o vulgarizador - ficção científica e filologia

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 A  NAIS DO  XV  C ONGRESSO  N  ACIONAL DE  L  INGUÍSTICA E  F  ILOLOGIA p. 1105 Cadernos do CNLF, Vol. XV, Nº 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011  A CONSTITUIÇÃO DA "PHILOLOGIA" EM "O VULGARISA DOR": UMA ANÁLISE DISCURSIVA  Allan Phillip Conceição de Ol iveira  (UERJ) [email protected]  Ana Beatriz Simões da Matta (UERJ) [email protected] 1.  Introdução O presente artigo pretende analisar a seção “A Philologia Moder- na e a Origem da Linguagem” de um periódico de divulgação científica do século XIX intitulado “O Vulgarisador: O Jornal dos Conhecimentos Úteis”, editado entre os anos de 1877 – 1880 por Augusto Emílio Zaluar (1825-1882); autor português naturalizado brasileiro que escreveu Pere- grinação pela Província de São Paulo (1860-1861) , datado de 1863, e também o primeiro romance de ficção-científica no Brasil - O Doutor  Benignus,  de 1875. O interesse pela ciência também se reflete em O Vul- garisador , jornal que tinha a proposta de trazer as mais recentes informa- ções científicas ao povo brasileiro. O responsável pela seção destinada aos estudos da Linguagem era o professor e filólogo Boaventura Plácido Lameira de Andrade (- 1897). Apesar de sua grande contribuição para o ensino brasileiro, principal- mente em escolas normais, pouco se sabe sobre esse autor, que, em par- ceria com Manuel Pacheco da Silva Junior (1842-1899) escreveu a Gra- mática da Língua Portugueza para uso dos gymnasios, liceos e escolas normaes (1894) (FÁVERO & MOLINA, 2009, p. 27). Buscamos compreender o estabelecimento do saber filológico no século XIX através desse material, bem como o funcionamento dos dis- cursos atrelados a este, que garantiriam o estatuto de verdade científica aos estudos gramaticais.  No quadro teórico de referência, utilizaremos as ideias propostas  por Orlandi (2002), a qual estabelece que os estudos filológicos no sécu- lo XIX funcionaram como instrumento de gramaticalização para a consti- tuição de uma língua nacional através da produção de dicionários e gra- máticas encarados como meios de consolidação do idioma pátrio. Sabe- se que os estudos filológicos do século XIX basearam-se principalmente no método histórico-comparativo, numa busca de resgatar as origens e

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O Vulgarizador - Ficção Científica e Filologia

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  • ANAIS DO XV CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

    p. 1105 Cadernos do CNLF, Vol. XV, N 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011

    A CONSTITUIO DA "PHILOLOGIA" EM "O VULGARISADOR": UMA ANLISE DISCURSIVA

    Allan Phillip Conceio de Oliveira (UERJ) [email protected]

    Ana Beatriz Simes da Matta (UERJ) [email protected]

    1. Introduo

    O presente artigo pretende analisar a seo A Philologia Moder-na e a Origem da Linguagem de um peridico de divulgao cientfica do sculo XIX intitulado O Vulgarisador: O Jornal dos Conhecimentos teis, editado entre os anos de 1877 1880 por Augusto Emlio Zaluar (1825-1882); autor portugus naturalizado brasileiro que escreveu Pere-grinao pela Provncia de So Paulo (1860-1861), datado de 1863, e tambm o primeiro romance de fico-cientfica no Brasil - O Doutor Benignus, de 1875. O interesse pela cincia tambm se reflete em O Vul-garisador, jornal que tinha a proposta de trazer as mais recentes informa-es cientficas ao povo brasileiro.

