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O TRATADO DE AMESTERDÃO E AS NOVAS COMPETÊNCIAS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS COMUNIDADES EUROPEIAS Nuno Piçarra FDUNL N.º1 - 2001

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O TRATADO DE AMESTERDÃO E AS NOVAS COMPETÊNCIAS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DAS COMUNIDADES EUROPEIAS

Nuno Piçarra FDUNL N.º1 - 2001

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Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 1/01

O TRATADO DE AMESTERDÃO E AS NOVAS COMPETÊNCIAS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS

COMUNIDADES EUROPEIAS

Nuno Piçarra

© autor Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de

Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou

primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A

sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação

posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working

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Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro,

[email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Travessa Estevão

Pinto, Campolide 1400-Lisboa.

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O TRATADO DE AMESTERDÃO E AS NOVAS COMPETÊNCIAS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DAS COMUNIDADES EUROPEIAS

Nuno Piçarra Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

I − Introdução

1. O Tratado de Amesterdão (TA), na parte em que revê o Tratado da União Europeia (TUE) e o Tratado que institui a Comunidade Europeia (TCE), inclui nada menos do que cinco novas disposições sobre a competência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJ)1, contidas: • no artigo 35º do Título VI do TUE; • no artigo 40º, n.º 4, segundo parágrafo, do Título VI do TUE; • no artigo 68º do novo Título IV da Parte III do TCE; • no artigo 6º do Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda face ao Título

IV do TCE, anexo ao TUE e ao TCE; • no artigo 2º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Protocolo que integra o acervo de Schengen no

âmbito da União Europeia, também anexo aos dois Tratados.

2. Todas estas disposições incluem-se entre as que versam sobre o «espaço de liberdade, de segurança e de justiça». O estabelecimento progressivo deste constitui um objectivo da União Europeia (UE) enunciado nos considerandos e no artigo 2º, quarto travessão, do TUE e desenvolvidamente regulado no seu Título VI (disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal) e no Título IV do TCE (vistos, asilo, imigração e outras políticas relativas à livre circulação de pessoas). Pretende-se assegurar nesse espaço «a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlo na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade», facultando aos cidadãos «um elevado nível de protecção, mediante a instituição de acções em comum entre os Estados-Membros no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal e a prevenção e combate do racismo e da xenofobia»2.

Os dois Títulos ficam indissociavelmente ligados por aquele objectivo, tal como o explicitam o artigo 29º do TUE e o artigo 61º do TCE. A alínea a), in fine, deste último inclui expressamente entre as medidas que o Conselho deve adoptar por força do novo Título IV do TCE aquelas que vêm previstas no artigo 31º, alínea e), do Título VI do TUE

1 Adiante se verão as razões pelas quais, com a entrada em vigor do TA, em 1 de Maio de 1999, passou a ser preferível a denominação Tribunal de Justiça da União Europeia; cfr. infra Capítulo III. 2 Sobre o espaço de liberdade, de segurança e de justiça, ver por exemplo Henri Labayle, Un espace de liberté, de sécurité et de justice, Le Traité d’Amsterdam, Revue Trimestrielle de Droit Européen, extracto n.º 4/1997, p.105-173; Jörg Monar, Justice and Home Affairs in the Treaty of Amsterdam: Reform at the Price of Fragmentation, European Law Review, vol. 23, 1998, p. 320-335; Antonio Valle Gálvez, La refundación de la libre circulación de personas, Tercer Pilar y Schengen: el espacio europeo de libertad, seguridad y justicia, Revista de Derecho Comunitario Europeo, 3/1998, p. 41-78.

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e se destinam a prevenir e a combater a criminalidade (regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infracções penais e às sanções aplicáveis nos domínios da criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico de droga). Trata-se, de resto, de uma forma juridicamente não pouco problemática de vincar aquela ligação, inclusive no que respeita à própria competência do TJ3. E a circunstância de os dois Títulos ficarem unidos pelo objectivo do estabelecimento progressivo daquele espaço não neutraliza o facto de um deles relevar de uma lógica supranacional e o outro de uma lógica intergovernamental − embora adaptadas no sentido da sua convergência mútua. Tal exige, portanto, a delimitação precisa das áreas cobertas por um e por outro, tarefa consideravelmente dificultada pela contiguidade material de algumas delas. Note-se a este propósito que o próprio TUE, no seu artigo 42º, prevê expressamente a possibilidade de quaisquer das áreas cobertas pelo seu Título VI transitarem para o Título IV sob determinadas condições4.

Além disso, as cinco novas disposições sobre a competência do TJ estão também enquadradas, de uma forma ou de outra, pelo instituto da cooperação reforçada, introduzido pelo TA para abranger aqueles casos em que cooperação ou a integração num determinado domínio previsto pelo TUE ou pelo TCE não inclui, por razões de diversa ordem, todos os Estados-Membros5. O espaço de liberdade, de segurança e de justiça constitui, aliás, o caso mais relevante de cooperação reforçada previsto pelo TA.

3. Apesar do enquadramento comum quer no espaço de liberdade, de segurança e de justiça quer na cooperação reforçada, as cinco disposições têm sentidos e alcances bem distintos entre si.

3 Das disposições conjugadas dos artigos 61º, alínea a), in fine, do TCE e 31º, alínea e), do TUE, parece resultar excepcionalmente para o TJ competência para fiscalizar, nos termos dos artigos 220º e seguintes do TCE, determinados actos materialmente abrangidos pelo Título VI do TUE. Assim, por exemplo, o juiz comunitário poderá declarar verificada, nos termos do artigo 232º, uma violação da alínea a) do artigo 61º do TCE se, findo o prazo de cinco anos aí fixado, o Conselho se tiver abstido de adoptar as medidas previstas no artigo 31º, alínea e), do TUE.

A remissão feita no artigo 61º, alínea a), do TCE para o artigo 31º, alínea e), do TUE é criticada por J. L. Cruz Vilaça e L. M. Pais Antunes, Da CIG-96 ao Tratado de Amesterdão − A Europa da Justiça, Estratégia, n.º 12-13, 1999, p. 62, em termos severos: «Há algo de perverso nesta remissão do novo Título do Tratado para as disposições do subsistente Terceiro Pilar: a confusão que daí pode resultar é preocupante e, em todo o caso, estamos perante mais uma manifestação do hibridismo e do carácter transitório das disposições do Tratado de Amesterdão nesta matéria». 4 Trata-se da chamada «norma passerelle», cujo procedimento de aplicação acaba por não se distinguir na prática do procedimento normal de revisão dos Tratados; sobre este ponto, cfr. Pais Antunes, A Liberdade de Circulação e a Segurança Interna, in Álvaro de Vasconcelos (coord.) Portugal no Centro da Europa, Lisboa, 1995, p. 122. 5 Sobre o conceito de cooperação reforçada ver Vlad Constantinesco, Les clauses de «coopération renforcée». Le protocole sur l’application des principes de subsidiarité et de proportionnalité, Le Traité d’Amsterdam, cit., p. 43-57, salientando que no âmbito do TCE a expressão integração reforçada é preferível a cooperação reforçada; Claus Dieter Ehlermann, Différenciation, flexibilité, coopération renforcée: les nouvelles dispositions du traité d’Amsterdam, Revue du Marché Unique Européen, 1997, p. 53 ss.; Jörg Monar, Schengen and Flexibility in the Treaty of Amsterdam: Opportunities and Risks of Differentiated Integration in EU Justice and Home Affairs, in Monica den Boer (ed.), Schengen, Judicial Cooperation and Policy Coordination, Instituto Europeu de Administração Pública, Maastricht, 1997, p. 9 ss.; Giorgio Gaja, How Flexible is Flexibility under the Amsterdam Treaty?, Common Market Law Review, 1998, p. 855-870; Helmut Kortenberg, Closer Cooperation in the Treaty of Amsterdam, Common Market Law Review, 1998, p. 871 ss.; Eric Philippart e Geoffrey Edwards, The Provisions on Closer Co-operation in the Treaty of Amsterdam: The Politics of Flexibility in the European Union, Journal of Common Market Studies, 1999, p. 87-108; Jim Cloos, Les coopérations renforcées, Revue du Marché commun, 2000, p. 512 ss.; Hervé Bribosia, Différentiation et avant-gardes au sein de l’Union européenne − Bilan et perspectives du Traité d’Amsterdam, Cahiers de Droit européen, 2000, p. 57 ss.

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O artigo 35º constitui a disposição-chave sobre a competência do TJ no âmbito do Título VI do TUE. O artigo 40º, n.º 4, segundo parágrafo, determina que a competência do TJ no quadro da cooperação reforçada prevista pelo Título VI se exerce, em determinados casos, nos termos do artigos 220º e seguintes do TCE e não do 35º do TUE. O artigo 68º do TCE constitui uma modulação da competência genericamente atribuída ao TJ pelos artigos 220º e seguintes, decorrente das particularidades do Título IV. Por seu lado, o artigo 6º do Protocolo relativo ao Reino Unido e à Irlanda − que concede a estes dois Estados-Membros a possibilidade de «ficar fora» (opt-out) relativamente ao Título IV − explicita a aplicabilidade das disposições conjugadas dos artigos 68º e 220º e seguintes sempre que qualquer deles decidir vincular-se (opt-in) a um acto adoptado em aplicação do mesmo Título. Finalmente, o artigo 2º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Protocolo que integra o acervo Schengen no âmbito da UE (Protocolo Schengen) determina que, no tocante a tal acervo, a competência do TJ se exerce nos termos, ou do artigo 35º do TUE, ou das disposições conjugadas dos artigos 68º e 220º e seguintes do TCE, consoante os elementos desse acervo tenham sido reconduzidos a uma base jurídica num ou noutro Tratado.

Saliente-se que os artigos 35º e 40º, n.º 4, segundo parágrafo, do TUE bem como o artigo 2º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Protocolo Schengen constituem, em última análise, um corolário do artigo 6º do TUE, que vincula expressamente a UE ao princípio do Estado de Direito. Isto implica, nomeadamente, que os actos dos seus órgãos não possam subtrair-se a um controlo de legalidade exercido pelo TJ de acordo com um sistema de meios processuais adequado6. Em coerência com tal princípio, os três artigos põem fim à exclusão da competência do TJ do âmbito de aplicação tanto do Título VI do TUE como do acervo Schengen, exclusão tanto mais criticável quanto se verificava em domínios particularmente sensíveis do ponto de vista dos direitos fundamentais.

4. No seu conjunto e individualmente consideradas, as cinco disposições suscitam uma série de questões complexas e seguramente controversas. Para a sua correcta compreensão, convém começar por analisar os respectivos antecedentes e, mais concretamente, o artigo K.3, n.º 2, alínea c), terceiro parágrafo, do Título VI na sua versão originária, e a forma como foi aplicado (II). Prossegue-se com a análise das duas «disposições nucleares» que são o artigo 35º do TUE (III) e o artigo 68º do TCE (IV). Depois analisam-se as disposições que se podem designar por «remissivas»: o artigo 6º do Protocolo relativo ao Reino Unido e da Irlanda (V), o artigo 2º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Protocolo Schengen (VI) e o artigo 40º, n.º 4, segundo parágrafo, do TUE (VII). II − O artigo K.3, n.º 2, alínea c), terceiro parágrafo, do Título VI do TUE na versão originária

1. Com excepção dos vistos, já contemplados pelo anterior artigo 100º-C, todas as matérias que agora relevam do Título IV do TCE encontravam-se abrangidas, juntamente com a cooperação policial e judiciária em matéria penal, pelo artigo K.1 do Título VI do TUE. Tal solução foi imposta pelo facto de alguns Estados-Membros se oporem a que a Comunidade Europeia fosse dotada de competência nos domínios do asilo, da imigração e políticas conexas, assim como da cooperação judiciária em matéria civil, apesar de tais domínios estarem directamente relacionados com a livre circulação de pessoas no quadro do mercado interno, definido como «um espaço sem fronteiras internas» pelo então artigo 7º-A, segundo parágrafo, do TCE. Excluído, portanto, o chamado método comunitário, o Título VI do TUE optou por um modelo de cooperação de base intergovernamental. Esta solução tinha, no entanto, a singularizá-la o facto de ser aplicada num quadro institucional 6 Cfr. o acórdão do TJ de 23 de Abril de 1986, Os Verdes/Parlamento Europeu, 294/83, Colectânea de Jurisprudência, p. 1339, ponto 23.

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comum à Comunidade Europeia e, mais, a matérias directamente relacionadas com algumas das abrangidas pelo TCE.

O modelo intergovernamental «avançado»7 incorporado no Título VI do TUE, base jurídica do chamado Terceiro Pilar da UE, desdobrava-se nos seguintes elementos: (1) nos termos do artigo K.3, n.º 2, a Comissão, embora desprovida das suas atribuições típicas de «guardiã do Tratado», partilhava o poder de iniciativa com os Estados-Membros relativamente aos domínios que hoje relevam do Título IV; (2) no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal, somente os Estados-Membros dispunham de poder de iniciativa; (3) os actos jurídicos adoptados pelo Conselho8 e tipificados como posições comuns, acções comuns e convenções, eram inteiramente desprovidos das características próprias do direito comunitário (aplicabilidade directa, efeito directo ou «indirecto», primado, responsabilidade estadual por incumprimento9) (4) nos termos do artigo K.7, a consulta ao Parlamento Europeu (PE) era facultativa; (5) nos termos do artigo L, ficava genericamente excluída a competência do TJ para a fiscalização dos actos adoptados pelo Conselho ao abrigo do Título VI, com uma única excepção prevista pelo artigo K.3, n.º 2, alínea c), terceiro parágrafo.

Para além disso, as acções desenvolvidas no âmbito do Título VI estavam, como continuam a estar, subordinadas ao princípio, hoje estabelecido pelo artigo 3º do TUE, da coerência material, da continuidade e do respeito pelo desenvolvimento do acervo comunitário, aplicável ao conjunto das acções empreendidas no quadro institucional único da UE.

2. De acordo com o artigo K.3, n.º 2, alínea c), terceiro parágrafo, as convenções elaboradas pelo Conselho no âmbito do Terceiro Pilar podiam «prever a competência do Tribunal de Justiça para interpretar as respectivas disposições e decidir sobre todos os diferendos relativos à sua aplicação, de acordo com as modalidades que essas convenções possam especificar». Consagrava-se assim uma solução que consistia em transferir para o Conselho, deliberando por unanimidade, (1) a decisão casuística sobre a atribuição ou não de competência prejudicial e de resolução de diferendos ao TJ no âmbito de cada uma das convenções; em caso afirmativo, (2) a decisão sobre as modalidades dessa competência.

Anteviam-se, no entanto, as dificuldades a que a aplicação daquela disposição patentemente compromissória daria azo. Com efeito, diversos Estados-Membros recusavam a atribuição ao TJ de qualquer competência no âmbito do Terceiro Pilar, alegando que tal poria irremediavelmente em causa o carácter intergovernamental daquele, tanto mais que o TJ tenderia a aplicar os métodos de interpretação forjados no âmbito do TCE e não os métodos de interpretação próprios do direito internacional convencional10.

7 Assim lhe chama apropriadamente Peter Christian Müller-Graf, The Legal Bases of the Third Pillar and its Position in the Framework of the Union Treaty, Common Market Law Review, vol. 31, 1994, p. 497. 8 E não por uma instância distinta do Conselho, composta pelos ministros do interior e da justiça dos Estados-Membros; sobre as implicações do facto de ser o Conselho a adoptar tais actos jurídicos, ver J.-P. Jacqué, Affaires intérieures et justice. Quelques réflexions, in A. Mattera (ed.), La Conférence intergouvernementale sur l’Union européenne, 1996, p. 339. 9 Sobre estas noções ver, por exemplo, Rui Moura Ramos, Reenvio prejudicial e relacionamento entre ordens jurídicas na construção comunitária, Legislação, n.º 4/5, 1992, p. 100-101 e 109 ss.; Carlos Botelho Moniz e Paulo Moura Pinheiro, As relações da ordem jurídica portuguesa com a ordem jurídica comunitária, Legislação, n.º 4/5, 1992, p. 124 ss.; mais recentemente, David Edward, Direct Effect, the Separation of Powers and the Judicial Enforcement of Obligations, Scritti in Onore di Giuseppe Federico Mancini, vol. II, Giuffrè, Milão, 1998, p. 423 ss. 10 Reduzida à sua expressão mais simples, a diferença entre o método de interpretação do direito comunitário e o método de interpretação do direito internacional está em que o primeiro, à semelhança do método jurídico-constitucional, privilegia o efeito útil das disposições e o seu objectivo integrador, ao passo que o segundo privilegia o texto das disposições e o cânone de acordo com o qual os tratados devem ser interpretados de modo a afectar o menos possível a soberania dos Estados contratantes; cfr. J. H. H. Weiler,

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Numa postura diametralmente oposta, outros Estados-Membros consideravam inescusável a competência do TJ no âmbito do Terceiro Pilar, em nome da regra da aplicação uniforme do direito comunitário e do princípio do Estado de Direito.

