reflexÕes 17 9 de agosto de...

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REFLEXÕES 17 Domingo 9 de Agosto de 2020 Luís Kandjimbo |* Quando em 2002, com o artigo publicado na “Luso-Brazilian Re- view” (Revista Luso-Brasileira) da Universidade de Wisconsin, dos Estados Unidos da América, o so- ciólogo português Boaventura de Sousa Santos recuperava o par dia- léctico de “Prospero-Caliban” para caracterizar o periférico colonia- lismo português, abordando o tema das identidades e do pós- colonialismo, um debate sobre essas personagens shakespeareanas, vinha sendo animado no campo dos estudos literários africanos de língua portuguesa, desde 1989. Em Portugal, Manuel Ferreira e Pires Laranjeira, sucessivamente, par- ticipavam na renovação da leitura dos ensaios interpretativos do en- saísta cubano Roberto Fernández Retamar sobre “Caliban”. Os ecos desse debate pareciam chegar a outras geografias, quando o capítulo do meu livro “Apologia de Kalitangi”, dedicado ao que de- nomino por descalibanização das literaturas africanas, mereceu a atenção do grande ensaísta e pro- fessor nigeriano, Francis Abiola Irele. Em 2009, de regresso aos Es- tados Unidos da América, já no seu apartamento situado no campus da Universidade de Harvard, enviou uma mensagem apenas alguns dias depois da visita a Angola, comu- nicando que tinha lido o capítulo e que uma doutoranda iria ocu- par-se da sua tradução. O referido capítulo representa um exercício de rejeição categórica do sentido atribuído a “Caliban” – personagem extraída de “The Tempest”, texto dramático de Shakespeare – como símbolo do escritor da África Global. Não voltei a ter notícias da tradução, excepto uma inconsequente refe- rência ao possível título do artigo numa revista de Harvard. Entre- tanto, o professor Abiola Irele fa- leceu oito anos depois, tendo eu recebido ainda uma última men- sagem sua solicitando uma cola- boração, mas já sobre o ensino do português na Universidade Pública de Kwara onde ocupava o posto de Decano na Faculdade de Huma- nidades, Gestão e Ciências Sociais, na Nigéria. É evidente que ele co- nhecia a tematização crítica a que se submete a personagem shakes- peareana, especialmente na Amé- rica Latina, em que se destaca o ensaísta e poeta cubano que revisito regularmente, Roberto Fernández Retamar (1930-2019), director da Casa de las Américas, desde 1986 até a data da sua morte. Foi a partir de finais da década de 80 que comecei a ler Retamar. Após a primeira viagem a Havana em 1979, como repórter da Rádio Nacional de Angola, onde adquiri exemplares de algumas revistas de cinema e literatura, tais como “Cine Cubano” e “Casa de las Américas”, passei a ser um fervoroso leitor seu. Sempre que encontrasse a re- vista “Casa de las Américas”, com circulação esporádica em Luanda, não hesitava em colocá-la na minha lista de leituras. Ainda conservo o exemplar da “Casa de las Américas”, datado de 1979, alusivo à VI Cimeira dos Não-Alinhados, acontecimento memorável, por ter sido o palco da minha primeira experiência jor- nalística internacional. Vivia-se, também em Luanda, o “boom” editorial de traduções da literatura latinoamericana. Retamar e os debates em língua portuguesa O primeiro ensaio de Roberto Fer- nández Retamar consagrado à her- menêutica de “Caliban” foi publicado em 1971 e o último em 1999.Mas a primeira referência co- notativa à personagem como em- blema ficcional, aludindo o homem afro-latinoamericano, ocorreu em 1969,por ocasião de uma palestra proferida durante a semana de Cuba em Grenoble (França), pu- blicada depois na revista cubana Bohemia. “Todo Caliban” é o título da sua inteira obra sobre o tema, comportando cinco ensaios: Cali- ban, Caliban Revisitado, Caliban en esta Hora de Nuestra América, Caliban Quinientos Años más Tarde, Caliban ante la Antropofagia. O seu quinto ensaio é publicado dez anos depois da comunicação que apresentei no I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa, realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, em Março de 1989, na cidade de Lisboa. A minha co- municação – “Para uma descali- banização das literaturas africanas” – tinha suscitado aceso debate com o falecido investigador e escritor português Manuel Ferreira, o pri- meiro professor de Literaturas Afri- canas de Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Ele contra-argumentou imediatamente. Defendeu o seu ponto de vista, reivindicando a le- gítima homenagem que prestava às Literaturas Africanas de Língua Por- tuguesa. No mesmo dia, tive igual- mente o grato prazer de trocar impressões com o também já falecido escritor cabo-verdiano Manuel Lopes, que concordava com a minha tese sobre a necessidade de “descaliba- nização” do escritor africano. Conheci pessoalmente o pro- fessor Manuel Ferreira no colóquio sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa – em que tam- bém fui orador –, realizado no Cen- tro Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1984, na cidade de Paris. Ele era um dos organiza- dores do evento e membro da co- missão científica de que fazia parte igualmente Jean-Michel Massa, outro reputado especialista francês. Em Portugal, Manuel Ferreira era uma autoridade, o pioneiro do en- sino das literaturas africanas em Portugal que tinha publicado uma antologia enciclopédica em três volumes, exclusivamente dedicada às literaturas dos Cinco Países Afri- canos de Língua Portuguesa com o seguinte título: “No Reino de Ca- liban”.Mas, quanto a mim, a per- tinência do título era questionável e, por isso, motivo para debate. O argumentário de Manuel Ferreira inspirava-se em Retamar e outros defensores desse tropismo. Em contrapartida, os meus argumentos, com fortes preocupações herme- nêuticas, baseavam-se nos fun- damentos enunciados por Aimé Cèsaire, um escritor das Antilhas de língua francesa. Hoje digo que o debate deveria ter tido como inter- locutor o próprio Roberto Fernández Retamar. O centro do nosso diálogo crítico teria sido a natureza ficcional da personagem e a teoria proposi- cional da verdade literária, tendo em conta os legados africanos da América Latina e o conceito de África Global. Mas o grande problema é que Retamar nunca se revelou preo- cupado com o estudo da obra de Shakespeare. Limitou-se simples- mente em glosar a apropriação sim- bólica da sua personagem. Personagem ficcional ou pessoal real? Roberto Fernández Retamar inte- grava-se na lista dos escritores contemporâneos das Caraíbas e da América Latina, ao lado de George Lamming (1927, Barbados), Aimé Cèsaire (1913-2008, Martinica). Perante a constelação das perso- nagens – Ariel, Caliban e Próspe- ro–tipificadas em “The Tempest” (A Tempestade), exceptuando Cè- saire, os dois identificam-se com “Caliban”. George Lamming des- taca-se com o livro “The Pleasures of Exile, 1960”,(Os Prazeres do Exílio). Na mesma linha, situa-se um discípulo de Retamar, o filósofo cubano Félix Valdez que, no seu livro “A Indisciplina de Caliban. Filosofia do Caribe para lá da Aca- demia”, paradoxalmente, faz a apologia de uma “filosofia cari- benha” recorrendo aos mesmos tropismos semânticos. O tropismo de “Caliban” re- sulta da classificação de uma per- sonagem ficcional à qual são atribuídas propriedades verda- deiras que parecem de igual modo identificar os afro-descendentes da América Latina. É caso para perguntar, se não há diferença entre personagens ficcionais e pessoas reais. Evidenciando a interpretação dominante no mun- do ocidental, William Hazlitt (1778-1830), um dos mais im- portantes críticos literários in- gleses do século XIX, entendia que “Caliban”, personagem des- crita como “selvagem, rude e meio-demónio”, é geral e jus- tamente considerado uma das obras-primas de Shakespeare. Na Europa, tal interpretação não variou muito ao longo dos tempos, salvo raras excepções. Retamar e sua comunidade interpretativa Roberto Fernández Retamar per- tence a uma comunidade de in- telectuais que faz uso das personagens com que se tece a peça de Shakespeare. Essa co- munidade tem os seus precur- sores, o nicaraguense Ruben Darío e o uruguaio José Enrique Rodó, em finais do século XIX. Mas ganha notoriedade após a Segunda Guerra Mundial. Além dos já referidos, conta com outros autores, entre os quais C.L.R. Ja- mes (1938) e Frantz Fanon (1952). Apropriando-se da persona- gem metafórica, George Lamming operacionaliza o conceito de Áfri- ca Global, ao sublinhar a impor- tância da experiência histórica profunda e singular, vivida por uma determinada comunidade de homens e mulheres cuja pre- sença no mundo estava desti- nada a transformar os olhos e os ouvidos do mundo e cuja li- bertação final será contribuição decisiva para toda a humani- dade. Mas quando classifica as vitórias dos africanos e afro- descendentes como méritos de “Caliban” não traduz rigorosa- mente essa experiência parti- lhada e suas consequências. O estatuto ficcional de “Cali- ban” e a recepção que a perso- nagem suscita não mereceram a atenção devida de ensaístas como George Lamming e Roberto Fer- nández Retamar. Há várias razões para pôr em causa uma inter- pretação que ignore as proprie- dades dessa personagem, enquanto fundamento para rei- vindicação simbólica e sua qua- lificação como arquétipo. Do ponto de vista ontológico, as suas propriedades nunca poderiam abranger a África Global. Só uma recepção exclusivamente emo- cional pode conduzir a seme- lhante empatia. Em nome de uma verdadeira justiça epistémica, torna-se necessário introduzir novas perspectivas críticas su- portadas por aquilo a que Paget Henry designou por “Filosofia Afro-Caribenha”, exigindo-se profundas reflexões no plano da Ontologia, Hermenêutica e Ética da Crítica Literária. Em última análise, é imperioso refutar os argumentos que sustentam a apropriação de “Caliban”, esse arquétipo da servidão e corres- pondentes imagens pejorativas, equívocas e ambíguas. *Ensaísta e professor universitário EM DIÁLOGO COM ROBERTO FERNÁNDEZ RETAMAR Nós não somos “Caliban” CONTREIRAS PIPA | EDIÇÕES NOVEMBRO

