ao caso com a manchete de primeira página: “Martírio de criança reabre debate sobre leis mais duras”, entre a menção à manchete principal do dia anterior: “Barbárie contra infância” e a submanchete: “Cabral defende rediscus-são da idade penal; Lula, CNBB e STF são contra”.

Enquanto o clamor punitivo de uma mensagem do Globo online, na margem superior da página, ao lado da foto de João Hélio: “Senhores senadores, senhores deputados, deem instrumentos aos nossos juízes para que eles possam ser mais severos. Precisamos de uma revisão constitucional” parece ser atendido pelos de-putados Alfredo Kaefer, Fernando de Fabinho, Rodrigo de Castro, Rogério Lisboa18, entre outros que fizeram propostas de Emenda à Constituição de 88, e também pelos senadores membros da Comissão de Constituição e Justiça, que no dia 26/04/07 aprovaram a redução da maioridade penal.

Sobre a redução, também foram apresentados à Câmara três projetos de decreto legislativo, cujos teores convocavam a realização de “plebiscito para con-sulta popular da redução ou não da maioridade”, na forma do artigo 14, inciso I da Constituição da República. Tais projetos19 foram arquivados, sob argumentação de inconstitucionalidade, contudo, desarquivados em 28/03/07 - menos de dois meses após a morte do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, atendendo a requerimento de diversos deputados, na forma do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.20

As justificações apresentadas no bojo dos projetos visitam lugares conheci-dos do senso comum criminológico. Aduzem que a redução seria medida eficaz na “pacificação de conflitos”, que os menores têm sido frequentemente recrutados para “práticas criminosas”, que o quadro atual é “injusto e demagógico”; apontam o volume intenso de informações hoje à disposição da juventude, o paradoxo consistente na “conferência de responsabilidade ao menor de dezoito anos para o voto e na sua inimputabilidade” e que a iniciativa viria em favor dos próprios jovens, daqueles de “boa índole, caráter probo e honesto”.21

5.2. A AGÊNCIA JUDICIAL

17 <www.g1.com.br>, Acesso em: 16-04-0818 Os nomes dos deputados constam na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº453192, de 2007 (Fonte: site do Congresso Nacional)19 PDL’s nº 1.028-03; 1.144-04; 1.579-05, de autoria, respectivamente, dos deputados Luiz Antônio Fleury, Nelson Marquezelli e Arnaldo Faria de Sá.20 BORGES, Rafael Caetano. As Propostas de Redução de Maioridade na Câmara e no Senado Federal. A redução da maioridade penal vai resolver o problema da violência?, São Martinho, Rio de Janeiro: CE-DECA, 2008, p.5-7.21 PEC nº 321-2001. (Fonte: site do Congresso Nacional BORGES, op. cit., p. 5-7.

195O consenso punitivo no caso João Hélio194 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Na sentença proferida pela juíza no processo criminal, os agentes “resolveram usar o veículo táxi, modelo Vectra, de propriedade do genitor do quarto denuncia-do, Tiago, para chegar até o início do locus delicti.”22quando realizaram a “conduta abominável que resultaram as lesões corporais”. João Hélio, não merece a alcunha “menor”, ele é “o pequeno João”, que, ao invés de “genitor”, possui mãe e irmã, se-gundo a juíza.

A subtração de bens alheios para a satisfação de futilida-des, tais como lanches e saídas para boates e praia; as circunstâncias do delito, que envolveram o arrastamento cruel de uma criança por quase sete quilômetros pelas vias públicas, na frente de sua mãe e irmã, causando-lhe a morte; e as consequências do crime, que redundaram no precoce perecimento da vida do menino João Hélio, com o estraçalhamento de seu pequeno corpo; fatores que, em muito, fogem ao padrão de normalidade, bem como os de-mais elementos dos autos, mormente a personalidade do agente, voltada para a prática de delitos.

Ou seja, para a ilustre juíza, lanchar, ter direito a alimentar-se e ir à praia, ter direito ao lazer, são motivos fúteis para praticar um crime contra o patrimônio de um “pequeno João”, que já possuía tais direitos. Há uma impossibilidade de se admitir serem legítimas as necessidades do refugo humano do atual ciclo de atualização do capital. Eles são de “personalidade voltada para as práticas de delitos”, possuindo, um nítido caráter ôntico de inimigo, abertamente vociferado pela magistrada,

Desclassificar as condutas de Carlos Roberto e Tiago para roubo duplamente qualificado importaria em chancela, pelo Poder Judiciário, da criminalidade desenfreada que assola nosso país, bem como em consagração ao desrespeito pela vida humana, tão pouca valorizada pela desestrutura social atual, mas tão relevante para aqueles dotados de valores morais e éticos mínimos.

Esta foi a resposta dada pela juíza no que toca o pedido pela própria acusa-ção de desclassificação do crime quanto ao resultado morte de João Hélio, violando abertamente o princípio acusatório em nome de um consenso punitivo partido da mesma materialidade discursiva – “abalar o país”, proclamada por Zeca Camargo no Fantástico que noticia o caso.

Diante dos argumentos da juíza, fica claro que a mídia teve participação funda-mental na formação das meta-regras aplicadas no caso, evidenciada pela repetição do interdiscurso do programa Fantástico:

quando o trio supramencionado já estava embarcado, deu--se repentinamente a partida mediante brusca aceleração.

22 Os fragmentos a seguir foram retirados da sentença, proferida em primeira instancia no processo nº2007.202.001808-4, TJ RJ

Começou aí o suplício de pequeno João Hélio, o que estar-receu e comoveu o país (...)

Antes de adentrar no exame do mérito da causa, insta salientar que a hipótese dos autos cuida de fatos que aba-laram a sociedade e a ordem jurídica nacional, ganhando repercussão intensa na mídia, inclusive internacional, haja vista ter tido como vítima fatal um menino de tenra idade.

O indeferimento da desclassificação de dolo eventual no resultado homicídio do crime de latrocínio para homicídio culposo em concorrência com o crime de rou-bo, desclassificação esta pleiteada pelo próprio Ministério Público, é baseada “na criminalidade que assola o país” e o fato de “ter ganhado repercussão intensa na mídia”, entra, também, em cena, toda uma valoração do réu que possuía genitores e arrastou uma criança que possuía pai e mãe, João Hélio era pequeno e o réu possuía “personalidade voltada para o crime”.

5.3 .CARTA DOS LEITORES

A função da mídia no sistema penal é a de ditar onde se alocam as coisas do real, e a juíza o fez muito bem, fica claro a distinção entre o menino e o “menor”. Aquele, por ter onde brincar, piscina, merece proteção e sensibilização; ao passo, este, que não tem piscina, não tem lazer, merece a punição, por se tratar de “menor”. O que caracteriza a situação de amigo, de “menino de bem com a vida”, “uma criança muito feliz” é o fato de que “o menino ganharia este ano um quarto só seu, verde, sua cor preferida com a nova casa da família”, “cantava musica em inglês, decorava gibis da Mônica e do Cebolinha para contar à família”, enquanto os “seres abomináveis, [...] bárbaros, só com penalidade máxima”23 .

Em todas as páginas dedicadas ao caso no jornal O Globo do dia 09/02/07, havia na margem superior, duas falas de leitores especialistas24, mensagens para O Globo online, em itálico, com grande destaque, e, ao centro, entre cada fala, a foto de João Hélio:“O que vão dizer os nossos senhores da justiça e da legislação [...]?o que dizer mais uma vez? Que dizer de uma legislação que protege criminosos cruéis menores de idade [...]”

Esse jogo de apropriação de outros interdiscursos desemboca e clama por resultados práticos:

Estou chocada com este acontecimento diabólico que aconteceu ontem! Não podemos mais ficar de baços cruzados diante de antas barbaridades, meus irmãos! Temos que fazer algo [...]”;“Espero que a lei exista para ser modificada [...]. As nossas leis são do tempo que os bandidos roubavam mariola.”; “Só há um saída para as barbaridades que assoam o Rio. Pena de morte para bárbaros, só com penalidade máxima. Foi pego num flagrante ou mesmo confessou um crime bárbaro como este, pena de morte.

23 Jornal O Globo de 09-02-07.24 Expressão de Bourdieu, no original fast thinkers, traduzida por Nilo Batista em Mídia e Sistema Penal no Capitalismo tardio.

197O consenso punitivo no caso João Hélio196 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Alessandro Baratta, ao mencionar as teorias psicanalíticas da criminalidade, referindo-se a Freud, fala que no caso de transgressão de um tabu, a punição ocorre de modo espontâneo. Todos os componentes do grupo se sentem ameaçados pela violação do tabu e por isso se antecipam na punição do violador. Tal mecanismo seria um modo primitivo de solidariedade, e, nas palavras do autor: “é explicado por Freud pela tentação de imitar aquele que violou o tabu, liberando, assim, como aquele que o fez, instintos de outro modo reprimidos. [...]. A reação punitiva pressupõe, portanto, a presença, nos membros do grupo, de impulsos idênticos aos proibidos”25.

6. CONCLUSÕES

A toada “comoveu o país”, para além de servir de uma simples chamada para a matéria veiculada no programa Fantástico, da TV Globo, comprova, claramente, os efeitos do denominado “teorema de Thomas”, ou seja, “situações definidas como reais têm efeitos reais”. Os meios de comunicação afirmaram a imagem do “abalo nacional”. Tal imagem da realidade age efetivamente sobre a estrutura ideológica e material da sociedade. Um sistema político ou um governo, não é necessário influir sobre a realidade, é suficiente agir sobre sua imagem. Assim, se percebe violação ao sistema acusatório e indeferimento da desclassificação pleiteada pelo Ministério Público, desarquivamentos de projetos de emenda constitucional, pronunciamentos do Governador do Rio, no sentido de rever o pacto federativo e cartas de leitores indignados.

O dano causado a uma família é apresentado como o dano causado a uma inteira nação. Quando o Fantástico amplia o abalo para um nível nacional, está, ao menos, sendo um amplificador da ideologia das elites nacionais. Ideologicamente, unifica o país, de extensões territoriais continentais, dividido em classes portadoras de interesses antagônicos, por meio de um abalo ideológico traduzido na figura do cri-me. Evidente, portanto, se torna o papel, já não mais informativo, e sim configurador da própria realidade da mídia. Há, desta forma, a imposição de um consenso punitivo com a eleição de inimigo

Pode-se perceber as diversas “vozes” em uníssono a repetir o discurso mi-diático do medo, representado pela materialidade discursiva desses sujeitos espe-cialistas, que nos remete à ilusão do sujeito referencial – como se partissem deles a indignação –, mas que tem sua formação discursiva basicamente midiática, que também se utiliza de lugares discursivos próprios do poder executivo, legislativo e judiciário, gerando uma dialética intrínseca ao embate, à disputa no campo simbólico. Assim, Vera Malaguti, ao falar da conquista da América, nos diz que “na verdade é no nível do imaginário que se desenvolvem as principais batalhas pela hegemonia política”26.

Há uma disputa simbólica entre os diversos campos discursivos, ao passo que esses diversos lugares discursivos (judiciário, legislativo, executivo, materno, frater-no, punitivo, etc.), que se digladiam entre si, são apropriados pelo próprio discurso midiático e ressignificados. A maneira como se dá esta ressignificação, permitirá

25 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002, p. 50-51.26 Malaguti Batista, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro : dois tempos de uma história., p. 29.

entender o embate que há entre democracia e estado de exceção, entre estado de direito e estado de policia, entre o que é jovem merecedor de proteção – tal qual é o intuito do ECA 27 - e o que é um “homem criminoso”, entre o amigo e o inimigo, o “monstro” e o “anjo”.

A ideologia do patronato brasileiro, difundida pela mídia, pautada no medo como significante e no crime como signo, fundamenta sentenças judiciais, permeia cartas de leitores, discursos do Governador do Rio de Janeiro e de parlamentares federais. Assim percebe-se que o medo é o ingrediente de coesão de um perigoso consenso punitivo.

Fica claro que o menor que merece a tutela é o consumidor. enquanto o me-nor preso na favela tem negado o direito de ter suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias estabelecidas pelos direitos humanos.

A grande pergunta que fica é qual classe, de fato, um crime patrimonial abala. A partir desta resposta é fácil perceber de qual lugar os operadores midiáticos discursam e a quais interesses de classe a abordagem do caso atende. A classe patronal sempre teve o interesse de manter unido um território tão vasto como o Brasil, o fez, outrora, com base em muita repressão física e agora o faz sob o signo midiático do crime.

REFERENCIAS BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora HUCI-TEC. 1992.BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª edição. Rio de Janeiro. Editora Revan. 2002._____, Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal. Lineamentos de uma Teoria do Bem Jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.5.BATISTA, Nilo. Comunicação e crime.Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Editora Revan,1990._____, Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio. Disponível em: www.bocc.ubi.pt. Acesso em: BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis. Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. 2ª edição. Rio de Janeiro. Editora Revan, 2003._____, O Medo na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de janeiro. Editora Revan. 2ª edi-ção. 2003.BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar. 2003._____, O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Mar-tinelli Gama. Revisão técnica de Luís Carlos Fridman. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1998.

27 O princípio protetivo é o norteador do ECA, de acordo com seu art 1º: “Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.

198 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

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NOTAS PARA UM ESTUDO DAS FACÇÕES CRIMINOSAS BRASILEIRAS À LUZ DA PSICANÁLISE1

Bruno ShimizuDefensor Público do Estado de São Paulo: Mestre e Doutorando em Criminologia pela USP.

“Quant à flatter la foule, ô mon esprit non pas!Ah! le peuple est en haut, mais la foule est en bas.”

Victor Hugo – Les 7 500 000 oui

No dia 4 de abril de 1981, a grande imprensa noticiava pela primeira vez a existência de uma facção criminosa brasileira, nascida nos presídios cariocas. Tratou--se de um incidente havido na Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro. Um cidadão de nome José Jorge Saldanha, vulgo Zé do Bigode, foragido do presídio de Ilha Grande e apontado como um dos líderes do incipiente Comando Vermelho, resistira, entocado em um apartamento, à investida de cerca de quatrocentos agentes policiais durante mais de doze horas, até ser fulminado por um disparo de fuzil. Essa ocorrência, além de constar de diversos textos jornalísticos, é relatada no livro de memórias escrito por um dos fundadores do Comando Vermelho, William da Silva Lima (2001). O próprio título desse livro – Quatrocentos contra um –, escrito pelo sen-tenciado enquanto estava foragido, presta homenagem ao mártir da facção. Assim ele descreve o incidente na Ilha do Governador:

1 O presente artigo agrega algumas conclusões parciais obtidas pelo autor durante sua pesquisa de pós-graduação em criminologia, em nível de Mestrado.

201Notas para um estudo das facções criminosas brasileiras à luz da psicanálise200 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Parecia que dois exércitos iriam iniciar uma batalha. Na verdade, era mais ou menos isso. Um deles, porém, compunha-se inicialmente de apenas dois homens: Zé Sal-danha e João Damiano Neto. Este último não tardou a ser morto, numa das diversas tentativas de invasão. Restaram, nessa batalha sem glória, quatrocentos homens contra um. Bombas foram lançadas, picaretas abriram buracos em paredes, telhas foram arrancadas – e nada. Aproximava-se das 16h e Saldanha ainda resistia. Para a Polícia, era uma inaceitável desmoralização, diante de rádio e TV.

Às 17h 30min, recorreu-se a bombas incendiárias, mas os bombeiros tiveram que apagar o fogo, que ameaçava con-sumir todo o prédio e já atingia o local onde jazia o corpo de um policial. O encurralado não se rendia, confirmando sua fama. No raiar do dia 4 de abril, entraram em ação as bazucas. Às 8h 30min, finalmente, caiu morto o Saldanha. Sem se render. Segundo a imprensa, a operação consumi-ra cerca de 150 bombas de gás lacrimogêneo, 15 granadas e quantidade incalculável de munição, que destruíram 12 apartamentos. Vitória ou derrota da repressão? (idem, p. 101)

Tomava notoriedade, desse modo, perante a imprensa e o público em geral, a existência do Comando Vermelho, grupo criado pela associação de alguns presos mais politizados, em resposta às condições apontadas como degradantes às quais os internos do sistema penal são submetidos2.

O jornalista Carlos Amorim (2007, p. 151-152), um dos responsáveis pela co-bertura do incidente, relatou, tempos depois, um relevante questionamento que veio à sua mente durante as horas em que se travou a batalha:

Fiquei lá durante doze horas, até tudo estar acabado, na manhã do dia seguinte. Ser testemunha de um combate como esse faz pensar. Principalmente porque o bandido cercado teve oportunidade de se render, e preferiu a mor-te. Era só exigir a presença da televisão e dos fotógrafos para que a vida dele fosse garantida. Com tal cobertura da imprensa, não seria possível simplesmente eliminar Zé do Bigode, como tem acontecido tantas vezes.

Com efeito, ao resistir à operação da Polícia Militar, José Jorge Saldanha demonstrou um ímpeto sobre-humano, contrariando até mesmo uma pulsão básica de autopreservação. A conduta desse homem certamente gerou perplexidade ao apontar a determinação com a qual poderiam agir os membros desses novos grupos

2 William da Silva Lima descreve o Comando Vermelho não como uma organização, mas como “um com-portamento, uma forma de sobreviver na adversidade” (2001, p. 96).

compostos por pessoas que confrontam os dispositivos da lei penal. Assim como José Jorge Saldanha, indagava-se quantos outros estariam dispostos a abdicar da própria vida ao rebelarem-se contra o sistema posto. Criava-se a sensação de que uma criminalidade qualitativamente diferente surgia.

A resposta às indagações veio em um período de tempo não muito longo. Con-forme apontado por Mingardi (1998), a partir de 1996, com o episódio que se tornou conhecido como a “guerra” no Morro Santa Marta, a imprensa passou a dedicar co-bertura massiva a tudo o que envolvesse a atuação do Comando Vermelho3. Assim foi que, após essa primeira cobertura midiática de uma “guerra do tráfico”, a facção passou a figurar nas manchetes sempre que um novo confronto eclodia, seja relativo à disputa entre grupos criminosos, seja relativo aos confrontos entre policiais e delin-quentes. Dentre esses episódios de violência que figuraram sobejamente na mídia, pode-se citar, a título de exemplo, a chacina ocorrida em agosto de 1993 na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, quando um grupo de aproximadamente cinquen-ta homens encapuzados assassinou vinte e um moradores, entre adultos, jovens e crianças. A ação foi entendida como represália à morte de quatro policiais militares. A cobertura jornalística dos confrontos na favela do Vigário Geral possibilitou a Zuenir Ventura (1994) relatar a situação de violência desmedida no local, concluindo que o Rio de Janeiro tornou-se uma “cidade partida”, onde o morro e o asfalto, apesar de existirem lado a lado, trazem realidades absolutamente diversas.

Atualmente, a questão envolvendo a criminalidade de grupo vem sendo apon-tada como o desafio central àqueles que se ocupam da segurança pública no Brasil (SOARES, 2000). A força desses grupos, aliás, tornou-se amplamente conhecida em razão de um sem-número de incidentes por meio dos quais tais associações demonstraram ter o condão de gerar um clima de histeria coletiva no seio social. Nessa esteira, fizeram-se emblemáticos os atentados de maio de 2006, na cidade de São Paulo, de autoria avocada pela facção conhecida como o Primeiro Comando da Capital4.

O jornal Folha de São Paulo noticiava, em 16 de maio de 2006:

Uma onda de pânico fez parar ontem a maior e mais rica cidade do país e espalhou choque e medo pelo Estado de São Paulo. No quarto dia de terror provocado pela facção criminosa PCC, refluíram os atentados contra bases poli-ciais, assassinatos e rebeliões.