Por outro lado, da conjugação do artigo K.3, n.º 2, alínea c), terceiro parágrafo, com o artigo L do TUE resultava que, com a eventual excepção das convenções, todos os restantes actos adoptados pelo Conselho nos âmbito do Título VI ficavam subtraídos à competência do TJ, a não ser, como este mesmo veio precisar, no caso de constituírem uma «invasão da esfera de competências que as disposições do Tratado CE atribuem à Comunidade»11. Neste caso, invocando as disposições conjugadas dos artigos L e M, o TJ considerou-se competente para anular, nos termos do artigo 173º do TCE, um acto adoptado pelo Conselho com base no Título VI do TUE sempre que verificasse que tal acto deveria, antes, ter sido adoptado com base no TCE. Segundo o TJ, resultava do artigo M que uma disposição como o artigo K.3, n.º 2, não podia afectar as disposições do TCE, no caso vertente, o seu artigo 100º-C. Ao decidir desta forma, o TJ assumiu o papel de «guarda de fronteira do Primeiro Pilar e não o de polícia do Terceiro Pilar»12.

3. Fosse como fosse, o artigo K.3, n.º 2, alínea c), terceiro parágrafo, tanto na parte em que se referia à competência do TJ para interpretar prejudicialmente as disposições convencionais, como na parte relativa à competência para decidir sobre os diferendos resultantes da aplicação das convenções, veio causar um dos bloqueios mais sérios à aplicação do Título VI do TUE. Ele atingiu o seu auge a propósito da Convenção que cria um Serviço Europeu de Polícia (Convenção Europol), finalmente assinada em 26 de Julho de 199513. De um lado, estavam aqueles Estados-Membros, encabeçados pelo Reino Unido, que recusavam a atribuição de qualquer competência ao TJ. Do outro lado, estavam

The Autonomy of the Community Legal Order: through the looking glass, The Constitution of Europe, Cambridge, 1999, p. 305. 11 Cfr. o acórdão de 12 de Maio de 1998, Comissão/Conselho, 170/96, Colect., p. I-2782, pontos 16 e 17. 12 A expressão é de Anthony Whealen, Fundamental Rights, Democracy and the Rule of Law in the Third Pillar, in Gavin Barrett (ed.) Justice Cooperation in the European Union, Dublim, 1997, p. 212, que aceita expressamente a competência anulatória do TJ neste contexto. No mesmo sentido, ver Müller-Graf, op. cit., p. 500; Nanette Neuwahl, Judicial Control in Matters of Justice and Home Affairs: What Role for the Court of Justice?, in Roland Bieber & Joerg Monar, (ed.), Justice and Home Affairs in the European Union, Bruxelas, 1995, p. 302; Carlo Curti Gialdino, Schengen e il Terzo Pilastro: il Controllo Giurisdizionale secondo il Trattato di Amsterdam, Rivista di Diritto Europeo, 1998, p. 43, segundo o qual a garantia, pelo TJ, da integridade do âmbito de aplicação do TCE face aos actos adoptados no âmbito do TUE corresponde a uma espécie de actio finium regundorum. Em sentido contrário, considerando o acórdão em análise como um «acto ultra vires» do TJ, infringindo o artigo L do TUE, Mathias Pechstein, Die Justitiabilität des Unionsrechts, Europarecht 1/1999, p.10. Para este autor, o TJ apenas poderia controlar a eventual invasão da competência da Comunidade por actos adoptados no âmbito do Terceiro Pilar no quadro de uma acção de incumprimento nos termos do ex-artigo 169º do TCE, dirigida contra o conjunto dos Estados-Membros e com efeito meramente declaratório e não cassatório.

Não cabe aqui aprofundar uma questão ultrapassada em relação ao Terceiro Pilar − com a entrada em vigor do TA e, concretamente, do artigo 35º, n.º 6, do TUE, como se verá − mas não ultrapassada em relação ao Segundo Pilar − ao qual, nos termos do artigo 46º (ex-artigo L) do TUE, continuam a não ser aplicáveis as disposições relativas à competência do TJ. Apenas se observará que a admissão da competência anulatória do TJ, embora passível de objecções, surge como mais defensável do ponto de vista da efectiva salvaguarda das atribuições da Comunidade, para que aponta o artigo M do TUE e, sobretudo, o próprio artigo 220º do TCE. Recorde-se, em todo o caso, que na hipótese inversa de invasão do âmbito de aplicação do Título VI do TUE pela Comunidade Europeia, seria inquestionável a competência anulatória do TJ relativamente aos actos ultra vires assim adoptados. Nesta perspectiva, torna-se ainda menos justificável limitar artificialmente a intervenção do TJ à acção de incumprimento contra actos, quer se queira quer não, formalmente adoptados pelo Conselho. 13 Anteriormente à Convenção Europol havia já sido assinada em 10 de Março de 1995 a Convenção Relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados-Membros da União Europeia (DR−I Série-A n.º 138 de 18-6-1997 p. 2930), que não prevê qualquer disposição sobre a competência do TJ.

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os Estados-Membros, com destaque para os Estados Benelux, que se recusavam a assinar uma convenção como a Europol na ausência de uma cláusula prevendo a competência prejudicial do TJ.

Após várias tentativas de compromisso que se arrastaram por mais de um ano, acabou por se acordar numa solução que passaria, no que respeita à competência interpretativa a título prejudicial, pelo estabelecimento de um protocolo a anexar a cada convenção, prevendo a título facultativo, isto é, dependente da aceitação de cada Estado-Membro, aquela competência. Os Estados-Membros que no momento da assinatura do protocolo, ou em momento posterior, declarassem aceitar tal competência especificariam os órgãos jurisdicionais nacionais habilitados a submeter questões prejudiciais ao TJ: se apenas aqueles de cujas decisões não cabe recurso judicial de direito interno, se todos e quaisquer. Mas nenhum desses órgãos jurisdicionais ficaria obrigado, por força do protocolo, ao reenvio prejudicial. Uma tal obrigação apenas poderia ser imposta por uma disposição de direito interno, reservando-se alguns Estados-Membros essa possibilidade. Independentemente de ter ou não aceitado a competência do TJ, cada Estado-Membro disporia sempre do direito de apresentar alegações ou observações escritas nos processos prejudiciais. Finalmente, apontava-se para a adopção de tais protocolos em simultâneo com as convenções a que se reportassem14.

A solução encontrada consta da maioria das convenções assinadas até à conclusão do TA. A partir desta data, as convenções elaboradas no âmbito do Título VI do TUE passaram a incorporar no seu próprio articulado disposições sobre a competência prejudicial do TJ, pondo-se fim à prática do protocolo anexo15.

Por outro lado, no que respeita à competência do TJ para decidir os diferendos relativos à interpretação e à aplicação das convenções, a solução de compromisso variava consoante se tratasse (1) dos diferendos entre os Estados-Membros ou (2) dos diferendos entre estes e a Comissão. No primeiro caso, consistia numa disposição a incluir, também casuisticamente, no articulado de cada convenção, determinando que tais diferendos deviam, num primeiro momento, ser apreciados pelo Conselho; só se, no final de um prazo de seis meses, não fosse encontrada uma solução, é que qualquer das partes envolvidas no

14 Cfr. Protocolo de 26 de Julho de 1995, relativo à interpretação a título prejudicial pelo TJ da Convenção Europol e declarações anexas (DR−I Série-A n.º 217 de 19-9-1997 p. 5103); Protocolo de 29 de Novembro de 1996 (JO C 151/1 de 20-5-1997), relativo à interpretação a título prejudicial pelo TJ da Convenção de 26 de Julho de 1995, relativa à protecção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias e dos Primeiro e Segundo Protocolos a esta Convenção, respectivamente de 27 de Setembro de 1996 (JO C 313/1 de 23-10-1996) e de 19 de Junho de 1997 (JO C 221/11 de 19-7-1997); Protocolo de 29 de Novembro de 1996, relativo à interpretação a título prejudicial pelo TJ da Convenção de 26 de Julho de 1995 sobre a utilização da informática no domínio aduaneiro (JO C 151/15 de 20-5-1997).

O Protocolo de 26 de Maio de 1997, relativo à interpretação prejudicial pelo TJ da Convenção, assinada na mesma data, sobre a citação e a notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros (JO C 261/17 de 27-8-1997), assim como o Protocolo de 28 de Maio de 1998, relativo à interpretação pelo TJ da Convenção da mesma data, sobre a competência, o reconhecimento e a execução de decisões em matéria matrimonial (JO C 221/19 de 16-7-1998), dados os antecedentes e a especificidade da cooperação judiciária em matéria civil em cujo âmbito se inserem, afastam-se do «protocolo-modelo», na medida em que prevêem a obrigatoriedade de reenvio prejudicial ao TJ para «os mais altos tribunais» de cada Estado-Membro, à semelhança do disposto no Protocolo de 3 de Junho de 1971, em que largamente se inspiram, relativo à interpretação pelo TJ da Convenção de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (versão consolidada em JO C 27/28 de 26-1-1998). 15 Cfr. o artigo 12º, nºs 3 a 6, da Convenção de 26 de Maio de 1997, relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-Membros (JO C 195/1 de 25-6-1997); artigo 26º, nºs 3 a 8, da Convenção de 18 de Dezembro de 1997, relativa à assistência mútua e à cooperação entre as administrações aduaneiras (JO C 24/1 de 23-1-1998); artigo 14º, nºs 2 a 4, da Convenção de 17 de Junho de 1998, relativa às decisões de inibição de conduzir (JO C 216/1 de 10-7-1998).

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diferendo poderia então, facultativamente, submetê-lo ao TJ16. Relativamente aos diferendos entre os Estados-Membros e a Comissão, ficava previsto que, se não pudessem ser resolvidos por via de negociação entre as partes, qualquer delas poderia facultativamente submetê-lo ao TJ, em princípio no prazo de seis meses a contar da data em que uma tiver notificado a outra da existência do diferendo17.

Foi esta esforçada solução de compromisso − que parecia, de resto, constituir o nec plus ultra na matéria − que acabou por influenciar decisivamente o artigo 35º do Título VI do TUE18. III − O artigo 35º do TUE e a competência do TJ no âmbito do actual Título VI

O artigo 35º atribui ao TJ três tipos de competência: prejudicial, anulatória e de solução de diferendos. Cada uma delas assume particularidades consideráveis em relação às competências de idêntica natureza previstas pelos artigos 220º e seguintes do TCE e suscita uma série de questões cuja resposta, dado o enquadramento do artigo 35º, não resulta necessariamente da analogia com soluções obtidas no âmbito do TCE. 1. A competência prejudicial

1.1. Quatro dos sete números em que se articula o artigo 35º são dedicados à competência prejudicial. O n.º 1 atribui competência ao TJ para decidir a título prejudicial sobre: • a interpretação (1) das decisões-quadro, (2) das decisões e suas medidas de execução e

(3) das convenções estabelecidas ao abrigo do Título VI e suas medidas de aplicação; • a validade (1) das decisões-quadro, (2) das decisões e suas medidas de execução e (3)

das medidas de aplicação das convenções do Título VI.

16 Cfr. artigo 40º, nºs 1 e 2, bem como declaração a este último, da Convenção Europol, cit.; artigo 8º, da Convenção relativa à protecção dos interesses financeiros, cit.; artigo 8º, n.º 1, do Primeiro Protocolo a esta convenção, cit.; artigo 13º, n.º 1, do Segundo Protocolo, cit.; artigo 27º, n.º 1, da Convenção sobre a utilização da informática no domínio aduaneiro, cit.; artigo 12º, n.º 1, da Convenção relativa à luta contra a corrupção de funcionários, cit.; artigo 26º, n.º 1, da Convenção relativa à assistência mútua e à cooperação entre as administrações aduaneiras, cit.; artigo 14º, n.º 1, da Convenção relativa às decisões de inibição de conduzir, cit. As duas convenções em matéria de cooperação judiciária civil, já citadas, não prevêem qualquer disposição sobre resolução de diferendos entre os Estados-Membros, dada a sua natureza específica. 17 Para além das duas convenções relativas à cooperação judiciária civil citadas na nota anterior, a Convenção Europol também não contém nenhuma disposição sobre a resolução de litígios entre os Estados-Membros e a Comissão, por se ter entendido que, dado o seu objecto, não deveriam surgir litígios com tal natureza. Saliente-se, por outro lado, que, na Convenção relativa à protecção dos interesses financeiros e seus primeiro e segundo protocolos, bem como na Convenção relativa à corrupção de funcionários, cits., a competência do TJ está limitada aos litígios que se baseiem em determinadas disposições; cfr. respectivamente os artigos 8º, n.º 2, 8º, n.º 2, 13º, n.º 2, e 12º, n.º 2. Cada um destes artigos determina expressamente as disposições que não podem dar lugar a diferendos entre os Estados-Membros e a Comissão. 18 Sobre a controvérsia em torno da aplicação do artigo K.3, n.º 2, alínea c), terceiro parágrafo, ver com desenvolvimento Deidre Curtin e J.F. Pouw, La coopération dans le domaine de la justice et des affaires intérieures au sein de l’Union européenne: une nostalgie d’avant Maastricht, La Conférence intergouvernementale, cit., p. 324 ss; Lorenzo Salazar, Il controverso ruolo della Corte de Giustizia nel «Terzo Pilastro»: prime applicazioni dell’art. K.3 del Trattato sull’Unione Europea, Scritti Mancini, cit., p. 905 ss. Este autor salienta que houve vários casos de convenções cujo articulado foi elaborado em muito menos tempo do que o necessário para se chegar a uma solução para a questão da competência do TJ (p. 926).

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Observe-se, em primeiro lugar, que a disposição em análise não se refere às próprias disposições do Título VI enquanto objecto possível de interpretação prejudicial por parte do TJ, ao contrário do primeiro parágrafo, alínea a), do artigo 234º do TCE. É, porém, contestável que uma tal omissão implique a proibição para o juiz comunitário de se pronunciar, a título prejudicial, sobre a interpretação das disposições do Título VI, ou, noutra perspectiva, o dever de declarar inadmissíveis os pedidos de decisão prejudicial com tal objecto. Com efeito, sempre que, comprovadamente, a solução de um litígio pendente perante um tribunal nacional depender da interpretação de uma norma do Título VI, a denegação da correspondente decisão prejudicial por parte do TJ com fundamento na omissão do n.º 1 do artigo 35º equivaleria a um formalismo de todo incompatível com o «direito superior» incorporado no próprio TUE e desde logo no seu artigo 6º, n.ºs 1 e 2. É, portanto, de concluir que o artigo 35º, n.º 1, não pode ter por efeito restringir, no âmbito do Título VI, a competência interpretativa do TJ, nem especificamente a título prejudicial nem, muito menos, tratando-se genericamente da aplicação, por parte deste órgão, de qualquer das disposições do mesmo Título19.

Por outro lado, o artigo 35º, n.º 1, também não menciona as posições comuns previstas pelo artigo 34º, n.º 2, alínea a), como objecto possível nem do processo prejudicial de interpretação, nem do processo prejudicial de apreciação de validade. Segundo esta disposição, através das posições comuns, o Conselho define a abordagem da UE em relação a uma questão específica. Ora, em certos casos a determinação do sentido e alcance exactos de uma posição comum pode revestir-se de grande relevância jurídica20. Se uma disposição idêntica à do artigo 35º, n.º 1, constasse do TCE, seria previsível que o TJ a interpretasse extensivamente por forma a abranger as posições comuns quando o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos particulares o exigisse. No quadro do Título VI do TUE, dada a sua componente intergovernamental, não é seguro que o possa fazer.

Mais seguro se afigura, mesmo neste contexto, interpretar o artigo 35º, n.º 1, no sentido de que não ficam excluídos do controlo prejudicial do TJ, em nenhuma das modalidades, os actos atípicos (resolução, recomendação, etc.) adoptados pelo Conselho à margem da enumeração do artigo 34º, n.º 2, sempre que se possa determinar que, pelo seu conteúdo, tais actos deveriam revestir alguma das formas previstas por esta última disposição21. Trata-se de não sobrepor um critério puramente formalista a um critério substantivo e sobretudo de não permitir imunidades injustificadas ao controlo jurisdicional através da manipulação da forma dos actos.

