relato de experiência: a “seca” no ambiente literário e no

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paginas.ufrgs.br/revistabemlegal REVISTA BEM LEGAL • Porto Alegre • v. 6• nº 2 • 2016 239 Relato de experiência: a “Seca” no ambiente literário e no texto argumentativo Leila Cruz Magalhães Tereza D’Ávila Ferreira Resumo O currículo proposto pelos documentos oficiais (PCN, 1998; CBC/MG, 2005; etc.) aborda diversas questões importantes para serem trabalhadas no contexto escolar. Dentre elas, elegemos a Literatura, o domínio do argumentar e o tema transversal “Meio ambiente” como os protagonistas da sequência didática que produzimos dentro da disciplina Estágio Supervisionado I – Ensino de Língua Portuguesa, oferecida na grade obrigatória da licenciatura em Letras, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ressaltamos que o projeto de intervenção pedagógica, relatado neste trabalho, foi aplicado no segundo semestre de 2014, no período matutino, em uma turma de 3º ano do Ensino Médio, de uma escola da rede estadual da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Desse modo, para fins puramente didáticos, optamos por dividir as aulas ministradas em dois momentos: o primeiro sobre a segunda fase modernista e o segundo acerca do texto argumentativo, ambos tangenciando a temática da seca. Pensando a elaboração da sequência didática Acerca do ensino de literatura, ainda nos deparamos com práticas pedagógicas pautadas, única e exclusivamente, em aspectos historiográficos: traça-se uma “linha do tempo” no quadro negro, em que ano de determinada corrente literária, principais autores e características ficam expostos, como se fossem elementos estáticos, que permaneciam “imutáveis” ao longo daquela década ou século. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) pontuam, inclusive, a incoerência que esse tipo de prática pode ocasionar, pois aponta para “uma história que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo” (MEC, 1998, p.16), isto é, seria como se todas as obras produzidas dentro daquele contexto literário,

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Relato de experiência: a “Seca” no ambiente literário e no texto argumentativo

Leila Cruz Magalhães

Tereza D’Ávila Ferreira

Resumo

O currículo proposto pelos documentos oficiais (PCN, 1998; CBC/MG, 2005;

etc.) aborda diversas questões importantes para serem trabalhadas no contexto

escolar. Dentre elas, elegemos a Literatura, o domínio do argumentar e o tema

transversal “Meio ambiente” como os protagonistas da sequência didática que

produzimos dentro da disciplina Estágio Supervisionado I – Ensino de Língua

Portuguesa, oferecida na grade obrigatória da licenciatura em Letras, da Universidade

Federal de Juiz de Fora. Ressaltamos que o projeto de intervenção pedagógica,

relatado neste trabalho, foi aplicado no segundo semestre de 2014, no período

matutino, em uma turma de 3º ano do Ensino Médio, de uma escola da rede estadual

da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Desse modo, para fins puramente didáticos,

optamos por dividir as aulas ministradas em dois momentos: o primeiro sobre a

segunda fase modernista e o segundo acerca do texto argumentativo, ambos

tangenciando a temática da seca.

Pensando a elaboração da sequência didática

Acerca do ensino de literatura, ainda nos deparamos com práticas pedagógicas

pautadas, única e exclusivamente, em aspectos historiográficos: traça-se uma “linha

do tempo” no quadro negro, em que ano de determinada corrente literária, principais

autores e características ficam expostos, como se fossem elementos estáticos, que

permaneciam “imutáveis” ao longo daquela década ou século.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) pontuam, inclusive, a incoerência

que esse tipo de prática pode ocasionar, pois aponta para “uma história que nem

sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo” (MEC, 1998, p.16), isto é,

seria como se todas as obras produzidas dentro daquele contexto literário,

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obrigatoriamente, fossem influenciadas da mesma maneira pela história. No entanto,

sabemos que a literatura não se baseia em modelos estanques e que os aspectos

históricos não são os definidores das escolhas dos autores.

Não que a historicidade não seja relevante em certa medida, pois é

interessante algum tipo de recorte e sistematização para fins didáticos, entretanto,

não podemos nos ater somente a isso no momento da sala de aula, nos esquecendo

do quão importante é a leitura da obra literária em si para a formação do pensamento

crítico dos alunos.

Tendo em vista essa reflexão, produzimos uma sequência de aulas que, por um

lado abordou alguns aspectos históricos referentes à segunda fase modernista da

literatura, mas que por outro, privilegiou a leitura de fragmentos e capítulos do texto

literário desse período, a fim de que os alunos conhecessem, pelo menos, parte das

obras mais expressivas.