Contudo, apesar da relevância do estudo das facções criminosas para a com-preensão do momento político e social atual brasileiro, é notório que a academia ainda não se demonstrou suficientemente sensível ao fenômeno. Na seara do direito penal

3 A “guerra” no Morro Santa Marta foi descrita de forma romanceada por Caco Barcellos (2006), que conta como os rivais Zaca e Cabeludo lutaram pelo domínio do tráfico de entorpecentes no local, o que teve como fim o domínio do Comando Vermelho na região com a vitória de Zaca. Em certo ponto, Barcellos faz uma observação curiosa: “A favela que virou notícia no Brasil e no mundo nunca teve uma única banca de jornal” (idem, p. 130).4 Sobre os atentados ocorridos em 2006 em São Paulo, atribuídos ao PCC, v. Adorno e Salla (2007) e Souza (2007),

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e processual penal – ferramentas legislativas e supostamente democráticas para o controle da criminalidade – o que se assistiu foi a uma proliferação desordenada do que se convencionou chamar de “legislação de pânico”, de caráter marcadamente repressivo e notoriamente ineficaz, sem um norte calcado em diretrizes de Política Criminal (BELLOQUE, 2007, p. 34).

Note-se que ainda não há, quer no seio da dogmática jurídica, quer no seio da criminologia, um conceito consensual de organização criminosa ou de facção crimino-sa. A legislação trata de igual maneira organizações e associações criminosas, qua-drilhas e bandos, entes sociais de natureza certamente diferente. Tal equivocidade faz com que Zaffaroni vislumbre na categoria da organização criminosa uma catego-rização frustrada, afirmando que “o organized crime não é um conceito criminológico, mas uma tarefa que o poder impôs aos criminólogos” (1996, p. 48).

As ciências sociais, por seu turno, pouco se debruçaram sobre essa nova realidade, o que, talvez, possa ser explicado pela dificuldade de se atingir o objeto de estudo: pessoas encarceradas, marginalizadas e reputadas perigosas pela socie-dade. Em amplo mapeamento das obras escritas no Brasil sobre crime e violência entre 1970 e 1995, Alba Zaluar (1999, p. 24-25) lista tão somente cerca de vinte trabalhos abordando a organização social dos criminosos, metade dos quais escritos pela própria autora5.

Ainda que não se tenha, até o momento, vislumbrado um esforço satisfatório das ciências criminais para a investigação do novo fenômeno das facções criminosas, é fato que a criminalidade de grupo, genericamente considerada, vem sendo uma preocupação da criminologia desde seus primórdios. A obra de Lombroso (2007, p. 185) já apontava a associação como uma característica comum à criminalidade:

Essa associação para o mal é um dos fenômenos mais im-portantes do triste mundo do crime, não só porque no mal se verifica a grande potência da associação, mas porque da união dessas almas perversas brota um fermento maligno que faz ressaltar as tendências selvagens.

Com a suplantação das proposições semicientíficas da Antropologia Criminal italiana, não se abandonou a importância do fator associação na investigação do fenômeno da criminalidade. A escola criminológica ecológica de Chicago via os en-claves étnicos e sociais, formados em regiões degradadas da cidade, como fatores geradores do crime (SHECAIRA, 2004, p. 139-186). A importância do grupo na seara criminológica, contudo, assumiu papel central na teoria das subculturas criminais, preconizada por Albert K. Cohen (1956), que investigou de perto as associações de adolescentes delinquentes, atestando que esse tipo específico de criminalidade caracteriza-se pelo não utilitarismo, pela malícia da conduta e pelo negativismo. Em outras palavras, afirma o autor que a criminalidade subcultural, ao inverter a polari-dade dos valores sociais, encontra sua satisfação em uma informação destrutiva de bens caros à comunhão social.

5 A mesma insuficiência bibliográfica pode ser constatada no mapeamento de obras brasileiras em ciências sociais sobre violência, criminalidade, segurança pública e justiça criminal realizado por Kant de Lima, Misse e Miranda (2000).

Todas essas teorias que se dedicaram à análise da criminalidade de grupo, contudo, parecem padecer de uma mesma lacuna: não se dispõem a explicar o que leva uma pessoa a morrer em nome de uma facção; não explicam, sobretudo, que espécie de solidariedade se desenvolve no seio de uma organização marginal6. São insuficientes, portanto, para explicar por que José Jorge Saldanha, personagem com o qual se iniciou o presente texto, preferiu morrer a entregar-se. Por certo, a ausência de investigação sobre os mecanismos que garantem a coesão de um grupo inviabiliza a proposição de sugestões – legislativas e de políticas públicas – para que se lide de maneira racional e cientificamente ordenada com esse contexto. A psicanálise, nesse diapasão, parece dispor de instrumentos convenientes ao estudo das facções crimi-nosas, especialmente no que tange à análise das relações de identificação, sugestão e afeto havidas entre seus membros.

A associação entre criminologia e psicanálise para fins de pesquisa científica não é algo novo. Baratta (1999, p. 49-58) chega inclusive a apontar a existência de teorias psicanalíticas da criminalidade e da sociedade punitiva, representadas, entre outros, por Reik, Alexander e Staub. Sigmund Freud, aliás, debruça-se sobre a questão penal com certa profundidade em Totem e Tabu, afirmando que “os primeiros sistemas penais humanos podem ser remontados ao tabu” (FREUD, 1999)7.

Nessa obra, Freud postula que a funcionalidade da instituição de um sistema penal reside, por um lado, em evitar o caráter contagioso da transgressão e, por outro, em abrir ao corpo social a possibilidade de expiar seus próprios impulsos agressivos, de maneira socialmente aceita, sobre aquele que violara a interdição8. Assume-se, portanto, a presença dos impulsos proibidos tanto no criminoso quanto na sociedade punitiva, de modo a colocar-se em xeque o discurso criminológico tradicional, que

6 Há vários indícios de que as relações de fidelidade e fraternidade entre os membros das facções crimi-nosas são altamente valorizadas no seio do grupo. A título de exemplo, pode-se citar que o primeiro item do escrito que foi divulgado pela imprensa como o Estatuto do Primeiro Comando da Capital contém o seguinte mandamento: “Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo ao partido”. Nesse mesmo estatuto, os membros da facção são referidos como “irmãos” em diversos itens (SOUZA, 2007, p. 11-13).7 Sob uma perspectiva psicanalítica, o surgimento das instituições punitivas dá-se em paralelismo com o surgimento da instância repressora na psique do indivíduo. A formação do superego é conseqüência da resolução do pacto edípico, em que a criança toma a imagem do genitor do mesmo sexo, por identificação introjetiva, como ideal do próprio ego, passando esse ideal a constituir a instância psíquica responsável pela censura. Neste sentido, afirma Freud que “o ideal do ego tem a missão de reprimir o complexo de Édipo” (1997, p. 36). Desse modo, as demais proibições que serão internalizadas pelo indivíduo terão como modelo a primeira proibição, relacionada ao incesto. No plano social, o horror ao incesto toma a proporção de tabu, palavra de conteúdo polissêmico que designa tanto a proibição quanto o que é proibido, mas sempre ligada a um elemento místico de intangibilidade. Freud afirma ter sido a proibição do tabu a primeira lei imposta pela comunidade, constando essa interdição do rol de regras de todas as sociedades de que se tem notícia (FREUD, 1999, p. 28-35).8 Sobre a punição dos delinquentes, afirma Freud: “Não há dificuldade em explicar o mecanismo desta solidariedade. O que está em questão é o medo do exemplo infeccioso, da tentação a imitar, ou seja, do caráter contagioso do tabu. Se uma só pessoa consegue gratificar o desejo reprimido, o mesmo desejo está fadado a ser despertado em todos os outros membros da comunidade. A fim de sofrear a tentação o transgressor invejado tem de ser despojado dos frutos de seu empreendimento e o castigo, não raramente, proporcionará àqueles que o executam uma oportunidade de cometer o mesmo ultraje, sob a aparência de um ato de expiação. Na verdade, este é um dos fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida corretamente, na pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga” (1999, p. 79).

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visa a buscar no delinquente uma predisposição biopsíquica peculiar (FREUD, 1999, p. 79).

Em sua obra Psicologia das Massas e Análise do Ego, Freud (1996a) dedica--se ao funcionamento da solidariedade em grupos sociais. Ele parte das observações de Gustave Le Bon (1913), que conclui que, quando em um grupo massificado, o ser humano sente, pensa e age de maneira muito distinta daquela que faria caso consi-derado individualmente9. As atitudes da pessoa no grupo, segundo Freud, assumem formas regredidas, a ponto de o autor afirmar que a massa é levada “quase que exclusivamente por seu inconsciente” (FREUD, 1996a, p. 88)10. Aprofundando-se na matéria, Alvino Augusto de Sá (no prelo, p. 1-2) assevera que:

em situação de massa, o indivíduo adquire um sentimento de potência invencível, sentindo que pode ceder aos seus instintos, sem que isto lhe acarrete conseqüência alguma. Freud vê aí simplesmente a supressão da repressão das tendências inconscientes, com regressão aos estados primitivos da mente, onipotentes (que, na verdade, são es-tados infantis), para os quais não existem barreiras e nem limites. Desaparece o senso de responsabilidade pessoal. O ‘grupo’ passa a responder por todos.

Freud (1996a) postula que, em uma massa, a imagem idealizada do líder é introjetada, vindo a substituir a instância psíquica censora de seus diversos mem-bros. Desse modo, os elementos da massa acabam dotando-se de um mesmo ideal de ego, motivo que leva ao fenômeno da identificação mútua entre os membros, responsável pela solidariedade do grupo. A colocação do objeto no lugar do ideal do ego é responsável por um estado análogo ao de hipnose, em que o líder passa a ser idealizado, exercendo na massa uma relação de fascinação e servidão (FREUD, 1996a, p. 123).

Segundo Freud (1996a), desde uma perspectiva ontogênica, a formação de uma massa tem como antecedente psíquico o modelo familiar fundamental. A in-trojeção do líder e a sua idealização recapitulam a resolução da estrutura edipiana, quando a criança introjeta a imagem do genitor, formando o superego. As relações horizontais de identificação entre os membros do grupo, por seu turno, remontam ao surgimento do sentimento social, que tem sua ontogênese calcada na solução de compromisso derivada da inveja que ocorre “no quarto das crianças” (FREUD, 1996a,

9 Apesar de ter realizado uma descrição bastante competente dos comportamentos das multidões, as elaborações teóricas de Le Bon (1913) deixam a desejar por assumirem contornos racistas. Para Le Bon (1913), a situação de multidão seria responsável por propiciar um comportamento intelectualmente rebaixado, determinado por uma idéia que o autor denominou “alma da raça”. Assim, a massa seria re-sponsável pelo desaparecimento de potencialidades individuais, morais e cognitivas, e pelo afloramento de características étnicas do grupo. Além de ser improvável a existência de uma alma racial, contudo, Le Bon (1913) deixa de explicar quais seriam os fenômenos psíquicos que causariam essa alteração do nível de consciência do indivíduo em grupo. 10 Um ótimo exemplo desse processo de funcionamento da psicologia das massas pode ser visto na obra de Buford (1992), que relata seu convívio com os hooligans, grupos de torcedores de futebol ingleses notórios pelo seu vandalismo.

p. 129). O sentimento gregário, apontado por Trotter como inato, é visto por Freud como uma formação reativa à inveja que se estabelece entre os irmãos em relação ao amor dos pais. A identificação entre os irmãos decorre da impossibilidade de ma-nutenção de uma atitude hostil e do necessário abandono da pretensão de ser o mais amado, sob a condição compromissória de que nenhum outro ocupará tal posição. Desse modo, a solução de compromisso que se encontra na base do sentimento de justiça e da identificação horizontal “significa que nos negamos muitas coisas a fim de que os outros tenham de passar sem elas, também, ou, o que dá no mesmo, não possam pedi-las” (FREUD, 1996a, p. 130).

Assim, o primeiro laço a unir os membros de uma massa é a identificação, que, numa perspectiva vertical, estabelece-se entre os indivíduos e o líder pela sua introjeção como ideal do ego e, numa perspectiva horizontal, estabelece-se entre os membros pelo arranjo psíquico que remonta à ontogênese do sentimento de justiça como reação à inveja infantil.

No que tange às relações grupais de identificação, muito têm a contribuir as formulações teóricas kleinianas, especialmente pela cunhagem do conceito de identificação projetiva e pela explicação da idealização como mecanismo tipicamente esquizoparanoide. Note-se que a abordagem freudiana vê apenas a introjeção como mecanismo básico de identificação. A identificação projetiva, contudo, conforme formulada por Klein (2006a), parece uma ferramenta conceitual mais adequada à explicação da idealização do líder de um grupo.

Para Klein (2006, p. 96), a idealização do objeto é o corolário da ansiedade persecutória, consistente no medo de destruição do ego pela atuação da pulsão de morte. Na posição esquizoparanoide, o bebê demonstra-se incapaz de estabelecer relações de objeto totais, na medida em que a fragilidade de sua vida psíquica o impulsiona a utilizar-se da cisão e da projeção como forma de defesa maníaca contra a ansiedade. Desse modo, seus objetos persecutórios internos são projetados no seio da mãe – objeto parcial primário de investimento pulsional – que é sentido pelo bebê como cindido em um “seio mau” (perseguidor) e um “seio bom” (gratificador). A idealização do seio bom constitui o corolário desse mecanismo de projeção dos objetos persecutórios nessa fase, visto que o bebê passa a projetar também seus objetos bons internos sobre o seio gratificador como forma de defesa contra a ansie-dade despertada pelo seio mau. Dessa forma, o seio idealizado passa a ser sentido como um objeto passível de proteger a criança contra os ataques do seio perseguidor e, por isso, a idealização é entendida por Klein como um mecanismo de defesa de linhagem psicótica.

Na formação de uma massa, a relação com o líder dá-se de acordo com esse mecanismo esquizoparanoide, como forma de defesa contra os objetos persecutórios externos e, principalmente, internos, que são projetados nos indivíduos que não são membros do grupo. Freud (1996a, p. 110) já havia descrito de que forma opera-se, nos grupos, a projeção dos impulsos cruéis e hostis em direção àqueles que não são membros11. Trata-se, na verdade, de uma relação transferencial que impede que tais

11 Por essa razão, especificamente sobre a Igreja, Freud afirma: “Fundamentalmente, na verdade toda religião é, dessa mesma maneira, uma religião de amor para todos aqueles a quem abrange, ao passo que a crueldade e a intolerância para com os que não lhes pertencem, são naturais a todas as religiões”

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impulsos destrutivos sejam direcionados aos próprios membros do grupo, mantendo sua coesão e a solução de compromisso responsável pelo sentimento gregário. Em virtude dessa expulsão dos objetos persecutórios para fora dos limites do grupo, a idealização do líder pode ser entendida como forma de defesa contra o inimigo co-mum: o estrangeiro. O líder onipotente, de onde decorre a força do grupo, assume os contornos do herói que pode afastar a ameaça representada por aquele que não pertence à irmandade. Assim, o ferramental kleiniano pode explicar esses dois fenô-menos – a idealização e a xenofobia –, que estão entre os mais evidentes na vida psíquica das massas.

Nas facções criminosas brasileiras, tanto a idealização do líder12 quanto a hostilidade em relação ao não pertencente são bastante evidentes. Os líderes de uma facção são investido de poderes de vida e morte, sendo considerados extraor-dinariamente inteligentes e capazes por seus membros13. A rivalidade figadal entre as facções, por outro lado, demonstra o quanto, nos grupos, o lugar do estrangeiro torna-se o locus de projeção dos impulsos destrutivos.

No Estado de São Paulo, é notória a rivalidade entre as duas maiores facções de presos: o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Revolucionário Bra-sileiro da Criminalidade (CRBC) (SOUZA, 2007). Conforme nos foi relatado por uma Agente de Segurança Penitenciária, a garantia da individualização da pena, hoje, faz-se tão somente pelo critério de pertencimento a alguma facção. Cada estabeleci-mento penal do Estado deve comportar apenas presos de uma determinada facção, caso contrário, esses entrarão em conflito mortal. Assim, um preso pertencente ao CRBC ou que já tenha estado custodiado em “prisão do CRBC” não poderá ser re-colhido em um estabelecimento dominado pelo PCC, ou será certamente executado pelos outros internos. A rivalidade entre as facções, aliás, fica muito clara no próprio estatuto do CRBC, de onde se lê, em seu sétimo item:

Onde quer que o CRBC estiver NÃO PODERÃO EXISTIR INTEGRANTES DO PCC, pois os mesmos, através da ganância, extorsão, covardia, despreparo, incapacidade mental, desrespeito aos visitantes, estupros de visitantes, guerra dentro de seus próprios domínios, vêm colaborando para a vergonhosa caotização do aparato Penal do Estado de São Paulo. Portanto, não podemos conviver com esses

(1996, p. 110). Daí o papel, para a coesão grupal, do desenvolvimento de um “narcisismo das pequenas diferenças”, ou seja, da hostilidade em relação às menores diferenças, criando-se um preconceito que contrasta com a supressão ilusória de todas as diferenças entre os membros do grupo.12 Ao ser inquirido por parlamentares durante a CPI das Armas, Marcola – apontado como principal líder do PCC – pareceu ter pleno conhecimento das relações de idealização envolvidas em um grupo. Marcola afirmou que muitos rivais dentro do sistema penitenciário queriam vê-lo morto, mas, depois, corrigiu-se: “Não eu, Marcos Willians Camacho, mas esse símbolo. Símbolo dessa organização da qual dizem que eu sou líder” (SOUZA, 2006, p. 60).13 Conforme nos foi relatado por um preso, ao ser questionado sobre como se dá a aplicação de punições entre os membros de uma organização interna: “Aqui dentro, existe uma hierarquia. Pessoas capacita-das, calmas, inteligentes para analisar, por exemplo, numa briga, quem estava errado. Umas seis ou oito pessoas que decidem. Existe uma hierarquia, respeitada por todos.” O respeito irrestrito aos líderes foi externado por várias vezes durante o trabalho de campo.

‘lixos’, escórias, animais sem o menor senso de racionalida-de. Estes, definitivamente, não podem e não devem conviver com aqueles que têm suas famílias sacrificadas e igualmente condenadas, que lutam contra as dificuldades de nosso País, por nossas liberdades. (FOLHA ONLINE, 2008)

O segundo laço responsável pelo gregarismo, que constitui consequência do primeiro (a identificação), consiste na libido inibida em sua finalidade sexual (Freud, 1996a). A inibição da finalidade sexual da libido é entendida como consequência do terror da castração, consubstanciada no medo em relação ao pai, despertado pela busca do prazer libidinal em direção ao objeto primário. Essa libido de fim coartado é a energia psíquica que promove as relações de afeto entre os membros do grupo e em relação ao líder, transformado em “pai social”, ao qual os membros ligam-se pela ilusão de que são igualmente amados, como irmãos. Sobre a “ilusão do amor”, manifesta-se Damergian (2007, p. 118):

Não é por acaso que os discursos políticos são inflamados, repetitivos, impul-sionados por palavras de ordem e sem sentido. Estamos no reino da irracionalidade, da ausência de pensamento, do estímulo ao acting-out, das emoções primitivas. Os líderes que comandam esses grupos vendem a ilusão do amor, segundo Freud. Os liderados os amam e se acreditam amados por eles, desenvolvem laços amorosos com os companheiros e estão unidos por um ideal comum: o amor ao líder.

A necessidade de investimento de libido inibida em sua finalidade sexual para a coesão do grupo explicaria as severas restrições à entrada de mulheres nos dois grupos artificiais analisados por Freud (1996a): a Igreja e o Exército. As mulheres, como passíveis de perturbar esse investimento homossexual de libido dessexualiza-da, teriam o condão de afetar o gregarismo da massa, despertando o sentimento de competitividade e arriscando a solução de compromisso que sustenta o sentimento grupal. Nos presídios – lugares de formação das facções criminosas –, portanto, a estrita separação dos sexos é mais um dos elementos a favorecer a ocorrência dos fenômenos psíquicos grupais descritos por Freud.