    O responsvel pela seo destinada aos estudos da Linguagem era o professor e fillogo Boaventura Plcido Lameira de Andrade (- 1897). Apesar de sua grande contribuio para o ensino brasileiro, principal-mente em escolas normais, pouco se sabe sobre esse autor, que, em par-ceria com Manuel Pacheco da Silva Junior (1842-1899) escreveu a Gra-mtica da Lngua Portugueza para uso dos gymnasios, liceos e escolas normaes (1894) (FVERO & MOLINA, 2009, p. 27).

    Buscamos compreender o estabelecimento do saber filolgico no sculo XIX atravs desse material, bem como o funcionamento dos dis-cursos atrelados a este, que garantiriam o estatuto de verdade cientfica aos estudos gramaticais.

    No quadro terico de referncia, utilizaremos as ideias propostas por Orlandi (2002), a qual estabelece que os estudos filolgicos no scu-lo XIX funcionaram como instrumento de gramaticalizao para a consti-tuio de uma lngua nacional atravs da produo de dicionrios e gra-mticas encarados como meios de consolidao do idioma ptrio. Sabe-se que os estudos filolgicos do sculo XIX basearam-se principalmente no mtodo histrico-comparativo, numa busca de resgatar as origens e

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    particularidades entre as lnguas e afirmar uma constituio identitria em cada uma dessas.

    Propomos por metodologia de anlise identificar o funcionamento das marcas lingusticas, depreendendo as possveis relaes com o dis-curso positivista e biologizante da poca. Pretende-se, desta forma, com-preender como as imagens do campo das cincias exatas so construdas discursivamente na seo A Philologia Moderna e a Origem da Lingua-gem, e como essas se encontram atreladas legitimao da filologia, re-cebendo em nosso corpus o estatuto de modernidade.

    2. A gramtica no sculo XIX

    A gramtica tradicional, tida como um conjunto de conhecimentos institucionalizados na sociedade, influenciou enormemente os trabalhos dos prprios gramticos e mais recentemente os dos linguistas (OR-LANDI, 2002, p.166), pois ambos precisavam primeiramente pautar-se em uma tradio que remontava Antiguidade Greco-Latina.

    A gramtica tradicional tem por objetivo principal conservar a va-riao da lngua culta utilizada pelos literatos e pelas camadas mais abas-tadas economicamente tendo como consequncia a excluso das outras variaes encontradas na sociedade. A sua funo rene, para tanto, as feies de tcnica e arte, pois ela desenvolve as partes do discurso, classificando-as e definindo as suas regras de uso alm de se preocupar com o estilo expressivo Estilstica que deveria se apoiar nos autores canonizados. Essa preocupao com a expresso lingustica perfeita to forte culturalmente que, at hoje, mesmo com os deslocamentos ocorri-dos, o ensino de Lngua Materna encontra-se atrelado ao ensino de gra-mtica normativa.

    Com a disseminao da filosofia positivista, esse paradigma foi deslocado. O positivismo no Brasil, como explicita Orlandi (2002), pro-pagou-se atravs do deslizamento de sentidos propostos pela escola fran-cesa de Comte. Partindo de sua base terica a previsibilidade cientfica (ver para prever), princpio segundo o qual a cincia, atravs de sua experimentao e verificao, seria capaz de explicar os fatos observados , a teoria positiva no Brasil propagou-se atrelada necessidade de orga-nizao e de constituio de uma nova nao. A marcha progressista da humanidade, carter prprio e indispensvel da filosofia positiva (COMTE, 1978, p. 3), difundiu-se em terras brasileiras aliada instaura-

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    o da ordem, identificada como base fundamental para o progresso de nossa nao. E a palavra de ordem na constituio identitria da nao brasileira atravessa o campo da linguagem e principalmente o estabele-cimento da lngua nacional.

    Difunde-se nos estudos lingusticos da poca o mtodo chamado histrico-comparativo. Segundo Bassetto (2001, p. 64),

    O mtodo histrico-comparativo aplicvel a casos de grupos de lnguas genealogicamente afins. Dados colhidos nas lnguas com a mesma origem so comparados entre si para se lhes encontrar a forma originria, determinar os metaplasmos ocorridos, verificar-lhes o significado, a formao de novos campos semnticos, o motivo ou os motivos de tais formaes, e inmeras questes semelhantes.