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REFLEXÕES 17Domingo9 de Agosto de 2020

Luís Kandjimbo |*

Quando em 2002, com o artigopublicado na “Luso-Brazilian Re-view” (Revista Luso-Brasileira) daUniversidade de Wisconsin, dosEstados Unidos da América, o so-ciólogo português Boaventura deSousa Santos recuperava o par dia-léctico de “Prospero-Caliban” paracaracterizar o periférico colonia-lismo português, abordando otema das identidades e do pós-colonialismo, um debate sobreessas personagens shakespeareanas,vinha sendo animado no campodos estudos literários africanos delíngua portuguesa, desde 1989. EmPortugal, Manuel Ferreira e PiresLaranjeira, sucessivamente, par-ticipavam na renovação da leiturados ensaios interpretativos do en-saísta cubano Roberto FernándezRetamar sobre “Caliban”.

Os ecos desse debate pareciamchegar a outras geografias, quandoo capítulo do meu livro “Apologiade Kalitangi”, dedicado ao que de-nomino por descalibanização dasliteraturas africanas, mereceu aatenção do grande ensaísta e pro-fessor nigeriano, Francis AbiolaIrele. Em 2009, de regresso aos Es-tados Unidos da América, já no seuapartamento situado no campusda Universidade de Harvard, enviouuma mensagem apenas alguns diasdepois da visita a Angola, comu-nicando que tinha lido o capítuloe que uma doutoranda iria ocu-par-se da sua tradução. O referidocapítulo representa um exercíciode rejeição categórica do sentidoatribuído a “Caliban” – personagemextraída de “The Tempest”, textodramático de Shakespeare – comosímbolo do escritor da África Global.Não voltei a ter notícias da tradução,excepto uma inconsequente refe-rência ao possível título do artigonuma revista de Harvard. Entre-tanto, o professor Abiola Irele fa-

leceu oito anos depois, tendo eurecebido ainda uma última men-sagem sua solicitando uma cola-boração, mas já sobre o ensino doportuguês na Universidade Públicade Kwara onde ocupava o posto deDecano na Faculdade de Huma-nidades, Gestão e Ciências Sociais,na Nigéria. É evidente que ele co-nhecia a tematização crítica a quese submete a personagem shakes-peareana, especialmente na Amé-rica Latina, em que se destaca oensaísta e poeta cubano que revisitoregularmente, Roberto FernándezRetamar (1930-2019), director daCasa de las Américas, desde 1986até a data da sua morte.

Foi a partir de finais da décadade 80 que comecei a ler Retamar.Após a primeira viagem a Havanaem 1979, como repórter da RádioNacional de Angola, onde adquiriexemplares de algumas revistas decinema e literatura, tais como “CineCubano” e “Casa de las Américas”,passei a ser um fervoroso leitorseu. Sempre que encontrasse a re-vista “Casa de las Américas”, comcirculação esporádica em Luanda,não hesitava em colocá-la na minhalista de leituras. Ainda conservo oexemplar da “Casa de las Américas”,datado de 1979, alusivo à VI Cimeirados Não-Alinhados, acontecimentomemorável, por ter sido o palco daminha primeira experiência jor-nalística internacional. Vivia-se,também em Luanda, o “boom”editorial de traduções da literaturalatinoamericana.

Retamar e os debates em língua portuguesaO primeiro ensaio de Roberto Fer-nández Retamar consagrado à her-menêut ica de “Ca l iban” fo ipublicado em 1971 e o último em1999.Mas a primeira referência co-notativa à personagem como em-blema ficcional, aludindo o homemafro-latinoamericano, ocorreu em

1969,por ocasião de uma palestraproferida durante a semana deCuba em Grenoble (França), pu-blicada depois na revista cubanaBohemia. “Todo Caliban” é o títuloda sua inteira obra sobre o tema,comportando cinco ensaios: Cali-ban, Caliban Revisitado, Calibanen esta Hora de Nuestra América,Caliban Quinientos Años más Tarde,Caliban ante la Antropofagia.

O seu quinto ensaio é publicadodez anos depois da comunicaçãoque apresentei no I Congresso deEscritores de Língua Portuguesa,realizado na Fundação CalousteGulbenkian, em Março de 1989,na cidade de Lisboa. A minha co-municação – “Para uma descali-banização das literaturas africanas”– tinha suscitado aceso debate como falecido investigador e escritorportuguês Manuel Ferreira, o pri-meiro professor de Literaturas Afri-canas de Língua Portuguesa naFaculdade de Letras da Universidadede Lisboa. Ele contra-argumentouimediatamente. Defendeu o seuponto de vista, reivindicando a le-gítima homenagem que prestava àsLiteraturas Africanas de Língua Por-tuguesa. No mesmo dia, tive igual-mente o grato prazer de trocarimpressões com o também já falecidoescritor cabo-verdiano Manuel Lopes,que concordava com a minha tesesobre a necessidade de “descaliba-nização” do escritor africano.

Conheci pessoalmente o pro-fessor Manuel Ferreira no colóquiosobre as Literaturas Africanas deLíngua Portuguesa – em que tam-bém fui orador –, realizado no Cen-tro Cultural da Fundação CalousteGulbenkian, em 1984, na cidadede Paris. Ele era um dos organiza-dores do evento e membro da co-missão científica de que fazia parteigualmente Jean-Michel Massa,outro reputado especialista francês.Em Portugal, Manuel Ferreira erauma autoridade, o pioneiro do en-

sino das literaturas africanas emPortugal que tinha publicado umaantologia enciclopédica em trêsvolumes, exclusivamente dedicadaàs literaturas dos Cinco Países Afri-canos de Língua Portuguesa como seguinte título: “No Reino de Ca-liban”.Mas, quanto a mim, a per-tinência do título era questionávele, por isso, motivo para debate. Oargumentário de Manuel Ferreirainspirava-se em Retamar e outrosdefensores desse tropismo. Emcontrapartida, os meus argumentos,com fortes preocupações herme-nêuticas, baseavam-se nos fun-damentos enunciados por AiméCèsaire, um escritor das Antilhasde língua francesa. Hoje digo que odebate deveria ter tido como inter-locutor o próprio Roberto FernándezRetamar. O centro do nosso diálogocrítico teria sido a natureza ficcionalda personagem e a teoria proposi-cional da verdade literária, tendoem conta os legados africanos daAmérica Latina e o conceito de ÁfricaGlobal. Mas o grande problema éque Retamar nunca se revelou preo-cupado com o estudo da obra deShakespeare. Limitou-se simples-mente em glosar a apropriação sim-bólica da sua personagem.

Personagem ficcional ou pessoal real?Roberto Fernández Retamar inte-grava-se na lista dos escritorescontemporâneos das Caraíbas e daAmérica Latina, ao lado de GeorgeLamming (1927, Barbados), AiméCèsaire (1913-2008, Martinica).Perante a constelação das perso-nagens – Ariel, Caliban e Próspe-ro–tipificadas em “The Tempest”(A Tempestade), exceptuando Cè-saire, os dois identificam-se com“Caliban”. George Lamming des-taca-se com o livro “The Pleasuresof Exile, 1960”,(Os Prazeres doExílio). Na mesma linha, situa-seum discípulo de Retamar, o filósofo

cubano Félix Valdez que, no seulivro “A Indisciplina de Caliban.Filosofia do Caribe para lá da Aca-demia”, paradoxalmente, faz aapologia de uma “filosofia cari-benha” recorrendo aos mesmostropismos semânticos.

O tropismo de “Caliban” re-sulta da classificação de uma per-sonagem ficcional à qual sãoatribuídas propriedades verda-deiras que parecem de igual modoidentificar os afro-descendentesda América Latina. É caso paraperguntar, se não há diferençaentre personagens ficcionais epessoas reais. Evidenciando ainterpretação dominante no mun-do ocidental, William Hazlitt(1778-1830), um dos mais im-portantes críticos literários in-gleses do século XIX, entendiaque “Caliban”, personagem des-crita como “selvagem, rude emeio-demónio”, é geral e jus-tamente considerado uma dasobras-primas de Shakespeare.Na Europa, tal interpretação nãovariou muito ao longo dos tempos,salvo raras excepções.