Todos esses fatores ontogênicos envolvidos nos fenômenos psíquicos grupais são resumidos, em apertada síntese, no seguinte trecho da obra de Eugène Enriquez (2005, p. 169), que toma como exemplo o nazismo:

De qualquer forma, Hitler gostava de usar a fórmula da união mística: ‘Eu existo em vocês e vocês, em mim”. Não pode haver hiato entre o chefe e seus homens. Ao escutar essas palavras não podemos deixar de pensar no que Freud diz em ‘Psicologia das massas e análise do ego’ a respeito da criação do grupo por um chefe que ama (ou finge amar) todos os membros com um amor igual, que estabelece com eles uma relação dual ‘de natureza sexual’, que manipula o grupo pela hipnose, que se torna objeto comum do grupo erigido por cada indivíduo no lugar de seu ideal do eu e que permite que os membros do grupo se identifiquem uns com os outros.

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As investigações de Freud (1996a) vão ainda mais longe, contudo, ao traçar, a par da explicação ontogênica dos fenômenos psíquicos grupais – calcada no modelo familiar –, uma hipótese filogenética de abordagem. Para Freud (1996a), a experi-ência da massa constitui uma remodelação idealística da horda primeva, postulado hipotético por meio do qual a psicanálise explica a gênese da sociedade e do próprio advento da humanização do homem14.

Grosso modo, pode-se mencionar que a horda primeva é descrita como uma situação na qual o aglomerado humano primitivo seria liderado por um pai primevo, que exercia o poder sobre todos os outros homens, reprimindo-lhes a vazão aos instintos sexuais e negando-lhes acesso às mulheres. O pai narcísico, incapaz de investimento objetal de libido, expulsava da horda os filhos conforme eles cresciam. Em determinado ponto, os filhos expulsos descobriram-se identificados pelo ódio relativo à extrema recusa e passaram a conspirar contra o pai, até então sentido como onipotente. A conspiração levou à rebelião e ao assassinado do pai da horda. A morte foi celebrada com uma refeição, nas quais os filhos devoraram o corpo do pai morto, atuando no sentido da introjeção de sua onipotência. Com a posterior reflexão, ínsita às idéias de evolução e maturidade, os homens desenvolveram um sentimento de culpa em relação a esse crime original. A reflexão possibilitou a percepção de que, apesar de odiado, o pai também era admirado. Assim, o remorso propiciado por essa violência fundamental humanizante estaria na raiz das duas interdições edípicas fundamentais: o incesto e o parricídio. Os filhos, acometidos pela culpa, reviveram o pai totêmico institucionalizando e internalizando as proibições a que eram submetidos anteriormente ao seu assassinato, em tentativa simbólica de anulação do próprio ato.

Sobre o mito do pai da horda, vale transcrever trecho da obra de Freud (1999, p. 147):

Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formi-dável ao seu anseio de poder e aos desejos sexuais: mas amavam-no e admiravam-no também. Após terem-se livra-do dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo – pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de ‘obediência adiada’. Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindica-ção às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram

14 A primeira formulação da horda primeva na obra freudiana encontra-se em “O retorno do totemismo na infância”, artigo que compõe Totem e tabu (1999).

assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus funda-mentais do totemismo, que, por essa razão, correspondem inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esses tabus tornava--se culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava.

O assassinato do pai primevo é o antecedente das interdições morais e dos sistemas sociais. É, também, o ponto de estruturação da psique humana e a origem do modelo familiar, que, de certo modo, reedita a horda em suas estruturas tradicio-nais de poder. O mito do pai da horda denota o fato de que é o assassinato do pai que marca o ponto de transição na formação da ideia de humano. O esquecimento do assassinato, que subsiste apenas como reminiscência filogenética, e a renúncia à violência – decorrência da culpa em relação à violência fundamental – são a base da humanização, levando à conclusão aparentemente paradoxal de que, na psicanálise, o conceito de humano é uma derivação do assassinato, ou seja, da própria negação do humano (FÉDIDA, 1995).

A existência dessa reminiscência filogenética do terror e da violência esqueci-da – ou uma reminiscência de alhures, na dicção de Zygouris (1998) – explicaria as sucessivas revivências da experiência da horda primeva, na forma de remodelações e de modo sempre imbuído de ambivalência emocional, como nos cultos religiosos e em outras manifestações de grupo15, nas quais se celebra o líder assassinado, expiando-se o sentimento de culpa, e simultaneamente reafirma-se a própria inde-pendência, reafirmando-se o assassinato16. Reviver o pai primevo na figura do líder do grupo é uma forma de negar o próprio ato; negar o assassinato esquecido. A predisposição filogenética que propicia a formação da massa e justifica a sedução das multidões reside, portanto, na expectativa alucinatória de expiação de uma culpa inconsciente. Nesse sentido:

As características misteriosas e coercitivas das formações grupais, presentes nos fenômenos de sugestão que as acompanham, podem assim, com justiça, ser remontadas à sua origem na horda primeva. O líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade; na expressão de Le Bon, tem sede de obediência. O pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego. (FREUD, 1996a, p. 138).

15 Nesse sentido, cf. a abordagem freudiana do sistema religioso judaico-cristão, realizada em Moisés e o Monoteísmo (FREUD, 2004).16 A hipótese da horda primeva, relatada por Freud (1999) e baseada nas idéias de Darwin, é vista por muitos como uma mera alegoria, representativa de uma realidade psíquica, não social. De acordo com Freud, contudo, aponta-se uma grande possibilidade de que o assassinato de um líder primevo tenha efetivamente ocorrido, dado que, para o homem primitivo, “é antes o ato que constitui um substitutivo do pensamento” (FREUD, 1999, p. 164). Para a investigação psicanalítica, no entanto, a ocorrência no plano fático do mito não se afigura como elemento de importância, visto que tal investigação centra-se em real-idades psíquicas. Outra observação que se impõe, ao considerar-se a influência psicológica da hipótese da horda primeva na sociedade atual, é a necessidade de que se pressuponha a existência de uma mente coletiva, “que torna possível negligenciar as interrupções dos atos mentais causadas pela extinção do indivíduo”, vez que, sem tal pressuposição, “a psicologia social não poderia existir” (FREUD, 1999, p. 161).

211Notas para um estudo das facções criminosas brasileiras à luz da psicanálise210 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Diante de ambas as dimensões – ontogênica e filogênica – desnudadas por Freud (1996a) e que estão na base dos fenômenos psíquicos de massa, chega-se à conclusão de que, diferentemente do que se acreditava anteriormente, o grupo não condiciona o indivíduo externamente, mas tão somente promove a queda das repres-sões, deixando aflorarem conteúdos pré-existentes na vida psíquica do indivíduo.

É plenamente possível vislumbrar-se uma relação entre a horda primeva e a formação das facções criminosas17. As privações extremas impostas pelo cárcere a contingentes gigantescos de pessoas desumanizadas pelo meio em que são coagi-das a habitar, por certo, criam um ambiente propício à revolta e à necessidade de afir-mação de uma independência, o que se dá à revelia dos valores sociais responsáveis pela legitimidade do funcionamento do sistema penal e penitenciário.

Sobre as condições dos estabelecimentos penais brasileiros, onde a regra con-siste na violação sistemática de direitos humanos, vale trazer a conclusão constante do relatório da recente Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada para investigar a realidade do sistema carcerário:

Apesar de normas constitucionais transparentes, da exce-lência da lei de execução penal e após 24 anos de sua vi-gência e da existência de novos atos normativos, o sistema carcerário nacional se constitui num verdadeiro inferno, por responsabilidade pura e nua da federação brasileira através da ação e omissão dos seus mais diversos agentes. (Pro-curadoria Geral dos Direitos do Cidadão. Disponível em 12 de novembro no sítio eletrônico < http://pfdc.pgr. mpf.gov.br/grupos-de-trabalho/sistema-prisional /CPIsistemacarce-rario.pdf>).

Poucos exemplos parecem mais claros que o sistema carcerário brasileiro quando se quer demonstrar a potencialidade do Estado de tornar-se um agente traumático. Essa face do Estado já havia sido detectada por Freud nas formulações acerca da neurose de guerra (1996). Na situação de guerra, segundo Endo (2005, p. 119) o Estado assume contornos de pai da horda, atualizando o terror de alhures e propiciando que a violência, a força e o ódio voltem a ocupar um lugar central, onde antes figurava a linguagem. Nas palavras do autor:

Com mão de ferro, o Estado, por sua vez, abdica de todas as suas obrigações e deveres e ressurge como tirano, como pai da horda, pondo abaixo os mecanismos que mantinham os filhos em relativa paz. (ENDO, 2005, p. 119)

Não se trata de qualquer exagero mencionar que as condições de muitos dos presídios brasileiros assemelham-se àquelas de campos de concentração, voltados a promover a completa espoliação da dignidade e da identidade do interno. O caráter corriqueiro das violências absurdas e das violações de direitos humanos faz do Es-

17 Note-se que não se trata aqui de mero procedimento analógico, mas de aplicação do ferramental psi-canalítico a um fenômeno social.

tado, nessa seara, um agente traumático, o que, por certo, traz consequências das mais diversas no psiquismo das pessoas sujeitas a essa opressão.

O caráter paterno da lei e do Estado é apontado por Goodrich (1997) como uma das principais temáticas possíveis na aproximação entre o direito e a psicanáli-se. O autor identifica na relação entre o sujeito e a autoridade institucional ou a norma a ambivalência emocional que fundamenta a relação entre pai e filho. Assim, segundo Goodrich (1997, p. 10), “no nível institucional, a imagem da autoridade, a efígie do poder social ou a representação de um pertencimento comum são objeto não apenas de medo, mas também de fascinação e amor”18.

Nas situações em que o Estado atua como agente traumático, no entanto, im-pondo aos sujeitos uma recusa completa e agindo com uma violência indizível, a sua imagem paterna funde-se com a reminiscência da violência humanizante. Por trás da imagem paterna do Estado surge o terror do pai da horda. Em remodelação do mito freudiano, portanto, os filhos, identificados pelo ódio, passam a conspirar a morte do pai. Surge aí uma massa passível de todos os fenômenos psíquicos coletivos descritos por Freud (1996a).

Desde essa perspectiva, aflora um dado já muito afirmado: o tratamento desu-mano e o descumprimento dos direitos do preso resguardados pela Lei de Execuções Penais e pela própria Constituição Federal criam um caldo de cultura extremamente suscetível ao surgimento de uma resposta da massa carcerária. Note-se que o ar-tigo 3º da LEP é claro ao preconizar que, ao condenado, serão garantidos todos os direitos não atingidos pela lei ou pela sentença condenatória, de modo que se ordena que “a execução, tanto quanto possível, possa assemelhar-se às relações da vida normal” (MIRABETE, 2007, p. 118). A inefetividade da legislação que trata da execução penal, contudo, é profusamente conhecida e divulgada, de modo que, em um primeiro momento – antes da internalização dos ganhos secundários oriundos da atividade ilícita – os agrupamentos de encarcerados fundaram-se na simples meta de lutar pelo cumprimento das normas legais19.

Com efeito, é comum que os integrantes desses grupos os apontem como reações legítimas às ilegalidades de que são vítimas dentro dos estabelecimentos prisionais. Nesse sentido, por exemplo, a facção conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC) teve como primeiro alvo de enfrentamento o estabelecimento penal anexo à Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté – o “Piranhão” – apontado pelos presos como local de prática rotineira de atos de tortura e classificado como “campo de concentração” pelo estatuto da facção (JOZINO, 2004). O estatuto também menciona o “massacre do Carandiru”. Transcreve-se, na íntegra, o item 13 do Estatuto do PCC:

Temos de permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 2 de outubro de 1992,

18 Tradução livre do autor.19 Não se pode ignorar, ainda, o papel da “mortificação do eu”, apontada por Goffman (2005) como princi-pal efeito deletério da instituição total sobre a personalidade do interno, como facilitadora da formação de grupos. Na medida em que a instituição despoja a pessoa de sua individualidade, por certo será a massa mais propensa à identificação mútua e a assunção dos mesmos lemas e ideais.

213Notas para um estudo das facções criminosas brasileiras à luz da psicanálise212 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

onde 111 presos foram covardemente assassinados, mas-sacre esse que jamais será esquecido na consciência bra-sileira. Porque nós do Comando vamos sacudir o sistema e fazer essas autoridades mudarem a política carcerária, desumana, cheia de injustiça, opressão, tortura e massa-cres nas prisões. (JOZINO, 2004, p. 37)

Ocorre que, formadas as facções em oposição às condições do sistema car-cerário, observa-se que, dentro dessas próprias organizações, reproduzem-se as estruturas de poder contra as quais se rebelou a própria massa. No lugar de um Estado repressor, colocam-se líderes tirânicos e reafirmam-se imposições de um po-der disciplinar típico das regras formais e informais do cárcere20. O chamado estatuto do PCC, bastante noticiado pela imprensa, é um exemplo claro de uma reprodução quase caricata de maneiras estatais de imposição do poder político. Trata-se de um conjunto de regras de conduta impostas aos membros da facção que se encontra redigido em artigos, assim como um texto de lei, e no qual há regras absolutamente rígidas, como por exemplo: “7. aquele que estiver em liberdade ‘bem estruturado’, mas que esquecer de contribuir com os irmãos que estão na cadeia, será condenado à morte sem perdão” (AMORIM, 2007, p. 389).

Por meio desse tipo de organização, que revive laços de poder contra os quais outrora se lutou, as facções criminosas reafirmam sua independência e, simultane-amente, tentam resgatar de forma distorcida valores – como o companheirismo e a lealdade – sob a égide dos quais se criaram seus membros quando ainda não haviam sido definitivamente postos em posição de antagonismo em relação à sociedade.

Pouca perplexidade gera, portanto, o fato de que as facções criminosas, longe de caminharem no sentido da implosão do poder disciplinar imanente ao sistema carcerário, parecem integrar-se à malha social das relações de poder, criando outras instâncias de exercício da dominação e auxiliando o próprio sistema penal em sua tarefa de fabricação da delinquência. A reação social exacerbada à criminalidade organizada dá legitimidade à hipertrofia das instâncias formais de controle, o que possibilita a proliferação de uma legislação de pânico que restringe direitos funda-mentais de forma generalizada, tendo-se como resultado um jogo de soma positiva na economia do poder.

Em outros termos, portanto, ainda que surgidas como reação à violência do Estado tirânico, as facções não se constituíram em organizações revolucionárias, mas sim, em instâncias também tirânicas de poder. Assim como no mito freudiano, o assassinato do pai faz com que ele torne-se mais forte, porque suas interdições são internalizadas. À barbárie do Estado sobrepõe-se a barbárie das facções, em

20 A imposição de relações de poder disciplinar por parte das associações de encarcerados é reconhecida por Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado como líder do Primeiro Comando da Capital. Ao ser ouvido pela Câmara dos Deputados, durante a CPI do tráfico de armas, ele disse: “Em todas as cadeias do Estado de São Paulo, todas as cadeias do Rio de Janeiro, todas as cadeias do Rio Grande do Sul, todas as cadeias do Brasil em geral existe uma disciplina interna criada pelos próprios presos. É óbvio” (transcrição ipsis verbis realizada pelo Departamento de Taquigrafia da Câmara dos Deputados). Ainda durante esse depoimento, Marcola atribui às facções criminosas a diminuição de atos de violência entre os próprios presos e do uso de determinadas drogas de alto poder destrutivo.

duas remodelações sucessivas de um mesmo tema, de uma mesma reminiscência ontogênica e filogênica.

A abordagem psicanalítica da temática das facções criminosas, portanto, leva à conclusão de que uma política criminal repressiva e racionalmente desorientada, que excepciona direitos humanos e esbarra em um sem-número de inconstituciona-lidades, não tem outro efeito que não o agravamento do problema. Tem-se assistido a uma produção legislativa que se aproxima do mero acting out, que se afasta do pensamento e da ética ao remodelar nas feições do Estado a face terrível do pai da horda, onipotente e narcísico, que se recusa terminantemente ao diálogo. Em sentido contrário, contudo, apenas uma política criminal que se preocupasse com a abertura de espaços de linguagem e comunicação poderia fazer face ao fenômeno. A violência torna-se a única voz possível em um contexto em que não há espaço para o diálogo, castrando-se de pronto qualquer possibilidade de elaboração e oferecimento de respostas racionais a problemas sociais.

A proposta de reintegração social elaborada por Baratta (1999, p. 203-205), que vê no crime uma resposta individual a um problema social e político coletivo, centra-se na substituição dessas respostas irracionais por respostas racionais, que tragam à tona, de forma politicamente ordenada, as demandas das classes subalter-nas21. A realidade brasileira nos mostra a urgência de que se desenvolva uma escuta adequada a essas demandas. O Estado, contudo, simplesmente reprime qualquer voz que queira extravasar os muros do cárcere. Pela manipulação do medo, assim, legitima suas investidas autoritárias. Dar voz ao cárcere e estar disposto a ouvi-la e a atender suas demandas legítimas, fomentando a dignidade humana do encarcerado, como não poderia deixar de ser, é o fulcro de uma política criminal que, orientada pelos referenciais teóricos psicanalíticos aqui expostos, poderia fazer frente ao pro-blema atual das facções criminosas.

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21 Nas palavras do autor: “É esta a alternativa colocada em face do mito burguês da reeducação e da reinserção do condenado. Se, de fato, os desvios criminosos de indivíduos pertencentes às classes sub-alternas podem ser interpretados, não raramente, como uma resposta individual, e por isso não ‘política’, às condições sociais impostas pelas relações de produção e de distribuição capitalistas, a verdadeira ‘reeducação’ do condenado é a que transforma uma reação individual e egoísta em consciência e ação política dentro do movimento de classe. O desenvolvimento da consciência da própria condição de classe e das condições da sociedade, por parte do condenado, é a alternativa posta à concepção individualista e ético-religiosa da expiação, do arrependimento, da Sühne” (BARATTA, 1999, p. 204).

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O RECONHECIMENTO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO E A INTERNAÇÃO HOSPITALAR DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

Elisabete Gaidei Arabage CiriloAssistente Social pela Universidade Estadual de Londrina, Pós Graduada em Trabalho Social com Famílias pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas Socioeconômicos (Imbrape). Agente de Defensoria - Assistente Social do Núcleo de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Michelle M. Machado MirandaPsicóloga pela Universidade Estadual Paulista – UNESP-FCL Campus de Assis. Especialista em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo – SES-SP. Agente de Defensoria-Psicóloga da Regional Norte - Oeste-Capital da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

1. INTRODUÇÃO

Questões relacionadas a cidadãs e cidadãos LGBT (lésbicas, gays, bissexu-ais, travestis e transexuais) têm ocupado espaços cada vez mais amplos na mídia nacional, estejam elas relacionadas a conquistas de direitos, como a manifestação favorável do Superior Tribunal Federal (STF) sobre a união estável homossexual1, ou à violação destes, como os recentes e repetidos casos de agressões físicas a homos-sexuais ocorridos em regiões consideradas nobres e elitizadas da capital paulista.

1 Em maio de 2011 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a equiparação da união estável homossexual à heterossexual. Não há uma equiparação plena de direitos, mas essa decisão trouxe avanços importantes para a garantia de direitos do casal homossexual – o casamento civil, entretanto, ainda não é realizado.

219O reconhecimento das identidades de gênero e a internação hospitalar...218 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Mesmo contando com alguns mecanismos legais de proteção - ainda que tími-dos - e com um movimento forte e estruturado, a população LGBT convive diariamen-te com o descaso, o preconceito e a discriminação. Para Rodrigues (2011, p. 33), “se é verdade que cresce o movimento LGBT e ganha força a agenda anti-homofóbica no debate público nacional, também crescem as reações articuladas e intolerantes contra qualquer menção à promoção de direitos dessa população”.