Em contrapartida, justifica-se inteiramente o facto de as convenções estabelecidas ao abrigo do Título VI não virem previstas como objecto possível do processo prejudicial

19 Em sentido semelhante, Blumann, op. cit., p. 39; Matthieu Chavrier, La Cour de justice après le Traité d’Amsterdam,: Palingénésie ou palinodies?, Revue du Marché commun, 2000, p. 546. Em sentido contrário, Luis González Alonso, La Jurisdicción Comunitaria en el Nuevo Espacio de Libertad, Seguridad y Justicia, Revista de Derecho Comunitario Europeo, 4/1998, p. 539; Albertina Albors-Llorens, “Changes in the jurisdiction of the European Court of Justice under the Treaty of Amsterdam”, Common Market Law Review, n.º 35, 1998, p. 1281, nota 48. Ambos os autores vão ao ponto de negar ao TJ a mera competência para interpretar as disposições do Título VI e, concretamente, o próprio artigo 35º. Trata-se, porém de uma posição indefensável, pela simples razão que o TJ não pode deixar de interpretar qualquer disposição que seja chamado a aplicar − o que de todo não se confunde com o proferimento de uma decisão prejudicial interpretativa de tal disposição. 20 Pense-se por exemplo numa posição comum como a relativa à aplicação harmonizada da definição do termo «refugiado» na acepção do artigo 1º da Convenção de Genebra (JO L 63 de 13-3-1996). À face do anterior Título VI, Müller-Graf, op. cit., p. 509, considerava que, num caso como este, se poderia suscitar uma questão de protecção da confiança dos interessados, apesar de não reconhecer às posições comuns um efeito vinculativo para os Estados-Membros. 21 No sentido de que, para efeitos contenciosos, os actos jurídicos se qualificam segundo o seu conteúdo e não segundo a forma ou a denominação que assumam, cfr., entre tantos, o acórdão do TJ de 30 de Junho de 1993, Parlamento c. Conselho, C-181/91 e C-248/91, Colect. p. 3685, ponto 14.

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de apreciação de validade. Com efeito, elas devem ser adoptadas pelos Estados-Membros de acordo com as respectivas normas constitucionais (ratificação, aprovação, aceitação), não sendo, nessa medida, actos do Conselho proprio sensu. Pelas mesmas razões, ficam também subtraídas à apreciação de validade do TJ as medidas de aplicação de convenções que careçam de ser adoptadas pelos Estados-Membros nos mesmos termos22.

1.2. O n.º 2 do artigo 35º determina que a competência prejudicial atribuída ao TJ não é obrigatória para os Estados-Membros mas facultativa. Neste contexto, o TJ fica na posição de uma jurisdição internacional23: os Estados-Membros que pretendem que os seus órgãos jurisdicionais tenham acesso ao mecanismo das questões prejudiciais nos termos do artigo 35º devem declará-lo no momento da assinatura do TA ou posteriormente, a todo o tempo.

O carácter «retrógrado» da solução assim consagrada no âmbito do TUE por imposição do Reino Unido torna-se manifesto tendo-se presente que, seis meses antes da sua entrada em vigor, o Protocolo n.º 11 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem substituiu o modelo de jurisdição facultativa do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pelo de jurisdição obrigatória, isto é, não carecida de qualquer declaração nesse sentido por parte dos Estados contratantes24.

De acordo com o n.º 3 do mesmo artigo, os Estados-Membros que apresentarem tal declaração devem especificar se aceitam que: • qualquer órgão jurisdicional nacional possa submeter ao TJ questões prejudiciais nos

termos do n.º 1, suscitadas em processo perante si pendente, ou que • apenas os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de

recurso judicial previsto no direito interno25 possam submeter questões prejudiciais.

Seja qual for a modalidade da declaração escolhida por cada Estado-Membro, em circunstância nenhuma os tribunais nacionais são obrigados pelo artigo 35º, n.º 3, a suscitar questões prejudiciais de interpretação ou de validade. A expressão «pode pedir ao TJ» é inequívoca, idêntica à do segundo parágrafo do artigo 234º do TCE e contrastante com a expressão, quer do artigo 68º, n.º 1, quer do terceiro parágrafo do artigo 234º do TCE, respectivamente, «deve pedir ao TJ» e «é obrigado a submeter a questão ao TJ».

O artigo 35º, n.º 2, é omisso quanto ao ponto de saber se um Estado-Membro que tenha aceitado a competência do TJ na primeira das modalidades previstas pelo n.º 3 pode posteriormente alterá-la para a segunda ou vice-versa. Não parece haver obstáculos de monta a isso. Já a revogação pura e simples de uma declaração num sentido ou no outro se afigura mais problemática dado o retrocesso que representaria face aos valores em presença: a tutela jurisdicional dos particulares e, em última análise, a igualdade dos

22 A Convenção Europol (DR−I Série-A n.º 217 de 19-9-1997) prevê no seu artigo 45º, n.º 4, uma série de medidas de aplicação, de que depende o início das actividades da Europol, das quais se podem destacar: o estabelecimento dos direitos e obrigações dos agentes de ligação face à Europol; as regras de execução respeitantes aos seus ficheiros de trabalho; o regulamento interno da Instância Comum de Controlo; o protocolo relativo aos privilégios e imunidades da Europol, dos membros dos seus órgãos, dos seus directores-adjuntos e agentes; o acordo relativo aos privilégios e imunidades necessários ao desempenho das funções dos oficiais de ligação da Europol. Estes dois últimos instrumentos carecem da ratificação aprovação ou aceitação dos Estados-Membros nos termos das respectivas normas constitucionais, pelo que não podem ser objecto de um reenvio prejudicial de validade. 23 No mesmo sentido entre nós, Cruz Vilaça e Pais Antunes, op. cit., p. 65. 24 Sobre esta evolução ver Maria de Assunção do Vale Pereira, O Protocolo n.º 11 Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Revista Jurídica da Universidade Portucalense, n.º 2, 1999, p. 88. 25 Trata-se dos órgãos jurisdicionais nacionais funcionalmente de última instância, categoria mais vasta, portanto, do que a dos tribunais supremos dos Estados-Membros; , cfr. infra, Capítulo IV, ponto 2.2.

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cidadãos da União. Tal retrocesso afigura-se tanto menos compatível com a lógica global do actual Título VI, quanto ela se aproxima se aproxima de uma lógica de integração26.

1.3. Finalmente, o n.º 4 do mesmo artigo, retomando uma solução negociada para a Convenção Europol, estabelece que qualquer Estado-Membro, tenha ou não feito uma declaração nos termos do n.º 2, dispõe sempre do direito de apresentar ao TJ alegações ou observações escritas.

A disposição visa dotar este órgão do mais amplo conhecimento das posições defendidas pelos Estados-Membros cada vez que é chamado a interpretar ou a apreciar a validade de um acto do Conselho. E pode também ser vista como um esforço no sentido de não alargar o fosso entre os Estados-Membros que aceitam a competência prejudicial do TJ e os que não a aceitam27. 2. A competência anulatória

2.1. A maior novidade no que respeita à competência do TJ no âmbito do Título VI encontra-se no artigo 35º, n.º 6. Esta disposição declara-o competente para fiscalizar a legalidade das decisões-quadro e das decisões e para as anular, sendo caso disso, «com fundamento em incompetência, violação de formalidades essenciais, violação do presente Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação, ou em desvio de poder».

Trata-se de um recurso homólogo do previsto pelo artigo 230º do TCE a interpor, tal como este último, no prazo de dois meses a contar da data da publicação do acto controverso. Ambos os recursos divergem, porém, quanto ao elenco das entidades a quem é conferida legitimidade activa para a respectiva interposição. Nos termos do artigo 230º, ele pode ser interposto tanto pelos Estados-Membros, pelo Conselho e pela Comissão como pelo PE (e também pelo Tribunal de Contas e pelo Banco Central Europeu) − desde que este o faça «com o objectivo de salvaguardar as respectivas prerrogativas» − e ainda pelos particulares interessados. Em contrapartida, nos termos do artigo 35º, n.º 6, tal recurso só pode ser interposto pelos Estados-Membros e pela Comissão.

A legitimidade activa dos Estados-Membros nos termos desta última disposição é evidente por si mesma. A legitimidade activa da Comissão, essa resulta fundamentalmente da sua missão de guardiã do TCE. Sem um mecanismo que lhe permita contestar as usurpações da competência da Comunidade Europeia eventualmente cometidas no âmbito do Terceiro Pilar, tal missão ficaria seriamente comprometida28. A não atribuição de legitimidade activa ao Conselho explica-se pelo facto de ele ser o único órgão com competência decisória no âmbito do Título VI, não tendo, por isso mesmo, ensejo de impugnar qualquer acto neste âmbito.

2.2. Ao invés, a não atribuição de legitimidade activa ao PE é tanto mais questionável quanto, nos termos do artigo 39º, n.º 1, este órgão passa a ser obrigatoriamente consultado pelo Conselho antes da adopção das decisões-quadro, decisões e convenções previstas no artigo 34º do TUE, dispondo de um prazo mínimo de três meses para emitir parecer. 26 Neste sentido, Claude Blumann, Aspects institutionnels, Le Traité d’Amsterdam, cit., p. 39, nota 72. O autor contrapõe esta solução à que vigora para o Tribunal Internacional da Haia, em que a declaração das Partes Contratantes no sentido da aceitação de jurisdição obrigatória daquele órgão é livremente revogável. 27 Neste sentido, Albors-Llorens, op. cit., p. 1282, que no entanto admite que a disposição em causa possa também ser vista como “mais um incentivo para os Estados-Membros relutantes não aceitarem a competência do Tribunal”. 28 Como observa Patrick Wachsmann, Les droits de l’homme, Le traité d’Amsterdam, cit., p. 183, o reconhecimento de legitimidade activa à Comissão traduz também a proximidade entre o Título VI e a acção comunitária destinada a assegurar a livre circulação de pessoas.

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Segundo uma jurisprudência do TJ, a consulta prévia obrigatória é uma prerrogativa que permite ao PE participar efectivamente no processo decisório em causa − e, por isso mesmo, representa uma concretização, quer do princípio democrático, quer do princípio do equilíbrio institucional. Por conseguinte, segundo a mesma jurisprudência, o desrespeito de tal prerrogativa parlamentar traduz-se na violação de uma formalidade essencial que implica a invalidade do acto do Conselho adoptado nessas condições29 e, mais, constitui o PE no direito de interpor recurso de anulação desse acto30. Recorde-se que esta última consequência foi tirada pelo TJ numa fase em que o PE não figurava entre os órgãos a quem o anterior artigo 173º do TCE atribuía legitimidade activa para o recurso de anulação.

Ora, tendo em conta que o objectivo do artigo 39º, n.º 1, é o reforço do princípio democrático no âmbito do Título VI através da participação do PE, nos termos descritos, parece legítimo concluir que o desrespeito da correspondente prerrogativa constitui uma violação de formalidade essencial susceptível de conduzir, também neste contexto, à anulação do correspondente acto do Conselho, nos termos do artigo 35º, n.º 631. Pelas mesmas razões, o TJ poderá ser levado a interpretar a disposição em análise tal como no passado interpretou o artigo 173º do TCE, ou seja, reconhecendo ao próprio PE legitimidade para interpor recurso de anulação «na condição de que tal recurso apenas vise a salvaguarda das suas prerrogativas e apenas se baseie na violação delas», como única forma de garantir efectivamente tais prerrogativas e o objectivo que lhes está subjacente.

Só que, dada a componente intergovernamental do novo contexto, o TJ terá que se confrontar com uma objecção de monta: a de que uma tal solução pressupõe o recurso não aos métodos de interpretação próprios do direito internacional, mas sim aos que são característicos do direito comunitário.

2.3. Restaria ainda saber em que medida é que o TJ, por interpretação extensiva do artigo 35º, n.º 6, deveria reconhecer legitimidade activa para interpor recurso de anulação de uma decisão-quadro ou de uma decisão ao particular capaz de demonstrar que tais actos lhe dizem «directa e individualmente respeito», na acepção tradicionalmente restritiva em que o próprio TJ entende esta condição de admissibilidade prevista pelo artigo 230º do TCE32.

Nestes casos a priori excluídos, o tribunal competente seria o Tribunal de Primeira Instância (TPI) e não o TJ.

2.4. Outra questão que se coloca relativamente ao artigo 35º, n.º 6, é a do parâmetro de validade à luz do qual o TJ deve fiscalizar a legalidade dos actos jurídicos abrangidos por aquelas disposição: se apenas o TUE, ou também o TCE.

Para uma resposta à questão concretamente equacionada, convém ter em conta que um dos objectivos do recurso de anulação previsto pelo artigo 35º, n.º 6, é precisamente o de garantir que as medidas adoptadas no âmbito do Terceiro Pilar não prejudiquem ou usurpem competências da Comunidade. É o que decorre dos artigos 29º e 47º do TUE. Tal

29 Acórdão de 29 de Outubro de 1980, Roquette Frères/Conselho, 138/79, Colectânea, p. 3333, ponto 33. 30 Cfr. o acórdão de 22 de Maio de 1990, Parlamento/Conselho, C-70/88, Colectânea, p. I-2041, ponto 27. Sobre ele ver Maria Luísa Duarte, O estatuto do Parlamento Europeu no contencioso comunitário − notas sobre a evolução jurisprudencial recente, O Direito, 1991, p. 115 ss.; Dimitris Triantafyllou Ist die Nichtigkeitsklage des Europäischen Parlaments eine Klage sui generis?, Die Öffentliche Verwaltung, 1990, p. 1040 ss. 31 Neste sentido, António Goucha Soares, O Tratado de Amesterdão e o novo passo da União Europeia, Legislação , n.º 21, 1998, p. 21. 32 Sobre tal entendimento ver José Carlos Moitinho de Almeida, Le recours en annulation des particuliers (article 173, deuxième alinéa, du traité CE): nouvelles réflexions sur l’expression «les concernant individuellement», Festschrift für Ulrich Everling, Baden-Baden, 1994, p. 849 ss.

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objectivo só será devidamente cumprido se o TJ também puder verificar a compatibilidade com o TCE, e não só com o TUE, de qualquer acto abrangido pela disposição em análise33.

Em todo o caso, na locução algo imprecisa «violação do presente Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação», incluem-se certamente os «princípios gerais do direito comunitário» tal como os define o artigo 6º, n.º 2.

2.5. Finalmente, a relativa homologia entre os recursos dos artigos 230º do TCE e

35º, n.º 6, do TUE deve tornar extensiva ao âmbito deste último a solução prevista pelo artigo 233º, isto é, a obrigatoriedade para o órgão de que emane o acto anulado de tomar as medidas necessárias à execução do acórdão do TJ.

Por outro lado, em ambos os casos, os Estados-Membros deverão tratar de forma idêntica a questão do destino a dar aos actos de direito nacional que executaram ou transpuseram o acto anulado. 3. A competência para a resolução de diferendos

3.1. O artigo 35º, n.º 7, atribui ao TJ competência para decidir sobre: • qualquer litígio entre Estados-Membros decorrente da interpretação ou da execução das

posições comuns, decisões-quadro, decisões e suas medidas de execução, convenções e suas medidas de aplicação, sempre que o diferendo não possa ser resolvido pelo Conselho no prazo de seis meses a contar da data em que lhe tenha sido submetido por um dos Estados-Membros (primeira parte);

• qualquer litígio entre os Estados-Membros e a Comissão decorrente da interpretação ou da aplicação das convenções elaboradas ao abrigo do n.º 2, alínea d), do artigo 34º (segunda parte).

3.2. No que respeita à primeira parte, a disposição em análise vem generalizar uma

solução já consagrada em várias convenções elaboradas ao abrigo do anterior Título VI, a começar pela Europol. O TJ passa assim a poder conhecer de quaisquer litígios que lhe sejam submetidos pelos Estados-Membros, decorrentes da interpretação ou da execução de todos e quaisquer actos previstos pelo artigo 34º. Além disso, pelas razões atrás enunciadas, é de considerar que o mesmo vale para os actos que, embora sob forma não tipificada, forem substancialmente equiparáveis a algum daqueles. Condição prévia fundamental − que, mais uma vez, deixa o TJ em posição de jurisdição internacional − é que tais litígios não tenham podido ser resolvidos na fase diplomática de conciliação no Conselho no prazo de seis meses.

O n.º 7 do artigo 35º é omisso quanto ao processo a seguir após a constatação da impossibilidade de resolução do litígio pelo Conselho. Mas não parece haver lugar a nenhuma automaticidade no activar do TJ: este só apreciará o litígio se uma das partes envolvidas decidir submeter-lho formalmente34.