Retamar e sua comunidadeinterpretativaRoberto Fernández Retamar per-tence a uma comunidade de in-te lec tua i s que faz uso daspersonagens com que se tece apeça de Shakespeare. Essa co-munidade tem os seus precur-sores, o nicaraguense RubenDarío e o uruguaio José EnriqueRodó, em finais do século XIX.Mas ganha notoriedade após aSegunda Guerra Mundial. Alémdos já referidos, conta com outrosautores, entre os quais C.L.R. Ja-mes (1938) e Frantz Fanon (1952).

Apropriando-se da persona-gem metafórica, George Lammingoperacionaliza o conceito de Áfri-ca Global, ao sublinhar a impor-tância da experiência históricaprofunda e singular, vivida poruma determinada comunidadede homens e mulheres cuja pre-sença no mundo estava desti-nada a transformar os olhos eos ouvidos do mundo e cuja li-bertação final será contribuiçãodecisiva para toda a humani-dade. Mas quando classifica asvitórias dos africanos e afro-descendentes como méritos de“Caliban” não traduz rigorosa-mente essa experiência parti-lhada e suas consequências.

O estatuto ficcional de “Cali-ban” e a recepção que a perso-nagem suscita não mereceram aatenção devida de ensaístas comoGeorge Lamming e Roberto Fer-nández Retamar. Há várias razõespara pôr em causa uma inter-pretação que ignore as proprie-dades de ssa pe rsonagem,enquanto fundamento para rei-vindicação simbólica e sua qua-lificação como arquétipo. Doponto de vista ontológico, as suaspropriedades nunca poderiamabranger a África Global. Só umarecepção exclusivamente emo-cional pode conduzir a seme-lhante empatia. Em nome de umaverdadeira justiça epistémica,torna-se necessário introduzirnovas perspectivas críticas su-portadas por aquilo a que PagetHenry designou por “FilosofiaAfro-Caribenha”, exigindo-seprofundas reflexões no plano daOntologia, Hermenêutica e Éticada Crítica Literária. Em últimaanálise, é imperioso refutar osargumentos que sustentam aapropriação de “Caliban”, essearquétipo da servidão e corres-pondentes imagens pejorativas,equívocas e ambíguas.

*Ensaísta e professor universitário

EM DIÁLOGO COM ROBERTO FERNÁNDEZ RETAMAR

Nós não somos “Caliban”

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ARTES18 Domingo9 de Agosto de 2020

MEMORIAL DR. ANTÓNIO AGOSTINHO NETO

Música e artes plásticas onlineO Memorial Dr. António Agostinho Neto está a ajustar toda a sua programação ao meio digital. Isso inclui os

concertos musicais, realizados sem plateia, e até a exposição da sua colecção de artes plásticas. Nas redes sociais doMAAN (Youtube, Instagram e Facebook) estão disponibilizados os concertos de Filipe Mukenga e Dino Ferraz e a

exposição colectiva de artistas angolanos “Com Os Olhos Secos”

Analtino Santos

Sem plateia, o concerto de Filipe Mu-kenga foi transmitido ao vivo no dia30 de Julho na internet, onde continuadisponível. Mukenga fez-se acom-panhar em palco apenas pelo jovemguitarrista Mário Gomes. Bem próximodo lugar onde repousam os restosmortais do Pai da Nação, Mukengaadaptou e cantou “Poesia Africana”,de autoria, precisamente, de Agos-tinho Neto. Na abertura brindou osinternautas com “Dilombe”, e, daparceria com Filipe Zau, “Mulheresdo Golungo Alto”.

O tema “Athu Mu Njila”, conhecidoinicialmente na voz de Santos Júnior eagora na de Yola Semedo, foi cantadopor Filipe Mukenga, o seu autor, queinterpretou ainda “Nvula”, “Lemba”,“Ndiloewa” e “Minha Terra, Terra Mi-nha”. Temas poucos explorados e iné-ditos da parceria com Zau tambémforam cantados, como “Simples” e“Quero descanso”. Mukenga surpreen-deu vocalizando em lingala “Yó NgayNa Lingue Yó”, de 1974, e não deixoude fora “Yalta”, muito recorrente nosseus últimos espectáculos.

Para a parte final do concerto,onde o virtuosismo e a qualidadetécnica de Mário Gomes não passaram

despercebidos, ficaram temas comoo patriótico “Angola no Coração” eo lado Semba de Mukenga eviden-ciado em “Balabina” e “Eu vi Luanda”.Foi notório um certo nervosismo porparte do artista, que não está habi-tuado a este formato de concerto,assim como da produção, que pro-curou dar o seu melhor, de acordocom Rigoberto Fialho.

Ainda segundo a nossa fonte, o MAANteve de cancelar a maioria dos concertosprogramados para o primeiro semestredeste ano e agora está a “ajustar” osartistas que ficaram por actuar.

Importa salientar que no dia 19 deJulho, Filipe Mukenga foi homenageadono MAAN pela Associação Angolanados Profissionais e Produtores de Even-tos e Cultura.

Filipe Mukenga começou a sua car-reira musical ainda criança. Durante ajuventude, passou por formações deRock como os “The Five Kings”, “TheBlack Stars” e “Os Rocks”. Com o amigoZé Agostinho, forma o “Duo Missosso”e passa a fazer recolhas do cancioneirotradicional angolano. Na sua discografia,encontramos os álbuns “Novo Som”,“Kianda Kianda”, “Mimbu Iami”, “NósSomos Nós” e “Meu Lado Gumbe”. De-senvolveu vários projectos com o seuparceiro musicalFilipe Zau.

Exposição “Com os Olhos Secos”Nas plataformas digitaisdo MAAN tambémé possível ver a exposição “Com os OlhosSecos - Colecção do Memorial Dr. AntónioAgostinho Neto”, que exibe obras dosartistas plásticos angolanos Cristiano Man-govo, Guilherme Mampuya, Fineza Teta,Álvaro Macieira, Guizef, Paulo Amaral,Maiomona Vua, Albino da Conceição, ZéliaFerreira e Ernesto Airosa.

Inaugurada no dia 14 de Maio, nasplataformas digitais, segundo a organi-zação, o conjunto de obras “surge noâmbito da readaptação funcional do Me-morial Dr. António Agostinho Neto às al-ternativas da cultura digital, no períododo Estado de Emergência decretado àraiz da pandemia da Covid-19 e prossegueo objectivo que vem do ano passado,de apresentar outras colecções de arte,privadas ou públicas”.

A Administração do MAAN diz esperarque a exposição “seja o começo de umacolecção de que, no futuro, todos nospossamos orgulhar”.

Ainda de acordo com a nota, feitaprincipalmente de doações, o conjuntode obras expostas “é, em parte, teste-munho das diferentes exposições” queforam acolhidas no MAAN desde a suainauguração a 17 de Setembro de 2012.

Ao contrário das colecções privadas,que, normalmente, reflectem o gosto docoleccionador, e a maneira como elasse relacionam com a produção artísticae os criadores do seu tempo, as colecçõespúblicas, como é o caso da ColecçãoMemorial Dr. António Agostinho Neto,mostram o nível em que se encontravamos artistas, na época em que expuseramas suas obras.

DR

DR

Dino Ferraz foi o primeiro artista a pisar opalco do MAAN nesta fase da pandemia daCovid-19, precisamente no dia 18 de Junho.A próxima actuação será da Banda EthnoNgola. Neste momento, nas páginas do MAANpodem ser vistos os concertos de Filipe Mu-kenga e de Dino Ferraz. Este ano, antes dapandemia, passaram pelo memorial ÂngelaFerrão e Pop Show. Os concertos no MAANsão apoiados pela Caixa Artes.

Artista polivalente e multi-instrumentista,com capacidade para interpretar variadosestilos, desde o popular ao mais alternativo,Dino Ferraz apresentou no seu concerto temascomo “Inocente” e “Minha Amada”, assimcomo versões de clássicos nacionais. O pri-meiro single do músico, “Inocente”,foi gravadoe lançado em 2019 e tem em preparação um

álbum com a produção de Toty Samed.Considerado o melhor intérprete de

2015 no Festival da Canção de Luanda, daLAC, com “Saber Amar” de Totó ST, DinoFerraz foi ainda o melhor compositor eco-produtor da edição de 2018 do referidofestival, com a canção “Se Fora Eu”,inter-pretada por Carla Moreno. Ainda nesteano, participou no festival nacional demúsica popular “Variante”.

Dino Ferraz Albino, de seu nome com-pleto, é cantor, compositor, intérprete eprofessor, formado em música na espe-cialidade de Canto Ligeiro Profissional pelaAcademia Nacional de Artes de Luanda. Émembro da União Nacional dos Artistas eCompositores (UNAC) e da Associação deTrovadores de Angola.

Estreia de Dino Ferraz

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ARTES 19Domingo9 de Agosto de 2020

Isaquiel Cori

Um acontecimentodigno de mar-car, seguramente, a agenda me-diática nacional, seria o regressodo poeta Adriano Botelho deVasconcelos à publicação, onzeanos depois. Mas as restriçõesdecorrentes do Estado de Cala-midade fizeram com que “O SolNão se Abre”, o novo poemáriodo escritor, fosse posto em cir-culação quase na clandestini-dade: os poucos exemplaresdisponíveis estão a ser distri-buídos pela União dos EscritoresAngolanos de mão em mão.