Para Carrara e Lacerda (2011), há uma forte tensão emocional que cerca a homossexualidade e as identidades de gênero não convencionais, pois

em torno delas, forças contrárias parecem se confrontar, apontando para direções opostas. Há permanências, con-cepções arraigadas segundo as quais a homossexualidade é o lugar da injúria, da doença, do mal. Há também impor-tantes mudanças, que fazem crer na lenta emergência de uma sociedade mais igualitária e justa. Algumas perma-nências estão lá onde esperaríamos que estivessem – as velhas gerações tendem a ser mais “conservadoras”, por exemplo; outras, como é o caso da homofobia notável, ex-pressa pelos homens mais jovens, são mais perturbadoras, pois aparecem justamente onde não as esperávamos, colo-cando em xeque o sentido mais geral que gostaríamos que o processo de mudança tomasse (CARRARA; LACERDA, 2011, p. 86-87)

Nesse contexto, chegou ao conhecimento do Núcleo de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito (NCDRP) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, de modo informal, que a identidade de gênero de travestis e transe-xuais não é respeitada em alguns casos de internação em hospitais da rede pública do município de São Paulo. Aqui são consideradas internações por adoecimentos comuns a toda a população, e não por questões que poderiam ser consideradas específicas dessa população, como as rela-cionadas à hormonioterapia, implante de silicone e à cirur-gia de transgenitalização, por exemplo.

Diante de tais informações e com o objetivo de verificarmos como essa questão é tratada nos serviços que compõem a atenção secundária e terciária à saúde no SUS, o NCDRP encaminhou ofícios a hospitais públicos da capital paulista, solici-tando informações acerca da estrutura oferecida a travestis e transexuais nos casos de internação - considerando a localização dos leitos e uso do banheiro -, além do tratamento nominal que é dispensado, conforme determina o Decreto n.º 55.588 de 20102, que dispõe sobre o tratamento nominal a pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo.

2 Disponível em: http:--www.al.sp.gov.br-repositorio-legislacao-decreto-2010-decreto%20n.55.588,%20de%2017.03.2010.htm. Acesso em:

A partir das respostas colhidas, pretendemos iniciar uma reflexão sobre o acolhimento e o atendimento dispensado a esses grupos, tendo em vista o reconhe-cimento de suas especificidades e o princípio da promoção da equidade no âmbito do Sistema Único de Saúde.

2. O SUS E A NECESSIDADE DE POLÍTICAS ESPECÍFICAS EM SAÚDE

Nossa atual política de saúde é regida em todo o território nacional pelo Siste-ma Único de Saúde – SUS, preconizado pela Constituição de 1988 e afirmado pelas Leis 8.080 e 8.142 de 1990, que regulam as ações e serviços em saúde prestados por órgãos e instituições públicas, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. Tendo como premissa que “a saúde é um direito funda-mental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”3, o SUS tem como princípios básicos a universalidade, a equidade e a integralidade em seus serviços e ações, operando dentro das diretrizes de descen-tralização da gestão, regionalização e participação social.

O direito ao acesso universal e igualitário à saúde, segundo Nogueira e Mioto (2006), rompeu um ciclo de desigualdade histórica que classificava os brasileiros em cidadãos de primeira ou segunda classe. Para as autoras, “no plano da relação Estado-sociedade essa indicação significou o reconhecimento que a atenção às necessidades de saúde não pode ser atribuída ao mercado” (NOGUEIRA; MIOTO, 2006, p. 222).

Se o nosso Sistema Único de Saúde é o responsável pela construção de políti-cas públicas que contemplem a universalidade, a integralidade e a equidade em seus programas, ações e serviços, cabe ao Estado promover saúde para os diferentes grupos populacionais, considerando as suas especificidades no desenvolvimento de estratégias de acolhimento e atenção. Como colocam Ferraz e Kraiczyk (2010, p. 71), “o desafio posto pelo Sistema Único de Saúde é de que a política de saúde no Brasil se construa e se implemente na perspectiva do acesso universal, reconhecendo as desigualdades existentes no interior da sociedade e criando resposta para minimizá--las”.

A partir dos princípios do SUS e da visão ampliada de saúde que a Organiza-ção Mundial de Saúde4 apresenta, considerando-a não apenas como a ausência de doenças, mas uma situação de perfeito bem-estar físico, mental e social,

enfrentar a complexidade dos determinantes sociais da vida e da saúde das pessoas e coletividades requer [...] também o reconhecimento dos fatores que se entrecruzam, maximizando a vulnerabilidade e o sofrimento de grupos específicos. Nesse contexto, todas as formas de discrimina-ção, como no caso da homofobia, devem ser consideradas como produtoras de doença e sofrimento. (SAÚDE, 2008)

3 Lei 8080, de 19 de setembro de 1990, artigo 2º. Disponível em: http:--www.planalto.gov.br-ccivil_03-Leis-L8080.htm. Acesso em:

4 Wikipedia. Disponível em http:--pt.wikipedia.org-wiki-Sa%C3%BAde. Acesso em:

221O reconhecimento das identidades de gênero e a internação hospitalar...220 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

O direito à saúde integral desses grupos sociais, como no caso da população LGBT, destacando as travestis e transexuais, demanda das políticas o reconhecimen-to das vulnerabilidades a que estão expostos e a criação de iniciativas que contribuam para o enfrentamento das condições de desigualdade relacionadas à saúde destes grupos. É do reconhecimento dessas vulnerabilidades que surge a necessidade da construção de políticas específicas em saúde na perspectiva de promover a equidade, minimizando a discrepância existente entre grupos que, socialmente, encontram-se em situação desigual.

2.1. A INCLUSÃO DAS CATEGORIAS GÊNERO E IDENTIDADE DE GÊNERO NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS DE SAÚDE

Pensando na superação dessas desigualdades, faz-se necessário a incorpo-ração da dimensão de gênero nas políticas desenvolvidas pelo SUS, quando as di-versas formas de discriminação social e manifestação de preconceitos por orientação sexual e identidade de gênero são produtoras de sofrimento, interferindo no processo saúde-doença dos sujeitos, como reconhece o Ministério da Saúde, no informe técni-co Saúde da População de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, de 2008:

Com o atual alargamento da perspectiva da integralidade da atenção à saúde desses segmentos populacionais brasileiros, reconhece-se que a orientação sexual e a identidade de gênero constituem situações muito mais complexas e são fatores de vulnerabilidade para a saúde. Tal reconhecimento deve-se não apenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas, mas também por exporem a população GLBT a agravos decorrentes do estigma, dos processos discriminatórios e de exclusão so-cial, que violam seus direitos humanos, entre os quais, o direito à saúde, à dignidade, à não discriminação, à autonomia e ao livre desenvolvimento (SAÚDE, 2008, p. 571).

Considerando gênero como sendo “o caráter fundamentalmente social das dis-tinções baseadas no sexo” (LOURO apud SCOTT, 1997, p. 21), ou seja, a construção social e histórica produzida sobre esses corpos sexuados, entendemos, assim como Ferraz e Kraiczyk (2010), que essa dimensão reguladora da sociedade produz desi-gualdades, inclusive nos modos de adoecimento, ao atribuir diferentes significados, categorizando e valorizando as diferenças sexuais.

Gênero não se trata da construção de papéis masculinos ou femininos, pois “papéis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade esta-belece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar” (LOURO, 1997, p. 24). Mais do que isso, o processo de construção do feminino e do masculino faz parte do sujeito, de sua constituição; expressa as múltiplas formas que as masculinidades e as feminilidades podem assumir. E essa construção – a dos gêneros - é um dos domínios constituintes da identidade dos sujeitos; é a chamada identidade de gênero, que pode ou não corresponder ao nosso sexo biológico.

Pensando nas travestis e transexuais, a identidade de gênero, não é concor-dante com o sexo biológico, como determina a norma heterossexual, o que faz com que a vivência da sexualidade e as expressões de gênero desses grupos sejam reco-nhecidas socialmente como desviantes perante a norma.

Partindo do reconhecimento de que o preconceito e a exclusão social interferem no processo saúde-doença dos sujeitos, podemos admitir que “todas as formas de discriminação como no caso das homofobias que compreende lesbofobia, gayfobia, bifobia, travestifobia e transfobia, devem ser consideradas na determinação social de sofrimento e de doença”, como aponta o texto base da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2010, p. 5).

Neste sentido, o SUS reconhece que as condições de vulnerabilidade vivencia-das por determinados grupos precisam ser enfrentadas e, ao longo de sua história, vem incorporando a categoria gênero na construção de suas políticas.

Há, segundo Casemiro (2011),

um reconhecimento público de que a orientação sexual e a identidade de gênero constituem situações específicas e complexas, na vulnerabilidade à saúde e não apenas por questões de práticas sexuais e sociais, mas pelos agrava-mentos de processos discriminatórios, estigmas e exclusão social, violando seus direitos entre os quais o direito à saú-de, dignidade, autonomia e liberdade (CASEMIRO, 2011, p. 4)

O Ministério da Saúde, ao reconhecer as especificidades e vulnerabilidades da população LGBT no que se refere ao processo saúde-doença5, apresentou, em 2010, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, a ser implementada no Sistema Único de Saúde e seguindo as diretri-zes expressas no Programa Brasil sem Homofobia6.

Outros avanços recentes no atendimento à saúde da população LGBT foram: a criação do Comitê Técnico de Saúde da População LGBT no Ministério da Saúde, em 2004; a representação da população LGBT no Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 2006; a divulgação, pelo Ministério da Saúde, da Carta de Direitos dos Usuários do SUS, onde este reconhece a categoria identidade de gênero e institui o uso do nome social nos cadastros do SUS, em 2006; a 13ª Conferência de Saúde7, em 2007;

5 Representa o conjunto de relações e variáveis que produz e condiciona o estado de saúde e doença de uma população, que se modifica nos diversos momentos históricos e de desenvolvimento científico da humanidade. Para Nogueira e Mioto (2006), não é possível compreender ou definir as necessidades de saúde sem levar em conta que elas são produtos das relações sociais e destas com o meio físico, social e cultural. Dentre os diversos fatores determinantes das condições de saúde incluem-se os condicionantes biológicos (idade, sexo, características herdadas pela herança genética), o meio físico (que inclui condi-ções geográficas, características da ocupação humana, disponibilidade e qualidade de alimento, condições de habitação), assim como os meios socioeconômicos e cultural, que expressam os níveis de ocupação, renda, acesso à educação formal e ao lazer, os graus de liberdade, hábitos e formas de relacionamentos interpessoais, a possibilidade de acesso aos serviços voltados para a promoção e recuperação da saúde e a qualidade de atenção pelo sistema prestado.6 O Programa Brasil sem Homofobia, lançado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos em 2004, apresenta um conjunto de ações destinadas à promoção do respeito à diversidade sexual e ao combate as várias formas de violação dos direitos humanos.7 Esta conferência inclui neste debate as especificidades de orientação sexual e identidade de gênero em uma política nacional voltada para a população LGBT, além da “necessidade de implementação de

223O reconhecimento das identidades de gênero e a internação hospitalar...222 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

realização do Seminário Nacional de Saúde da População LGBT na Construção do SUS, em 2007; regulamentação do Processo Transexualizador no âmbito do SUS, em 2008; realização da I Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra-vestis e Transexuais, em 2008 e apresentação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em 2010.

Considerando que as diretrizes do SUS são a base para a construção de po-líticas públicas de saúde, o Estado de São Paulo criou em 2009 o Ambulatório de Atendimento Integral a Travestis e Transexuais, serviço pioneiro que procura, através do acolhimento e atendimento das especificidades dessa população, aproximá-la da atenção integral à saúde, o que é, sem dúvida, o seu maior desafio. Ainda no Esta-do de São Paulo está localizado, além de serviço de retirada de silicone industrial (Hospital Estadual de Diadema), um dos quatro centros de referência para a cirurgia de transgenitalização do país, o Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).8

Para Lionço (2008),

Se, por um lado, a universalidade do direito à saúde como direito de cidadania prevê o princípio da igualdade na pro-posição de políticas que alcancem a totalidade dos cida-dãos, a focalização de ações e políticas específicas é um recurso necessário, muitas vezes, para a própria efetivação da universalidade, mediante promoção da equidade entre grupos em situação desigual. (LIONÇO, 2008, p. 12)

A mesma autora indica ainda como fundamental

reafirmar a universalidade dos direitos humanos, dentre os quais o direito à saúde, resgatando GLBT com sujeitos de direitos, já que os processos de estigma e discriminação vêm comprometendo seu exercício de cidadania. Casos resguardados os princípios ético-políticos do SUS em sua efetiva consolidação, o sistema de saúde brasileiro pode ser uma ferramenta política e social privilegiada para o combate a homofobia e demais estratégias correlatas de violação dos direitos humanos fundamentais. (LIONÇO, 2008, p. 5)

práticas de educação permanente para os profissionais de saúde incluindo a temática GLBT; definição de normas não discriminatórias sobre a doação de sangue, preservando–se o controle de risco; realização de pesquisas científicas, inovações tecnológicas e compartilhamento dos avanços terapêuticos relativos ao tema; respeito ao direito à intimidade e à individualidade dos grupos e indivíduos pertencentes às populações GLBT; necessidade de adotar o protocolo de atenção às pessoas em situação de violência; garantia dos direitos sexuais e reprodutivos extensiva a esses segmentos; implementação de campanhas e revisão dos currículos escolares; e mudanças nos formulários, prontuários e sistemas de informação do SUS” (BRASIL, 2008).8 Os outros são: o Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, o Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro (RJ) e o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia.

E é do reconhecimento que os processos sociais de estigmatização e exclusão contribuem para o adoecimento dessa população, que a incorporação da dimensão gênero na construção de políticas públicas em saúde se traduz como estratégia necessária ao enfrentamento da questão. O SUS, como responsável pela implemen-tação de políticas que contemplem as necessidades dos diferentes grupos sociais, tem esse importante papel, contribuindo para a garantia dos direitos das travestis e transexuais no acesso à saúde, assim como dos demais grupos que compõem a população LGBT.

3. A PESQUISA

Ao analisar as respostas dos trinta e nove (39) ofícios enviados, inferimos que o Decreto n.º 55.588, que dispõe sobre o uso do nome social, é cumprido quase pela totalidade dos serviços, com trinta e sete (37) respostas afirmativas9.

Quanto ao respeito à identidade de gênero na distribuição de leitos e uso de banheiros durante a internação hospitalar, as respostas dos hospitais são inquie-tantes: apenas quatro (4) dos trinta e nove (39) hospitais manifestaram respeito à identidade de gênero. Cabe ressaltar que nesses casos são consideradas também as necessidades dos pacientes em relação ao diagnóstico e prognóstico e à disponi-bilidade de vagas.

Outras seis respostas referem clara desconsideração à identidade de gênero, com distribuição de leitos “de acordo com a especialidade médica”, “critérios de ur-gência e patologia”, “critérios técnicos e sexo biológico”, “não tem como garantir leitos exclusivos para travestis/trans”, “ficam sozinhos por isolamento por patologia ou com outro do mesmo diagnóstico e sexo” (sic). Uma resposta indica “internação na clínica mista e banheiros femininos e unissex” (sic).

Nove instituições não responderam e/ou não entenderam nossos questiona-mentos, e algumas respostas são superficiais e evasivas: “acomodações de acordo com as necessidades do paciente na internação”, “atende de acordo com a estrutura disponível”, “necessidades individuais são consideradas”, “atende conforme a de-manda”, “acordo entre usuário e equipe assistencial”, “quartos separados em respeito às diferenças sexuais” (sic).

As demais respostas mesclam desconhecimento do assunto associado a iniciativas preconceituosas e discriminatórias: “Quartos exclusivos para travestis e transexuais”, “funcionários orientados a manter a discrição”, “quartos individuais com banheiro privativo”, “disponibilizados para homossexual quartos com dois leitos e banheiro”, “deve-se disponibilizar enfermaria exclusiva para travestis e transexuais no momento da internação”, “propõe disponibilizar os leitos vagos de isolamento a travestis e transexuais”, “disponibiliza leitos femininos, masculinos, transexuais, tra-vestis, adultos, pediátricos, isolamento”, “nossa estrutura física foi concebida em mo-mento anterior ao Decreto, motivo pelo qual não contamos com banheiros específicos para travestis e transexuais” (sic).

A oferta de banheiros unissex foi apontada por três (3) hospitais.

9 Um não respondeu e outro indicou que o assunto será tema de discussão interna para organização de protocolo de atendimento.

225O reconhecimento das identidades de gênero e a internação hospitalar...224 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

4. ANÁLISE E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que, desde o nascimento, o nome indica, além da denominação, a determinação de normas e valores relativos ao gênero e à sexualidade, bem como à forma de se relacionar com o mundo, tomamos as reflexões de Diniz (2010, p.22), quando afirma que

O conceito de direito à identidade extrapola qualquer conteúdo que invoca tão somente regras de medicina para definir o sexo jurídico e o nome civil de uma pessoa, além de rechaçar qualquer tentativa de impor regras morais para determinar comportamentos. A identidade de uma pessoa é um construído social e cultural que advém de sua autonomia de ser humano livre, pensante e capaz de determinar suas próprias escolhas.

A relevância da utilização do nome social como facilitador da inclusão de tra-vestis e transexuais nos serviços públicos é reforçada por Biancarelli (2010, p.54), quando argumenta que

segundo a Organização Mundial de Saúde e alertas feitos por organizações ativistas, o uso do nome civil em lugar do nome social provoca enorme constrangimento entre travestis e transexuais. É considerada a principal causa da evasão escolar e do afastamento dessa população dos serviços públicos.

Carvalho (2009, p. 463) ainda pondera sobre a relação entre identidade e as transformações corporais como parte do processo de ajuste do corpo à aparência do gênero identificado e pretendido:

Essas modificações integram a identidade construída pelo indivíduo com base nos referenciais normativos socialmente atribuídos ao gênero a que julga pertencer. Nesse sentido, os documentos públicos de registro, ao atestarem de forma taxativa qualidades não mais existentes, constituem fonte de estigma à pessoa do transexual e contribuem para a sua exclusão social.

A utilização do nome social requer, portanto, além de normatização jurídica, investimentos em recursos humanos com a oferta constante de capacitação para o acolhimento e atendimento, para que travestis e transexuais tenham garantidos a in-tegração social, o pleno desenvolvimento de suas identidades e o direito ao exercício pleno de sua cidadania.

Quanto ao respeito à identidade de gênero na internação hospitalar, especial-mente na distribuição de leitos e uso de banheiros, o número baixo de instituições que consideram outros fatores além do sexo biológico e da patologia na internação nos impelem a reflexões importantes e fundamentais para que avanços possam ser construídos e conquistados.

Vivemos em uma sociedade abertamente heteronormativa, onde expressões diversas da sexualidade humana são ignoradas e execradas, dificultando não apenas as relações sociais e a vida cotidiana de travestis e transexuais, mas alocando a elaboração de políticas públicas a esses grupos a uma agenda de segunda categoria, sem prioridades e sem visibilidade. Além disso, é preciso compromisso político para

que as propostas ‘saiam do papel’ e se concretizem como vetores de transformação social.

Indicamos a efetivação da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, de 2010, na qual destacamos as seguin-tes Diretrizes Gerais:

• Inclusão de variáveis que caracterizem a diversidade populacional nos processos de formulação, implementação de políticas e programas no SUS envolvendo: orientação sexual, identidade de gênero, ciclos de vida e raça--etnia;

• Eliminação das homofobias e demais formas de discriminação e violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no âmbito do SUS, contribuindo para as mudanças na sociedade em geral;

• Inclusão da temática da orientação sexual e identidade de gênero de lésbi-cas, gays, bissexuais, travestis e transexuais nos processos de educação permanente desenvolvidos pelo SUS incluindo os trabalhadores da saúde, conselheiros e lideranças sociais.