33 Como nota Pechstein, op. cit., p. 7, é o próprio artigo 220º do TCE que atribui ao TJ competência para delimitar o âmbito de aplicação deste Tratado, não tendo por isso os artigos 29º e 47º eficácia constitutiva mas meramente declarativa. Surpreendentemente, porém, o autor considera que, por força do artigo 35º, n.º 6, o parâmetro de validade do direito secundário da UE apenas pode ser o TUE (p. 10). 34 Em sentido contrário, L. Salazar, op. cit., 928-929, que admite em tais casos «uma espécie de investidura ‘automática’ do TJ no fim do prazo de seis meses, se o Conselho não tiver conseguido dirimir o litígio», não sendo, portanto, necessário que uma das partes tome a iniciativa de recorrer ao TJ. Porém, uma tal derrogação ao princípio fundamental do contencioso perante o TJ − que impõe que este apenas aja a pedido e não por iniciativa própria − não pode ter-se por vigente sem expressa previsão pelo TUE.

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3.3. A segunda parte do artigo 35º, n.º 7, por sua vez, consagra genericamente uma solução já acolhida em diversas convenções, ao conceder legitimidade activa à Comissão para submeter ao TJ, sem fase de conciliação prévia no Conselho, os litígios que a oponham aos Estados-Membros, decorrentes da interpretação ou da aplicação das convenções celebradas ao abrigo do Título VI. A disposição em análise dota, assim, a Comissão de um importante instrumento de garantia de cumprimento, pelos Estados-Membros, das obrigações assumidas num quadro de cooperação que, por isso mesmo, também não pode considerar-se puramente intergovernamental.

Tal disposição deve ser interpretada extensivamente, de modo a abranger não só as convenções, mas também as medidas de aplicação dessas convenções, previstas pelo segundo parágrafo do artigo 34º, n.º 2. Na realidade, a diferença de regime entre convenções e suas medidas de aplicação é desprovida de qualquer justificação objectiva, podendo até revelar-se impossível delimitar o litígio concreto em função de tal diferença.

O artigo 35º, n.º 7, segunda parte, não confere porém à Comissão legitimidade para submeter ao TJ os litígios decorrentes da interpretação ou da aplicação dos restantes actos adoptados ao abrigo do artigo 34, n.º 2. Fica, portanto, excluída a intervenção da Comissão designadamente para efeitos de garantir a correcta transposição das decisões-quadro, homólogas das directivas do Primeiro Pilar.

3.4. Uma observação cabe ainda fazer relativamente ao artigo 35º, n.º 7, no seu conjunto: nem na primeira nem na segunda parte são mencionados os litígios decorrentes da interpretação ou da execução das próprias disposições do Título VI do TUE. A sua interpretação extensiva parece, no entanto, justificar-se, por forma a que o TJ possa considerar-se competente para decidir não só os litígios entre os Estados-Membros decorrentes da interpretação ou da execução das disposições do próprio Título VI − as quais lhes impõem directamente obrigações de diversa ordem −, mas também os litígios submetidos pela Comissão, quando decorrentes da interpretação e da execução das disposições do Título VI relativas às convenções.

Por outras palavras, a correcta interpretação da disposição em causa deve levar o TJ a não declarar inadmissíveis os pedidos de resolução desse tipo de litígios que lhe sejam apresentados, consoante os casos, pelos Estados-Membros ou pela Comissão.

3.5. Em conclusão: o artigo 35º, n.º 7, prevê a acção por incumprimento possível no âmbito de um Pilar da UE cuja lógica é diversa da que informa o TCE, apesar da convergência introduzida pelo TA. Por isso mesmo, as consequências jurídicas de um acórdão do TJ resolvendo o litígio em desfavor de um Estado-Membro afastam-se das que se contêm num acórdão verificando o incumprimento por parte de um Estado-Membro, nos termos dos artigos 226º ou 227º do TCE. A diferença atinge a sua máxima intensidade em relação ao n.º 2 do artigo 228º, onde se prevê a possibilidade de aplicação pelo TJ de sanções pecuniárias ao Estado-Membro faltoso. 4. Os limites à competência do TJ

4.1. A disposição mais controversa do artigo 35º, à primeira vista circunscrita à competência prejudicial, mas com um alcance que efectivamente a extravasa, está no n.º 5. Aí se estabelece que o TJ não é competente para fiscalizar: • a validade ou a proporcionalidade de operações efectuadas pelos serviços de polícia ou

outros serviços responsáveis pela aplicação da lei em cada Estado-Membro; • o exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados-Membros em matéria de

manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna.

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Enquanto que a exclusão em razão da primeira matéria é específica da disposição

em análise, a exclusão em razão da segunda é retomada tanto no artigo 68º do TCE como no Protocolo Schengen.

4.2. Não são facilmente compreensíveis o sentido e o alcance do artigo 35º, n.º 5, o qual, tanto na primeira com na segunda parte, se refere a actos dos Estados-Membros − operações de polícia ou outras efectuadas pelas competentes autoridades e normas, actos administrativos ou actos materiais adoptados pelas mesmas autoridades com vista à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna.

São dois os processos em que o TJ pode ser chamado a apreciar actos dos Estados-Membros: (1) o processo de resolução de diferendos e (2) o processo prejudicial de interpretação.

No primeiro caso, a apreciação é directa e imediata: ao procurar resolver um litígio decorrente da interpretação ou da execução de um acto do Conselho, nos termos do artigo 35º, n.º 7, o TJ é inevitavelmente confrontado com a questão da compatibilidade das disposições e medidas adoptadas pelos Estados-Membros com as obrigações que lhes incumbem por força daquele acto e, mais genericamente, do Título VI. Só a apreciação do conteúdo dos actos dos Estados-Membros permitirá dizer se eles interpretaram e executaram devidamente o direito da UE.

Em contrapartida, nos termos do artigo 35º, n.º 1, a apreciação dos actos dos Estados-Membros é mediata: o TJ interpretará as disposições do Título VI ou os actos do Conselho adoptados com base nelas, aplicáveis ao processo perante o tribunal nacional, não de forma abstracta mas sim em função do caso concreto que este último é chamado a resolver. O TJ acabará assim por decidir de facto sobre a compatibilidade com o direito da UE do direito nacional a priori aplicável ao caso concreto. Se o seu juízo for negativo, o tribunal a quo será levado a desaplicar as disposições do direito nacional em causa, resolvendo o litígio no processo principal com base no direito da UE, tal como interpretado pelo TJ.

Do que antecede, resulta que o artigo 35º, n.º 5, visa a que o TJ declare inadmissível, com fundamento em incompetência, qualquer pedido de decisão apresentado nos termos do artigo 35º, n.º 1 ou n.º 7, em que sejam contestados: (1) acções operacionais das administrações dos Estados-Membros no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal, do ponto de vista da sua legalidade e da sua proporcionalidade; (2) normas, actos administrativos ou actos materiais adoptados pelos Estados-Membros no mesmo domínio, do ponto de vista da sua justificação perante os objectivos de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna. Ora, são precisamente estas restrições aos poderes cognitivos do TJ em razão da matéria que se afiguram problemáticas, embora de modos diferentes, à luz do princípio do Estado de Direito.

4.3. A primeira parte do n.º 5 do artigo 35º deve ser lida em conjugação com a Declaração n.º 7, anexa ao TA. Segundo ela, as acções no domínio da cooperação policial, incluindo as actividades da Europol, «ficarão sujeitas ao controlo jurisdicional adequado por parte das autoridades nacionais competentes, de acordo com as normas aplicáveis em cada Estado-Membro». Sem prejuízo do facto de esta declaração, como qualquer outra, não ter um valor normativo autónomo, a remissão expressa para o controlo jurisdicional nacional das acções de polícia confirma a vontade dos Estados-Membros de excluírem o controlo jurisdicional do TJ neste domínio.

A remissão para as normas aplicáveis em cada Estado-Membro justificar-se-á pela menor adequação funcional e processual do TJ, comparativamente com os tribunais nacionais, para ajuizar da legalidade e da proporcionalidade das operações no terreno das

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autoridades de polícia estaduais. Precisamente por isso, nem sequer é líquido que, mesmo na ausência da disposição em causa, o TJ se pudesse considerar competente para fiscalizar tais acções. Mas a primeira parte do artigo 35º, n.º 5, ao estabelecer a proibição, parece pressupor que sim.

4.4. Ao invés, a segunda parte do artigo 35º, n.º 5, afigura-se bem mais problemática perante o princípio do Estado de Direito, ao pretender excluir em absoluto do controlo do TJ um domínio que, bem vistas as coisas, constitui materialmente o próprio núcleo duro do Terceiro Pilar35. A disposição parece ter como objectivo prioritário impedir que o TJ transponha para aqui a sua jurisprudência relativa ao controlo da aplicação, por parte dos Estados-Membros, das cláusulas de ordem pública e de segurança interna elaborada no quadro do TCE36.

Seja como for, cabe ao TJ interpretar a disposição em análise restritivamente, tal como lhe impõe o princípio do Estado de Direito, consagrado pelo artigo 6º, n.º 1, do TUE, a que agora tem acesso directo37. 5. Direito transitório

5.1. Questão relevante é ainda a de saber se o disposto no artigo 35º se aplica apenas aos actos abrangidos pelo Título VI adoptados após a entrada em vigor do TA, ou também: (1) àqueles que foram adoptados ao abrigo do anterior Título VI e continuam a relevar materialmente do mesmo Título após a sua revisão pelo TA; (2) àqueles que foram adoptados ao abrigo do anterior Título VI em matérias que, com a entrada em vigor do TA, passaram a relevar do Título IV do TCE.

Não se encontra no TUE nenhuma disposição expressa a este respeito. Na falta dela, poder-se-ia pensar que o artigo 35º só dispõe para o futuro, pelo que a competência do TJ nele prevista apenas incidirá sobre os actos adoptados a partir da data da entrada em vigor do TA. Isto significaria, em primeiro lugar, que (1) as convenções elaboradas ao abrigo do anterior Título VI apenas poderiam ser interpretadas prejudicialmente pelo TJ de acordo com as regras especificadas em cada uma delas, sendo que pelo menos duas nada prevêem a esse respeito; (2) o mesmo valeria para a resolução dos diferendos decorrentes da aplicação de tais convenções. Significaria, além disso, que (3) nenhuma acção comum ou medida de execução adoptadas nos termos do artigo K.3, n.º 2, alínea b), ou qualquer outro acto baseado no anterior Título VI que continue a relevar da nova versão deste poderiam ser objecto de um reenvio prejudicial de interpretação ou de validade, nem de um recurso de anulação; (4) nenhum litígio surgido entre os Estados-Membros decorrente da interpretação ou da execução de uma posição comum, de uma acção comum ou de qualquer acto atípico adoptado com base no anterior Título VI poderia vir a ser resolvido pelo TJ. Por conseguinte, com excepção da maior parte das convenções, todos os actos adoptados ao longo de mais de cinco anos num domínio de enorme impacto nas esferas de liberdade individual dos cidadãos manter-se-iam subtraídos ao controlo jurisdicional.

Esta não seria certamente a melhor solução. Desde logo, o princípio de que o novo direito só dispõe para o futuro é relativizado quando o novo direito dispõe de uma força

35 Tal como acertadamente observa Andrea Biondi, The Flexible Citizen: Individual Protection after the Treaty of Amsterdam, European Public Law, vol. 5, 1999, p. 256, «é realmente muito difícil conceber uma medida abrangida pelo Título VI do TUE sem incidência sobre a manutenção da ordem pública e a garantia da segurança interna». 36 Acórdão de 28 de Outubro de 1975, Rutili/Ministro do Interior, 36/75, Colect. p. 1219, pontos 20, 26 e 27; cfr. infra Capítulo IV, n.º 5. 37 Recorde-se que o anterior artigo L do TUE excluía expressamente a competência do TJ para interpretar e aplicar o antecessor do artigo 6º, isto é, o artigo F.

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normativa superior ao «direito ordinário anterior»38. Este só se mantém em vigor desde que não contrarie o novo direito de grau superior. No caso vertente, isto significa que só se podem manter em vigor as disposições sobre competência do TJ que não restrinjam o disposto no artigo 35º.

A solução adequada deve ser procurada em coerência com os princípios que, embora mitigadamente, nortearam a solução acolhida pelo artigo 35º conjugado com o artigo 46º, alínea b): por um lado, o princípio do Estado de Direito; por outro, o princípio da aplicação uniforme do direito da UE. Com base neles, é de concluir que o controlo do TJ nos termos do artigo 35º se deve tornar extensivo a todo o direito secundário adoptado em execução do anterior Título VI que continue a relevar da nova versão deste. No que respeita concretamente às convenções, deixam de ser aplicáveis, tornando-se caducas, as disposições contidas nestes instrumentos e nos respectivos protocolos que atribuíam ao TJ competência prejudicial e de resolução de diferendos39. Assim se chega a uma desejável situação de homogeneidade do regime de controlo jurisdicional de tais convenções40.

Em contrapartida, os actos adoptados ao abrigo do anterior Título VI que, com a entrada em vigor do TA, passaram a relevar do Título IV do TCE41 devem ficar sujeitos à competência do TJ nos termos conjugados dos artigos 68º e 220º e seguintes do mesmo Tratado, sem prejuízo do opt-out de três Estados-Membros relativamente àquele Título e, por conseguinte, às decisões do TJ sobre os actos dele relevando42.

5.2. Por último, importa precisar a solução proposta relativamente ao recurso de anulação: o prazo de dois meses estabelecido para a sua interposição exclui na prática a possibilidade de tal recurso ser interposto contra actos adoptados ao abrigo do anterior Título VI.

Esta solução afigura-se mais defensável do que, por exemplo, aquela que consistisse em considerar que tal prazo se abriria a contar da própria data de entrada em vigor do TA. De qualquer maneira, aqueles actos poderão ser sujeitos a um controlo de efeitos idênticos aos do recurso de anulação no quadro do processo prejudicial de validade43. 6. Apreciação global

6.1. O primeiro aspecto a pôr em destaque relativamente ao artigo 35º é o seu patente carácter de compromisso, já com antecedentes, entre posições radicalmente

38 Sobre a supremacia hierárquica do TUE e seu «efeito de espartilho», cfr. Pechstein, op. cit. p. 23. 39 Em rigor, poderiam manter-se vigentes pelo menos aquelas disposições cujo conteúdo coincida integralmente com o artigo 35º. Mas é mais congruente com a própria supremacia do TUE que a competência do TJ no âmbito do Título VI se reja exclusivamente pelo artigo 35º. 40 Neste sentido, L. Salazar, op. cit., p. 931, propondo, embora não com propriedade, «uma interpretação extensiva» do artigo 35º, tendente a incluir no seu âmbito de aplicação as convenções anteriormente estabelecidas no quadro do Título VI. Afigura-se, em contrapartida, de rejeitar a posição defendida por Gialdino, op. cit., p. 64 − segundo a qual as disposições relativas à competência do TJ contidas nas convenções ou protocolos celebrados ao abrigo do anterior artigo K.3 constituem, mesmo depois da entrada em vigor do TA, direito especial em relação ao artigo 35º, devendo, por isso, prevalecer sobre ele − porque arranca de uma compreensão deficiente do valor normativo superior do TUE. 41 Alguns foram entretanto transformados em actos jurídico-comunitários típicos, como as duas convenções sobre cooperação judiciária em matéria civil que passaram a regulamentos do Conselho em 29 de Maio de 2000. 42 Em sentido diferente, Kai Hailbronner e Claus Thiery, Amsterdam − Vergemeinschaftung der Sachbereiche Freier Personenverkehr, Asylrecht und Einwanderung sowie Überführung des Schengen-Besitzstands auf EU-Ebene, Europarecht, 5/1998, p. 593. 43 Sobre tais efeitos, ver na doutrina portuguesa Ana Maria Guerra Martins, Efeitos dos Acórdãos Prejudiciais do Artigo 177º do TCEE, Lisboa, 1988.

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divergentes dos Estados-Membros. Seja como for, a verdade é que ele põe fim a uma criticável situação de ausência generalizada de controlo jurisdicional no âmbito do Terceiro Pilar da UE. Ao fazê-lo, vai inequivocamente no sentido da realização do princípio do Estado de Direito. Com efeito, e muito ao contrário da situação anterior ao TA, todos os actos adoptados pelo Conselho ao abrigo do Título VI ficam, de uma forma ou de outra, sujeitos ao controlo do TJ. Nesta perspectiva, o contraste entre as soluções alcançadas em Maastricht e em Amesterdão fala por si. Mas algumas falhas são de assinalar.