    Este mtodo se constitui como garantia cientfica atribuda aos es-tudos gramaticais, atuando, portanto, como instaurador da ordem para o progresso e a afirmao identitria de uma lngua nacional.

    No Brasil, os conceitos da gramtica tradicional so deslocados por essa nova constituio epistemolgica. De acordo com Foucault (2002, p. 32), todo enunciado, de um lado est ligado a um gesto de es-crita ou articulao de uma palavra, mas por outro abre para si uma e-xistncia remanescente no campo da memria. A construo do corpus discursivo da Filologia passou por essa contradio que ao mesmo tempo um gesto inicial e tambm uma retomada do j institudo socialmente, do j-dito, que constitui toda memria do dizer.

    O gramtico brasileiro do sculo XIX desempenha, assim, funo primordial na construo da lngua nacional. Este, ao deslocar o proces-so de saber legtimo de Portugal para o territrio brasileiro, interfere no processo pelo qual a legitimidade social e nacional de nossa lngua de-cidida (ORLANDI, 2002, p.191). Neste distanciamento da lngua me-trpole, o gramtico insere em suas descries elementos marcados pela historicidade e pelos movimentos de constituio do Estado brasileiro. Em sua posio-autor, o gramtico brasileiro (ORLANDI, 2002) busca produzir um saber metalingustico capaz de contemplar as aspiraes e os novos rumos produzidos pela sociedade brasileira decimonnica. A gra-mtica conduzida como um instrumento de solidificao desta afirma-o lingustica nacional, sedimentando o novo idioma ptrio.

    Desta forma, um contnuo movimento entre o saber filolgico e o saber gramatical estabelecido, num jogo entre a busca de legitimidade (por parte da gramtica) e de afirmao e comprovao cientfica (por

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    parte dos estudos filolgicos). Junior (2006, p. 4), ao definir o papel da gramtica histrico-comparativa para os estudos gramaticais em geral, a-firma que no sculo XIX h a necessidade de legitimao da gramtica enquanto cincia dos fatos de linguagem. O papel da gramtica deixaria de ser apenas o de um instrumento do bom uso da lngua para que esta se estabelecesse como campo disciplinar comprovado e legitimado pelos mtodos comparativos, alcanando desta forma um estatuto de verdade cientfica.

    3. Discurso da filologia moderna

    Esse novo recorte epistemolgico que surgiu com a instituio da filologia moderna foi uma possibilidade para que os estudos gramaticais h sculos baseados em tradies filosficas gregas e latinas alcan-assem a cientificidade que era imposta na poca.

    De acordo com a viso positivista, as sociedades se encontrariam em trs estgios de evoluo diferentes estado teolgico, metafsico e positivo.

    Define-se o primeiro como o estgio em que os fenmenos da na-tureza se explicariam atravs de criaturas sobrenaturais criaturas divi-nas, deuses, etc. O segundo estgio, por sua vez, explicaria a natureza a-travs da racionalidade, dos argumentos. J o terceiro, atravs da obser-vao, da experimentao e do controle.

    Essa tentativa de deslocamento dos conceitos da gramtica tradi-cional para um novo tipo de conhecimento da linguagem foi um esforo para que a sociedade brasileira alcanasse o terceiro estgio o estado cientfico e se equiparasse com os pases europeus, considerados mais civilizados e desenvolvidos.

    Em sua constituio discursiva, a filologia moderna sofreu inme-ras influncias de outras cincias que foram as bases modelares de cienti-ficidade durante o sculo XIX.

    O discurso da biologia, bastante propagado nessa poca, por causa das ideias de Charles Darwin (1809-1872) e Herbert Spencer (1820-1903), foi utilizado, alm de outros como a geologia, a antropologia e a fsica na constituio desse novo ramo cientfico.