O livro foi escrito durante oconfinamento provocado pelapandemia da Covid-19, tal comoo diz o próprio autor: “Escrevi naquarentena e o que eu mais quisfoi não sentir o refúgio, não contaros ventiladores e leitos em falta.Em cada verso estão presentes to-dos os medos, os silêncios, o tempode pedra, os reencontros, o nossocaos, a filosofia animada pelo Tibae as esperanças”.

Com 79 páginas, o livro contacom uma edição esmerada, o pre-fácio assinado por Ana de Sá e oposfácio por Akiz Neto. O poetabrinda o leitor com uma nota in-trodutória em que explica ao queveio. “’O Sol Não se Abre’ é um pe-queno livro onde tento ser na escritao que tenho de emoção quandooiço música africana: gosto de en-trelaçar um conjunto de emoçõescomo se não tivessem marcadores,encontrar a filosofia existencialpor conta de nossos tropeços e al-guma coisa do passado quechamammemória e origem”, diz.

Os poemas de ABV são frutodo estado de quarentena, do con-finamento imposto pela pandemiada Covid-19. Mas não se deixamaprisionar pela situação pandé-mica, fluem para o passado, atravésda memória, e para o futuro e aintemporalidade, através da ima-ginação. É um livro, repetimos,cujo lançamento em situação denormalidade constituiria um gran-de acontecimento literário, culturale mediático. Isso pela “posição”de ABV no sistema literário an-

golano e pelo valor intrínseco dospoemas contidos no livro.

Outro achado editorial destetempo de Covid-19 é o livro emformato digital “Crónicas Tão Bran-cas de Azul (A Idade dos Lados)”,uma colectânea de crónicas deDavid Gaspar, Dias Neto, Kaz Mu-fuma e Luefe Khayari. É, maisuma vez, a nova geração a dar car-tas, tanto na autoria dos textoscomo na edição do e-book. LuefeKhayari, o editor, é igualmenteresponsável pela edição do sitePalavra & Arte (www.palavraear-te.co.ao), especializado em lite-ratura e arte. As crónicas capturamfragmentos da realidade do dia-a-dia, comentam-nos, desmon-tam-nos, satirizam-nos; verbalizama sensação, o ponto de vista, aalegria e a indignação que, por-ventura, o leitor tem cravado nopeito, na mente ou na garganta.Reconhecidamente, o cadernoFim-de-Semana deu à estampa,em edições anteriores, crónicaspublicadas nesta colectânea e há-de voltar a fazê-lo quando a opor-tunidade se propiciar.

Novo livro de Adriano Botelho de Vasconcelos

“O SOL NÃO SE ABRE”

A movimentação literária, no que a lançamento de livros e outros eventos públicos dizrespeito, é uma das vítimas da pandemia da Covid-19. Mas os escritores não pararam de

escrever. Prova disso é o novo livro do poeta Adriano Botelho de Vasconcelos, “O Sol Não seAbre”, e os e-books “Escritos de Quarentena” e “Crónicas tão Brancas de Azul”

“Crónicas Tão Brancas de Azul”“Escritos de Quarentena”

A Edições Handyman, criadaem 2018 por estudantes docurso de Língua e Literaturasem Língua Portuguesa da Fa-culdade de Letras da Univer-sidade Agostinho Neto, com oobjectivo de publicar livroselectrónicos de cariz literárioe científico, pôs em circulação,no formato digital, o livro “Es-critos de Quarentena”, umacolectânea de poemas, contose crónicas de 39 autores danovíssima geração de escrito-res, exceptuando José LuísMendonça, João Tala e CremilaLima. A obra destes três autoresgoza de uma recepção bastantefavorável no seio dos novosescritores, razão pela qualterão sido incluídos tutelar-mente na colectânea.Hélder Simbad e Denise

Kangandala já têm livros pu-blicados, sendo os jovens au-tores (da colectânea) mais

conhecidos do público leitor.Outros como Gonçalves Handy-man, Pedro Kamorroto, EmaNzadi, Satchonga Tchiwale,Garcia Pedro Teleka, Rosa Ca-molaquenda, Edmira Cariango,Kaz Mufuma, Dias Neto, Ka-lunga (João Fernando André)e Mabanza Kambaka têm serevelado bastante interventi-vos, e por isso conhecidos,nas redes sociais, meio muitousado por essa geração de es-critores para darem a conhecerfragmentos das suas obras. Os autores reunidos em “Es-

critos de Quarentena”, maiori-tariamente, são estudantesuniversitários, recém-licenciadose professores. A qualidade dosescritos é, obviamente, bastantevariável, mas ficamos com acerteza de que alguns dos fu-turos grandes escritores an-golanos estão na lista quecitamos acima.

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ENTREVISTA20 Domingo9 de Agosto de 2020

EDIÇÕES NOVEMBRO

Gilberto Júnior é uma referência dojornalismo cultural e da Rádio Nacional deAngola, órgão em que trabalhou durante 38anos. Está reformado desde o ano passado.

Man Gibas, como é tratado pelos maispróximos, apresenta a lucidez de umhomem em plena maturidade.Em

entrevista ao Jornal de Angola falou da suaexperiência como responsável, durantevários anos, do sector cultural da Rádio

Nacional. Feitos como a criação do“Top dosMais Queridos” e do programa “Quintal do

Ritmo”, os espectáculos musicais quearrastavam multidões, as iniciativas

pioneiras em torno da sistematização doSemba,a paixão pelos arquivos sonoros e oseu último projecto radiofónico - “Ripiti” -,

constituíram, entre outros, os tópicos daconversa que a seguir se transcreve

Analtino Santos

Como entra na RádioNacional de Angola e comoforam os seus primeirospassos nesta casa de rádio?Eu entro na Rádio Nacionalem 1981, através de um con-curso público para captaçãode repórteres, locutores eelaboradores musicais.Éra-mos mais de 80 candidatose fui um dos contemplados.Da minha leva fizeram partejornalistas como João MiguelNeves das Chagas, PauloAraújo (que nos últimos anosde vida esteve ligado à LAC),Nicolau Araújo, Amadeu Pi-mentel, Regina Veloso, quefoi locutora, Maria Augusta,Eduardo Beny...Foi um grupomuito consistente, já nãome lembro de todos os no-mes, naturalmente. Primeirotive uma passagem pela áreadesportiva, porque, enquantojovem, fiz muitos cursos:juiz cronometrista de nata-ção, árbitro de andebol e debasquetebol, que exerci nosJogos da África Central.Tinhauma certa inclinação pelodesporto e fiquei por lá algumtempo. Depois, a senhoraMaria Luísa Fançony - paramim uma sumidade, foi umadas minhas professoras naRádio Escola - achou porbem que deveria sair do des-porto e ir para a área de rea-lização de programas. Entreina área de realização de pro-gramas em Dezembro de1982 e fui colocado no pro-grama “Para Jovens”. Fui oúltimo realizador do mesmo.Rendi a Eremita Carvalho;por lá antes passaram La-dislau Silva, Té Silva e outrasfiguras do jornalismo daquela

época. O “Para Jovens” é oprograma onde surge o “Topdos Mais Queridos”, em 1982.

E, na verdade, como surgiuexactamente o “Top dosMais Queridos”?Tudo começou como umconcurso de ocasião. O PauloAraújo, o João Chagas e oSérgio Carvalho tiveram aideia de criar um concursopara medir a pulsação damúsica angolana e, de formasimples, durante três sema-nas, submeteram à votaçãodos ouvintes. Aconteceu quea Direcção da Rádio apro-veitou o concurso juvenil eachou por bem fazer um es-pectáculo com os vencedoresno Dia da Rádio. É assim queo “Top dos Mais Queridos”ganha projecção e na pri-meira , o primeiro classifi-cado teve 100 ou 90 votos,ainda tenho estes registoscomigo. No ano de 1983, eu,já na condição de realizadordo “Para Jovens”, decidocriar um regulamento comas devidas balizas para o“Top dos Mais Queridos”. Eassim fizemos a segundaedição e as seguintes, até1987, altura em que o pro-grama sai do ar.