Além dos seguintes Objetivos Específicos:

• Instituir a Política de Saúde LGBT como uma estratégia de promoção de mais equidade no SUS;

• Qualificar a rede de serviços do SUS para a atenção e o cuidado integral à saúde de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais10;

• Incluir e qualificar ações e procedimentos na oferta de atenção e cuidado na rede SUS, adequando às especificidades e necessidades da população LGBT;

• Ampliar o acesso de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais aos serviços de saúde do SUS, garantindo o respeito às pessoas e acolhimento com qualidade e resolução de suas demandas e necessidades;

• Monitorar, avaliar e difundir os indicadores de saúde e de serviços para lés-bicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais;

• Fortalecer a participação de representações LGBT nos Conselhos e confe-rências de saúde;

• Garantir o uso do nome social de travestis e transexuais de acordo com a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde;

• Promover o respeito aos grupos LGBT em todos os serviços do SUS, parti-cularmente evitar constrangimentos no uso de banheiros e nas internações em enfermarias.

Resguardando as especificidades das travestis e transexuais no que se refe-re à identidade de gênero e ao processo saúde-doença na construção de políticas

10 Nesse sentido o NCDRP encaminhou, após análise das respostas dos ofícios mencionados, RECOMENDAÇÂO aos hospitais sobre acolhimento e atendimento a travestis e transexuais nos serviços de saúde (em anexo).

227O reconhecimento das identidades de gênero e a internação hospitalar...226 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

específicas em saúde, há de se destacar que a efetivação daquelas já existentes é fundamental para avançarmos nesse debate pela garantia da equidade no SUS.

A incorporação da categoria gênero na construção de novas estratégias, as-sim como a consolidação das diretrizes propostas pela Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, e pelas demais políticas específicas, permite a construção de um Sistema Único de Saúde universal e equânime, que reconhece as desigualdades de gênero na produção do sofrimento, ao mesmo tempo em que cria respostas para enfrentá-las.

Para tanto, os desafios são grandes e a condução desse processo requer compromisso de todos os setores da sociedade, não somente das instâncias go-vernamentais, como também da sociedade civil, na luta pelo direito das pessoas e populações à saúde.

REFERÊNCIAS

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______. Portaria n.º 675/GM, de 30 de Março de 2006. Aprova Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, que consolida os direitos e deveres do exercício da cidadania na saúde em todo o país. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31mar. 2006. Seção I, p.131.

______. Secretaria Executiva. Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquis-tas. Brasília, DF: [s.n.], 2000.

CARRARA, Sérgio; LACERDA, Paula. Viver sob ameaça: preconceito, discriminação e violência homofóbica no Brasil. In: Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. p. 73-87.

CARVALHO, Koichi Kameda de Figueiredo. Transexualidade e cidadania: a alteração do registro civil como fator de inclusão social. Revista Bioética. 17(3): 463-471.

CASEMIRO, Luiza Carla. A política de saúde, direito de todos e dever do Estado: uma realidade para travestis e transexuais. Disponível em: http://www.itaporanga.net/genero/3/08/02.pdf. Acesso em: 24 fev.2012. Acesso em:

DINIZ, Maíra C. O direito fundamental à identidade: travestilidade e transexualidade. 2011. Monografia (Especialização em Direitos Humanos). Escola da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo.

FERRAZ, D.; KRAICZYK, J. Gênero e políticas públicas de saúde – construindo respostas para o enfrentamento das desigualdades no âmbito do SUS. Revista de Psicologia da UNESP. v. 9(1), 2010.

LIONÇO, Tatiana. Que direito à saúde para a população LGBT? Considerando di-reitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 17, n.º 2, 2008, p. 11-21.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós--estruturalista. Petrópolis–RJ: Vozes, 1997.

NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro; MIOTO, Regina Célia Tamaso. Desafios atuais do Sistema Único de Saúde – SUS e as exigências para os assistentes sociais. In: Ser-viço Social e Saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: Cortez, 2006, p. 218-241.

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RODRIGUES, Julian. Direitos humanos e diversidade sexual: uma agenda em cons-trução. In: Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011, p. 23-37.

SAÚDE da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Revista de Saúde Pública, vol. 42, n. 3, São Paulo, jun/08. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artettext&pid=S0034-89102008000300027. Acesso em: 14 fev.2012

229O reconhecimento das identidades de gênero e a internação hospitalar...

ANEXO

Em novembro de 2010 e posteriormente em julho de 2011 encaminhamos Ofícios aos hospitais públicos localizados na capital e região metropolitana do mu-nicípio de São Paulo para solicitar informações referentes à internação de travestis e transexuais (localização de leitos, uso de banheiros), bem como ao uso do nome social, conforme o Decreto n.º 55.588, de 17 de março de 2010, que dispõe sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo.

Considerando que nas respostas dos Ofícios percebemos que as questões referentes à orientação sexual e à identidade de gênero suscitaram muitas dúvidas e que a eliminação do preconceito institucional pode contribuir de forma decisiva para a consolidação do SUS como um sistema universal e equânime, entendemos ser pertinente expedir a seguinte

RECOMENDAÇÃO.

Segundo Facchini11 (2011), as diferenças anatômicas entre os sexos são to-madas como base não apenas para dividir o mundo entre homens e mulheres, como também para definir quem deve se sentir ‘masculino’ ou ‘feminina’, e como homens e mulheres devem se vestir, comportar e desejar. É o caso de roupas cor-de-rosa para meninas e azul para meninos, das bonecas e carrinhos, das profissões estereotipa-das (mecânicos devem ser homens e cabeleireiras, mulheres).

Diferentemente do sexo biológico, que nos é dado, a identidade de gênero é socialmente construída no processo de socialização dos indivíduos. Há, portanto, machos e fêmeas na espécie humana, mas o modo de ‘ser homem’ e ‘ser mulher’ é realizado subjetivamente por meio da cultura e do meio social.

De acordo com o Manual de Comunicação LGBT12, identidade de gênero é a percepção que a pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente do sexo biológico. Ela pode ou não corresponder ao sexo atribuído ao nascimento e inclui o senso pessoal do corpo (que pode abranger modificação da aparência ou função corporal por meios médicos ou cirúrgicos) e outras expressões, como vestimenta, modo de falar e maneirismos. No caso das transexuais, por exemplo, a identidade de gênero é oposta ao sexo biológico – há um conflito permanente e a busca constante de harmonizar identidade, corpo e sexo por meio de tratamentos hormonais, aplicação de silicone e cirurgia de

11 Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campi-nas, em apresentação na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em junho-2011.

12 Publicação da ABGLT. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Disponível em: http:--www.grupodignidade.org.br-blog-arquivos-manual-comunicacao-lgbt.pdf. Acesso em:

Núcleo Especializado de Combatea Discriminação, Racismo e Preconceito

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redesignação sexual (esta nem sempre obrigatória: muitas transexuais, mesmo re-jeitando seus órgãos sexuais, não desejam a cirurgia). Já as travestis se comportam como pertencentes ao sexo oposto, mas não rejeitam seus órgãos sexuais e não desejam a cirurgia de redesignação.

Tanto travestis quanto transexuais devem ser tratadas pelo nome social e de acordo com o gênero com o qual se apresentam – no atendimento o funcionário ou servidor público deve perguntar como aquela pessoa quer ser chamada (nome social), e o nome referido deve ser utilizado em todos os espaços do serviço, sem exceções. Em fichas de atendimento, etiquetas e prontuários o nome social deve preceder o civil, e deve ser apresentado sem o uso de parênteses, como segue:

Nome social: Fulana da Silva

Nome civil: Fulano da Silva

Em documentos e Ofícios expedidos, quando tiverem como destino órgãos de registro civil ou forem de teor oficial, devem constar ambos os nomes (social e civil), conforme modelo a seguir:

Fulana da Silva, civilmente registrada como Fulano da Silva...

O nome social deve preceder o civil, sem a utilização de parênteses

A identificação de uma pessoa é essencial ao convívio, ao reconhecimento e à individualização em seu meio social, garantindo seu pertencimento na sociedade e, consequentemente, o exercício de sua cidadania.

Já a orientação sexual se refere ao sexo por quem sentimos desejo e afeto. Há três tipos de orientação sexual predominantes: heterossexual (atração por pessoas do sexo oposto), homossexual (por pessoas do mesmo sexo) e bissexual (por ambos os sexos). Ao contrário da identidade de gênero, geralmente perceptível, a orientação sexual do outro só é conhecida a partir da revelação ou de algum tipo de indicação - por isso, não devemos presumir que alguém é homo ou heterossexual tendo por re-ferência sua aparência, vestimentas ou maneirismos. Se necessário, perguntar com quem a pessoa vive, sem suposições e/ou sugestões que indiquem relacionamentos homo, hetero ou bissexuais. Convém destacar que identidade de gênero e orientação sexual não são interdependentes: travestis e transexuais, por exemplo, podem ser homo, hetero ou bissexuais.

Assim como outras questões ligadas à sexualidade humana, a identidade de gênero e a orientação sexual são permeadas por mitos, tabus e curiosidades, mas o respeito, a ética e o sigilo profissional devem ser preservados e garantidos em todos os espaços de convivência, sejam eles públicos ou privados.

Frente a essas breves considerações, enfatizamos a importância do respeito à identidade de gênero e à orientação sexual em todos os espaços de convívio so-cial, quais sejam órgãos da Administração direta ou indireta e demais prestadores de serviços públicos, como escolas, Universidades, hospitais e Unidades Básicas de Saúde, entre outros.

Em hospitais, por exemplo, a identidade de gênero deve ser observada in-clusive na disponibilização de leitos quando da necessidade de internação, aliada a outros fatores relevantes como critério de urgência e cuidados necessários referentes à enfermidade apresentada. Assim, às pessoas com identidade de gênero feminina devem ser proporcionados leitos e banheiros femininos na estrutura existente, em acordo com a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Ministério da Saúde13: “... promover o respeito aos grupos LGBT em todos os serviços do SUS, particularmente evitar constrangimentos no uso de banheiros e nas internações em enfermarias” (BRASIL, 2010, p. 19). O Antepro-jeto do Estatuto da Diversidade Sexual (2011) também se debruça sobre o tema, ao preconizar em seu artigo 51 que “os leitos de internação hospitalar devem respeitar e preservar a identidade de gênero dos pacientes”. Áreas e quartos isolados ou exclu-sivos não são indicados, pois o respeito às diferenças e à diversidade pressupõe a convivência e não a segregação e o isolamento social.

Gays afeminados e lésbicas masculinizadas não são transgêneros e devem ser tratados de acordo com o sexo biológico, inclusive na disponibilização de leitos e no uso de banheiros.

Sem mais, nos colocamos à disposição para esclarecimentos que sejam ne-cessários, considerando que a Defensoria Pública e o Núcleo de Combate a Discri-minação, Racismo e Preconceito são espaços democráticos de garantia de direitos e de respeito às diversas expressões da sexualidade humana.

REFERÊNCIAS

ABGLT. Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexu-ais. Disponível em: http:--www.grupodignidade.org.br-blog-arquivos-manual-comuni-cacao-lgbt.pdf. Acesso em:

BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas. Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010.

13 BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas. Gays, Bissexuais, Trav-estis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010.

A DEFENSORIA PÚBLICA COMO LUGAR DE APRENDIZAGEM: INTERAÇÕES, INTERLOCUÇÕES E CONFLITOS NUM ESTÁGIO DE PSICOLOGIA1

Maria Cristina RochaPsicóloga do Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP. Supervisora do estágio dos alunos de graduação em psicologia da USP na Defensoria Pública.

Bom dia a todos. Agradeço à organização desse seminário, em especial o Pau-lo Kohara, pelo convite, ao Sidney Shine, pela honra de podermos compartilhar essa mesa, e a todos vocês pelo interesse e presença nesse evento.

Vou contar um pouco da história da parceria entre a Defensoria Pública e o Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP) do Instituto de Psicologia da USP (IPUSP), como tem se dado esse trabalhar conjunto e as reflexões que têm nos pro-vocado durante todo esse percurso.

A conversa entre os profissionais da Defensoria e do SAP para pensar numa possibilidade de estágio para alunos de psicologia teve início no segundo semestre de 2010. Foram, aproximadamente, 6 meses de negociações entre as equipes do CAM das regionais Santo Amaro, Osasco, a Coordenação Técnica da Defensoria e o SAP para costurar uma proposta que respondesse às nossas intenções de incremen-tar a formação dos estagiários compondo e ampliando a equipe do CAM. Tendo dois dos profissionais da Defensoria envolvidos nessa empreitada cursado psicologia no IPUSP, logo chegamos ao Plantão Psicológico como caminho a ser explorado.

1 Palestra proferida no II Seminário de Psicólogos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo em 15/09/12.

235A Defensoria Pública como lugar de aprendizagem: interações, interlocuções...234 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

SERVIÇO DE ACONSELHAMENTO PSICOLÓGICO

O SAP foi criado em 1969, ainda quando o curso de Psicologia era oferecido na Faculdade de Filosofia da USP. Na época, com uma estrutura mais informal, atendia alunos da universidade nos bancos dos jardins. O trabalho foi crescendo, passou por diversas mudanças e hoje se constitui num Serviço oferecido às pessoas maiores de 14 anos pertencentes à comunidade USP ou moradoras dos bairros da subprefeitura do Butantã. Sua equipe é formada por duas docentes e quatro psicólogas que se ocupam da formação dos alunos, com duas disciplinas no quarto ano da graduação em Psicologia, ambas com estágio. As práticas ligadas ao Serviço relacionam-se ao plantão, em sua maioria, mas também incluem atendimento psicológico regular individual e em grupos. Podem ocorrer nas dependências do Instituto de Psicologia ou fora dele.

PLANTÃO PSICOLÓGICO

O plantão é uma modalidade de atendimento que tem como organizadores o tempo, o espaço e a disponibilidade do terapeuta. Acontece em dias, horários e locais pré determinados e conta com uma equipe de plantonistas.

Sua proposta é oferecer um acolhimento para a pessoa que nos procura e, junto com ela, compreender seu momento de vida, seus incômodos, sofrimentos, angústias e facilitar a identificação de recursos pessoais, emocionais e relacionais para lidar com sua queixa. Esse processo confere sentido à experiência, permitindo a criação de um caminho de cuidado consigo mesmo.

A ideia é ouvir e respeitar tanto as queixas quanto os pedidos de ajuda, porém romper a paralisação e confusão que podem estar provocando. O cliente, então, é chamado a se implicar, a reviver, a refletir sobre o que lhe afeta naquele momento e que lhe parece não ter saída possível. Esse processo de ressignificação é amplo e profundo, sempre original. Não sabemos de antemão que trilhas vai tomar. Vamos descobrindo à medida que vão sendo desbravadas.

A escuta do plantonista está centrada na experiência da pessoa e não no seu problema. Nossa questão é como esse cliente vive essa dificuldade, o que pode remontar a outros momentos de sua vida, a seu modo de viver certos assuntos, rela-ções, emoções...

É só a partir da construção desse projeto de cuidado que paramos para pen-sar em como viabiliza-lo. Aí, então, surgem as possibilidades de encaminhamento, se for o caso. É muito possível (e nas instituições não psi é quase regra) que um único encontro ou um conjunto pequeno de conversas resulte já numa experiência suficiente naquele momento para aquela pessoa. É interessante notar que, quando a demanda é formulada em uma pergunta, os encontros únicos são mais comuns.

A implicação do cliente em seu processo é fundante nesse trabalho. A ideia é fortalecer a autonomia para que a pessoa possa ir em busca da resolução de seus problemas. É interessante notar que essa postura é absolutamente convergente com a perspectiva do empoderamento adotada pelos profissionais no CAM e evidentemente presente nas conciliações. É preciso retomar o direito de desejar e fazer escolhas, sem esquecer que o desejo é um indicativo, aponta para um destino, as escolhas se dão num contexto, no mundo, nas relações, portanto pedem negociações.

PLANTÃO PSICOLÓGICO NA DEFENSORIA

O estágio na defensoria teve início com o propósito de oferecer plantão psi-cológico para os usuários e funcionários da instituição. Esse novo serviço potencia-lizaria a capacidade de atendimento do CAM, apesar de não se confundir com ele. O que seria, então? A ideia era ter um espaço de escuta mais pausada, descolada, na medida do possível, da correria do atendimento da Defensoria. Mas, em que essa escuta se diferenciaria daquela realizada pelos profissionais do CAM? Essa é uma boa pergunta para a qual estamos ensaiando respostas.

Pensando no funcionamento geral da defensoria, há uma diferença de orga-nização: o plantão não é agendado. Sua proposta é receber a pessoa no momento de interesse. É evidente a necessidade de uma negociação de disponibilidades: o plantão não acontece o tempo todo, portanto alguém pode querer atendimento num momento impossível de obter. Mas, ela pode saber a periodicidade com que acontece e escolher o dia em que vai procurá-lo.

Outra questão importante é que, pelo que temos percebido, os profissionais do CAM são bastante solicitados para dar encaminhamentos a questões conflituosas (conciliações), tomar providências para resolver ou amenizar questões de violência e violação de direitos, oferecer informações sobre direitos sociais, de educação, de saúde. A diversidade de ações e a complexidade do atendimento compõem um todo permeado profundamente pela escuta, mas identificado, também, com a necessidade de tomar providências. O plantão psicológico caracteriza-se pela liberdade da escuta e da narrativa do cliente que, no caso da Defensoria, não precisa restringir-se ao tema que o levou a procurar ajuda nessa instituição. Ajuda essa muito vinculada a provi-dências para retomar a justiça, o certo. Por oferecer uma possibilidade de encontro distanciado de julgamentos ou correções e por ser um serviço peculiar, realizado por estagiários de psicologia, sofre menos interferências do funcionamento institucional. Nesse sentido, pode manter protegidas características específicas de sua proposta como a oferta de uma escuta mais focada nas experiências e sentidos vividos pelas pessoas, cujo “objetivo não é resolver o problema particular, mas auxiliar o indivíduo a crescer, de modo que possa enfrentar o problema presente e os posteriores de uma maneira mais bem integrada” (Rogers, 1986, p. 15).

Vinculado à Abordagem Centrada na Pessoa, esse trabalho mantém como princípios as três condições consideradas por Rogers (1986) como imprescindíveis para viabilizar mais que o encontro com o outro, o encontro consigo mesmo: empa-tia, congruência e aceitação positiva incondicional. Sucintamente, a empatia refere--se à possibilidade de o terapeuta aproximar-se profundamente da experiência do cliente, comunicando-lhe sua compreensão. A congruência fala da autenticidade, veracidade com que o terapeuta se coloca na relação de ajuda, semeando o espaço terapêutico para que sentimentos do cliente aflorem sem muita censura. Exige do terapeuta um contato intenso consigo mesmo para ir captando, reconhecendo e comunicando o quanto e como está sendo afetado pela pessoa que atende. Já a aceitação positiva incondicional diz respeito ao apreço do terapeuta pelo cliente de um modo total e não vinculado àquilo que a pessoa fez ou pensa. Ainda segundo Rogers (1986, pag. 20) “(...) ao ouvir os sentimentos internos, a cliente conduz o poder que os outros tiveram de inculcar-lhe culpas, medos e inibições e está lentamente estendendo a compreensão e o controle sobre si mesma. À medida

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que a cliente está se aceitando mais, a possibilidade de estar no comando do “eu” torna-se cada vez maior”.

Nessa perspectiva, sugere-se o plantão para pessoas que foram atendidas pelo CAM, mas demonstram disponibilidade e necessidade de conversar um pouco mais sobre o que está vivendo e assim vislumbrar caminhos próprios e cuidadosos; pessoas que demonstram precisar contar sua história, sem o que não conseguem avançar nas justificativas para abertura de um processo; pessoas que demonstram dúvida na hora de abrir o processo; pessoas que vão reclamar de um outro e demonstram dificuldade para lidar com a situação com os recursos oferecidos pela Defensoria (abertura de processos, conciliação etc); pessoas que choram muito durante o atendimento do defensor. Temos, ainda, os casos em que, por questões de linguagem, defensor e usuário não se entendem ou aqueles em que o defensor sente a necessidade de um interlocutor: nesses casos solicita-se a presença do estagiário para atender em conjunto. São poucos mas igualmente relevantes, as situações em que as pessoas, sabendo da existência do Plantão Psicológico, o procuram espontaneamente2.