    A linguagem torna-se ao mesmo tempo um organismo vivo que evolui, tem anomalias e pode ser dissecado (Vulgarisador, 1880, p. 148)

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    e um conjunto de sedimentos esparsos no interior do solo que aguarda que o pesquisador linguista o encontre e divulgue.

    No incio do sculo XX, essas duas propostas sero retomadas e classificadas como estudos sincrnico e diacrnico, por Ferdinand de Saussure (1857-1913), em seu Curso de Lingustica Geral.

    4. Anlises

    Nunes (1994) postula que o procedimento analtico da Anlise do Discurso baseia-se num contnuo movimento do percurso da materiali-dade lingustica e dos processos discursivos, no definindo, portanto, es-quemas estanques no processo de anlise. Assinala tambm a necessi-dade de recortes (ORLANDI, 1986, p.121) especficos em relao aos objetivos propostos pelo analista, para que se possa em seguida localizar os pontos ou as regies de ancoragem semntica pertinentes para mostrar os processos discursivos em jogo (NUNES, 1994, p. 40).

    Partindo destas consideraes, definimos como metodologia do presente trabalho o estabelecimento de sequncias discursivas recortadas da seo: A Philologia moderna e a origem da linguagem, retiradas, como j exposto, de O Vulgarisador: O Jornal dos Conhecimentos teis. Dentre os diversos campos da cincia que conferiam legitimidade aos es-tudos cientficos (cincias exatas, biologia, geologia, etnografia, etc.), op-tamos apontar neste trabalho os traos do discurso biologizante, forte-mente difundido no sculo XIX. Para melhor visualizao de nossos re-cortes, apresentamos, na pgina seguinte, uma tabela contendo as entra-das lexicais a serem analisadas, as sequncias discursivas nas quais esto inseridas e a referncia quanto ao nmero da pgina onde esto contidas no material analisado.

    - Boas/ ms derivaes

    - Regras phonicas exatas

    Em SD1, Lameira de Andrade constri a conceituao das deriva-es propostas pela anlise etimolgica opondo os adjetivos bom e mau. As derivaes das palavras poderiam ser consideradas boas ou ms, dependendo da regra fnica a ser seguida e que determinar a conti-nuao ou no da existncia da palavra. Percebemos ento que a adjeti-vao funciona aqui no somente para caracterizar as derivaes, ou seja,

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    Cadernos do CNLF, Vol. XV, N 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011 p. 1110

    atribuir uma qualidade a estas. Neste caso, os adjetivos bom e mau permitem compreender uma separao entre duas derivaes: as boas, que sobrevivem transmutao das regras fnicas, e por isso, conseguem durar e sobreviver nos usos lingusticos; outras, que seriam as ms, cujas transformaes fonticas modificaram a estrutura morfolgica e fonol-gica do vocbulo, deixando de compor o quadro lexical de utilizao da lngua. Percebemos uma retomada de efeitos de sentido da gramtica tra-dicional, no que diz respeito ao silenciamento das variantes, ou das ms derivaes, nas palavras do autor. Deste modo, a viso tradicional e his-trico-comparativa apagam as mudanas lingusticas e voltam a ateno somente para o correto e o aceito vernaculamente.

    Tabela 1: Discurso biologizante Entradas Lexicais Sequncias Discursivas pg.

    Boas / ms derivaes Regras phonicas e-xactas Esphera de cada gru-po gentico bem defi-nido.

    [SD1]: esta uma das mais solidas conquistas da analyse etymologica, que para discernir as boas das ms deriva-es, dispe de regras phonicas exactas, na esphera de ca-da grupo gentico bem definido.

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    Minuciosa dissecao

    Organismos verbaes mais pefeito

    [SD2]: O exemplo desta minuciosa dissecao nos con-duz a duas inferencias da maior importancia: primeira-mente que os organismos verbaes mais perfeitos se for-maram por via de agregao e de integrao crescente, e, em segundo lugar, que subindo-se de stratus em stratus, chega-se a um perodo anterior s mais simples distines gramaticaes.