E assim foi caminhando o“Top dos Mais Queridos”…Sim, e com sucesso, aindana fase inicial.Por exem-plo,a Rádio Nacional orga-nizou, na Ilha de Luanda,a “Maratona Musical”, em1984, tendo como base o“Top dos Mais Queridos”.Chamada“Rádio Festival”,talvez tenha sido a maiorrealização artística em An-gola.Foram 24 horas de mú-sica. Como responsável do

“Top” estive a frente destainiciativa, cujo mentor foi oGuilherme Mogas. Pusemoslá os principais artistas na-cionais,e, pela primeira vezem Luanda, houve um gran-de engarrafamento.Para saí-res da ponte da Ilha até aFloresta demoravas três ho-ras, algo que nunca tinhaacontecido. Todo mundoqueria ir para a Ilha e pensoque colocámos lá mais decem mil pessoas. E aindaconvidámos a Leci Brandão,brasileira, e o agrupamentoÁfrica Negra, de São Tomée Príncipe, que estava naberra. Tratei os PTA’s no Ban-co Nacional de Angola. Elesdeveriam chegar no dia 4 deOutubro, mas não chegaramporque a TAAG cancelou ovoo. Chegaram no dia se-guinte. Quando eles foramlevados para a Ilha não es-tavam a acreditar no queviam. E até preguntaram:“Mas com esta gente toda,vamo s a c t u a r me smoaqui?”.Foi um grande su-cesso. Algo curioso: naquelafase as actividades culturaisde massas (populares) erampor conta do MPLA. No pro-cesso de preparação, o Ro-berto de Almeida, entãosecretário para a Esfera Ideo-lógica, estava ausente dopaís;chegou uns dias antesdo acto. Como o protago-nismo era da Rádio, ele co-locou alguns entraves.Depoisde mui tas d i scussões ,achou-se uma solução: odiscurso de abertura, quenão estava previsto, foi feitopor Mariano Puku, comis-sário provincial de Luanda,por orientação do Partido.Eraassim que as coisas funcio-navam (risos).

Quanto tempo fica no “Topdos Mais Queridos”?Tive três passagens pelo “Topdos Mais Queridos”. A pri-meira passagem foi de 1983a 1987, ou seja, até a sua pa-ralisação. O “Top” fica quasedez anos sem ir ao ar e res-surge em 2001, sob minhaalçada. Nesse ano, fizemo-lo em Benguela, com a maiormovimentação artística dacidade. Durante duas sema-nas, estivemos a preparar oacto final com 24 horas demúsica angolana ao vivo.Lembro-me de um encontrocom o falecido governadorDumilde Rangel. Respon-sável da organização, fui in-dicado para explicar osdetalhes e afirmei que às 18horas a actividade teria iníciono largo do Monumental.Ele perguntou“Às 18 horasde Angola ou de Londres?”.A minha resposta foi“A RádioNacional trabalha em funçãodo tempo”. E assim foi. Fi-zemos uma grande festa coma Banda Movimento, a BandaMaravilha, os Versáteis, AsGingas do Maculusso, Ca-labeto, Bangão, ou seja, amalta que fazia sucesso anível nacional esteve emBenguela. Há um colega nos-so,José Cabral Sande, quefoi director da Rádio Ben-guela e na altura era o directorda Rádio Morena, que no diaseguinte, fazendo o comen-tário nesta estação privadade rádio, disse o seguinte:“Em Benguela, já vieram fi-guras como Agostinho Neto,Fidel Castro, mas nunca vi-mos tanta gente como a quea Rádio Nacional de Angolapôs no LargoMonumental”.Penso que, até hoje, foi amaior enchente em Ben-

guela. O meu terceiro mo-mento foi em 2013; o ven-cedor foi Matias Damásio e,sinceramente, não gosteidesta edição…

Algumas das principaisreclamações dos ouvintessão os critérios de selecçãodos músicos e os resultadosfinais do concurso...Infelizmente, esta é umaverdade. Eu já não podia es-tar na organização do “Topdos Mais Queridos”. É pre-ciso que seja revisto e ac-tualizado o regulamento.

Havia duas categorias:artista individual econjuntos?Até 1985, tínhamos duas ca-tegorias: conjuntos e artistas.É assim que outorgávamosos prémios.“Os Kiezos” eos“Jovens do Prenda” ven-ceram por duas vezes, nasquatro primeiras edições. Apartir de 1986, decidimosunificar, passando a ter umvencedor único. Em 1986,tivemos o que, na minhaopinião, foi o melhor “Topdos Mais Queridos”.O es-pectáculo de consagraçãoaconteceu no Pavilhão daCidadela. Levámos 15 milpessoas para o recinto, coisaque poucas vezes os gruposdesportivos conseguiam fa-zer.Reconheço que este feitoocorreu porque eu controleia venda dos bilhetes. Nestaedição Pedrito foi o vencedor,com a canção “Realidade”e o segundo classificado foiCarlos Baptista, com “En-quanto Espero”. A diferençafoi mínima, mas algo quemarca este “Top” é que quasetodos os temas tornaram-se sucessos: “Nova Coope-

GILBERTO JÚNIOR, RADIALISTA

Lembranças do“Top dos

Mais Queridos”

ração”, dos Jovens do Prenda,“Sessá Mulemba”, dos Me-rengues, “Tussokana Kiebi”,de Calabeto, “Sangui Nguen-da”, de Proletário, “Carna-val”, dos SOS e “Maria Fula”dos Facho com SeguraShow.Todas essas músicasestão aí, até hoje.

Mas este “Top” foi muitocontestado.Alguns dizemque, sendo a letra da músicade autoria de umafuncionária da RNA, isso foideterminante para a vitóriado Pedrito. Isto é verdade?Estou em condições de di-zer-lhe o seguinte: quemcontrolava os votos era eu,e, pessoalmente, pensavaque o Carlos Baptista seriao vencedor.Só que na con-tagem o Pedrito teve maisvotos.Cheguei a dizer queisso traria problemas. A di-rectora Maria Luísa disse quenão haveria alteração, porqueos resultados apurados foramaqueles, sem qualquer pos-sibilidade de alteração. Haviauma envolvência total dapopulação, e, no final dascontas, muitos bateram pal-mas, mas não votaram.Estefoi o grande problema e sintoque continuou a ser nas úl-timas edições.Muitos recla-mam mas não votam.Porexemplo, noto que os jovensvotam em peso e os artistase seus seguidores fazem umaespécie de campanha.

Naquele tempo os cuponseram recortados do Jornalde Angola...Ai que saudades desta e dou-tras coisas engraçadas queaconteciam.Por exemplo,ainda nesta edição, Os Jovensdo Prenda estavam a ensaiar

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EDIÇÕES NOVEMBRO

ENTREVISTA 21Domingo9 de Agosto de 2020

a “Nova Cooperação”, numestúdio na zona da Gajajeira.Lembro que fui pedir o títuloda música, porque tinha dea incluir no cupom e eles es-tavam com dificuldade emterminar. Mas a música jáestava quase toda ela feitae, lá com a malha caracte-rística, fecharam. Depoisperguntei ao Zé Keno o títulopara constar do cupom a pu-blicar no Jornal de Angola.Ele olhou para mim e disseque ainda não tinham o título.Pedi-lhe que explicasse oconteúdo da composição eele resumiu afirmando queabordava a cooperação, entãoeu sugeri e ficou: “Nova Coo-peração”.Podemos dizer: le-tra de Zé Keno e título deGilberto Júnior...

Ainda pegando nos cupons,houve um “Top” em quegrande parte deles foilevado para os quartéis…Sim. Foi uma forma de agra-decermos por todo o esforçoque as FAPLA, na altura, fa-ziam, porque o país estavaem guerra e havia a brigadaartística das FAPLA. Nesseano José Kafala tinha ganha-do o Festival da Canção Po-lítica.De trova militar. Épreciso que se reconheçaque a voz dele surgiu comuma certa potência, não es-tando ao alcance de qualquerum. A música com que ga-nhou o “Top” foi “Tuaze-diuala”.Foi feita uma selecçãode músicos, com o MoreiraFilho no baixo e o Mário Gar-nacho nas teclas e fez-seuma grande música. O ZéKafala depois ficou nossocolaborador, participou emmuitas gravações nossas.

Então, olhando para ocontexto político-militar, adirecção do “Top” achouque era importante que ummilitar ganhasse e inclinou ocampo?Não posso dizer isto, o ZéKafala ganhou porque tevemais votos. Houve um certodireccionamento em levaros cupons para os quartéis,mas os militares não foramos únicos.Os estudantes eos jovens votaram em peso,naquela fase a trova tinhapeso. Por outra, os militaresfizeram o serviço de casa,talvez foram orientados. Masuma grande verdade: nãohouve reclamações comoacontece hoje, que há semprealvoroço em torno de quemvence o “Top dos Mais Que-ridos”.Naquela altura nãohouve nada disso.

Depois temos um outromilitar como vencedor…Sim, o Jacinto Tchipa. Houveunanimidade e venceu porduas vezes. É importantetambém frisar que o Tchipateve como suporte EduardoPaim, líder da banda juvenilS.O.S. É curioso que Tchipavem de trás.Antes passoupelo “1º de Agosto”, grupoda Segurança do Estado, ondeo Kintino da “Banda Movi-mento” era o solista, foi do“África Show” do KinitoTambor de Fogo, do “Inter-palanca” do Matididi edo“Maringas”. Mas a verdadeé que o seu apogeu aconteceucom Eduardo Paim, que feza instrumentalização toda.Na altura o Paim era funcio-nário da RNA.