Já no que diz respeito ao texto argumentativo, buscamos trabalhar de maneira

sistematizada sua estrutura, que é cobrada pelo Exame Nacional do Ensino Médio

(ENEM) e demais concursos, a fim de que os alunos fossem capazes de realizar uma

produção dissertativo-argumentativa autônoma ao final da sequência. Entretanto,

antes de alcançarmos este ponto, promovemos um “diálogo temático” sobre a “seca”,

que está relacionada às questões de “Meio ambiente” dos PCNs (1998). O objetivo

desta atividade era fazer com que os discentes refletissem e vislumbrassem as

possibilidades que o tema oferecia. Para tanto, cartazes foram utilizados e auxiliaram

no desenvolvimento do “diálogo” em si, culminando também em uma interessante

atividade de reescrita.

É importante ressaltar que o tópico “seca” era um “forte candidato” a tema de

redação do ENEM realizado em 2014, dada a crise hídrica enfrentada pela região

sudeste e, em especial pela cidade de São Paulo, uma das cidades mais influentes do

país e que estava vivendo o seu momento mais crítico devido a falta d’água. Sendo

assim, uma de nossas metas também era preparar, em certa medida, os alunos que

prestariam o Exame Nacional do Ensino Médio, visto que a maioria da turma havia se

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inscrito. Aliás, como última atividade, propusemos uma redação aos moldes do exame

oficial, a fim de que os alunos se familiarizassem com o estilo de avaliação.

Primeiro momento: A segunda fase modernista

Nessa primeira fase da nossa intervenção pedagógica, os discentes foram

convidados a irem à sala de vídeo da escola e, ao acomodarem-se devidamente, foram

levados a refletir a respeito da seca que estava assolando a região sudeste naquele

momento, sobre onde este problema climático normalmente acontecia em épocas

anteriores, até chegarmos à questão do livro vidas “Vidas Secas”, tema central deste

primeiro momento.

Neste sentido, a fim captar as impressões dos alunos acerca da temática, a

música intitulada “Último pau de arara”, interpretada pelo cantor Fagner, foi tocada e

discutida. Logo após, os alunos assistiram o início do filme “Vidas Secas”, do cineasta

Nelson Pereira dos Santos, com o intuito de terem uma noção sobre o que trataria a

obra, que tipo de ideias o cenário e os personagens mostrados os levavam a evocar,

quais eram as partes mais relevantes das cenas, etc. Em seguida, foram exibidas

algumas edições que o livro “Vidas Secas” já possuiu ao longo da história, a fim de que

tivessem um contato real com as diferentes representações que a obra já teve e quais

possíveis interpretações elas poderiam suscitar.

Na segunda aula ministrada, foram retomadas as discussões da classe anterior e,

em seguida, foram lidos e discutidos fragmentos dos livros que tratavam do tema

“Sertão” alguns aspectos do texto tais como: a temática, a diferença estilística e os

momentos históricos em que cada obra foi escrita.

Na terceira e quarta aulas, foi distribuído um capítulo “Cadeia”, do livro “Vidas

Secas”, com o intuito de articulá-lo com o poema “Congresso internacional do medo”,

de Carlos Drummond de Andrade, ressaltando algumas características, tais como, o

tema recorrente, a linguagem utilizada, a repressão exercida pelo Estado sobre a

população e o clima de medo que permeava as duas obras. Após essa discussão, houve

a sistematização no quadro dos principais aspectos do livro “Vidas Secas” e da segunda

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fase modernista, para que os alunos se orientassem e pudessem recorrer a tais

anotações quando fosse necessário.

Em seguida, foram entregues aos alunos exercícios de fixação (anexo 1) a

respeito da última aula. Estes foram bem desempenhados, e através deles percebemos

que os alunos conseguiram assimilar as principais características daquele movimento

literário.

Segundo momento: O texto dissertativo-argumentativo

A segunda fase de nossa intervenção iniciou-se através da retomada de alguns

conceitos vistos nas aulas anteriores, por isso os alunos foram questionados a respeito

dos temas abordados, até chegarmos à obra de Graciliano Ramos, no que se refere à

seca como tema central.

A fim de aprofundar a discussão sobre a falta d’água, o editorial “Depois de

mim, a seca”, publicado pela Folha de São Paulo, foi distribuído e lido de maneira

silenciosa. Após a leitura, as impressões sobre o texto e o tema foram requeridas e

anotadas no quadro, o que para nossa surpresa, foi extremamente produtivo, diante

das interessantes percepções apresentadas.

Através de uma segunda leitura, esta mediada, os alunos compreenderam a

estrutura do texto argumentativo, identificando a tese, os argumentos e a conclusão,

além da observação do estilo impessoal característico e de perceberem os elementos

extra-textuais, como é o caso do título do editorial, que se tratava de uma alusão a

uma frase dita por um rei francês.