6.2. A primeira falha de monta está no facto de a competência prejudicial atribuída ao TJ pelo artigo 35º ser, com se viu, verdadeiramente à la carte: os Estados-Membros podem aceitá-la ou não, e aqueles que a aceitaram puderam escolher, de acordo com o critério da hierarquia judicial, os tribunais nacionais competentes para interrogar prejudicialmente o TJ. A agravar a situação está o facto de o artigo 35º não impor em caso algum uma obrigação de reenvio prejudicial, retirando assim ao sistema a sua «pedra de fecho», isto é, uma disposição idêntica ao terceiro parágrafo do artigo 234º do TCE, capaz de garantir em última instância a interpretação e a aplicação uniformes do direito que releva do Título VI.

Segundo a Declaração n.º 10 anexa ao TA, os Estados-Membros, ao apresentarem a declaração de aceitação da competência prejudicial do TJ nos termos do artigo 35º n.º 2, «podem reservar-se a possibilidade de introduzir disposições no seu direito interno que prevejam que, sempre que uma questão relativa à validade ou à interpretação de um acto adoptado ao abrigo do Título VI seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submetê-la à apreciação do TJ». Por conseguinte, no âmbito do Título VI do TUE apenas o direito nacional pode prever aquilo que no âmbito do TCE está expressamente previsto pelo artigo 234º, terceiro parágrafo.

Na prática, isto traduziu-se na seguinte situação: a Dinamarca, a Irlanda e o Reino Unido (ainda) não fizeram a declaração prevista pelo n.º 2 do artigo 35º; a Finlândia, a Grécia, Portugal e a Suécia fizeram tal declaração nos termos da alínea a) daquela disposição, podendo pois qualquer órgão jurisdicional desses Estados submeter questões prejudiciais ao TJ; os restantes Estados-Membros fizeram a declaração nos termos da alínea b); com excepção da Espanha, todos eles se reservaram a possibilidade de prever no seu direito interno a obrigação de reenvio prejudicial para os respectivos tribunais de última instância44.

Apesar de tudo, mesmo os tribunais dos Estados-Membros que não aceitaram a competência prejudicial do TJ dificilmente estarão em condições de ignorar o sentido das decisões prejudiciais deste órgão sobre as disposições que devam aplicar aos litígios perante si pendentes45. Com efeito, à luz do princípio da igualdade, revelar-se-á fraco o argumento baseado na não aceitação daquela competência pelo Estado-Membro em causa, para recusar a observância de uma decisão prejudicial que interprete ou declare inválida uma regra de direito da UE. Pode-se falar neste contexto de uma vinculação de facto, que não de jure, dos tribunais dos Estados-Membros que não aceitaram a competência prejudicial do TJ46. Esta «vinculação» poderá ser de alguma forma facilitada pelo facto de, nos termos do n.º 4 do artigo 35º, os próprios Estados-Membros que não aceitaram a

44 Dados recolhidos apud Chavrier, op. cit., 547; ver também a declaração feita pelo Estado português no momento da assinatura do TA, publicada no DR−I Série-A n.º 42 de 19-2-1999. 45 Neste sentido Anthony Arnull, Taming the Beast? The Treaty of Amsterdam and the Court of Justice, in O’Keeffe e Twomey (ed.) Legal Issues of the Amsterdam Treaty, Oxford, 1999, p. 118. 46 Em sentido semelhante, González, op. cit., p. 531; Labayle, op. cit., p 167.

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competência do TJ terem o direito de lhe apresentar alegações ou observações escritas em cada processo prejudicial.

Saliente-se ainda a este propósito que, apesar do enfraquecimento provocado no sistema de reenvio prejudicial , o artigo 35º não pôs de forma alguma em causa aquilo que o próprio TJ sempre considerou um fundamento intangível desse sistema, ou seja, a força obrigatória dos acórdãos proferidos no seu âmbito47.

6.3. A segunda falha importante está no n.º 5 do artigo 35º que, ao excluir a competência de controlo do TJ num domínio de grande relevo no âmbito do Título VI, se revela pouco compaginável com o princípio do Estado de Direito48. E isto independentemente dos esforços que o próprio TJ venha a fazer para a minimizar, levando tanto quanto possível em conta a sua jurisprudência em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia de segurança interna.

A este propósito, não é desprovido de interesse referir que o artigo 35º, n.º 5, não é a única disposição do Título VI a «acantonar» ao TCE uma determinada jurisprudência do TJ. Além dele, encontra-se o artigo 34º, n.º 2, alínea b), ao dispor que as decisões-quadro não produzem efeito directo49. Trata-se de actos homólogos das directivas do TCE previstas pelo artigo 249º, terceiro parágrafo, na medida em que, tal como elas, «vinculam os Estados-Membros quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios». Ora, é bem conhecida a jurisprudência comunitária que atribui às directivas um efeito directo, no preciso sentido de que os particulares as podem invocar em tribunal desde que, por um lado, elas imponham aos Estados-Membros uma obrigação clara, incondicional e suficientemente precisa e, por outro, não tenham sido transpostas dentro do prazo fixado ou tenham sido incorrectamente transpostas50.

6.4. Apesar de todas as suas limitações, é inegável que o artigo 35º constitui um passo significativo para a realização do princípio do Estado de Direito a nível da UE, na sua vertente específica de garantia de um sistema de controlo jurisdicional adequado da legalidade dos actos dos seus órgãos. Algumas dessas limitações são susceptíveis de ser ultrapassadas pelo próprio TJ, bastando para isso que interprete e aplique a disposição em causa em conformidade com o mencionado princípio. Outras só mediante revisão do TUE poderão ser superadas.

Uma coisa, no entanto, parece certa: a consagração do princípio do controlo jurisdicional do TJ no Terceiro Pilar faz com que este órgão deixe de se confinar às Comunidades Europeias para passar a ser, embora (ainda) limitadamente o Tribunal de Justiça da União Europeia51. 47 Ver por exemplo o Relatório do Tribunal de Justiça sobre determinados aspectos da aplicação do Tratado da União Europeia, apresentado em Maio de 1995, ponto 4. 48Neste sentido, Franklin Dehousse, Le traité d’Amsterdam, reflet de la nouvelle Europe, Cahiers de Droit Européen, 1997, p. 267; The Treaty of Amsterdam: Neither a bang nor a whimper, Editorial Comments, Common Market Law Review, 1997, p. 771. 49 Como observa Biondi, op. cit., p. 253, não deixa de ser irónico que a primeira vez que a expressão «efeito directo» aparece num Tratado em que se funda a UE seja para negar que determinada medida é susceptível de o produzir. 50 Sobre a fixação pretoriana do efeito directo das directivas, ver por último Edward, Direct Effect, cit., p. 433, bem como a jurisprudência e a bibliografia aí citadas. 51 Em sentido contrário Chavrier, op. cit., p. 628, para quem ainda não existe Tribunal de Justiça da União porque o Segundo Pilar «escapa a toda a justiciabilidade». Esta afirmação é porém contrariada pela jurisprudência do TJ de acordo com a qual o juiz comunitário se considerou competente para, anteriormente à vigência do artigo 35º, n.º 6, anular um acto adoptado no âmbito do Terceiro Pilar que constituísse uma «invasão à esfera de competências que as disposições do Tratado CE atribuem à Comunidade» (cfr. supra nota 11). Tal jurisprudência aplicar-se-á, por identidade de razão, aos actos adoptados no âmbito do Segundo

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IV − O artigo 68º do TCE e a «modulação» da competência do TJ relativamente ao Título IV

No âmbito do Título IV, o artigo 68º «modula» a competência comum do TJ, tal como a delineiam os artigos 220º e seguintes do TCE, de três formas distintas: (1) prevendo uma derrogação ao artigo 234º, segundo parágrafo; (2) criando uma nova espécie de processo prejudicial, de certa maneira em compensação daquela derrogação, que obriga a rever a caracterização do género; (3) limitando os poderes cognitivos do TJ em razão da matéria. Em tudo o resto, a competência do TJ permanece intocada.

Tal modulação está estreitamente relacionada com as particularidades do novo Título. 1. Preliminar: as particularidades do Título IV do TCE

O Título IV apresenta três particularidades que o singularizam no contexto do TCE. São elas: (1) o modo de definição das competências nele previstas; (2) a circunstância de não vincular, em princípio, o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca; (3) o processo decisório sui generis, pelo menos durante um período transitório de cinco anos. Foi este o preço do consenso alcançado em Amesterdão para a «comunitarização» das matérias constantes do ex-artigo K.1, pontos 1, 2, 3 e 6.

1.1. A primeira particularidade está em que o TA não comunitarizou como um todo algumas das cinco matérias anteriormente constantes do anterior artigo K.1, pontos 1, 2, 3 e 6, a saber: (1) a política de asilo, (2) a passagem das fronteiras externas, (3) a política de imigração, (4) a política relativa aos nacionais de Estados terceiros e (5) a cooperação judiciária civil. Com efeito, os artigos 63º e 65º do Título IV não cobrem, respectivamente, a política de asilo, a política de imigração e a cooperação judiciária civil em toda a sua extensão mas, restritivamente, apenas determinados aspectos delas. Isto significa que a Comunidade não tem competência para disciplinar tais matérias na sua íntegra mas apenas os aspectos expressamente enumerados naquelas disposições. Não é, portanto, de excluir o surgimento de lacunas difíceis de colmatar52. Importa notar, por outro lado, que o Título IV pretende excluir do seu âmbito de aplicação dois princípios estabelecidos pelo TJ no que toca à definição das competências da Comunidade, a saber: (1) o do «paralelismo de competências», segundo o qual o exercício de uma competência prevista pelo TCE tem como efeito necessário a atribuição à Comunidade, em detrimento dos Estados-Membros, da competência para concluir com Estados terceiros ou outros entes internacionais todos os acordos relativos à matéria disciplinada pelo acto comunitário resultante daquele exercício53; (2) o da preempção, que transforma as competências comunitárias concorrentes com as dos Estados-Membros em competências exclusivas da Comunidade a partir do seu prévio exercício por parte desta54.

A exclusão do primeiro princípio dá-se, por um lado, nos termos da Declaração n.º 16, relativa ao artigo 63º, ponto 3, alínea a), segundo a qual, os Estados-Membros podem Pilar que constituam uma invasão na esfera de competências não só da Comunidade, mas também do Terceiro Pilar. 52 Salientando este ponto, cfr. Hailbronner e Thiery, p. 587, que consideram que o preenchimento de lacunas no âmbito do Título IV através do recurso aos artigos 94º ou 308º «é de afastar totalmente uma vez que não se pode partir do princípio de que as Partes Contratantes no Tratado de Amesterdão não viram o problema e, por isso, o deixaram por resolver». 53 Cfr. o acórdão de 31 de Março de 1971, Comissão/Conselho, 22/70, Colect., p. 72, especialmente pontos 28 e 31. 54 Cfr. o acórdão de 16 de Fevereiro de 1978, Comissão/Irlanda, 61/77, Colect. p. 417, ponto 65.

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negociar e celebrar acordos internacionais com países terceiros nos domínios nele previstos «desde que esses acordos sejam concordantes com o direito comunitário». Por outro lado, o protocolo, anexo ao TCE, sobre as relações externas dos Estados-Membros no que respeita à passagem das fronteiras externas, determina que a competência da Comunidade não prejudica a competência dos Estados-Membros para negociar ou celebrar acordos com países terceiros «desde que esses acordos se conformem com o direito comunitário e com os demais acordos de direito internacional pertinentes».

A exclusão do segundo princípio dá-se nos termos do segundo parágrafo do artigo 63º. De acordo com ele, as medidas adoptadas pela Comunidade nos domínios (1) da política de imigração e (2) das condições em que os nacionais de países terceiros que residam legalmente num Estado-Membro podem residir noutros «não impedirão os Estados-Membros de manter ou introduzir, nos domínios em causa, disposições nacionais que sejam compatíveis com o presente Tratado e com os acordos internacionais»55.

1.2. A segunda particularidade do Título IV prende-se com o facto de ele se

configurar como uma modalidade de cooperação reforçada predeterminada pelo próprio TA. É o que resulta do seu artigo 69º, segundo o qual «o presente Título é aplicável sob reserva do disposto no Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda e no Protocolo relativo à posição da Dinamarca e sem prejuízo do Protocolo relativo à aplicação de certos aspectos do artigo 14º do TCE ao Reino Unido e à Irlanda».

Os dois primeiros protocolos (artigos 1º) isentam, em graus diferentes, o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca de participarem na adopção, pelo Conselho, das medidas propostas em aplicação do Título IV56. Além disso, nenhum dos três Estados-Membros fica, em princípio, vinculado por qualquer (1) disposição do Título IV, (2) medida adoptada em aplicação deste Título, (3) acordo internacional celebrado pela Comunidade em aplicação do mesmo Título, (4) decisão do TJ que interprete essas disposições ou medidas (artigo 2º de ambos os Protocolos). Todavia, enquanto que o Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda lhes atribui a faculdade, quer de se associarem à adopção, pelo Conselho, de qualquer medida proposta em aplicação do Título IV (artigo 3º), quer de se vincularem e aplicarem qualquer medida adoptada pelo Conselho sem a sua participação (artigo 4º), o Protocolo relativo à Dinamarca apenas lhe outorga parcialmente e de modo sui generis a segunda faculdade, muito embora a vincule a participar plenamente na adopção ou revisão, nos termos do artigo 62º, ponto 2, alíneas i) e iii), (1) da lista de países terceiros cujos nacionais devem ser detentores de visto para transporem as fronteiras externas dos Estados-Membros e (2) do modelo-tipo de visto (artigo 4º).

O terceiro Protocolo a conjugar com o Título IV do TCE (artigos 1º e 2º) isenta o Reino Unido – e também a Irlanda, enquanto se mantiverem em vigor os convénios celebrados entre ambos, relativos à circulação de pessoas entre os respectivos territórios (“Zona de Deslocação Comum”) – da participação na adopção pelo Conselho, nos termos do artigo 62º, ponto 1, das medidas destinadas a assegurar a ausência de controlos de pessoas na passagem das fronteiras internas, assim como da obrigação de aplicar essas medidas. Por força do último Protocolo, estes dois Estados-Membros, bem como os restantes nas suas relações com cada um deles, ficam autorizados sine die a manter os controlos de pessoas nas suas fronteiras comuns. 55 Sobre o paralelismo de competências e o efeito de preempção em direito comunitário ver com desenvolvimento Maria Luísa Duarte, A Teoria dos Poderes Implícitos e a Delimitação de Competências entre a União Europeia e os Estados-Membros, Lisboa, 1997, p. 339 e 424 ss. 56 Nesses casos, a unanimidade no Conselho forma-se sem o voto dos representantes daqueles Estados-Membros, e a maioria qualificada forma-se na mesma proporção dos votos ponderados dos restantes membros do Conselho, nos termos do artigo 205º, n.º 2 (artigo 1º do Protocolo relativo ao Reino Unido e à Irlanda e do Protocolo relativo à Dinamarca).

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1.3. A terceira particularidade do Título IV refere-se aos processos decisórios nele consagrado e traduz-se em derrogações de sentido intergovernamental, sem paralelo em qualquer outra parte do TCE57, ao papel quer da Comissão58, quer do TJ.

Ao contrário do previsto relativamente à Comissão, a supressão das modulações à competência do TJ no fim do período transitório de cinco anos não é automática. Com efeito, o artigo 67º, n.º 2, segundo travessão, limita-se a dispor que findo esse período, o Conselho, deliberando por unanimidade, após consulta ao PE, toma uma decisão destinada a adaptar as disposições relativas à competência do juiz comunitário, decisão essa que poderá até trazer modulações de sentido mais restritivo a tal competência. 2. O artigo 68º, n.º 1, e a exclusão dos tribunais nacionais que não decidem em última instância do âmbito de aplicação do Título IV

2.1. O sentido derrogatório do artigo 68º, n.º 1, relativamente ao artigo 234º, segundo parágrafo, é enunciado de uma forma que não prima pela clareza: «O artigo 234º é aplicável ao presente Título nas circunstâncias e condições a seguir enunciadas: sempre que uma questão sobre a interpretação do presente Título ou sobre a validade ou interpretação dos actos adoptados pelas Instituições da Comunidade com base no presente Título seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, deve pedir ao Tribunal de Justiça que sobre ela se pronuncie».