“Tenho um vasto acervo de música angolana”Tem uma grandepreocupação com osarquivos. Fale um poucodo acervo da sua casa, aRádio Nacional?Sim, tenho esta paixão. Tenhoum vasto acervo de músicaangolana, quer em discos quernoutros registos e não sei seexistem mais pessoas comeste tipo de material.Modéstiaà parte, actualmente tenhodúvidas se há alguém lá dentroque conheça o arquivo da Rá-dio Nacional de Angola melhordo que eu.Os outros segura-mente estão fora. Olha queexiste ainda muito materialno arquivo histórico da RádioNacional de Angola que nãotem tido o devido cuidado etratamento, pois não lhe édada a devida atenção. E eufalo isto com propriedade,porque conheço e pus lá muitamatéria durante anos. Hojevais lá e para identificar algotens muita dificuldade. O ar-quivo histórico da Rádio Na-cional de Angola é o arquivosonoro do país, ninguém maistem e hoje não se dá muitaimportância a isso. Aquilo foialvo de uma inundação e não

s e q u a n t i fi co u o q u e s eperdeu.Podíamos encontrardiscursos da altura da Inde-pendência, de Nito Alves...Estátudo lá ou devia lá estar.Nãoestão a dar a devida impor-tância.Olha que muitos de nósjá não estamos na Rádio.

A importância do arquivoda RNA foi reconhecidapelo malogrado ManuDibango, numa dasúltimas visitas que fez aosestúdios da RNA...Sim.Ainda me lembro da suaprimeira visita.Quando lheapresentámos várias músicasele qualificou“Atu Mujila”, navoz de Santos Júnior,comoum dos grandes temas ango-lanos.Ele achava que essamúsica respeitava os cânonesda elaboração musical. Pensoque, pelo passar do tempo edas mudanças sucessivas dedirecção, muitas coisas sevão perdendo.

Foi isso que o motivou arealizar a rubrica “Ripiti”,no programa “Poeira noQuintal”, nos seus últimosanos de RNA?

A minha intenção era reavivaralgumas coisas e ia a buscade temas dos arquivos.Sãoacima de 12.000 músicas comhistórias e poucas vezes sefaz recurso a elas. São poucasas pessoas que conhecemaquilo. Eu tive a vantagem deter estado na RNA desde 1982,até a data da minha aposen-tação, a sorte de ser chefe daRedacção Cultural e ter acom-panhado a melhor fase deprodução da música angolanano período pós-independênciae ter constatado, vivenciadoe participado nessa fase.Re-conheço que tenho esta van-tagem e aquilo está lá.

O “Ripiti” permitiu que anova geração tomassecontacto com espectáculosmusicais históricos...S i m e fo ra m i n i c i at i va sminhas.Por exemplo, aqueleregisto dos primeiros espec-táculos dos “Merengues” comRuy Mingas, Carlos Lamartine,Tonito, Fausto, o português,e outros artistas. Na verdade,este documento não fazia par-te dos arquivos da Rádio Na-cional de Angola, este material

foi confiado ao Artur Nevese, quando surgiu o “Ripiti”,ele chamou-me para ouvir e,pelo interesse histórico e ser-viço público, decidimos co-locar no ar. Passamos oespectáculo de apresentaçãodo“Instrumental 1º de Maio”,com Carlos Burity falando dasua fase de músico de inter-venção e da canção que lhefoi dada pela mãe do Zé Keno;o espectáculo de homenagemao Liceu Vieira Dias; as pri-meiras edições do “Top dosMais Queridos”, algumas edi-ções da série de espectáculos“Bom Fim-de-Semana”...Fo-ram muitos momentos e re-gistos históricos, que devemser revisitados.

“Ripiti” marca os últimostrês anos de GilbertoJúnior na Rádio, quandobrindava os ouvintes comgrandes revelações damúsica e história sócio-cultural angolana.Infelizmente saiu de umaforma inesperada. Quaisforam as reais razões? Que seja claro, eu saí da Rádioe não adianta citar as razões.

Poderia lá estar até hoje, naaltura a Direcção não fezuma proposta para dar se-quência ao “Ripiti”, não hou-ve esta preocupação e atéhoje as pessoas cobram-mepelo “Ripiti”. Penso que osconteúdos culturais não fa-zem parte das prioridades,não lhes é dado o devidotratamento, nem atenção.Fui director da Rádio Huam-bo duranteoito anos. Lá es-tampei na parede:“Se tocasdez músicas, oito devem serangolanas; se cinco, quatrotêm de ser nacional”.

Com esta bagagem toda,de que forma gostaria decontinuar a dar o seucontributo?Um dos meus objectivos écontribuir para a elaboraçãoda história da música ango-lana, difusão dos génerosmusicais, divulgação de ins-trumentos, discussão sobrea inserção desses na músicamoderna, a produção musicale sua qualidade, crítica a es-pectáculos, debates, divul-gação de notícias, dentreoutras questões.

“Quintal do Ritmo” e os mujimbosE como nasceu o programa“Quintal do Ritmo”?Foi um processo. O “Para Jo-vens” mudou de nome para“Hora Viva”.ADirecção criou aRedacção Cultural da RNA efui colocado como primeirochefe desta área, mas antesdisto, enquanto realizador do“Para Jovens”, já era o chefeda Redacção Social, isto aos22 anos de idade. Todos osprogramas sociais estavamsob minha responsabilidade.Foi com esta estrutura que em1987 foi criado o programa“Quintal do Ritmo”. É impor-tante que se diga que o “Quintaldo Ritmo”, felizmente, tinhauma grande equipa e não seise a Rádio Nacional voltará ater uma equipa como aquela.Fizeram parte do projecto: eu,como chefe da Redacção Cul-tural e realizador, os jornalistasJoão Chagas, Silva Júnior, PauloAraújo e Amadeu Pimentel,sob coordenação de Maria LuísaFançony, então directora deprogramas e uma das principaisimpulsionadoras. Destaco aquio João Chagas.Ele merece por-que era quem dava voz às nos-sas ideias. Um homem decultura, um apresentador quevinha do teatro, já era um jovemmuito engajado no associati-vismo estudantil no SalvadorCorreia e com uma cultura geralmuito sólida.

Que avaliação faz hoje doprograma “Quintal doRitmo”?Está na mó de baixo e desca-racterizado, tanto assim quehoje não o acompanho. Hámuitas ofertas neste espaço,que vão ao encontro daquiloque nós gostamos. Por exem-plo, o meu amigo Mariano deAlmeida também faz um pro-grama desse tipo. É bom quehaja diversidade.

Quais foram os feitos

marcantes do “Quintal doRitmo”? Nos primeiros cinco anos dasua existência o “Quintal doRitmo” fez furor no seio dogrande público, da classe ar-tística, das instituições e en-tidades que lidavam com ofenómeno musical. Transfor-mou-se, em determinados mo-mentos, na principal atracçãoda programação da RNA. A ex-tinta revista Tveja, da TPA, edi-ção de Maio de 1988, na página“Gente Nossa”, dizia: “Quintaldo Ritmo é um programa daRNA que não só fala, como temdado que falar”! Dentre outrosméritos, “Quintal do Ritmo”em muito contribuiu para oesbatimento de clichés comoo uso e abuso de temas pan-fletários nas composições mu-sicais. “Quintal do Ritmo” foio farol para o regresso às emis-sões de rádio da música de Da-vid Zé, Artur Nunes e Urbanode Castro, proscritas entre 1977e 1988. Por sua iniciativa, a Di-recção da empresa teve de so-licitar a devida anuência aoMPLA (na altura partido único).

O programa conseguiu arregi-mentar um reconhecido naipede colaboradores, como o es-critor, etno-musicólogo e maes-tro Jorge Macedo, o Dr. ManuelGomes dos Santos (antigo pre-sidente da UNAC), o músico,compositor e escriba BelmiroCarlos, o radialista Artur Arris-cado, os jornalistas AméricoGonçalves, Aguiar dos Santos,Reginaldo Silva, Carlos Ferreira,Mário Paiva, Alexandre Gourgel,dentre outros. Nós realizamoso “Concurso da Maior e MelhorDiscoteca de Música Angolana”.Foi possível, pela primeira vezem Angola, aferir com factos,qual o volume de discos e au-tores editados ao fim de quatrodécadas.“Quintal do Ritmo”foi pioneiro na realização desessões auditivas e tertúliasmusicais abrangentes, porexemplo, com definições sobreo Semba e suas origens.

Na época, aos sábados,ninguém gostava de perderas rubricas “Mujimbo” e“Plágio”...Sim e até houve o caso do Dom

Caetano, meu grande amigo,que foi despoletado por umouvinte. O “Som Angolano” naaltura era um grande sucessoe ouvir “Sou angolano de his-tória, com cinco seculos de gló-ria” mexia com todos nós epenso que ainda o faz. Eu leveio Dom Caetano à casa do meufalecido tio Pedro BonzelaFranco, grande passista de ou-tro tempo,que foi inserido notema, com os mais-velhos Ma-teus Pelé do Zangado, Adão Si-mão, Jack Rumba, Joana PernaMbuko e Didi da Mãe Preta. Como impacto deste tema, surgiamconvites para que o Dom can-tasse e os mais-velhos danças-sem.E eu tive que intermediar,porque o meu tio não era muitoa favor destas coisas de ir dançarcom outros.