O plantão é o carro chefe do estágio sob a supervisão de campo da equipe CAM e com minha supervisão como um todo (atendimentos, contratos, reuniões). No entanto, não havendo procura estagiários podem acompanhar os psicólogos e assistentes sociais em todas as suas atividades: conciliações, atendimentos indivi-duais, produção de relatórios, reuniões com a rede, contatos telefônicos, audiências concentradas e o que mais surgir como necessidade. É evidente o aprendizado com que essa inserção nos brinda, convocando-nos a descobrir campos de trabalho des-conhecidos, rever certezas, posturas e modos de ver o mundo.

Uma característica marcante desse estágio é a contribuição para o crescimen-to pessoal e profissional dos estagiários que se depara com situações, sobretudo, de violência, que jamais imaginaram se aproximar. Somos convidados, o tempo todo, a experimentar a inospitalidade do mundo, o desalojamento de si mesmo. As perguntas começam a se proliferar!!! Será que podemos ajudar? Como? É esse o lugar da psicologia? Por que romper o ciclo da violência é tão difícil? Como essa pessoa quer voltar para casa sabendo que vai apanhar? Como é que posso reclamar tanto da mi-nha vida? Será que não posso fazer mais nada, mesmo? Minha escuta foi suficiente? Que mundo é esse em que as pessoas são tão desrespeitadas?

Tem sido um desafio dos maiores para os estagiários manterem-se atentos às experiências da clientela quando esta traz histórias de vida tão recheadas de atos de violência. O ímpeto é encontrar uma solução para o problema, é tirá-la dessa situação. O plantonista é afetado de tal forma pelo sofrimento do outro que se sente impelido a produzir um caminho resolutivo. Muitas vezes, nesse percurso, não conta com a companhia da pessoa em questão. Esse tem sido um tema recorrente nas supervisões.

A atenção para a problemática que mobilizou a procura pela defensoria jamais é negada e informações e procedimentos importantes para sua superação são ofere-cidos às pessoas que deles necessitam. No entanto, não cabe ao plantonista resolver o problema pela pessoa, mas ajudá-la a compreender que situação é essa que vive

2 Deixamos alguns folders (anexo) apresentando o plantão no saguão das regionais.

nesse momento, que percurso tem realizado nesse lidar com os problemas e que aberturas de possibilidades pode perceber.

Retomando as características da proposta de plantão, dissemos que preten-demos facilitar o processo, de cada pessoa atendida, compreender e historicizar seu momento de vida, aventurando-se pela descoberta ou reconhecimento de recursos afetivos e comunitários que apontam para a viabilidade de um projeto de cuidado. Na defensoria, nosso trabalho tem sido marcado por encontros únicos com os usuários, dadas as características da situação: a procura inicial é por atendimento jurídico e os retornos a esse atendimento são bastante espaçados.

A tônica na sessão única pode potencializar ou esvaziar o encontro entre plan-tonista e usuário; ambos têm acontecido. Algumas vezes, a aposta no encontro único aliado a recorrente escuta de histórias de extrema violência pressiona os estagiários e, possivelmente, impulsiona-os a orientarem suas escuta e atitude para a resolu-ção do problema do cliente. Nos atendimentos em que conseguem estabelecer um contato mais genuíno e delicado voltado para como cada um vive seu problema, percebe-se uma intensidade experiencial capaz de provocar deslocamentos aparen-temente pequenos, porém extremamente significativos. São questionamentos acerca do modo de viver, estabelecer relações, sustentá-las, fazer escolhas. Outras vezes acompanhamos processos de tomada de consciência da dor quase insuportável que carregam, do quanto alimentam essa dor e da abertura para outras possibilidades de convivência consigo mesmos e com outros. São movimentos que colocam em evidência o respeito e a dignidade como alternativas à humilhação.

Os estagiários são, profundamente, afetados pelas histórias de extrema vio-lência que ouvem. O peso de viver e lutar para manter-se vivo, em todos os sentidos, é cotidiano. As supervisões semanais, invariavelmente, são visitadas por essas ex-periências e por tudo que provocam em nós. A partir do que temos experienciado, questões acerca da carga emocional que carrega e preenche o trabalho do CAM nos ocorrem o tempo todo. Quais os espaços de escuta e reflexão estão disponíveis para esses profissionais? São suficientes? Sabemos da existência das reuniões de equipe semanais e encontros de formação mais esporádicos dos CAMs. Mas para onde vai todo o peso de lidar, cotidianamente, com situações limite? Essa condição é agravada em regionais em que o CAM conta com apenas um profissional. Faz-se necessário ouvi-los sobre a pertinência de criar espaços de reflexão e escuta para os profissionais, se eles acharem importante.

CONFLITOS/DESAFIOS

Essa parceria tem sido desafiadora. O trabalho do CAM é novidade para nós e a inserção do plantão nesse contexto é novo para todos. Nosso percurso tem sido marcado por reflexões, negociações e criatividade para lidar com o que não é sabido sem que as identidades particulares se percam ou se sobreponham àquela que vem sendo construída. Vejamos alguns pontos sobre os quais ainda nos debruçamos.

O estágio é curricular, portanto os alunos só estão disponíveis durante os me-ses letivos. Assim, o plantão não se constitui como um serviço oferecido pelo CAM, mas como um estágio, mesmo, com começo, meio e fim num tempo que não é o da instituição que nos recebe. A principal questão é: e se criarmos uma demanda de

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atendimento? Até o momento isso não aconteceu, mas continuamos atentos. O fato de haver um grande fluxo de pessoas diferentes procurando por suporte jurídico tem nos protegido.

Com o intuito preservar e respeitar a escolha das pessoas, combinamos com funcionários, no geral, que podem sugerir o plantão para os usuários da Defensoria ao invés de encaminhar, o que pode ser compreendido como uma ordem. Por ve-zes, isso não acontece e alguns são encaminhados. Entendemos que essa atitude pode remeter a uma despotencialização da pessoa que busca ajuda. Reproduz-se, dessa maneira, uma situação que todos queremos quebrar que é aquela em que o especialista sabe o que é melhor para o outro, desconsiderando o saber desse outro sobre si mesmo. A partir dessa questão, hábitos, olhares e modos de fazer das duas instituições vão aparecendo, se estranhando e compondo novas maneiras de lidar com essa intersecção Direito-Psicologia.

Os defensores e seus estagiários são nossos parceiros inequívocos. Na gran-de maioria das vezes, é diante deles que aparecem os descontroles, choros, rai-vas, necessidade de contar sua história e contextualizar o pedido por ajuda jurídica. Pressionados pelo intenso fluxo de pessoas que aguardam por seu atendimento e atentos para os dados essenciais para avaliar a pertinência ou não da abertura de um processo, mantêm-se distanciados das queixas e da necessidade de escuta ampla que demonstram alguns usuários. Tem sido muito interessante enquanto campo de aprendizagem e importante no atendimento à população, o trabalho em dupla com defensores e plantonistas – modelo já frequente entre defensores e profissionais do CAM. Outro aspecto interessante é que a conversa sobre o pedido de atendimento no plantão tem provocado reflexões tanto no defensor quanto no estagiário de psi-cologia: o que se espera do plantonista? O que mobilizou os operadores de Direito a pensarem nesse encaminhamento? Algumas vezes nos deparamos com a situação em que o defensor não se percebe em condições de atender a pessoa num estado de pouco controle emocional. Observa-se que essa sensação é muito mais vinculada ao hábito de não ouvir o que transborda os dados necessários para a abertura do processo do que falta de sensibilidade.

A legitimidade e a importância da presença do profissional de psicologia na defensoria podem ser observadas cotidianamente nas conciliações, encaminhamen-tos para a rede, escuta atenta. E o plantão, tem lugar? Os psicólogos e assistentes sociais na Defensoria criam constelações interessantes e complementares no atendi-mento aos usuários, ampliando e aprofundando a compreensão do trabalho como um todo na medida em que a compartimentalização dos saberes têm sido relativizadas, propiciando questionamentos, novas interpretações e a criação de novos saberes. No entanto, o plantão pretende oferecer uma escuta que nem sempre é possível partir desses profissionais e que tem se mostrado bem-vinda nesse contexto. O plantão ocupa, então, um lugar privilegiado e importante que pode ser mantido como atenção pontual. O ideal seria que a escuta sensível e qualificada pudesse estar instalada em todos os funcionários, então a psicologia seria referenciada na rede pública de saúde.

Esse é o panorama geral do estágio de Plantão Psicológico em duas regio-nais da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A conversa entre o Direito e a Psicologia segue de maneira aberta e propositiva. A experiência tem nos ajudado a produzir muito mais perguntas do que respostas. Vivemos num estado constante de

movimento, indo e voltando, às vezes, ficando, ainda que inquietos. É pouco confor-tável, mas, talvez, essa seja a maior riqueza dessa parceria.

BIBLIOGRAFIA

Mahfoud, M. (1987). A vivência de um desafio: plantão psicológico. In: Rosenberg, R. L. (org.) Aconselhamento psicológico centrado na pessoa. São Paulo: EPU.

Rocha, M. C. (2009) Plantão Psicológico: desafios e potencialidades. In: Breschigliari, J. O. & Rocha, M. C. (Orgs.) SAP – Serviço de Aconselhamento Psicológico: 40 anos de história – São Paulo: SAP/IPUSP.

Rogers, C. (1986) – A política das profissões de ajuda. In C. Rogers, Sobre o Poder Pessoal. São Paulo: Martins Fontes.

CONVERGÊNCIAS ENTRE AS EXPERIÊNCIAS DE PSICÓLOGO JUDICIÁRIO E PESQUISADOR: DAS PRÁTICAS CLÁSSIFICATÓRIAS EM PSICOLOGIA À PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS1

Maurício Ribeiro de Almeida Psicólogo judiciário, atua no Serviço de Atendimento Psicossocial a Magistrados e Funcionários do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Doutor em Psicologia Social – IPUSP, Mestre em Psicologia - Unesp – Assis, Especialista em Psicologia Jurídica – CRP-SP.

Para se apreender a totalidade de uma área de atuação é preciso conhecer os diferentes caminhos trilhados pelo profissional até o momento em que ele pode analisar de modo mais aprofundado a trajetória percorrida. Não raro essa trajetória é marcada por gratificações, momentos de hesitação, desânimo e desafios, o que leva, muitas vezes, ao desgaste físico-emocional e à necessária superação: matéria-prima importante para que o profissional permaneça no campo de atuação escolhido.

Tais implicações são inerentes também ao pensamento e à produção científi-ca, que exigem clareza e conexões entre a realidade social e as motivações internas do pesquisador para iniciar seu trabalho e permanecer no campo a que pretende se dedicar. Por muitos anos, ou mesmo durante toda a sua carreira, um pesquisador estará envolvido com o universo de seu objeto de estudo. Assim, instala-se um

1 Parte deste texto integra a pesquisa de doutorado desenvolvida pelo autor no Programa de Pós--Graduação, Psicologia Social, Instituto de Psicologia da USP, sob o título - Os Processos Subjetivos no Acolhimento e na Adoção de Crianças por Casal Homoafetivo: Um Estudo de Caso.

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desafio importante: como se dedicar à pesquisa sem se deixar tomar excessiva-mente por ela? Manuais clássicos sobre a elaboração de pesquisa recomendam um distanciamento mínimo do objeto, para que o cientista preserve sua capacidade de análise e a conduza com clareza e objetividade, de modo a ampliar o olhar sobre o assunto estudado.

Em 4 de julho de 1996, ingressamos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na função de Psicólogo Judiciário. Naquela época, a área de Psicologia começava a se expandir na instituição, no entanto dispunha de escassas referên-cias e práticas em consolidação. De nossa parte havia um interesse em atuar no referencial de uma Psicologia articulada com as questões sociais e que realmente fizesse diferença na vida das pessoas. O ingresso no Poder Judiciário representava a oportunidade de expandir nossa área de atuação e ainda de nos apropriarmos de conhecimentos e intervenções que pudessem afinar a Psicologia com o paradigma dos Direitos Humanos. No campo da Justiça, um primeiro desafio foi lidar com a natureza da instituição, que entra, muitas vezes, em descompasso com os ques-tionamentos que o conhecimento da Psicologia pode provocar nessa estrutura de poder. Ou seja, ao mesmo tempo em que os conceitos dessa ciência assessoram as decisões judiciais, também as inquietam, incomodam, provocam.

Após esse primeiro impacto, começamos a pensar que um caminho possí-vel para enfrentar essa dicotomia seria a identificação das possibilidades do saber psicológico conjugadas às questões éticas indispensáveis, sem desconsiderar os li-mites impostos pela realidade institucional. À medida que as referências se intensifi-caram, conquistamos maior segurança, fortalecendo a ideia de que o psicólogo que atua no Judiciário e demais sistemas de Justiça é, acima de tudo, um profissional de saúde habilitado teórica e tecnicamente para fazer a leitura do campo subjetivo, interpretar e propor ações que permitam o enfrentamento do sofrimento psíquico. No campo da Justiça pode empregar tais preceitos tendo o amparo da legislação vigente, embasada, em grande parte, no princípio da democratização de direitos, igualdade e acesso a bens e serviços, sem distinção de classe social, gênero, raça ou etnia. Tendo como referência esses princípios, o psicólogo/a que atua no judici-ário pode contribuir para que as pessoas ressignifiquem seus conflitos e busquem um caminho menos danoso para si, para o outro, para a sociedade. Tudo isso sem cair numa ingênua interpretação da realidade nem desconsiderar as desigualdades que agem em todo o tecido social. Portanto, é um trabalho diretamente articulado com as questões da saúde e implicado com a matéria-prima da Psicologia – a sub-jetividade. Pode, portanto, auxiliar o usuário demandante da justiça a uma melhor compreensão de si mesmo e de suas relações com o mundo que o envolve. Assim, as contribuições da Psicologia à Justiça não se limitam a uma prática avaliativa e auxiliar da Justiça ou do juiz; mas devem, indubitavelmente, construir-se com uma boa dose de criatividade, ousadia, e ainda se alicerçar em princípios éticos da profissão, articulados com os paradigmas dos Direitos Humanos.

No que concerne à inserção do serviço de Psicologia no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, há interessantes contribuições produzidas e divulgadas, sobretudo, pela psicóloga Dayse Cesar Franco Bernardi, aposentada do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, além de ter exercido a atividade de psicóloga no Tribunal de Justiça, por duas gestões esteve à frente da Associação dos Assistentes

Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça de São Paulo – AASPTJ-SP. Em livros e eventos científicos, Dayse relata essa história e problematiza os efeitos, as possibili-dades e os limites do saber psicológico na esfera da Justiça2.

À época de nosso ingresso no Judiciário, os profissionais de Psicologia e Ser-viço Social atuavam em duas grandes áreas: Vara da Infância e Juventude e Vara de Família. Atualmente essas áreas estão consolidadas e se mantêm, porém foram associadas a elas outras diferentes demandas, em razão de legislações posteriores à promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, tais como: Lei Maria da Pena, Estatuto do Idoso, Nova Lei de Adoção, Lei de Guarda Compartilhada.

Nesse conjunto de atividades, identificamo-nos, particularmente, com o traba-lho de adoção. A atuação em Cadastros e Pedidos de Adoção eram intervenções que nos despertavam interesse. Reconhecemos que, no início de nossas atividades, tínhamos uma visão um tanto idealista acerca do efeito do trabalho do psicólogo nesse campo. Tal percepção ocorria principalmente quando se comparava a área de adoção com outras mais desafiadoras (por exemplo, situações de adolescentes em conflito com a lei), nas quais as intervenções se mostravam mais complexas. Devido à pouca experiência, acreditávamos que no campo de adoção era possível obter resultados mais satisfatórios e promover um trabalho de cunho preventivo3. Com o tempo, porém, passamos a compreender que tal concepção, ainda que importante para nos motivar ao trabalho e mover as ações práticas, se mostrava um tanto frágil, pois desconsiderava outros atravessamentos próprios do universo da adoção. Esses questionamentos surgiram quando passamos a lidar com situações conflitantes, que também apresentavam momentos de tensão e dificultavam a resolutividade dos casos atendidos, como: o drama da família biológica que pretendia rever sua criança após um período de afastamento; as situações de devolução da criança pela família ado-tiva durante o estágio de convivência; a constatação de que determinadas crianças que necessitavam de acolhimento, como as de pele negra, ou as com idade acima de dois anos ou com outros problemas de saúde, despertavam mínimo interesse nos candidatos à adoção.

Nesse contexto, a adoção inter-racial e posições preconcebidas sobre o desen-volvimento infantil que enfatizavam o papel da hereditariedade e o efeito irreversível das experiências de perdas afetivas na vida da criança começaram a nos mobilizar. Tais aspectos, à época, influenciavam os candidatos à adoção e os profissionais de Psicologia e Serviço Social que integravam a Justiça. Na avaliação do cadastro de adoção, era comum os candidatos brancos ressaltarem o interesse por uma criança de cor de pele semelhante à sua, e serem contrários ao acolhimento de crianças negras ou pardas. Justificavam que tal posição não era preconceituosa, mas que procurava levar em conta o bem-estar da criança, pois não gostariam que ela fosse discriminada no meio social devido às diferenças existentes (ALMEIDA, 2003).

Esse conjunto de valores e posições em torno do universo da adoção suscitou momentos de inquietação e anseios por pesquisas e práticas que dessem conta das

2 Cf. BERNARDI, D.C.F (1997, 1999, 2007, 2008).3 Não se tratou, porém, de associação da ideia de prevenção à de herança preventivista, preconizada pela corrente higienista que influenciou fortemente a área da saúde, entre outras, no Brasil. Cf RIZZINI, I. Preocupação com a infância e a normalização da sociedade no início do século, 1993.

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novas demandas, porém havia poucos estudos sistematizados que pudessem funda-mentar a defesa de posição contrária a tais ideias.

Assim, as questões da adoção inter-racial nos motivaram a ingressar, no ano de 2000, no Programa de Pós-Graduação, nível de mestrado, área de concentração Psicologia e Sociedade, da Universidade Estadual Paulista, Unesp-Assis. Na opor-tunidade, dispusemo-nos a analisar a capacidade de acolhimento dos adotantes e o modo como a criança construía sua autoimagem levando em conta a negritude, bem como os afetos vivenciados na relação familiar. Terminamos nosso trabalho em abril de 2003, concluindo que a adoção inter-racial era tão viável quanto as demais, porém alguns aspectos deveriam ser considerados no processo adotivo, tais como: disponibilidade afetiva dos candidatos para assumir uma adoção inter-racial e impor-tância da criação de um locus no meio familiar para que a criança pudesse edificar positivamente suas características físicas. Destacamos, ainda, a necessidade do trabalho de preparação de adoção para contemplar temas específicos sobre adoção inter-racial e preconceito.

Após o término do mestrado, tivemos a oportunidade de ingressar como do-cente no ensino superior4. Desde então, aliamos nossas atividades profissionais no Judiciário com a docência, graduação em Psicologia e Direito, a qual nos motivou a continuar pesquisando as questões de adoção, uma vez que observamos a abran-gência do campo, além dos desafios e da necessidade de pesquisa que alguns temas da área exigiam. Passamos, desde então, a pensar em um novo projeto de pesquisa para contemplar as questões da adoção conjunta por homossexuais, por ser essa uma área emergente e pouco estudada. As primeiras demandas começavam a aparecer no contexto de trabalho, primeiro com candidaturas individuais de homossexuais e, posteriormente, pleiteadas já em casal. Se tais inscrições para o cadastro de adoção não eram rejeitadas prontamente, inquietações e inseguranças eram observadas em diferentes níveis e contextos da estrutura jurídica, em razão da peculiaridade da famí-lia que passou a reivindicar também o direito à parentalidade adotiva.