Esta disposição, que à primeira leitura evoca o terceiro parágrafo do artigo 234º, constitui a subtil fórmula encontrada, por um lado, para retirar aos órgãos jurisdicionais nacionais de cujas decisões cabe recurso de direito interno a faculdade, prevista no segundo parágrafo do mesmo artigo, de submeterem ao TJ questões prejudiciais de interpretação do Título IV ou dos actos adoptados com base nele, que considerem necessárias para o julgamento das causas perante si pendentes. A subtileza da fórmula explica-se, porventura, pelo radicalismo da mudança que, de resto, contraria frontalmente a posição sempre defendida pelo próprio TJ, no sentido de que todos e quaisquer órgãos jurisdicionais nacionais devem dispor daquela faculdade59.

Por outro lado, o artigo 68º, n.º 1, veda aos órgão jurisdicionais nacionais que não decidem em última instância o reenvio ao TJ das questões prejudiciais de validade dos actos adoptados em aplicação do Título IV. Isto torna impossível a aplicação, neste contexto, da conhecida jurisprudência Foto-Frost, segundo a qual, todo e qualquer órgão jurisdicional nacional − e não apenas os de última instância − que considere inválida uma norma jurídico-comunitária aplicável ao caso a decidir é obrigado a suscitar ao TJ a pertinente questão prejudicial60. Ora, ficando impossibilitados de cumprir esta obrigação 57 E que levam certos autores a considerar que tais derrogações se assemelham mais a uma variante do modelo intergovernamental misto do Terceiro Pilar do que do modelo comunitário convencional; cfr. por exemplo David O’Keeffe, Can the Leopard Change its Spots? Visas, Immigration, and Asylum − Following Amsterdam, in O’Keeffe e Twomey (edit.), Legal Issues of the Amsterdam Treaty, Oxford, 1999, p. 276. 58 No que respeita à Comissão, a notável derrogação reside no facto de, durante um período transitório de cinco anos, ela não dispor exclusivamente do direito de iniciativa, devendo partilhá-lo com os Estados-Membros. Mas findo esse período, o artigo 67º, n.º 2, primeiro travessão, deixa claro que a Comissão recupera a exclusividade do direito de iniciativa, se bem que fique obrigada a «instruir qualquer pedido formulado por um Estado-Membro, destinado a constituir uma proposta ao Conselho». 59 Cfr. por exemplo o Relatório do Tribunal de Justiça, cit., Capítulo III, onde se pode ler que «a possibilidade de submeter questões prejudiciais ao Tribunal deve manter-se aberta a todos os órgãos jurisdicionais». 60 Cfr. o acórdão de 22 de Outubro de 1987, Foto-Frost/Hauptzollamt Lübeck-Ost, 314/85, Colect. p. 4230, ponto 20. Para uma crítica desta jurisprudência que, no fundo, mais não pretende do que configurar o sistema de controlo da validade dos actos comunitários à imagem e semelhança dos sistemas de controlo concentrado

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por força do artigo 68º, n.º 1, os juizes que não decidem em última instância poderão ser levados a desaplicar, sem mais, as normas adoptadas ao abrigo do Título IV que considerem contrárias ao «direito superior»61. O contraste entre o artigo 68º, n.º 1, e o artigo 234º, segundo parágrafo, tal como interpretado pela citada jurisprudência é, pois, flagrante: aquilo que neste é configurado como obrigação naquele traduz-se numa proibição.

2.2. Uma leitura atenta do artigo 68º, n.º 1, revela que a sua redacção se diferencia em dois aspectos do terceiro parágrafo do artigo 234º. Por um lado, a expressão «se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa», constante da primeira disposição, está ausente da segunda. Por outro lado, a primeira disposição utiliza a expressão «deve pedir» ao TJ que se pronuncie sobre a questão, ao passo que na segunda consta a expressão «é obrigado a submeter a questão» ao TJ.

Com base nestas diferenças, alguns autores têm interpretado o artigo 68º, n.º 1, no sentido de que o reenvio prejudicial nele previsto não obrigatório mas sim facultativo para os órgãos jurisdicionais nacionais de cujas decisões não caiba recurso de direito interno62.

Porém, relativamente à segunda diferença, a versão portuguesa do artigo 68º, n.º 1, não permite basear qualquer argumento no sentido do carácter facultativo daquele reenvio prejudicial. Com efeito, não se afigura de todo em todo defensável retirar da contraposição entre a expressão «deve pedir» e a expressão «é obrigado a submeter» ao TJ qualquer elemento susceptível de pôr em causa a obrigatoriedade do reenvio prejudicial modulado pelo artigo 68º, n.º 1.

É certo que o mesmo não resulta tão claro de outras versões linguísticas, como a francesa, em que a expressão «demande à la Cour» (artigo 68º, n.º 1) contrasta, à primeira vista, com a expressão «est tenue de saisir la Cour» (artigo 234º, terceiro parágrafo). Apesar disso, é infundado concluir que o artigo 68º, n.º 1, retira ao reenvio prejudicial o seu carácter obrigatório no âmbito do Título IV. Por um lado, deve ter-se em conta que na maior parte das outras versões linguísticas oficiais não há lugar a dúvidas razoáveis a este respeito, devendo presumir-se que os termos de um tratado têm o mesmo sentido nos diversos textos autênticos. Trata-se aliás de um princípio recorrentemente aplicado pelo próprio TJ. Por outro lado, o termo utilizado em lugar da expressão «é obrigado a submeter» é o presente do indicativo do verbo pedir. Ora, este tempo verbal é susceptível de exprimir com toda a propriedade um dever ou obrigação.

Não pode, pois, extrair-se de uma alteração que, bem vistas as coisas, não é mais do que meramente redaccional, uma consequência substantiva tão relevante como a mudança de natureza do reenvio prejudicial de obrigatória para facultativa no âmbito do Título IV63. Se essa fosse a intenção dos autores do TA, onde se lê «pede», haveria que ler-se «pode pedir» ao TJ. Bastaria seguir o exemplo do segundo parágrafo do artigo 234º.

de constitucionalidade vigentes em diversos Estados-Membros − a despeito do teor literal do artigo 234º, segundo parágrafo −, ver por exemplo, Alberto Souto de Miranda, A competência dos tribunais dos Estados-Membros para apreciarem a validade dos actos comunitários no âmbito do artigo 177º do Tratado de Roma, Temas de Direito Comunitário, Coimbra, 1990, p. 11 ss.; cfr. também as observações de Moura Ramos, op. cit., p. 105. 61 Neste sentido, Arnull, op. cit., p. 117. 62 Neste sentido, cfr. por exemplo Labayle, op. cit., p. 155; Wachsmann, op. cit., p. 182; Jean Marc Favret, Le traité d’Amsterdam: une révision ‘a minima’ de la «charte constitutionnelle» de l’Union européenne, Cahiers de Droit Européen, 1997, p. 566-567. 63 Como acertadamente observa González, op. cit., p. 518, «uma derrogação de semelhante quilate ao regime geral do artigo 234º, que, recordemo-lo, é aplicável (ao Título IV) em tudo o que o artigo 68º não exclui expressamente, não pode presumir-se com tanta ligeireza pelo simples facto de a redacção deste preceito resultar confusa».

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Nestas condições, fica prejudicado o argumento adicional que se baseia na presença, no artigo 68º, n.º 1, da locução «se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa», locução essa que apenas se encontra no segundo parágrafo do artigo 234º, relativo precisamente aos casos de reenvio facultativo ao TJ. A verdade é que a ausência dela no termo de comparação do artigo 68º, n.º 1, ou seja, no terceiro parágrafo do artigo 234º explica-se precisamente pela sua presença no segundo parágrafo. Uma vez que ambos os parágrafos do artigo 234º devem ser lidos em conjunto, tornar-se-ia redundante repetir no terceiro o que já consta do segundo e que, pelas mesmas razões, não pode deixar de ser extensivo àquele. O que está em causa é o juízo de relevância da questão de interpretação ou de validade para o julgamento do caso, a que qualquer órgão jurisdicional nacional deve sempre proceder − caiba ou não caiba recurso das suas decisões. De resto, o próprio TJ se encarregou de confirmar que assim é especificamente para o terceiro parágrafo do ora artigo 234º, na jurisprudência CILFIT64.

De tudo o que antecede, resulta que, também no âmbito do Título IV, o reenvio prejudicial é obrigatório para os órgãos jurisdicionais nacionais de cujas decisões não cabe recurso de direito interno65. O TJ não deixará decerto de o confirmar, clarificando que os órgãos jurisdicionais nacionais que a ele ficam obrigados são todos aqueles que no caso concreto decidem em última instância, e não apenas os tribunais supremos66. 3. Apreciação

3.1. A ideia de limitar aos tribunais de última instância dos Estados-Membros a competência para submeter questões prejudiciais ao TJ era já recorrentemente ventilada antes da conferência intergovernamental que deu origem ao TA. Subjacente a ela, estão duas ordens de motivações. Por um lado, uma motivação «conservadora», perante o facto, comprovado, de que os maiores impulsos pró-integração e pró-Comunidade foram dados pelo TJ através de acórdãos proferidos em resposta a questões prejudiciais principalmente submetidas por tribunais nacionais de primeira instância67. Por outro lado, uma motivação de ordem pragmática: face ao aumento crescente do contencioso comunitário e da morosidade processual, alega-se que aquela restrição permitirá uma triagem das questões prejudiciais realmente relevantes ou de princípio68 e, por conseguinte, uma resposta mais

64 Cfr. o acórdão de 6 de Outubro de 1982, CILFIT/Ministério da Saúde, 283/81, Colect. p. 3431, ponto 21, onde o TJ declara que «um órgão jurisdicional cujas decisões não são susceptíveis de recurso judicial de direito interno é obrigado, sempre que uma questão de direito comunitário se coloca perante si, a corresponder à sua obrigação de a submeter ao TJ, a menos que verifique que a questão suscitada não é pertinente (...)». 65 No mesmo sentido Jean-Victor Louis, Le traité d’Amsterdam. Une occasion perdue?, Revue du Marché Unique Européen, 2/1997, p. 10; Michel Petite, Le traité d’Amsterdam: ambition et realisme, Revue du Marché Unique Européen, 1997, p. 47; com uma fundamentação desenvolvida, Gialdino, op. cit., p. 53-55. 66 No sentido de que o artigo 68º, n.º 1, vincula os tribunais «funcionalmente de última instância», Hailbronner e Thiery, op. cit., p. 614. Sobre as duas teses quanto à definição de «órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno» − as chamadas teoria concreta e teoria abstracta − ver Paulo Canelas de Castro, O reenvio prejudicial: um mecanismo de integração através da cooperação de juizes. Apontamentos sobre uma história (ainda?) de sucesso, Temas de Integração, 2º vol., 1997, p. 104, nota 8, com indicação da jurisprudência do TJ que favorece a teoria concreta. 67 Sobre este ponto, ver por exemplo J. H. H. Weiler, Journey to an Unknown Destination: A Retrospective and Prospective of the European Court of Justice in the Arena of Political Integration, Journal of Common Market Studies, vol. 31, 1993, p. 417-446. O autor salienta que os tribunais nacionais, tipicamente os tribunais de primeira instância, foram parceiros voluntários do TJ no uso do ex-artigo 177º «contra» as autoridades políticas e administrativas nacionais (p. 421). 68 Cfr., por exemplo, Sally Langrish, The Treaty of Amsterdam. Selected Highlights, European Law Review, 1998, p. 8.

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célere do TJ, tal como o exige a boa administração da justiça e, em especial, o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos particulares.

Tendo em conta a delicadeza das matérias reguladas pelo Título IV, do ponto de vista, quer da soberania dos Estados-Membros, quer dos direitos fundamentais das pessoas, as duas ordens de motivações entrelaçam-se de tal forma que é difícil dizer qual delas prevaleceu na solução consagrada pelo artigo 68º, n.º 1. Oficialmente, insistiu-se sobretudo no objectivo de evitar, por um lado, um número incomportável de reenvios prejudiciais por parte dos tribunais inferiores, principalmente em processos de asilo e de imigração, susceptível de paralisar a actividade do TJ e, por outro lado, um alongamento excessivo da duração destes processos perante os tribunais nacionais.

3.2. A limitação estabelecida pelo artigo 68º, n.º 1, é naturalmente passível de críticas69. Não a vêem com bons olhos todos aqueles que defendem a tese segundo a qual a interpretação e aplicação uniformes do direito comunitário têm como condição sine qua non que todos os órgãos jurisdicionais nacionais possam submeter questões prejudiciais ao TJ. Como se viu, o próprio juiz comunitário acolhe esta linha argumentativa, considerando que «limitar a possibilidade de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça teria por efeito pôr em causa a aplicação e a interpretação uniformes do direito comunitário no conjunto da União, arriscando-se assim a privar os particulares de uma protecção jurisdicional efectiva e a pôr em causa a unidade da jurisprudência»70.

Há, no entanto, que encarar com algum relativismo este linha argumentativa de laivos ad terrorem. Na realidade, não é pelo facto de todos os tribunais nacionais de cujas decisões caiba recurso de direito interno disporem da faculdade de interrogar prejudicialmente o TJ, nos termos do segundo parágrafo do artigo 234º, que fica garantida a aplicação e a interpretação uniformes do direito comunitário, a protecção jurisdicional efectiva dos particulares e a unidade da jurisprudência do TJ. A realização de tais objectivos depende, decisivamente, da actuação do sistema de recursos jurisdicionais de direito interno, com o efeito uniformizador do direito e de tutela dos particulares que lhe está associado. Bem vistas as coisas, o sistema processual destinado a garantir aqueles objectivos assenta, em última instância, na obrigação de reenvio prejudicial imposta aos tribunais dos Estados-Membros de cujas decisões não caiba recurso, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 234º71. Ora, esta «chave de abóbada» do sistema fica absolutamente salvaguardada pelo artigo 68º, n.º 1.

A estes argumentos destinados a contestar a posição «ortodoxa» segundo a qual é indispensável que os órgãos jurisdicionais nacionais de cujas decisões caiba recurso possam sempre interrogar prejudicialmente o TJ, pode acrescentar-se, noutra perspectiva, que a própria prática de reenvio de muitos desses tribunais não contribui para pôr em causa, longe disso, o bem-fundado da ideia de filtragem das questões prejudiciais que anda associada à tese da limitação subjectiva da competência para o reenvio prejudicial. Basta pensar na frequência crescente com que o próprio TJ se recusa a responder a questões prejudiciais que lhes são submetidas, na sua esmagadora maioria, por tribunais de primeira instância, com fundamento na inadmissibilidade delas72. 69 Entre nós, Cruz Vilaça e Pais Antunes, op. cit., p. 61, entendem que «não há qualquer justificação objectiva para uma tal limitação, que nunca fez parte do sistema de reenvio prejudicial comunitário e que é contrária a todas as exigências de boa administração da Justiça». 70 Cfr. o citado relatório do TJ, Capítulo III. Em sentido semelhante na doutrina, ver por último Emmanuelle Dardenne, Immigration et asyle: de nouvelles compétences pour la Communauté?, in Mario Telò e Paul Magnette (ed.) De Maastricht à Amsterdam. L’Europe et son nouveau traité, Bruxelas, 1998, p. 175. 71 Salientando também este aspecto, Moura Ramos, op. cit., p. 107-108, que o considera como uma fraqueza do próprio instituto do reenvio prejudicial. 72 Como exemplo recente de questões prejudiciais sem qualquer relação com o objecto do litígio ou sem qualquer ligação com o direito comunitário que, por isso mesmo, levaram o TJ a declarar-se incompetente

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3.3. A limitação da competência para interrogar prejudicialmente o TJ no âmbito do

Título IV tem sido ainda alvo de uma crítica específica dirigida ao efeito discriminatório que tal limitação alegadamente provoca, precisamente por se circunscrever ao âmbito daquele Título. Tal crítica está formulada nos seguintes termos: o âmbito de aplicação pessoal do Título IV abrange essencialmente, não os cidadãos da UE mas os cidadãos de Estados terceiros73. Sendo assim, o artigo 68º, n.º 1, ao limitar aos órgãos jurisdicionais que decidem em última instância o poder-dever de submeterem questões prejudiciais ao TJ, estaria a discriminar os cidadãos dos Estados terceiros em relação aos cidadãos da UE, os quais, contrariamente aos primeiros, poderiam pedir a quaisquer tribunais nacionais o reenvio de questões prejudiciais. A introdução de um parâmetro de tutela jurisdicional contrastante para estrangeiros e para cidadãos da UE revelar-se-ia problemático face ao princípio do respeito dos direitos fundamentais no ordenamento comunitário74.