    148

    Puras razes [SD3]: Repousa, por conseguinte, em legtimos funda-mentos a determinao de uma poca de puras razes, on-de o mechanismo das palavras consistia em simples mo-nosyllabos, formados ou de uma s vogal isolada, como no thema pronominal i, ou de poucas consoantes, como nas predicativas d, sth, par, etc.

    149

    Processos mais primi-tivos de seu cresci-mento e desenvolvi-mento.

    [SD4]: Se verdade, como geralmente acceito, que o periodo rhematico ou das raizes, nos leva s mais remotas estratificaes da Linguagem e nos esclarece sobre os processos mais primitivos de seu crescimento e desenvol-vimento, nem por isso o devemos julgar como o primeiro nucleo e unido factor de to maravilhoso produto.

    149

    As interjeies e as onomatopeias (...) continuam a viver vi-da independente.

    [SD5]: As interjeies e as onomatopeias, typos to visi-nhos que a distinco mais theorica que pratica, conti-nuam a viver vida independente, para nos contar a pagina inicial da historia da linguagem.

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    Esta caracterizao das derivaes aponta para a materializao do discurso biologizante do sculo XIX, principalmente no que se remete

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    teoria darwiniana da seleo natural dos indivduos, atrelando o discur-so biolgico composio do saber filolgico. Orlandi (1992 apud MOURA, 2006, p. 01) postula que a interao entre os discursos pressu-pe a noo de interdiscurso, o conjunto do dizvel, histrica e linguisti-camente definido. O espao do interdiscurso o do j-ditado, do reto-mado, do aludido a outras vozes, marcadas pelo processo histrico e ma-terializado pela lngua.

    Ao utilizar adjetivos cuja intencionalidade estaria mais prxima retomada do conceito darwinista de seleo natural, o discurso biolgico encontra-se atravessado na construo do discurso do autor, que, ao pre-tender construir o saber filolgico, utiliza-se do conceito de seleo natu-ral para legitimar seus argumentos. Cabe ressaltar que este conceito ad-vm da resistncia dos organismos mais fortes em relao aos mais fra-cos, ou, nas palavras de Darwin (2004, p. 95) na persistncia do mais capaz, dedicado preservao das diferenas e das variaes individuais e eliminao das variaes nocivas. O processo de seleo natural compreende o desaparecimento de uma espcie em relao outra menos adaptvel ao meio em que se encontra, sendo a primeira selecionada por meio de processo natural.

    - Grupo gentico

    Nessa entrada lexical, observa-se como o conceito de organis-mo da biologia est atrelado s palavras. Elas tm vida prpria e evolu-em, esto subjugadas a regras naturais, assim como os seres vivos, e, por conseguinte, tambm elas possuiriam um cdigo gentico que as iden-tificaria. A anlise etimolgica se pauta na origem das palavras; no scu-lo XIX, elas eram da mesma forma como so classificados os seres vi-vos pela biologia vistas como espcies que faziam parte dos gneros, que, por sua vez, pertenciam a uma famlia lingustica. No corpus discur-sivo da cincia biolgica encontramos as seguintes divises: reino, filo, classe, ordem, famlia, gnero e espcie. As palavras trariam consigo su-as caractersticas genticas relaes semnticas, morfossintticas, fo-nticas que as assemelhariam e ao mesmo tempo afastariam outras pa-lavras.