E quanto ao “Mujimbo”?Tem graça que, em determinadoperíodo, o programa “Quintaldo Ritmo” passou a ser chamado,pelos artistas,“Mujimbo”.Comisto, o nosso programa passoua ser o mais famoso da Rádiodurante anos. Os artistas evi-tavam fazer determinadas coisascom medo de serem expostosno programa. Reconheço quefoi uma boa fase.

Fala de uma época de muitacriatividade na produção deconteúdos culturais narádio nacional de Angola...Sim.Quando foi criada,a Re-dacção Cultural tinha uma ac-tividade quase idêntica à daárea desportiva, que fazia osrelatos de futebol.Tínhamosuma preponderância tal e qual.Fazíamos transmissões em di-recto, entrevistávamos figuras,por exemplo,fomos à casa doPróprio Nini para contar his-tórias do Bairro Operário, dodeclamador Gabriel Leitão paraouvir depoimentos...Hoje faltaisto na produção jornalísticada Radio Nacional de Angola.

Na altura, criámos momentosúnicos, como o“Balaio das Le-tras”, onde os escritores e poetastinham o seu espaço, tínhamoso programa de “Cabinda aoCunene”, que, duas vezes porsemana, abordava Angola emtermos de hábitos, usos e cos-tumes, o “Machimbombo das10”, que era emitido das 10 às12 horas, de segunda a sexta-feira, para falar de música eoutras coisas, e, claro o “Quintaldo Ritmo”. Os escritores e jor-nalistas José Luís Mendonça,Álvaro Macieira e Jimmy Rufinofaziam, igualmente, parte dalista de colaboradores residen-tes da Redacção Cultural daRNA. O “Poeira no Quintal”creio que surgiu nos finais dosanos 90 e início dos anos 2000.

Falando de músicaangolana é incontornávelmencionar o Semba e aKizomba.Gostaria quedesse a sua apreciação. Porexemplo, na Kizomba nãose pode “esquivar” deEduardo Paim…Tem muito que se lhe diga. Massaiba que, para mim, a influên-cia do Zouk é muito acentuada.No passado, nós tínhamos aRumba de Angola e o Merengueangolano... Agora chega-se aesta fase e chamam, ao Zouk,Kizomba. Há muita Kizombaque, na verdade,é autêntico Zoukangolano. Olhando para a pro-dução, a única diferença em re-lação às músicas antilhanas é ofacto de serem cantadas em por-tuguês e com histórias angolanas.O Eduardo Paim foi funcionárioda Rádio Nacional e, nesta con-dição, produziu vários temas,como os do Jacinto Tchipa. Fezoutras coisas.Foi nesta condição,de funcionário da RNA, que MitoGaspar, então jornalista da RNAna Huíla e chefe do sector deprogramas, quando vem gravaro “Man Polé”, foi encaminhadopor mim ao Eduardo Paim.

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CELEBRAÇÕES22 Domingo9 de Agosto de 2020

Arcângela Rodrigues

Desolado, na incerteza derealizar o seu casamento,face à pandemia da Covid-19, André Florinda, 34 anos,não escondia a preocupaçãopela possibilidade de, maisuma vez, desistir da consu-mação do acto.

O evento, inicialmentemarcado para o ano passado,não se concretizou, por cau-sa da sogra que padecia deproblemas de saúde. Logo,foi remarcado para o mêsde Junho. Mas, com o au-mento de casos da Covid-19, que levou o Executivo adeclarar Estado de Emer-gência, André Florinda e asua companheira estavamapreensivos. O casal estavadisposto a esperar o tempoque fosse necessário para aconsumação do matrimónio,pois, no dizer dele, “a vidaé o bem mais precioso, quea todo custo deve ser pro-tegido”. Ambos decidiram-

se a esperar o tempo quefosse necessário para a con-sumação do matrimónio.

Felizmente, não tiveramde esperar muito tempo, poiso Executivo, no quadro dodesconfinamento, viria aanunciar a reabertura de vá-rios serviços públicos, em-bora com restrições.

Como contou o noivo,o padrinho não concordoucomum poss íve l novoadiamento do casamento,uma vez que, no seu en-tendimento, os indicadoresda pandemia são instáveise sem fim à vista. AndréFlorinda afirmou que de-pois de muito diálogo, aca-taram os conselhos dopadrinho e avançaram comos preparativos.

Foi assim que a sua com-panheira se dirigiu até à con-servatória do registo civil doKifica, a fim de se informarsobre a possibilidade de re-marcar a data e as medidasque deviam ser observadas.

E, finalmente, no dia 19

de Junho, os jovens contraí-ram o matrimónio, na pre-sença de apenas 10 pessoas.“Para o casal foi uma autên-tica dor de cabeça seleccionaros convidados”, explicouAndré Florinda.

Quando os noivos che-garam à conservatória, a en-trada estava cheia de amigos,irmãos de igreja e familiares.Todos queriam assistir à ce-rimónia. A confusão se ins-talou. O padrinho permitiua entrada de apenas quatropessoas na sala, duas de cadalado. As demais tiveram deesperar fora.

André Florinda contouque o casamento civil cul-minou com a realização deum almoço em casa dos pa-drinhos, com apenas 15convidados. As fotos de lem-brança foram tiradas no es-tabelecimento Bela Vista,em Viana. Durante dois dias,o casal viveu a lua-de-melem casa.

“Não sei onde a minha es-posa tirou tanta criatividade.

Nunca vi coisa igual, estavatudo bonito. Pétalas espa-lhadas por todos os cantosdo quarto. Na cama balõescom os dizeres ‘Te amo’ e‘Amor’. E, através de um apli-cativo que ela tem no telefone,conseguiu iluminar o quarto.Entre outros enfeites”, con-fidenciou o noivo.

“Não foi o casamento dosnossos sonhos, este espera-mos realizar aquando da ce-rimónia religiosa, previstapara este ano, no mês de No-vembro”, contou André Flo-rinda, enfatizando que ocasamento religioso será omomento para a tão desejadafesta, para reunir toda a fa-mília, amigos e irmãos deigreja. E se as coisas em No-vembro não estiverem fa-voráveis, vão realizar oevento noutra altura, até por-que o salão de festa e os res-pectivos serviços já estãopagos. As famílias repartiramas despesas, de forma a ali-viar os encargos e ninguémficar sobrecarregado.

A VIDA NÃO PÁRA

Contrair matrimónio em tempo de pandemiaAs restrições causadas pela Covid-19 tornaram tudo mais complicado. Mas os casais apaixonados

aproveitam as pequenas aberturas do desconfinamento para formalizar o tão aguardado casamento.É caso para dizer que o amor, realmente, superam barreiras

PAULO MULAZA | EDIÇÕES NOVEMBRO

| EDIÇÕES NOVEMBRO

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CELEBRAÇÕES 23Domingo9 de Agosto de 2020

Evelina António, 30 anos,disse à reportagem do Jornalde Angola que, apesar da si-tuação de pandemia, nuncacogitou adiar o seu casa-mento. “Não foi fácil chegaraté este momento. Com per-sistência, tudo se realizou”,disse ela.

A jovem confessou quetinha idealizado um casa-mento com todos os deta-lhes, desde a cerimóniana conservatória, a reali-zação da festa, a entregade brindes... Para sua pou-ca sorte não pôde concre-tizar o que idealizou. Porisso, aguarda pelo casa-mento religioso para darlargas ao projecto sonhado.

Evelina António explicouque a festa de casamentoestava avaliada em mais deseis milhões de kwanzas.

Lembrou que “foi tudomuito estranho, entrar paraa conservatória com um nú-mero tão reduzido de acom-panhantes, com máscara nacara e sem poder receberum abraço”.

Mas realçou que depoisda cerimónia, o conservadorautorizou o casal a retirar asmáscaras e a beijar-se.

O salão de festa já estavapago, mas foi possível obtero reembolso. Ela disse queapós a cerimónia civil, asirmãs ofereceram aos noivosum almoço em casa dos pais.A madrinha encarregou-seda compra do vestido e deoutros acessórios. Durante

cinco horas conseguiramreunir um total de 20 pes-soas, num ambiente de mui-ta alegria e confraternização.Evelina António revelou quea lua-de-mel aconteceuconforme tinham idealizado:estiveram a sós durante doisdias num hotel cujo nomenão quis revelar.

Transmissão onlineStélvio Manuel e Júlia Manuelcontraíram o matrimóniono dia 2 do mês passado, naprimeira conservatória doregisto civil de Luanda, lo-calizada na zona do Kinaxixi.O jovem contou que por cau-sa da pandemia a esposapensava em desistir, masele convenceu-a a não pro-ceder desta forma.

Um total de 12 pessoasparticipou do evento e quemnão esteve presente assistiuem directo, através da pla-taforma digital Skype. A ac-tividade terminou com arealização de um almoço emcasa dos padrinhos.

O salão de festa e os ser-viços associados já estão pa-gos e o casal pensa usufruirdo mesmo por ocasião docasamento religioso, caso asituação da pandemia sejaultrapassada e as grandesfestas sejam permitidas.

Júlia Manuel confessouestar feliz pela realização docasamento, ao mesmo tempoque disse “carregar uma tris-teza”, por não realizar a festatal como planeou.