A crítica pode impressionar, mas claudica liminarmente por ter pressuposta uma inexactidão, ou pelo menos uma ambiguidade, ao afirmar que os particulares «podem pedir» aos tribunais nacionais que reenviem determinada questão ao TJ. Os particulares podem de facto fazê-lo, mas a isso não é associada qualquer consequência jurídica obrigatória. Noutra perspectiva, este «poder» não é configurado como um direito. Por conseguinte, o facto de um sujeito processual o pedir não cria para o juiz qualquer obrigação de reenvio75. O processo prejudicial não está à disposição das partes no processo principal, rectius, não é um processo de partes. Não havendo um «direito ao reenvio prejudicial» para os particulares, não pode haver lugar a qualquer discriminação entre cidadãos da UE e cidadãos de Estados terceiros.

3.4. Pode assim concluir-se que, perante o risco real de, no âmbito do novo Título IV, surgir um volume incontrolável de pedidos prejudiciais tanto mais grave quanto a funcionalidade do TJ já sofre de uma acentuada erosão, a solução consagrada pelo artigo 68º, n.º 1, afigura-se pelo menos defensável. Os argumentos contra ela invocados não prevalecem numa ponderação que não perca de vista que a paralisia ou a excessiva morosidade na administração da justiça pode pôr muito mais seriamente em causa a efectiva tutela jurisdicional dos particulares do que a limitação à competência de reenvio introduzida por aquela disposição.

A favor do artigo 68º, n.º 1, milita ainda o seu carácter «experimental» por um período de cinco anos, findo o qual serão precisamente os resultados dessa experiência a ditar eventuais readaptações, inclusive a supressão da derrogação em causa. De qualquer modo, o Título IV, dadas as suas particularidades, revela-se um quadro particularmente

para responder ao tribunal nacional de reenvio, ver o acórdão de 25 de Maio de 1998, Rouhallah Nour/Bürgenländische Gebietskrankenkasse, C-361/97, Colect., p. I-3101. 73 Recorde-se, por exemplo, que o direito de asilo dos nacionais de um Estado-Membro da União perante os restantes Estados-Membros encontra-se regulado por um Protocolo anexo ao TCE. 74 Cfr. Luigi S. Rossi, Verso una parziale “communitarizzazione” del terzo pilastro, Il Diritto della Unione Europea, 1997, p. 249-250. 75 É o que expressamente corrobora o ponto 14 do acórdão Foto-Frost, cit., segundo o qual «esses órgãos jurisdicionais podem apreciar a validade de um acto comunitário e, se não considerarem procedentes os fundamentos de invalidade invocados pelas partes, podem rejeitar esses fundamentos concluindo que o acto é plenamente válido (sublinhados nossos). O que este acórdão faz, portanto, é vincular os tribunais nacionais a reenviarem ao TJ a questão prejudicial da validade de uma determinada norma, não pelo facto de as partes no processo lho terem pedido, mas porque eles próprios a consideram inválida, seja ex officio, seja porque acolheram os argumentos nesse sentido invocados pelas partes. Quanto a este ponto, ver por exemplo Canelas de Castro, op. cit., p.112, para quem o actual artigo 234º «comete a avaliação da importância ou da necessidade da decisão de reenvio ao juiz nacional, que não aos particulares partes no processo perante aquele juiz nacional». Sob este prisma, dificilmente se pode considerar o reenvio prejudicial como um expediente dilatório da resolução do litígio no processo principal, na disponibilidade das partes.

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apropriado para testar esta tentativa de evitar que o TJ definitivamente se torne «vítima do seu próprio sucesso» no âmbito do artigo 234º, e relativamente à qual não fica demonstrado − este ponto é decisivo − que ponha em causa qualquer «fundamento da Comunidade».

3.5. Há todavia duas objecções, essas sim incontornáveis, a fazer ao disposto no n.º 1 do artigo 68º. A primeira não é tanto a esta disposição em si mesma, mas à sua conjugação com o disposto no artigo 35º, n.º 3. A segunda reporta-se à adequação do artigo 68º, n.º 1, aos objectivos que nortearam o seu dispositivo.

Viu-se atrás que o artigo 35º, n.º 3, prevê que todos e quaisquer órgãos jurisdicionais nacionais possam submeter ao TJ questões prejudiciais suscitadas no âmbito do Título VI do TUE, desde que o respectivo Estado-Membro tenha feito uma declaração nesse sentido. Tendo em conta que este Título está indissociavelmente ligado ao Título IV do TCE pelo objectivo do estabelecimento progressivo de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, resulta incoerente a diferença de soluções consagradas quanto ao reenvio prejudicial num e noutro caso. Além disso, dada a proximidade entre os dois Títulos e também a de ambos em relação ao Título III do TCE na parte relativa à livre circulação de pessoas, não é de excluir que, por exemplo, um juiz de primeira instância, numa única causa perante si pendente, se veja confrontado simultaneamente com questões prejudiciais de interpretação de normas que relevam não só do Título IV mas também do Título III ou do Título VI do TUE. Será absurdo que, em tal caso, o juiz a quo se tenha que limitar a colocar as questões que relevam do Título III do TCE e/ou do Título VI do TUE, renunciando às que relevam do Título IV ou, noutra óptica, que o TJ deva declarar inadmissíveis estas últimas questões, apenas respondendo às primeiras, se, comprovadamente, a resposta a todas elas for indispensável para o julgamento da causa76.

A segunda objecção prende-se com a patente inadequação do disposto no artigo 68º, n.º 1, ao alegado objectivo de impedir um alongamento excessivo dos processos individuais de asilo ou de imigração perante os tribunais nacionais. Com efeito, a retirada da faculdade de reenvio prejudicial aos tribunais inferiores implica, em princípio, o esgotamento das vias de recurso judicial de direito interno para que uma questão prejudicial possa ser submetida ao TJ, com todas os atrasos que isso representa77. Tal objectivo só indirectamente pode, pois, ser alcançado através do artigo 68º, n.º 1, isto é, só na medida em que a diminuição do número de reenvios, potencializada por esta disposição, permita ao TJ decidir mais rapidamente os que lhe são submetidos.

O meio mais adequado para atingir aquele objectivo é, antes, o previsto pelo n.º 3 do artigo 68º, que se analisa a seguir. 4. O recurso no interesse do direito comunitário

4.1. A primeira parte do n.º 3 do artigo 68º, ao outorgar ao Conselho, à Comissão e aos (governos dos) Estados-Membros78 a faculdade de pedirem ao TJ que se pronuncie

76 Chamando a atenção para este aspecto, González, op. cit., p. 522. 77 Neste sentido, Hailbronner e Thiery, op. cit., p. 596. 78 Trata-se precisamente das mesmas entidades que têm competência para pedir parecer, facultativo mas vinculante, ao TJ nos termos do n.º 6 do artigo 300º, com vista a aquilatar da compatibilidade com o TCE dos projectos de acordos de direito internacional a celebrar pela Comunidade. Mas a semelhança entre o artigo 300º, n.º 6, e o artigo 68º, n.º 3, termina aqui. Do confronto entre ambas as disposições resulta bem claro que aquilo que a segunda prevê não é um «processo especial de parecer» sobre um acto a adoptar pelo Conselho na medida em que o TJ se pronuncie favoravelmente, mas sim uma verdadeira e própria decisão prejudicial sobre a interpretação de uma norma já vigente de direito comunitário, originário ou derivado. Por isso mesmo, deve aplicar-se às decisões proferidas nos termos do artigo 68º, n.º 3, o regime geral no que respeita à sua eficácia material e temporal, a saber, erga omnes e ex tunc.

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sobre questões de interpretação do Título IV ou dos actos adoptados em sua execução, está, nem mais nem menos, a pôr em causa a natureza de «processo de cooperação entre juizes» ou «de juiz a juiz», até aqui característica essencial do reenvio prejudicial. Nessa medida, assume natureza revolucionária.

Esta importante modulação trazida ao artigo 234º pela disposição em análise tem sido explicada pelo objectivo de prevenir a chegada aos tribunais nacionais de uma série de litígios envolvendo questões prejudiciais de interpretação do Título IV ou dos actos adoptados em sua execução ou, pelo menos, de abreviar a sua solução jurisdicional. E isto, na medida em que permite a determinados órgãos não jurisdicionais interrogar prejudicialmente o TJ (1) na fase administrativa de tais litígios ou (2) na sua fase jurisdicional normalmente em primeira instância, substituindo-se aos correspondentes tribunais, que, como se viu, perderam neste contexto a sua competência de reenvio. Mas o disposto na primeira parte do n.º 3 do artigo 68º tem sido também encarado como uma espécie de «medida compensatória», plena de significado político, para as eventuais «brechas» susceptíveis de serem abertas pelo n.º 1 do artigo 68º na «regra de ouro» da interpretação e aplicação uniformes do direito comunitário − em todo caso não demonstradas a priori.

Através da disposição em análise, os autores do TA colocaram pois determinados órgãos políticos em pé de igualdade, se não na dianteira, relativamente aos órgãos jurisdicionais nacionais no activar do mecanismo essencial de salvaguarda da uniformidade do específico direito comunitário abrangido pelo Título IV. Noutra perspectiva, a legitimidade activa que assim lhes é outorgada, no quadro de um processo prejudicial, permite-lhes certamente uma influência mais imediata na própria concretização do ramo do direito comunitário que mais contende com as soberanias dos Estados-Membros.

Por outro lado, é certamente o facto de não se estar em presença de um «processo de juiz a juiz» que explica que o Conselho, a Comissão e os (governos dos) Estados-Membros em nenhuma circunstância sejam obrigados ao reenvio, para além de não disporem da faculdade de submeter ao TJ questões prejudiciais de validade.

4.2. O «recurso no interesse do direito comunitário»79, previsto na primeira parte do n.º 3 do artigo 68º, é susceptível de reduzir o número de reenvios prejudiciais e a duração dos processos perante os tribunais nacionais em três hipóteses, «protagonizadas» respectivamente pelos Estados-Membros, pelo Conselho e pela Comissão.

A primeira verificar-se-á quando se suscitar, a nível nacional, uma questão de interpretação no decurso de um procedimento administrativo envolvendo a aplicação de uma norma abrangida pelo Título IV, potencialmente aplicável a uma multiplicidade de casos. Nesta hipótese, o governo respectivo, através do recurso ao artigo 68º, n.º 3, pode fazer com que tal questão seja submetida ao TJ antes mesmo de haver uma primeira decisão administrativa nacional baseada na disposição controversa. Se o TJ responder à questão atempadamente, pode-se evitar uma série de recursos contenciosos interpostos das decisões administrativas que, entretanto, tenham aplicado aquela disposição com uma interpretação contestada pelos interessados80.

Mas o governo de um Estado-Membro também poderá recorrer vantajosamente ao artigo 68º, n.º 3, numa fase em que a questão de interpretação já se tenha suscitado perante um ou vários tribunais nacionais de primeira instância. Nesse caso, não se tratará tanto de evitar uma série de reenvios prejudiciais, já «represados» pelo facto de apenas serem 79 Assim lhe chama, por exemplo, González, op. cit., p. 523; cfr. também Petite, op. cit., p. 47. 80 Nesses casos, um dos fundamentos prováveis do recurso será o de que a norma de direito comunitário em causa, se fosse correctamente interpretada, deveria levar à desaplicação da norma nacional incompatível com ela.

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competentes os tribunais nacionais de última instância, como de obviar ao atraso processual decorrente da necessidade de esgotar as vias de recurso internas para a questão poder ser submetida ao TJ e respondida num prazo que já se sabe não ser curto.

A segunda hipótese é a de a questão de interpretação não estar confinada a uma administração nacional mas sim às da generalidade dos Estados-Membros. Nesse caso, o órgão melhor colocado para pedir ao TJ que se pronuncie sobre tal questão será o Conselho, enquanto representante dos governos daqueles.

A terceira hipótese é a de a Comissão, na sua qualidade de guardiã do TCE, entender que uma norma comunitária abrangida pelo Título IV deve ser interpretada num determinado sentido, ou verificar que as administrações nacionais, generalizadamente ou não, estão a interpretar essa norma com um sentido que ela reputa inaceitável. Nesses casos, será naturalmente a Comissão a recorrer ao artigo 68º, n.º 3, evitando assim não só uma série de reenvios prejudiciais nos termos do n.º 1 do artigo 68º mas também, ou sobretudo, uma série de acções por incumprimento.

4.3. A eficácia obrigatória das respostas que o TJ venha a dar às questões de interpretação colocadas pelo Conselho, pela Comissão ou pelos Estados-Membros nos termos do artigo 68º, n.º 3, parece inquestionável, como logo o inculca o próprio termo «decisão» aí empregue. Convém recordar a este propósito que o efeito obrigatório das decisões do TJ e, em especial, as que são proferidas no âmbito de um processo prejudicial foi até implicitamente declarado fundamento irrevisível do próprio TCE81. O facto de as decisões em análise serem solicitadas por órgãos não jurisdicionais em nada põe em causa, obviamente, este princípio fundamental.

O carácter necessariamente vinculativo das decisões proferidas nos termos do artigo 68º, n.º 3, opõe-se, como é óbvio, a que o Conselho, a Comissão ou os Estados-Membros recorram ao correspondente processo com intuitos meramente consultivos ou para colocarem ao TJ questões gerais ou hipotéticas82. Mas, contrariamente às questões prejudiciais remetidas pelos tribunais − que devem sempre arrancar dos litígios concretos que lhes cabe resolver − as questões remetidas ao TJ pelo Conselho, pela Comissão ou pelos Estados-Membros podem não se suscitar em processos concretos a correr perante instâncias administrativas ou judiciais nacionais. Nada obsta, por exemplo, a que, nos termos do artigo 68º, n.º 3, um Estado-Membro solicite ao TJ a interpretação de uma norma de direito comunitário relevando do Título IV com o objectivo de se certificar que determinadas disposições de um diploma legal, já adoptado ou a adoptar, não são incompatíveis com ela. Ponto é que acate a decisão prejudicial do TJ e que, sendo caso disso, o legislador nacional revogue ou altere as disposições em causa em estrita conformidade com tal decisão83.

Para além disso, a correcta interpretação do artigo 68º, n.º 3, aponta claramente no sentido de uma eficácia material erga omnes das decisões prejudiciais proferidas ao seu abrigo, à semelhança, de resto, daquelas que são proferidas em resposta aos órgãos jurisdicionais nacionais84. Na realidade, o objectivo do mecanismo prejudicial em análise

81 Cfr. o Parecer 1/92 de 10 de Abril de 1992, Colect. p. I-2821, pontos 22 e 32. 82 Cfr. o acórdão de 16 de Dezembro de 1981, Foglia/Novello-II, 244/80, Colect. p. 3045. 83 Sobre este ponto, com posições não coincidentes, cfr. Gialdino, op. cit., p. 57, González, op. cit., p. 526-527 e Blumann, op. cit. p. 38. 84 É ponto assente que os efeitos das decisões prejudiciais transcendem o litígio concreto que lhes deu origem, não se limitando a vincular o juiz do reenvio mas impondo-se a todos os sujeitos dos ordenamentos internos e do ordenamento comunitário. Apenas fica salvaguardada a possibilidade de qualquer juiz nacional, em determinadas condições, proceder ao reenvio de uma questão prejudicial de interpretação já respondida, possibilidade que naturalmente se torna extensiva, no âmbito do artigo 68º, n.º 3, ao Conselho, à Comissão e aos Estados-Membros, mas se restringe nos termos do n.º 1 aos juizes de cujas decisões não caiba recurso. Sobre os efeitos materiais das decisões prejudiciais ver Guerra Martins, op. cit., p. 17 ss.

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só pode ser plenamente realizado se as decisões que dele resultarem se impuserem com força geral e obrigatória não só aos órgãos da Comunidade mas também às administrações e aos tribunais nacionais85. Por outro lado, ao apreciarem a necessidade de um reenvio prejudicial para o julgamento da uma causa perante si pendente, nos termos do artigo 68º, n.º 1, os tribunais nacionais de última instância não poderão deixar de ter em conta, de acordo com uma leitura actualista da citada jurisprudência CILFIT, o facto de a disposição cuja interpretação é duvidosa já ter sido objecto de uma decisão prejudicial proferida ao abrigo do artigo 68º, n.º 3.

4.4. No que respeita, por seu lado, aos efeitos temporais das decisões prejudiciais em análise, a segunda parte do n.º 3 do artigo 68º vem dispor que tais decisões «não são aplicáveis às decisões dos órgãos jurisdicionais nacionais que constituam caso julgado». A disposição em causa pode, à primeira vista, causar estranheza «uma vez que nunca os acórdãos prejudiciais do Tribunal de Justiça puseram em causa a força de caso julgado das decisões dos tribunais nacionais»86. Mas do carácter incontestável desta afirmação não se segue necessariamente que uma tal disposição seja desprovida de sentido.