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    - Minuciosa dissecao

    - Organismos verbais mais perfeitos

    Em SD 2, o autor apresenta o trabalho de comparao entre as lnguas como minuciosa dissecao, remetendo a este um fazer caute-loso e orgnico. O adjetivo utilizado para designar a dissecao minu-ciosa , nos aclara a ideia de que o gramtico, em suas comparaes, necessitaria estar atento exatido de sua prtica, construda para ser to-mada por verdade. Conforme exposto anteriormente, o mtodo histrico-comparativo desenvolvido no sculo XIX confiava aos estudos gramati-cais o carter cientfico, legitimando, pois, a anlise gramatical. Assim, a utilizao de elementos cientficos da rea biolgica, extremamente di-fundida e conceituada na poca, torna-se aparente em relao escolha lexical do autor. O vocbulo tomado como um corpo biolgico a ser analisado em suas densas camadas e o trabalho do gramtico est atrela-do busca pela exatido deste. Por isso, o gramtico considera, dentre os vocbulos, aqueles que seriam os organismos verbais mais perfeitos. Nota-se que h um silenciamento daqueles que no seriam os mais per-feitos e que, portanto, estariam fora da constituio da legitimao da a-nlise comparativista.

    Nesta intensidade denotada atravs do advrbio mais, interes-sante observar os traos da disseminao da filosofia positiva no Brasil. Os organismos verbais mais perfeitos vo em direo marcha pro-gressista da constituio da lngua e ao processo instaurador de ordem, necessrio para a afirmao identitria de nossa nao. Cabe ressaltar que o processo de ordem no sculo XIX adquire o sentido de comando (...) significando represso, reao. (ORLANDI, 2002, p. 181). E, atravs do apagamento dos organismos verbais imperfeitos, a ordem na lngua se instaura, num movimento de anulao das diferenas, primordial para o estabelecimento da ordem social da nova nao a ser formada.

    -Puras razes

    Nesta SD 3, observa-se a relao existente entre o discurso biol-gico e filolgico. A raiz termo utilizado at hoje a parte das pala-vras que mais se aproxima da origem. As razes puras so aquelas que possuem uma legitimidade comprovada da lngua me. Assim como no discurso biolgico das raas, em que as puras seriam superiores s misci-

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    genadas, as palavras possuiriam graus de pureza diferentes; as mais puras teriam maior prestgio, enquanto as hbridas no gozariam da mesma.

    - Crescimento e desenvolvimento

    Em SD 4, encontramos estas entradas lexicais que correlacionam as palavras com os seres vivos. As palavras teriam um desenvolvimento semelhante ao dos animais nascer, crescer, procriar, morrer e, por conseguinte, estariam expostas s leis naturais regras normativas da gramtica da lngua que fazem o papel, como a biologia faz com os se-res vivos, de seleo natural das espcies.

    - Interjeies e Onomatopeias/ vidas independentes

    A SD 5 aponta as onomatopeias e as interjeies como seres que habitam as vizinhanas do mundo civilizado (palavras propriamente ditas). Elas existem para explicar a histria da origem da lngua (Vulgari-sador, 1880, p. 156) e so comparadas s tribos nativas que no tm con-tato direto com a civilizao. Vivem vida independente e podem ser importantes para reconstituir este elo perdido e responder s perguntas sobre a origem da Linguagem que o mtodo filolgico imps.

    5. Consideraes finais

    No presente artigo, podemos observar introdutoriamente como foi constitudo o corpus discursivo da Filologia no sculo XIX e como o m-todo histrico-comparativo trouxe legitimidade para os estudos lingusti-cos nesta poca. Esse novo corte epistemolgico configurou-se atravs de deslocamentos de sentidos advindos da gramtica tradicional e com a in-troduo de conceitos das cincias vistas como modelos Fsica, biolo-gia daquele momento.

    Demonstramos atravs do corpus emprico, O Vulgarisador: O Jornal dos Conhecimentos teis, especificamente da seo A Philologia Moderna e a Origem da Linguagem, como a materialidade lingustica comprova essas mudanas de sentido.

    Apontamos tambm a importncia da gramtica normativa para o novo mtodo cientfico que lhe d legitimao e ao mesmo tempo recebe toda a tradio forjada desde a Antiguidade.

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