Fruto da persistênciaPAULO MULAZA | EDIÇÕES NOVEMBRO

Restrições para garantir a segurançaA conservadorada primeira conservatóriado registo civil de Luanda, Ester dosSantos, informou que os casamentoscomeçaram a ser realizados no segundoperíodo do Estado de Emergência, comalgumas restrições, sendo permitidaapenas a presença do conservador, dosnubentes e das testemunhas.

Ester dos Santos deu a conhecer quedesde então, até meados do mês deJulho, foram realizados 96 casamentose receberam, em média diária, sete pro-cessos de casamento, de segunda a quin-ta-feira, entre as 8 e às 13 horas.

Acrescentou que alguns utentes têmsolicitado o adiamento do matrimóniopor causa das restrições que são im-postas. Para os actos de casamento,existem na primeira conservatória duassalas, sendo que só uma está a funcionar,“por oferecer melhores condições”. Istoé, está melhor adaptada à pandemiada Covid-19: na mesma é possível tra-balhar sem usar o ar-condicionado,mantendo as portas abertas.

Os casamentos são realizados ro-tineiramente de segunda a quinta-feira, entre as 8 e as 12horas.Nadaimpede que possam ser celebradosnoutros dias. Tudo depende da soli-citação dos utentes.

Segundo Ester dos Santos, desdeque passou a vigorar a Situação de Ca-lamidade, alguns casamentos passarama ser realizados fora da conservatória,desde que respeitadas as regras definidas

pela Direcção Nacional dos Registos eNotariados, que orienta a realização doevento em espaço aberto, a mediçãoda temperatura de todos os presenteslogo à porta e o uso obrigatório de más-caras, quer pelos noivos, quer pelosconvidados. A lotação do espaço deveser de 50 por cento e os conservadores,antes de realizarem o acto, devem aferirse as referidas condições estão criadas.

Ester dos Santos explicou que osutentes podem agendar a entrada dosprocessos do casamento através dalinha telefónica de apoio criada peloMinistério da Justiça e dos Direitos Hu-manos. “É um processo novo em quetodos estão a se adaptar”, disse. Para oacesso à instituição, está assegurada amedição da temperatura, o uso obriga-tório da máscara e a desinfecção dasmãos com álcool em gel.

Ester dos Santos fez saber que épermitido um total de 11 pessoas paraassistir à cerimónia de casamento den-tro da conservatória, “mas vários sãoos familiares que insistem em desres-peitar a regra, situação que tem difi-cultado o trabalho”.

A conservadora encoraja os utentesa usarem os diferentes aplicativos digitais,para fazerem imagens em directo e per-mitir que os ausentes possam assistir àcerimónia. A nossa fonte informou quetodas as áreas estão a funcionar, desdea emissão de certidões de casamento,boletins de óbito e outros serviços.

Page 8: REFLEXÕES 17 9 de Agosto de 2020imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/420702329_fim-de-semana_09.08.2020.pdf2 days ago · REFLEXÕES Domingo 17 9 de Agosto de 2020 Luís Kandjimbo |* Quando

TURISMO24 Domingo9 de Agosto de 2020

EDMUNDO EUCÍLIO | EDIÇÕES NOVEMBRO

As vendedoras de refeições nas barracas da zona turística do Panguila,município do Dande, província do Bengo, estão a viver momentos de

angústia. A pandemia da Covid-19 está a afugentar os clientes

Pedro Bica | Panguila

Em busca de solução, váriasvendedoras estão a diversi-ficar o negócio, passando àvenda ambulante de peixena zona dos Ramitos, emViana e nos arredores da vilapiscatória de Cacuaco.

A humilde região turísticado Panguila localiza-se maisacima de Kifangondo, narota Norte da Estrada Nacio-nal 100, para quem se faz àestrada a caminho de Caxitoe da província do Uíje.

As dezenas de barracasde comes e bebes lá perfi-ladas acolhiam clientes devários estratos sociais. O la-zer, o sossego e a degustaçãode pratos típicos faziam adelícia dos forasteiros.

A sua localização geo-gráfica é privilegiada, comestradas totalmente asfal-tadas e que, por isso, emtempos de normalidade, re-gistam grandes movimen-tações de pessoas e viaturas,proporcionando oportuni-dades de negócios.

Matilde Miguel Lopes,vendedora nas barracas decacusso do Panguila, admitiuà reportagem do Jornal deAngola que está a viver mo-mentos difíceis. “Já não te-mos dinheiro para continuar

com este negócio, que nãorende mais como antes. Oxa-lá, quando esta doença pas-sar, as autoridades nospossam ajudar com micro-créditos”, disse.

A feirante, com algumanostalgia, revelou que tevebenefícios notáveis, ven-dendo no Panguila, pois, emmédia, chegava a obter lu-cros diários entre 100 mil e150 mil kwanzas.

Construídas, na sua maio-ria, em blocos de cimento,rebocadas, pintadas e cobertade chapas de zinco, as bar-racas eram disputadas pelaclientela que procurava porlocais calmos onde pudessedeliciar-se com a gastrono-mia, em que despontava ocacusso grelhado na hora,regado com vinho tinto ouum bom maruvo.

Concretamente, o pratoque atraía tanta gente deLuanda era composto porcinco minúsculos cacussos,feijão de óleo de palma, ba-nana, mandioca e molho decebola e limão.

“Figura de marca”Fernanda André Santos, a“tia Nanda”, no local é “umafigura de marca”, isso porque,como ela própria assegurouao Jornal de Angola, o seu

porte físico “impõe autori-dade e respeito aos clientese colegas das vendas”.

Aos 52 anos, a “tia Nanda”,como prefere ser chamada,lamenta a falta de clientes.Mas mantém a fé em diasmelhores. “Há 22 anos avender aqui, ainda na alturaem que as barracas eram dechapas, sem chão cimen-tado, nunca tivemos umasituação como esta, em quetudo parou”, lembrou, as-segurando que está a pensarregressar à sua actividadeanterior, a venda ambulantede pescado nas zonas deViana ou nos arredores davila de Cacuaco.

A cada resposta às ques-tões colocadas, a “tia Nanda”respondia sempre com umsorriso nos lábios, como sefosse uma velha conhecidado repórter, o que tornavaa conversa descontraída eaprazível. “Meu filho, nãotenho nada a esconder. Nósganhámos mesmo dinheiroa vender cacusso aqui. Edava sim para viver e pagaros salários das trabalhadorase as propinas dos nossos fi-lhos”, confessou.

Bela António, igualmentevendedora, reiterou que apandemia da Covid-19 fezdesaparecer a clientela de

Luanda, precisamente a quemais procurava pelos ser-viços prestados nas barracasdo Panguila, sobretudo aosfinais de semana e feriados.

Moradora do Zango, BelaAntónio lamenta que, nosdias de hoje, apenas se con-segue vender um a três pratosde mufete. Reclamou que,actualmente, os poucosclientes, que vão aparecendo“dia sim, dia não”, obrigamas feirantes a baixar os preços,o que torna o negócio aindamenos lucrativo.

“O prato de mufete custa2.500 kwanzas e o clientepode baixar até 1.500. Comonão queremos ficar semvender, regra geral, cede-mos, meu pai, para não fi-carmos sem levar nada paracasa”, disse.

Com o semblante carre-gado de tristeza e pouco con-versadora, Bela Antónioexplicou que a maior partedo dinheiro que ganha servepara pagar a corrida de táxi,“porque os taxistas resolve-ram fazer rotas curtas”.

Revelou que algumas dassuas colegas optaram porvender peixe fresco na zonado Mundial, no municípiode Belas, em Luanda, onde“a procura satisfaz e dá al-gum lucro”.

TURISTAS DESAPARECERAM

Panguila, quem te viu e quem te vê

EDMUNDO EUCÍLIO | EDIÇÕES NOVEMBRO

A região do Panguila é ricaem tradições e festas popu-lares, sendo um verdadeirocaldeirão cultural, que com-bina, de maneira singular,os hábitos e costumes daspopulações oriundas das vá-rias regiões de Angola e deCabo Verde.

Além da gastronomia, amúsica e a orla marítima doSarico são algumas das atrac-ções desta zona turística,que abriga também belezasnaturais como as lagoas co-bertas de vegetação nativa.

A vila turística do Panguilaé composta pelas zonas doSarico, Panguila Velho e Pan-guila Novo.

A par das barracas de co-mes e bebes disputam pela

atenção dos turistas as hos-pedarias, um hotel, padarias,lanchonetes, pequenos ar-mazéns, cantinas, recau-chutagens... Quase todos osbancos comerciais que ope-ram em Angola possuem bal-cões na localidade.

A província do Bengo, emgeral, é uma região de grandeinteresse turístico devido aoseu potencial, que lhe permiteoferecer uma variedade sig-nificativa de lazer, sossego,turismo de observação, cul-tural, de sol, de caça, mundorural, agro-turismo e des-portivo. A sua riqueza mul-tifacetada compreende aindaas reservas florestais, lagoas,rios, praias e ruínas de edi-ficações do tempo colonial.

Caldeirão rico em tradições culturais

Potencial