A combinação entre a singularidade desse processo adotivo e as expectativas, reservas e mitos que cercavam o tema engendrara novas reflexões. Percebíamos, por posições obtidas nas relações de trabalho, acesso a matérias publicadas na mídia e principalmente pesquisas feitas com os atores do Judiciário, Ministério Público e operadores do Direito de modo geral, além de profissionais de Psicologia e Serviço Social (UZIEL, 2007), que muitas vezes os posicionamentos e reações estavam mais atravessados pelo senso comum e por princípios religiosos e morais, do que embasa-dos em conhecimento crítico reflexivo das diferentes áreas que compõem as ciências humanas e dialogam com o Direito.

Foi por influência dessa trajetória e implicações da prática profissional que, no ano de 2008, ingressamos no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. A princípio a questão política inerente ao tema nos despertava interesse, por isso tínhamos o objetivo de reunir as famílias homoafetivas para agregá-las em um grupo para que compartilhassem suas experiências. Havia nessa época interesse em estudar possíveis articulações entre

4 Exercemos atividades docentes no Centro Universitário Unisalesino, Lins-SP, e nas Faculdades Integra-das de Bauru - FIB.

a experiência individual/familiar de cuidados com os filhos com uma possível identi-dade política, que a partir de uma experiência particular buscasse outras ações de enfrentamento no contexto social macro. Abandonamos, porém, essa proposta inicial em razão de existir um reduzido número de famílias com o perfil desejado, e ainda por haver dificuldade para reuni-las, tendo em vista a extensão territorial do estado de São Paulo. Em um segundo momento, passamos a vislumbrar a possibilidade de ma-pear as fases do acolhimento da criança na família composta por pessoas do mesmo sexo e as mudanças geradas em seu padrão e funcionamento após a experiência de adoção. Pretendíamos ainda verificar como a problemática da transmissão psíquica influenciava no processo subjetivo da família homoafetiva. Nossa questão básica era se essas famílias realmente podiam ser denominadas “novas configurações”, em razão da originalidade de sua estrutura, ou se subjetivavam valores e padrões preservados também nas famílias tradicionais no tocante ao seu funcionamento, não colocando em risco os valores tradicionais da instituição familiar, temor difundido pelos segmentos mais tradicionais da sociedade brasileira, que visualizam um total enfraquecimento da estrutura familiar caso a legislação acolha e regulamente tais pedidos de adoção.

Ao longo dos quatro anos envolvidos com as atividades da pós-graduação, tivemos a oportunidade de nos apropriar das discussões sobre o tema por meio da leitura de várias produções científicas, bem como da participação em eventos cientí-ficos, sociais e políticos que tratam da diversidade sexual e adoção.

Salientamos que boa parte dessa experiência se deu com nossa participação no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP-06, quando passamos a in-tegrar a Comissão Gestora da Subsede de Bauru, período 2007-2010. Dessa ativida-de, ora como convidado, ora como representante do CRP-06 e da Subsede de Bauru, participamos de vários eventos científicos e políticos, e da elaboração de materiais de referência sobre o tema, entre os quais se destaca a cartilha Adoção: um Direito de Todos e Todas, organizada e divulgada pelo Conselho Federal de Psicologia5, na qual contribuímos com o capítulo A Adoção por homossexuais: um caminho para o exercício da parentalidade. Além disso, participamos da Comissão Sexualidade e Gê-nero do Conselho Regional de Psicologia, quando tivemos a oportunidade de discutir diferentes temas sobre a sexualidade e pensar a interface destes com a Psicologia no campo teórico e das demandas emergentes na sociedade. Participamos da 13ª Edi-ção da Parada do Orgulho LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, e Travestis) de São Paulo em 14 de junho de 2009, cujo tema foi Sem homofobia não há cidadania – pela isonomia de direitos. O CRP-SP apoiou o evento, contribuindo com a distribuição de materiais sobre diversidade sexual elaborados pelo Sistema Conselhos, e integrando grupos de trabalhos e oficinas, na semana que antecedeu o evento. Em 2010, por ocasião da 14ª Parada do Orgulho LGBTT, tivemos a oportunidade de participar do 8º Ciclo de Debates com a exposição do tema Adoção Conjunta por Casais LGBT: aspectos jurídicos, psicológicos e sociais. Nesse mesmo ano coordenamos uma oficina na 10ª Feira Cultural LGBTT, que antecedeu a 14ª Parada, quando foram discutidas as representações do público participante sobre família, o interesse por filhos e adoção.

5 Disponível em: http:www.pol.org.br.

246 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Destaca-se, ainda, nossa participação nas I e II Jornadas de Adoção do Oeste Paulista, promovidas pelo Curso de Psicologia da Unesp - Campus de Assis, nos anos de 2008 e 2011, quando integramos mesas-redondas e participamos de debates so-bre adoção com a comunidade acadêmica e representantes de diversos segmentos da sociedade local, tais como o Judiciário, famílias adotivas e profissionais da rede de apoio. Em 05 de setembro de 2012, tivemos a oportunidade de participar, na cidade de Araçatuba – SP, do II Seminário - Psicólogos (as) na Defensoria Pública – Olhares da Psicologia sobre o Direito. Este foi um importante evento em que pudemos refletir sobre as possibilidades e os limites da Psicologia na interface com os Sistemas de Justiça.

Essas participações sociais e políticas e as incursões em congressos e even-tos científicos nos levaram a verificar que o tema da pesquisa rapidamente ganhou visibilidade na sociedade, consolidando sua relevância social e científica. Perce-bemos também a necessidade de políticas públicas específicas que procurassem contemplar as demandas advindas das famílias homoafetivas. Ao chegar ao final da pesquisa de doutorado consideramos nossa contribuição para o aprofundamento do tema, levantando subsídios para provocar e ampliar discussões acadêmicas respal-dadas na Psicologia e em outras áreas das ciências humanas.

Com base em todas essas vivências e reflexões, consideramos que a Psicolo-gia Jurídica se consolida no cenário nacional, porém, verificamos que os profissionais que atuam nessa área precisam superar os desafios teóricos e técnicos que ainda reservam à psicologia um espaço restritivamente avaliativo e classificatório, bastante distanciado dos princípios dos Direitos Humanos.

REFERÊNCIAS

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UZIEL, A. P. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

OS OLHARES DA PSICOLOGIA SOBRE O DIREITO ou o ponto de vista do Psicólogo sobre o Direito1

Sidney Kiyoshi ShinePsicólogo; Doutor e Mestre em Psicologia pela USP; Perito em avaliação das famílias no Tribunal de Justiça de São Paulo.

Bom dia a todos. Eu gostaria de agradecer o convite feito para participar do II Seminário Psicólogos(as) na Defensoria Pública de São Paulo nas pessoas da JANAÍNA e do PAULO.

É uma honra poder voltar a este lugar que tive o prazer de conhecer em setem-bro de 2010 por ocasião do I Curso de Formação Técnica para Agentes da Defensoria.

Este é o segundo Seminário promovido por vocês e aproveito para elogiar a iniciativa como forma de marcar a preocupação técnica e ética da participação de psicólogos no sistema da justiça.

Pretendo nesta contribuição retomar uma reflexão em relação ao papel que o psicólogo pode exercer quando demandado pelo operador do Direito. Vou utilizar minha experiência como psicólogo judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo atu-ando como perito em casos de Vara de Família. Mas penso que a partir dos recortes que farei, tanto os psicólogos da Defensoria e outros aqui presentes poderão retirar decorrências para sua prática em relação às demandas jurídicas.

Pensei no tema que vou abordar em função do escopo deste seminário (olha-res da Psicologia sobre o Direito), mas também por um questionamento dirigido por uma aluna de um Curso Preparatório para Concurso ao Tribunal de Justiça de São Paulo que ocorreu este ano.

A partir de uma questão contemplada em concurso anterior2, a aluna queria

1 Palestra proferida no II Seminário de Psicólogos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo em 15/09/12.2 Concurso do Tribunal De Justiça do Estado de Pernambuco para provimento de cargos de Analista Judi-ciário – Psicólogo. Realizado pela Fundação Carlos Chagas em Maio/2007.

249Os olhares da psicologia sobre o direito ou o ponto de vista do psicólogo...248 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

uma explicação sobre a designação “Perito imparcial” X “Perito Adversarial”. A aluna já possuía certo conhecimento da área que se convenciona chamar de Psicologia Jurídica. O seu questionamento se baseava em conceitos apreendidos de forma cor-reta e que pareciam estranhos da forma como foram justapostos na definição acima.

“Perito” e “Imparcial” – “Perito” e “Adversarial”. Perito é um especialista de uma área do conhecimento, argumentou a aluna, que é chamado para subsidiar o Juiz. Ora, se ele (ou ela) é o (a) auxiliar do Juízo, por definição, ele ou ela deveria ser “imparcial”. Porque caso não fosse, sua atuação estaria comprometida desde o início. É a mesma compreensão em relação à necessidade de imparcialidade do Juiz para o cumprimento de seu mister.

Enquanto que “adversarial” diz respeito ao sistema de ataque e defesa pelo qual as partes protagonizam o litígio processual. Qual seria o sentido de se falar em um “perito adversarial”, uma vez que ele ou ela está trabalhando dentro de um sistema que se caracteriza como tal?

Vocês percebem o raciocínio desta aluna? Ela estava completamente correta na utilização dos termos e na estranheza da articulação dos adjetivos “imparcial” e “adversarial” ao papel “perito”. É este o tema que gostaria de trabalhar com vocês hoje.

DE IMPARCIAL A ADVERSARIAL: CONDIÇÃO OU OPÇÃO?

A primeira vez que utilizei estes adjetivos (imparcial X adversarial) em relação ao Perito foi em “Espada de Salomão” (p. 221 )3, cito:

No sistema adversarial, age-se adversariamente. Como propõem Woody4 (1978) e Gardner5 (1982), citados por Berry (1998), depois de determinar tão “imparcialmente” quanto possível qual genitor está melhor preparado, o ava-liador deveria ativa e abertamente agir como um advogado por este genitor. Como apontado por este autor, mesmo os profissionais que se definem como imparciais utilizam ex-pressões como “[busca]procura diligente dos fatos”, “exame das alegações dos membros da família” e “descoberta de pontos contraditórios” que revelam seu envolvimento com uma forma de pensar típica do sistema adversarial.

37. Segundo Sidney Shine, o psicólogo pode assumir diferentes papéis no Enquadre Jurídico, dada sua forma de encarar e realizar o trabalho pericial. O psicólogo que é contratado pelo advogado ou pela parte, torna-se um perito dentro da arena jurídica. É também chamado de “assessor da parte” ou “perito particu-lar” ou, no termo corrente mais comum, por assistente técnico. Shine o denomina de Perito(A) Parcial.(B) Testemunhal (Factual).(C) “Pistoleiro”.(D) Adversarial.(E) Imparcial.3 SHINE, S. A Espada de Salomão. A psicologia e a disputa de guarda de filhos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.4 Woody, R. Getting custody: Winning the last battle of the marital war. New York, Basic Books, 1978.5 Gardner, R. Family evaluations in child custody litigation. Cresskil, N.J., Creative Therapeutics, 1982.

Retomo o tema em “Avaliação psicológica em contexto forense” (SHINE, 2005, p. 11-13) 6.

A referência original da qual parti é de um trabalho de KENNETH K. BERRY intitulado “The mental health specialist as child advocate in court”7. Ele é um psicólogo que atua em Nebraska nos EUA.

O seu texto foca na atuação do profissional em saúde mental representando os interesses da criança (child advocacy). Apoiando-se nas palavras de Melton (1987)8 o papel do profissional seria de “empoderar as crianças a fim de que se tor-ne possível a elas ter acesso e se beneficiar dos recursos da sociedade”. Ou seja, é um papel melhor desempenhado no sentido de uma política social que aumente a capacidade de auto-determinação das crianças e a defesa de seus direitos. É o que hoje se convenciona chamar de novos direitos da infância e caracterizou sua base doutrinária na chamada Proteção Integral, o que abarcaria todas as modalidades de direitos humanos e agregaria a ideia de “prioridade política absoluta” (FERRERI, 2011, p. 449).

Berry (1989) chama a atenção de que uma das principais dificuldades para o profissional de saúde mental assumir tal papel é o de conflito de interesses. O que o psicólogo, enquanto profissional de saúde mental, defender como sendo o melhor interesse da criança pode não representar legitimamente a visão que a criança tem.

Um exemplo que o autor cita do que não fazer como representando os interes-ses da criança (apud MELTON, 1983) é o caso do posicionamento defendido no livro “No interesse da criança?” de Goldstein et al. (1973), traduzido e publicado no Brasil pela Martins Fontes em 198710.

Os autores apresentam um diretriz para casos de disputa de guarda (um pro-blema extremamente complexo) baseado em um pequeno número de estudos de casos clínicos e ignorando os dados empíricos disponíveis sobre o assunto.

Goldstein e colegas sustentam que a confiança da criança no seu adulto de referência não poderia ser minada pelo questionamento do outro responsável (pai ou mãe). Seria recomendável escolher o guardião(a) e deixar que ele ou ela decida se seria melhor ou não que a criança tivesse a visita do(a) outro(a) genitor(a). Esta posição foi amplamente contestada por profissionais da área.

Similar à ideia de uma diretriz que ajude a fazer recomendações em casos de disputa de guarda é a tese da manutenção do continuum corporal, afetivo e social

6 In: SHINE, S. (Org.) Avaliação psicológica e lei: Adoção, vitimização, separação conjugal, dano psíquico e outros temas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. pp. 01-18.7 In: TEXTOR, M.R. (ed.) The divorce and divorce therapy handbook. New Jersey: Jason Aronson Inc., 1989, p. 135-147.8 MELTON, G. The psychologist’s role in juvenile and family law. Journal of Clinical Child Psychology, n. 7, pp. 189-192, 1978. Apud BERRY (1989).9 FERRERI, M.A. Psicologia e direitos da infância: esboços para um a história recente da profissão no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. 10 GOLDSTEIN, J.; FREUD, A.; SOLNIT, A.J. No interesse da criança? São Paulo, Martins Fontes, 1987.

251Os olhares da psicologia sobre o direito ou o ponto de vista do psicólogo...250 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

defendido por F. Dolto (1988/1989)11. Devo confessar que me utilizo do argumento de Dolto em casos que os pais confundem guarda alternada com guarda compartilhada.

Normalmente os pais querem que o filho transite entre uma casa e outra. Na guarda alternada, os pais dividem o tempo da criança (dias, semanas, meses), alter-nando o período em cada casa. Isto diz respeito somente à guarda física da criança. Isto é guarda alternada.

Pois bem, Dolto (1989) coloca que em função da manutenção destas continua o melhor seria se a criança permanecesse na casa que sempre conheceu como sua e que ambos os pais se revezassem: o pai fica com a criança de domingo a domingo e, depois, faz as malas e sai para a entrada da semana da mãe e, assim por diante12.

A reação que recebo dos pais é geralmente de susto, como se tivesse fazendo uma sugestão absurda. “Mas, doutor, eu teria que manter duas casas! E o transtorno de ir de uma casa para outra? Assim não dá!”

“Mas você acha que para seu filho daria!? Justo você que falou que abriu o processo para o que for melhor para ele...” Xeque-mate!

Berry (1989) conta outro exemplo interessante de um furo do profissional psi ao tentar ajudar o cliente-criança em um caso de punição excessiva por parte de uma escola. Shore (1985)13, segundo o autor, aprendeu com este caso que aquilo que é importante para o procedimento legal pode ser prejudicial do ponto de vista psicológico.

No caso em questão, crianças haviam sido punidas em uma escola sendo trancadas em um quarto por longos períodos de tempo. O profissional representando os interesses das crianças queria provar ao tribunal que este tipo de punição tinha sido psicologicamente prejudicial. Ao mesmo tempo, para que o comparecimento na audiência fosse menos ameaçadora às crianças, preparou-as cuidadosamente com visitas ao tribunal e o uso de role playing.

A preparação funcionou tanto que no dia da audiência, as crianças pareciam tão relaxadas e auto-confiantes que o júri, bem como o perito psicólogo, concluíram que as crianças não haviam sido tão afetadas assim pela experiência de punição.

O PAPEL DE REPRESENTAR A CRIANÇA PARA O PERITO EM CASOS DE DISPUTA DE GUARDA

Voltando ao ponto inicial de minha fala: como a discussão sobre a represen-tação dos direitos e interesses da criança se relaciona com a posição do perito dito “adversarial” ou “imparcial”? E como tal posição poderia influenciar, se é que o faz, o psicólogo agente da Defensoria?

11 DOLTO, F. Quando os pais se separam. Rio de Janeiro: Zahar, 198912 “A criança só pode realmente fazer o trabalho afetivo de compreender o divórcio, se é muito pequena, quando permanece no mesmo espaço. A tal ponto que, havendo possibilidade para os pais, melhor seria que o apartamento ficasse com os filhos e que eles próprios fossem alternadamente viver ali seus “deveres parentais”. O lugar da residência habitual dos filhos deve ser aquele em que eles viveram com ambos os pais e onde permaneçam com um único genitor”. (p. 22)13 SHORE, M. The clinician as advocate-inteventions in court settings: opportunities, responsabilities, and hazards. Journal of Clinical Child Psychiatry, n. 14, pp. 236-238, 1985.

O lugar de perito em um processo de Vara de Família é um dos papéis que o psicólogo pode desempenhar no campo jurídico. A atuação da Psicologia está es-treitamente ligada à presença de crianças e adolescentes. Atuamos quando existem menores no litígio.

O papel do perito é simplesmente apresentar seus dados, parecer e previsão/prognóstico de maneira imparcial e neutra. Portanto, tecnicamente o perito não defen-de o interesse de nenhuma das partes e nem da criança.

O dilema do profissional é quando no desempenho de tal função, encontre uma criança em uma situação não saudável. O profissional pode se sentir na obrigação de atuar como, nas palavras de Berry (1989), o “salvador” da criança. Atuação que o retiraria do lugar de perito para o de advocate (no original) representante dos interes-ses da criança.

Esta seria a motivação ou a justificativa de base para que profissionais como os citados anteriormente (Woody e Gardner) se posicionem de em favor de um contra a outra parte em suas conclusões. Porque estariam assumindo aquilo que é melhor para a criança, representando e falando por eles. Portanto, utilizei o termo perito adversarial para qualificar tal postura.

Outra situação é o do Assistente Técnico (consultant) que é chamado a atuar pelo advogado ou seu/sua cliente. Dentro de um modelo contratual, o “cliente” do Assistente Técnico é o advogado e seu/sua cliente. Neste papel, o profissional pode ser demandado a examinar documentos e laudos anteriores, recomendar avaliação pericial, aconselhar advogados na forma de apresentar as provas, fornecer infor-mações básicas sobre parentalidade e desenvolvimento infantil e, talvez, redigir um laudo preliminar e quesitos.

Este me parece é o lugar do psicólogo agente da Defensoria, uma vez que institucionalmente vocês estão ligados ao Defensor que será, dentro deste modelo, o cliente ou usuário que se valerá do trabalho de vocês para melhor fazer o dele/dela. Na realidade norte-americana, no desempenho de tal papel o profissional tem muito pouco contato, quando tem, com as partes envolvidas no litígio.

PARA FINALIZAR

Se o Perito optar por assumir a defesa dos interesses da criança (aquilo que chamamos com Berry de advocacy role), concluirá em seu laudo em uma postura que caracterizei como “adversarial”: enaltece a um e desqualifica o outro.