Após este contato mais profundo com o tema e com o gênero, foi proposto um

diálogo argumentativo, no qual os alunos deveriam contestar a tese do editorial (uma

crítica à gestão dos recursos hídricos em São Paulo) utilizando cartazes (anexo 2). Este

último recurso funcionaria como uma atividade de reescrita, já que textos sobre os

temas foram distribuídos para embasar a exposição de argumentos

Desse modo, a turma foi dividida em cinco grupos de cinco, e cada um recebeu

uma das seguintes contestações: “Há pouca água potável no mundo”, “O desperdício

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de água é o vilão”, “Nossas águas são poluídas”, “Exploramos mal os nossos recursos”

e “Pessoas x grandes empresas”.

Consideramos o emprego de cartazes como um bom exercício de reescrita,

porque nos termos de Matencio (2002), reescrever envolve uma série de alterações

discursivas, como a organização informacional, a reformulação do discurso,

supressões, etc. Porém, não há uma mudança no propósito comunicativo, como é o

caso das atividades de retextualização, que manifestam características semelhantes às

da reescrita, mas que se modificam em relação à intenção comunicativa. Desse modo,

a estudiosa aponta que:

[...]A reescrita é atividade na qual, através do refinamento dos

parâmetros discursivos, textuais e lingüísticos que norteiam a

produção original, materializa-se uma nova versão do texto.

Já na retextualização, tal como entendida aqui, opera-se,

fundamentalmente, com novos parâmetros de ação da linguagem,

porque se produz novo texto: trata-se, além de redimensionar as

projeções de imagem dos interlocutores, de seus papéis sociais e

comunicativos, dos conhecimentos partilhados, assim como de

motivações e intenções, de espaço e tempo de

produção/recepção, de atribuir novo propósito à produção

linguageira. (MATENCIO, 2002, p.113)

Portanto, a tarefa de reescrever os textos informativos, não alterou o objetivo

do gênero, já que a finalidade dos cartazes era informar os demais alunos sobre as

principais concepções apresentadas nos textos-base.

As aulas que se seguiram foram mais teóricas, pois trataram dos tipos de

argumentos. Dessa forma, destacamos os cinco argumentos mais comuns: o de

autoridade, o por exemplificação, o de relação de causa e efeito, o por alusão

histórica. Explicamos a importância do argumento de causa e efeito, que atua na

coerência e na unidade do texto; a argumentação sólida e pertinente possibilitada pelo

argumento de autoridade e por alusão histórica; a exemplificação, que permite ao

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aluno utilizar seu conhecimento de mundo e, que deve ser usado com cautela, para

que não seja formado um discurso falacioso, etc.

Com o fim da explicação, os alunos realizaram uma produção de texto escrito

(anexo 3), em que deveriam se posicionar em relação à questão da escassez de água:

quais razões da falta d’água e quais as possíveis soluções para o problema.

Considerações finais

A intervenção pedagógica abordou conceitos pertinentes à literatura e ao texto

argumentativo, ambos aliados às questões relacionadas ao “Meio ambiente”,

importante tema transversal que demanda análise crítica e reflexão. Portanto,

podemos concluir que, elaboramos uma sequência didática coerente para com os

documentos oficias, pois através de uma linguagem acessível e dinâmica, temas

pertencentes à formação cultural e cidadã, foram associados em uma mesma

proposta.

Destacamos ainda que, a experiência descrita mostrou-se uma prática de

sucesso, visto que obtivemos a participação de todos os alunos, inclusive dos mais

desinteressados. Talvez, o uso de mídia digital e o caráter interativo de nossa

sequência, tenha possibilitado uma maior colaboração discente, comprovada através

da qualidade das produções escritas e das discussões geradas em sala de aula.

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Referências

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:

terceiro e quarto ciclos do ensino Fundamental: Língua Portuguesa/ Secretaria de

Educação Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1998.

MINAS GERAIS, SEE - Conteúdo Básico Comum (CBC) de Língua Portuguesa: Ensinos

Fundamental e Médio. Disponível em:

<http://crv.educacao.mg.gov.br/sistema_crv/banco_objetos_crv/%7BBB6AC9F9-ED75-

469E-91A4-40766F756C2D%7D_LIVRO%20DE%20PORTUGUES.pdf> Acesso em: 9 de

setembro de 2014.

MATENCIO, M. L. M. Atividades de retextualização em práticas acadêmicas: um

estudo do gênero resumo. Scripta, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 25-32, 2002.

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Leila Cruz Magalhães

Mestranda em Linguística pela Universidade Federal de

Juiz de Fora e licenciada em Língua Portuguesa pela mesma

instituição.

Tereza D’Ávila Ferreira

Mestranda em Literatura pela Universidade Federal de Juiz

de Fora, licenciada em Língua Portuguesa pela mesma

instituição e bolsista de iniciação à docência no Colégio de

Aplicação João XXIII(UFJF).