Berry (1989) alerta para os nossos possíveis vieses que nos façam optar por aquilo que consideremos melhor e não o que a criança necessariamente pensa e sente. Em disputa de guarda, o profissional estaria assumindo tal papel, sempre que se manifestar que a criança “deveria ser dada” a um ao invés do outro genitor porque ele ou ela acredita que seja a opção “melhor”.

Uma comparação histórica é feita pelo autor com a condição da mulher. Tomar para si a prerrogativa de saber o que é melhor para a criança seria comparável ao pensamento vigente à época que a mulher não tinha seus direitos civis plenamente reconhecidos. Houve um momento em que a sociedade acreditava que alguém pre-cisaria tomar decisões por ela, seja o pai, o marido ou o juiz.

253Os olhares da psicologia sobre o direito ou o ponto de vista do psicólogo...252 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Se o psicólogo enquanto perito pode se arrogar a este lugar de defender a “verdade da criança” até mesmo contra ela, o psicólogo enquanto assistente técnico poderia estar defendendo a verdade deste pai ou desta mãe, que pensa que está de-fendendo a verdade de seu filho. O primeiro pode incorrer em um desvio profissional e se confundir com o juiz; o segundo incorre em mesmo desvio só se confundindo com outro personagem: o advogado. Obrigado.

QUESTÕES DA PLATÉIA

1. Como considerar o desejo da criança frente ao que o técnico entende ser o melhor a longo prazo, uma vez que a criança não conhece todos os fatores biopsicossociais envolvidos e que afetam seu desenvolvimento?

R- Justamente as pessoas que deveriam considerar o que é melhor para a criança para além seu desejo expresso e atual são os pais. São eles que en-quanto adultos responsáveis estariam resguardando valores e sopesando os prós e contras de decisões que afetarão a vida da criança. Parece-me que isto é o cerne da educação.

Em Vara de Família, estes pais se anulam reciprocamente quando discordam e elegem o juiz como aquele que decidirá por eles e pela criança.

Portanto, a escolha do que é melhor para esta criança é feita por meio de um julgamento moral pelo indivíduo que encarna a instituição competente para tal: o magistrado.

O alerta de Berry (1989) é no sentido do psicólogo tomar cuidado em não “trair” o desejo da criança ao interpor aquilo que ele, psicólogo, pensa que seria melhor para ela. Uma vez que no lugar do “tradutor” do desejo da criança é que o profissional psi é posto na configuração litigiosa em que se lança mão da perícia psicológica enquanto prova.

2. Se o perito judicial ocupa uma posição de imparcialidade, tal qual o do juiz, não seria dispensável a atuação do assistente técnico, do ponto de vista técnico e ético?

R- Estou entendendo que o Autor da pergunta não quer desprestigiar os anfi-triões do evento, mas sim levantar mais um ângulo da questão para análise. Vamos considerar que se existe só um juiz na primeira instância, mesmo o seu julgamento pode ser questionado. Lembremos que a decisão judicial também pode ser interpelada em forma de recurso em instância superior até chegar ao Supremo Tribunal como forma de garantir o devido processo legal e o respeito ao contraditório.

O Assistente Técnico tem seu lugar garantido pelo Código do Processo Civil que faculta às partes a indicação de Assistentes Técnicos sempre que o juiz determinar a nomeação de um perito.

A prerrogativa de se utilizar deste profissional é da parte, usuário do sistema, ao qual o advogado também está atrelado. O delicado do manejo do enquadre profissional por parte do Assistente Técnico é que seu “cliente” se desdobra em dois: a parte e seu advogado. Há que se levar em conta também que o profis-

sional deve levar em conta que a parte está inserida dentro de um contexto em que há uma dinâmica familiar envolvida (CFP, 2010)14.

3. Sobre a questão da parcialidade: o advogado contrata o psicólogo, sendo o advo-gado defensor dos direitos do cliente dele. Gostaria de saber como fica a situação do psicólogo quando o pedido do advogado bate de frente com a ética profissional do psicólogo. Essas situações costuma ser frequentes?

R- A ética de cada profissional é diferente, neste sentido, o embate acontece a cada momento. O advogado como cliente (pessoa que está contratando os serviços do profissional) solicita que o psicólogo emita um laudo que ele possa usar na defesa de seu cliente (a parte). Como o psicólogo poderia se compro-meter com tal pedido se o laudo é o resultado de um processo de avaliação psicológica que ainda não se empreendeu?

Por outro lado, o psicólogo está atrelado ao seu código de ética em que tem um compromisso com a avaliação científica que desempenha. Não seria correto omitir ou adulterar os dados, muito menos as conclusões que decorrem de tais dados. Ora, o laudo será o resultante por escrito dos dados colhidos, por meio da qual a análise converge em uma conclusão - doa a quem doer. E se as conclusões não forem do agrado e do interesse da parte? O resultado será um laudo psicológico que certamente o advogado não poderá anexar aos autos. Pois senão, aí ele estaria incorrendo em falta ética de se manifestar contrário aos interesses de seu cliente/parte.

14 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para atuação do psicólogo em Varas de Família. Brasília: CFP, 2010. p. 23-24. “Entende-se que apenas no caso de o psicólogo estar atuando como assistente técnico é que seu cliente seria uma das partes envolvidas no processo, e não a família toda. Mesmo assim, o profissional não deve desprezar o dado de que está lidando com questão inscrita em uma dinâmica familiar.”

PSICÓLOGOS NA DEFENSORIA PÚBLICA. OLHARES DA PSICOLOGIA SOBRE O DIREITO1.

Esther Maria de Magalhães ArantesProfessora da UERJ e PUC-Rio

Gostaria, inicialmente, de saudar os meus companheiros de Mesa e de agra-decer o convite da Defensoria Pública e do Conselho Regional de Psicologia para participar deste encontro. Gostaria, também, de saudar os psicólogos e as psicólogas aqui presentes, pelos 50 anos da aprovação da Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962, que regulamentou a profissão no Brasil. Nada mais oportuno do que aprovei-tarmos esta data para comemorações e celebrações, mas, também, para fazermos um balanço dos anos passados e pensar alguns dos desafios que estão postos no contemporâneo.

Vou iniciar a minha fala por breves considerações históricas: nós viemos de um processo de colonização muito duro e pelo qual ainda pagamos um alto preço. Sendo o Brasil um empreendimento colonial meramente de exploração e terra de degredo, calcada a sua produção no trabalho escravo, não se podia aqui edificar escolas, fábricas ou quaisquer outros empreendimentos que significassem ame-aças aos interesses portugueses. Os poderes soberanos que aqui se instalaram, poderes de vida e morte em suas jurisdições específicas – Coroa, Clero e Senhores - se abateram implacavelmente sobre indígenas e africanos, criando-se regimes diferenciados para livres e cativos, dos quais ainda hoje não conseguimos nos livrar inteiramente.

Dos indígenas, se dizia que eram povos “sem lei, sem rei, sem fé”. Este é um pensamento etnocêntrico, que não reconhece o outro na sua diferença. É claro que os povos indígenas e também os povos africanos tinham chefia, organização social e grande espiritualidade. Mas, reconhecer isto seria admitir a humanidade destes povos – o que teria impedido a sua escravização.

A República, em grande parte, não fez muito diferente. Só incorporou o povo

1 Palestra proferida no II Seminário de Psicólogos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo em 05/09/12.

257Psicólogos na Defensoria Pública. Olhares da Psicologia sobre o Direito256 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

negro, mestiço, pobre, como trabalhador subalternizado ou como classe perigosa. Abolimos a escravatura, mas não promovemos a igualdade. Não fizemos a reforma agrária, não abolimos o trabalho infantil e não universalizamos o ensino básico, além de proibirmos o voto aos analfabetos. Em compensação, superlotamos os internatos, os reformatórios, as casas de correção, os asilos, os manicômios e as prisões.

A partir a década de 1970, em consonância com o que se passava em muitos outros países, fomos capazes de questionar o modelo asilar, correcional e repressivo destinado aos chamados menores, loucos, infratores e deficientes. E fomos capazes deste questionamento, mesmo na vigência da Ditadura civil-militar - pela qual, tam-bém, ainda pagamos um alto preço.

Em que pese a Ditadura, como suas práticas de repressão e tortura, isto não impediu a emergência de novos sujeitos sociais que reivindicavam sua diferença em relação aos padrões hegemônicos de normalidade; que reivindicavam não apenas o direito de exercer suas singularidades, como também o direito de falar por conta própria, denunciando os discursos competentes como sendo discursos de poder.

Este período, simbolizado pelo Maio de 68 na França, foi vivido como um gran-de momento utópico e libertário, onde a diferença poderia ser experimentada sem ser desqualificada como anormalidade, doença, deficiência ou inferioridade. Eram propostas ético-estéticas e, também, movimentos de reivindicação de direitos: o de existir como mulher, negro, louco, homossexual, indígena, sem que isto implicasse tutela médica ou jurídica e desqualificação social (Arantes, 2003).

Embora voltados para as questões específicas de suas militâncias, esses di-versos grupos minoritários encontravam-se unidos em torno da luta pelo fim da Dita-dura e pela democratização do Brasil, logrando-se grandes avanços na Constituição Federal de 1988.

Atualmente, temos uma conjuntura um tanto diferente, colocando novas ques-tões. Em que pesem as conquistas que obtivemos de 1988 para cá, e não devemos negá-las, como, por exemplo, a diminuição da mortalidade materno-infantil e a univer-salização do ensino fundamental, muito do caráter libertário das lutas que emergiram neste período estão se perdendo em função de novas estratégias biopolíticas.

Nas atuais sociedades de controle, termo utilizado por Gilles Deleuze (1992), em contraposição às sociedades disciplinares (Foucault, 1972), não se tem neces-sidade de meios fechados para se aprisionar a vida – embora tais meios fechados devam ainda perdurar por algum tempo. Alguns, inclusive, vêm ganhando folego extra e permanecem como grandes violadores de direitos humanos, como as prisões (Wacquant, 2007).

Presenciamos, hoje, uma juridicização e medicalização da vida, jamais vistos. Uma publicação do Conselho Federal de Psicologia (2012), citando dados do Instituto de Defesa de Usuários de Medicamentos, nos informa, por exemplo, que no ano de 2000, foram vendidas no Brasil 70 mil caixas de metilfenidato, droga controlada, tarja preta, que tem a finalidade de melhorar os sintomas do chamado Transtorno de Dé-ficit de Atenção com Hiperatividade, TDAH. Em 2010, este número passou para dois milhões de caixas, colocando o Brasil como o segundo maior consumidor mundial desta droga. E nós sabemos que os destinatários desta medicação, em grande parte, são as crianças e os adolescentes.

E, obviamente, nem a Psicologia, o Serviço Social e o Direito, dentre outro saberes e praticas, estão imunes a estas forças e movimentos. Ao contrário. Estamos igualmente sendo convocados não só a reconhecer como a efetivamente colaborar com estes processos, que se apresentam, muitas vezes, com a roupagem da própria proteção da vida e dos direitos.

Como nos alerta Michel Foucault (1976), embora o Estado nazista tenha sido aquele que levou ao extremo o jogo entre poder soberano e biopoder, este jogo encontra-se efetivamente inscrito no funcionamento de qualquer Estado moderno. Assim, no regime do biopoder, que se ocupa da vida, não se pode “multiplicar para al-guns o risco de morte”, sem passar por algum tipo de racismo, ou seja, sem demons-trar a monstruosidade do inimigo, do criminoso ou do infrator, sua anormalidade, sua periculosidade, sua inferioridade biológica, sua degeneração, sua incorrigibilidade. Assim, na medida em que teorias racistas são requeridas quando se deseja invocar o velho direito soberano à morte, cabem-nos colocar em análise as implicações das chamadas ciências humanas e sociais na produção desses racismos.

Não creio ser tarefa simples para a categoria dos psicólogos posicionar-se cri-ticamente diante da complexidade dessas questões, principalmente quando se tem a pressioná-la um mercado de trabalho restrito e precarizado e o predomínio, nas atividades científicas e no ensino, da razão instrumental. Por outro lado, a não ser que consideremos a Psicologia uma prática meramente adaptativa, que atende de maneira acrítica as demandas advindas das engrenagens postas em funcionamento pelo capital, não podemos deixar de problematizar as regras de formação de seu campo, pondo em evidência as práticas, instituições e estratégias na qual se apoia; e, principalmente, não podemos deixar de pensar as experiências que fazemos de nós mesmos no contemporâneo e os movimentos de liberdade, resistência e criação que possibilitam (Arantes, 2010).

Assim, quais são as nossas lutas e os nossos horizontes?

Particularmente nas últimas duas décadas, o Sistema Conselhos de Psicologia tem se esforçado muito para colocar na pauta da Psicologia brasileira a questão dos Direitos Humanos, para construir referências e estratégias de qualificação para o exercício profissional, para ampliar o diálogo com os movimentos sociais e com as di-versas categorias profissionais, e para problematizar o mal estar dos psicólogos face às suas condições de trabalho, face às condições de vida da população brasileira e face à própria contemporaneidade.

Mas não tem sido tarefa simples. Constatamos um movimento de captura muito grande na sociedade brasileira, também em consonância com o que vem acon-tecendo em outros países. Cito o exemplo da Escola Experimental de Bonneuil-sur--Marne, na França, uma instituição libertária, dedicada a crianças e adolescentes com transtornos mentais graves, criada pela psicanalista Maud Manoni em 1969, e que está prestes a fechar as portas, uma vez que as novas regulamentações da saúde e da segurança da França dificultam e mesmo impossibilitam a proposta de Bonneuil. (ALVES NETO, 2012)

Assim, na medida em que a Psicologia no Brasil vai se abrindo às lutas da população indígena, quilombola, ribeirinha, cigana, idosos, crianças e adolescentes, mulheres, grupos LGBT, população de rua, usuários dos serviços de saúde mental etc, vai também angariando oposição de grupos contrários a estas lutas.

259Psicólogos na Defensoria Pública. Olhares da Psicologia sobre o Direito258 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

Além do mais, temos tido dificuldades no Brasil em trabalhar de maneira in-terdisciplinar e em rede. Neste sentido, é preocupante o modo como as políticas nacionais de Educação, Saúde e Assistência vêm sendo chamadas a comporem a Política Criminal, numa visão reducionista das propostas interdisciplinares e interins-titucionais.

Pela Constituição Federal de 1988, a participação cidadã não se dá apenas pela eleição dos nossos representantes. Ela se dá, também, pela participação direta nos diferentes Fóruns, Conselhos e Conferências, onde diretrizes e políticas públicas são democraticamente discutidas, propostas e monitoradas. Não se pode, com uma canetada, como se diz popularmente, abolir ou passar por cima da especificidade de tais políticas, de suas diretrizes e de seus objetivos.

Não se pode, por exemplo, demandar que a Assistência, a Saúde e a Educação tenham funções investigativas. Isto não é função destas áreas. Tanto o Conselho Fe-deral dos Assistes Sociais como o Conselho Federal de Psicologia já se manifestaram sobre isto, fazendo uma clara distinção entre escuta profissional e inquirição judicial de crianças e adolescentes (AASSPTJ-SP, 2012). É preciso, então, ganharmos mais clareza e entendimento do que seja o Sistema de Garantia de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e qual o papel dos diferentes atores neste Sistema e na Rede de Proteção.

Certa vez ouvi de um palestrante que este estava buscando parcerias com uni-versidades para que alunos de psicologia, educação, direito e serviço social fossem às escolas ensinar as crianças os seus direitos, para que elas pudessem denunciar os seus pais, uma vez que muitas violações acontecem nas famílias.

O que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação diz é que a escolas devem discutir com as crianças os seus direitos, o que pode incluir as violações, mas não se reduz a isto. Para que a criança saiba, inclusive, se algum direito seu foi violado, ela tem que saber, primeiro, o que são os seus direitos, que inclui o direito à infância, o direito a brincar, o direito a desenvolver suas potencialidades, o direito de se benefi-ciar dos recursos do planeta e de compartilhar do patrimônio cultural da humanidade, etc, incluindo também o direito à educação, obviamente, por se tratar de projeto em escolas.

Neste sentido, lembro aqui uma coletânea de textos organizada pelo Comitê de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, intitulada Direi-tos Sexuais são Direitos Humanos. Curiosamente, nesta Coletânea, a grande maioria dos textos não trata dos direitos sexuais, conforme o seu título, mas sim do abuso sexual intrafamiliar e da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.

Nestes exemplos, e em muitos outros, os direitos das crianças e dos ado-lescentes não estão sendo pensados em sua integralidade. No Brasil nós estamos enfatizando quase que exclusivamente as agressões e as violações. Isto está criando uma distorção muito grande no entendimento do que são direitos humanos, com refle-xos negativos tanta para as crianças e adolescentes como para os profissionais das áreas acima mencionadas.

O psicólogo é um profissional do cuidado, da escuta, da promoção humana, da proteção. Ele não é um inquiridor, delegado, padre, policial ou juiz. Estas são funções de outra natureza. Não se trata de corporativismo ou de intransigência. Muito ao

contrário. A interdisciplinaridade não é uma desconstrução selvagem dos diferentes campos profissionais.

Mais do que isto. Convocar uma criança pequena para depor em processo judi-cial, como vítima ou testemunha de crime, em nome de seu direito de se expressar e de ser ouvida, não importando sua idade, a compreensão que tenha do processo no qual se encontra envolvida e o impacto que tal depoimento terá em sua vida, é colocar a criança no lugar de objeto e não de sujeito de direitos.

Além do mais, muitas destas propostas não foram ainda discutidas pelo CO-NANDA, em que pese solicitações feitas pelo Conselho de Psicologia. Inclusive, na última Conferência Nacional da Criança, foi aprovada uma moção de repúdio à Secretaria de Direitos Humanos pelo fato dela estar financiando salas de inquirição, sem que sequer o Conanda tenha discutido e deliberado sobre o assunto, e sem que exista alguma lei federal regulamentando a matéria.

Para finalizar, gostaria de citar, uma vez mais, Wanderlino Nogueira Neto, quando afirma, em relação a este tema, que não se trata de impor ou de impedir, via legislação, que qualquer pessoa menor de 18 anos, em qualquer situação, seja inquirida em juízo. Trata-se, no entanto, de evitar que sejam usadas como meio de prova único, exclusivo e preponderante em processos penais, bem como de evitar que tenham sua condição peculiar de desenvolvimento, sua dignidade e sua liber-dade desrespeitadas nesses procedimentos, e que o depoimento judicial não seja confundido com a escuta profissional.

Para Nogueira Neto, quando, excepcionalmente, se precisar ouvir/inquirir crianças e adolescentes em Juízo (ou quando eles claramente declararem seu desejo de serem ouvidos), é necessário que estejam previamente orientados e fortalecidos por uma equipe de profissionais. Mas, tudo isso, em reserva, sem nenhuma assistên-cia pelas autoridades do sistema de Justiça (Arantes: in AASPTJ-SP, 2012)

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

ALVES NETO, Augusto de Bragança (2012). A experiência de Bonneuil: vivendo na encruzilhada. Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense.

ARANTES, Esther Maria de Magalhães (2003). Direitos Humanos e a prática da ava-liação. In: Os Direitos Humanos na prática profissional dos psicólogos. Brasília:CFP.

ARANTES, Esther Maria de Magalhães (2010). Prefácio. In: formação: ética, política e subjetividade na Psicologia. Rio de Janeiro: Comissão de Estudantes do CRP-RJ.

ARANTES, Esther Maria de Magalhães (2012). Pensando o direito da criança de ser ouvida e ter sua opinião levada in consideração. In: Violência sexual e escuta judicial de crianças e adolescentes. A proteção de direitos segundo especialistas. São Paulo: AASPTJ-SP.

Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo/AASPTJ-SP 2012). Violência sexual e escuta judicial de crianças e adolescentes. A proteção de direitos segundo especialistas. São Paulo: AASPTJ-SP.

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260 Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012

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