O n.º 3, segunda parte, do artigo 68º tem, pelo menos, um precedente: o artigo 4º, n.ºs 1 a 3, do Protocolo relativo à interpretação pelo TJ da Convenção de 27 de Setembro de 1968 (relativa à competência judiciária e à execução das decisões em matéria civil e comercial), assinado no Luxemburgo em 3 de Junho de 197187. Aí se determina expressamente que a decisão proferida pelo TJ em resposta ao pedido prejudicial de interpretação da convenção, apresentado pelos «procuradores-gerais junto dos Tribunais Supremos dos Estados contratantes ou qualquer outra autoridade (não jurisdicional) designada por um Estado contratante», não produz efeitos quanto às decisões dos órgãos jurisdicionais dos Estados contratantes com força de caso julgado.

A consagração expressa do princípio da intangibilidade do caso julgado terá sido aqui determinada por duas ordens de razões: (1) o facto, excepcional, de o autor do reenvio prejudicial não ser um juiz e (2) o facto, igualmente excepcional, de o reenvio prejudicial em causa pressupor obrigatoriamente uma decisão com força de caso julgado de um supremo tribunal, em contradição seja com uma decisão prejudicial de interpretação proferida pelo TJ, seja com a decisão de um tribunal de outro Estado contratante.

Admita-se como hipótese perfeitamente plausível que, em resposta ao pedido prejudicial de um procurador-geral, o TJ vem a proferir uma decisão interpretativa contrária à decisão com força de caso julgado que, ainda por cima, deu causa a tal pedido. Nesta hipótese, poderiam encontrar-se razões ponderosas para aplicar a decisão do TJ ao próprio caso julgado controverso. Ora, foi precisamente essa eventualidade que os autores do Protocolo do Luxemburgo quiseram excluir de forma inequívoca, fundando-se nos valores de certeza e de segurança jurídicas inerentes ao instituto em causa.

As semelhanças com a segunda parte do n.º 3 do artigo 68º divisam-se facilmente: por um lado, está-se em presença de um reenvio prejudicial cujo autor também não é um órgão jurisdicional. Por outro lado, pode perfeitamente ser, e em muitos casos será, o conteúdo de uma decisão jurisdicional com força de caso julgado a causa próxima de um reenvio prejudicial ao abrigo daquela disposição. Devido à conjugação de ambos os 85 Pode suscitar-se a questão de saber se «o juiz nacional, confrontado com certos dados factuais, pode aplicar uma solução elaborada pelo TJ num quadro puramente abstracto»; neste sentido Pascal Girerd, L’article 68 CE: un renvoi préjudiciel d’interprétation et d’application incertaines, Revue Trimestrielle de Droit Européen, n.º 35, 1999, p. 248. A resposta parece evidente: se uma decisão proferida nos termos do n.º 3, primeira parte, do artigo 68º não bastar a um juiz nacional para resolver a dúvida de interpretação, haverá lugar a novo reenvio prejudicial, desta vez nos termos do n.º 1 do mesmo artigo. 86 Assim, Cruz Vilaça e Pais Antunes, op. cit., p. 61, considerando que «esta ressalva expressa aparece, salvo melhor opinião, como algo incompreensível». 87 Publicado em versão consolidada no JO C 27 de 26-1-1998, p. 29.

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factores, estariam criados idênticos «riscos» para a força de caso julgado, riscos esses que mais uma vez se terá pretendido afastar de forma expressa.

Como justificação para a disposição da segunda parte do n.º 3 do artigo 68º ter enunciado expressamente o princípio da intangibilidade do caso julgado poder-se-ia ainda pensar no facto de, com a entrada em vigor do TA, o TJ se ter tornado competente para, em sede prejudicial, interpretar as disposições que anteriormente àquela data, por uma razão ou por outra, estavam subtraídas ao seu controlo e que eventualmente já terão servido de critério aos tribunais nacionais para a solução de casos concretos88. Nestas condições, podia temer-se que uma decisão proferida pelo TJ, a pedido do Conselho, da Comissão ou de um Estado-Membro e não, como em regra, por um órgão jurisdicional nacional, sobre uma disposição só agora sindicável e, para mais, contrastante com uma decisão nacional transitada em julgado, constituísse mais um ensejo para contestar a intangibilidade desta.

Porém, independentemente da previsão expressa, a verdade é que nenhuma das razões analisadas se afiguraria susceptível de levar uma decisão proferida pelo TJ nos termos do artigo 68º, n.º 3, primeira parte, a afastar o princípio da intangibilidade do caso julgado. Nesta perspectiva, é forçoso concluir que a ressalva expressa das «decisões dos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros que constituam caso julgado» constante da segunda parte da mesma disposição, se não é incompreensível é, pelo menos, dispensável.

Outra poderá ser a conclusão se se tiver presente que uma disposição como a da segunda parte do n.º 3 do artigo 68º é normalmente formulada como ressalva expressa ao princípio geral de que as decisões prejudiciais de interpretação produzem efeitos desde a entrada em vigor da norma interpretada89. A esta luz, a disposição em causa ganha outro sentido útil: o de que, ressalvados precisamente os casos julgados, as decisões do TJ proferidas ao abrigo da primeira parte do n.º 3 do artigo 68º têm eficácia ex tunc e não mera eficácia ex nunc90. 5. Os limites à competência do TJ

5.1. Se as soluções consagradas pelo n.º 1 e pelo n.º 3 do artigo 68º, apesar de todas as críticas de que são efectivamente passíveis, se afiguram pelo menos defensáveis, o mesmo não pode dizer-se do n.º 2 do artigo 68º. Segundo esta disposição, o TJ «não tem competência, em caso algum, para se pronunciar sobre as medidas ou decisões tomadas em aplicação do ponto 1 do artigo 62º relativas à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna». A categórica expressão «em caso algum» leva a concluir que esta disposição extravasa o âmbito do processo prejudicial «modulado» aplicável ao Título IV para abranger todas as outras vias processuais previstas pelo TCE que sejam susceptíveis de levar o TJ a pronunciar-se sobre aquelas medidas ou decisões.

O ponto 1 do artigo 62º abrange as medidas, a adoptar pelo Conselho, «destinadas a assegurar, de acordo com o artigo 14º, a ausência de controlos de pessoas, quer se trate de

88 Estão neste caso as disposições que, tendo sido adoptadas ao abrigo do anterior Título VI do TUE ou fazendo parte do acervo Schengen, passaram, com a entrada em vigor do TA, respectivamente, a relevar materialmente do Título IV do TCE ou foram formalmente reconduzidas a uma base jurídica neste Título pela Decisão do Conselho de 20 de Maio de 1999 (JO L 176/17 de 10-7-1999), adoptada nos termos do Protocolo Schengen. 89 Recorde-se a este propósito a formulação do artigo 282º, n.º 1 e 3, da Constituição portuguesa: «A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal (...). Ficam ressalvados os casos julgados (...)». 90 Em sentido contrário O’Keeffe, op. cit., p. 285, que assimila o processo do artigo 68º, n.º 3, ao processo de parecer do artigo 300º, n.º 6, considerando que as respostas do TJ dadas em ambos apenas não valem para o passado, isto é, apenas dispõem de uma «prospective force». Mas, como atrás se viu, o bem-fundado de uma tal assimilação suscita as mais sérias dúvidas.

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cidadãos da UE, quer de nacionais de países terceiros, na passagem das fronteiras internas».

À luz do artigo 68º, n.º 2, o ponto 1 do artigo 62º não pode deixar de ser lido em conjugação com o artigo 2º, n.º 2, da Convenção de Schengen − agora integrado no ordenamento comunitário − que autoriza cada Estado-Membro, «por razões de ordem pública ou de segurança nacional», a decidir que durante um período limitado serão efectuados nas fronteiras internas controlos fronteiriços nacionais adaptados à situação. Daqui resulta portanto que o âmbito de aplicação material do artigo 68º, n.º 2, abrange as medidas de controlo das fronteiras internas tomadas pelos Estados-Membros com vista à manutenção da ordem pública e à salvaguarda da segurança interna91.

5.2. Sabe-se que a França tem-se prevalecido do artigo 2º, n.º 2, da Convenção de Schengen para fundamentar a sua decisão de manter controlos de pessoas nas fronteiras com a Bélgica e o Luxemburgo desde a data em que aquela Convenção começou a aplicar-se (26 de Março de 1995), alegando o receio de terroristas argelinos e a política liberal da Holanda em matéria de estupefacientes. A disposição em causa foi formalmente reconduzida pela citada decisão do Conselho de 20 de Maio de 1999 a uma base jurídica no artigo 62º, ponto 1, do TCE acrescida da significativa menção «desde que se respeitem plenamente as disposições do n.º 1 do artigo 64º». De acordo com este, o disposto no Título IV «não prejudica o exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados-Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna»92.

Até à entrada em vigor do TA, a decisão da França não podia obviamente ser impugnada junto do TJ. Mas a partir daquela data, sem o artigo 68º, n.º 2, aplicar-se-lhe-ia plenamente a jurisprudência Rutili93 segundo a qual, no contexto comunitário, as cláusulas de ordem pública e de segurança interna, enquanto justificação de uma derrogação − de natureza tanto normativa como individual e concreta − ao princípio da livre circulação de pessoas, devem ser interpretadas restritivamente, não podendo o respectivo alcance ser determinado unilateralmente por cada um dos Estados-Membros sem controlo dos órgãos da Comunidade94. De acordo com a mesma jurisprudência, a justificação das medidas nacionais destinadas à salvaguarda da ordem pública e da segurança interna deve ser apreciada à luz de todas as regras de direito comunitário cujo objecto seja a limitação da apreciação discricionária dos Estados-Membros na matéria. Entre tais regras contam-se as da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por cujo parâmetro o TJ controla também as medidas derrogatórias das liberdades comunitárias95.

A esta luz, confirma-se que o artigo 68º, n.º 2, introduzido no Título IV por insistência expressa da França, tem por objectivo vedar não tanto a apreciação da validade, em sede de processo prejudicial, recurso de anulação ou excepção de ilegalidade, das disposições que o Conselho venha a adoptar em matéria de ordem pública ou de segurança nacional no contexto da supressão dos controlos de pessoas nas fronteiras internas, mas sobretudo impedir que: (1) através da interpretação prejudicial das cláusulas vagas e 91 Neste sentido, Cruz Vilaça e Pais Antunes, op. cit., p. 61. 92 A margem de discricionariedade no âmbito do artigo 64º, n.º 1, é confortada pela Declaração n.º 18, anexa ao TA, segundo a qual os Estados-Membros, ao exercerem as responsabilidades que lhes incumbem em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna, podem ter em conta considerações de política externa. 93 Acórdão Rutili/Ministro do Interior, cit., ponto 27 e ponto 2 do dispositivo. 94 Sobre o entendimento muito diversificado destes conceitos nas ordens jurídicas dos Estados-Membros, ver a síntese de Sérvulo Correia, Polícia, Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. VI, Lisboa, 1994, p. 395 ss. 95 Sobre esta jurisprudência ver por último Maria Luísa Duarte, A União Europeia e os Direitos Fundamentais. Métodos de Protecção, Separata de Portugal-Brasil Ano 2000, Coimbra, 1999, p. 39.

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indeterminadas de ordem pública e segurança nacional, o TJ leve o juiz nacional a desaplicar normas de direito interno ou a anular actos administrativos dos Estados-Membros que se prevaleçam daquelas cláusulas numa interpretação divergente; (2) através da interpretação das mesmas cláusulas no quadro de uma acção de incumprimento, o TJ seja levado a declarar que, ao manter determinados controlos de pessoas nas suas fronteiras internas, um Estado-Membro faltou às obrigações que lhe incumbem por força do TCE96. Por outras palavras, o que fundamentalmente se pretende evitar com o disposto no artigo 68º, n.º 2, é que a aplicação, por parte dos Estados-Membros, de uma disposição como o artigo 2º, n.º 2, da Convenção de Schengen possa ser posta em causa perante o TJ, tanto no quadro de um processo prejudicial como no de uma acção por incumprimento97, permitindo-lhe assim limitar o direito, tradicionalmente soberano, de aqueles efectuarem controlos de pessoas nas suas fronteiras.

5.3. Caberá ao TJ decidir em última instância do alcance da limitação à sua

competência introduzida pelo artigo 68º, n.º 2, e, concretamente, da «modulação» que neste contexto deverá sofrer a já citada jurisprudência Rutili. E é de presumir e aplaudir que o TJ o faça trilhando a via da interpretação restritiva, por forma a atenuar até onde for possível a incongruência da limitação do controlo jurisdicional de legalidade prevista pelo artigo 68º, n.º 2, com o princípio fundamental do Estado de Direito.

Nessa medida, o artigo 68º, n.º 2, poderá transportar um certo potencial de conflito entre o TJ e os Estados-Membros. Apenas resta saber em que medida o facto de ser um Estado-Membro com a dimensão da França a prevalecer-se, de forma controversa98, do artigo 2º, n.º 2, da Convenção de Schengen perante dois Estados «pequenos» como a Bélgica e o Luxemburgo, poderá ou não condicionar a interpretação que, a esse propósito, o TJ venha a dar ao n.º 2 do artigo 68º. V − A competência do TJ no âmbito do Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda: o artigo 6º

1. O artigo 6º do Protocolo em epígrafe dispõe o seguinte: «sempre que, nos casos previstos no presente protocolo, o Reino Unido ou a Irlanda fiquem vinculados por uma medida adoptada pelo Conselho em aplicação do Título IV do Tratado que institui a Comunidade Europeia, são aplicáveis a esse Estado, no que respeita à medida em questão, as disposições pertinentes do mesmo Tratado, incluindo o artigo 68º».

À primeira vista − e numa perspectiva estritamente jurídica −, a disposição em causa afigura-se supérflua. Com efeito, a aplicabilidade do artigo 68º, que modula a competência do TJ exclusivamente no âmbito do Título IV, parece constituir uma 96 Em sentido diferente, Kai Hailbronner, European Immigration and Asylum Law under the Amsterdam Treaty, Common Market Law Review, n.º 35, 1998, p. 1057, para quem «o artigo 68º, n.º 2, aplica-se a um tipo específico de medidas comunitárias (incluindo medidas nacionais de execução ou autorizadas pelo direito comunitário) e não tanto às excepções de ordem pública nacionais». 97 Neste sentido Blumann, op. cit., p. 746; Adam, op. cit., p. 502. No sentido de que a proibição dirigida ao TJ pelo artigo 68º, n.º 2, apenas abrange o processo prejudicial, ver por exemplo Arnull, op. cit., p. 116, que fundamenta a sua posição na necessidade de interpretar estritamente a disposição em causa. Seguir-se-ia daqui que, no quadro da acção por incumprimento, o TJ poderia pronunciar-se sem restrições sobre as «medidas ou decisões tomadas em aplicação do ponto 1 do artigo 62º relativas à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna». Ora, uma tal conclusão, para além de manifestamente contrária à vontade dos autores do TA, faz tábua rasa da abrangente fórmula «medidas ou decisões» constante do artigo 68º, n.º 2, a inculcar que o seu âmbito transcende o processo prejudicial. 98 Sobre a duvidosa legalidade da decisão francesa, ver Klaus-Peter Nanz, Schengener Übereinkommen und Personenfreizügigkeit, Zeitschrift für Ausländisches Recht, 1994, p. 101. Recorde-se que a Alemanha também representa um «Estado-Membro de trânsito» entre a Holanda e a França, não se mantendo, porém, controlos na fronteira franco-alemã.

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decorrência lógica do facto de o protocolo em causa se circunscrever precisamente ao âmbito do mesmo Título. De acordo com os cânones da hermenêutica jurídica, só não seria assim em caso de previsão explícita nesse sentido. A menção expressa ao artigo 68º e o seu intuito certificativo só podem, portanto, explicar-se por razões de contexto não sem conotações político-negociais, que a seguir se procura esclarecer.

2. A primeira razão pode descortinar-se no confronto do artigo 6º com o artigo 2º,

primeira parte, in fine, do mesmo protocolo. Aí se dispõe, mais uma vez, o que é óbvio: no caso de o Reino Unido ou a Irlanda não se terem vinculado a (1) uma disposição do Título IV99 ou (2) uma medida adoptada em aplicação deste, nenhuma decisão do TJ que interprete essa disposição ou medida «vinculará» aqueles Estados-Membros «nem lhes será aplicável». Em contrapartida, no caso de o Reino Unido ou a Irlanda exercerem o seu direito de opt-in e consequentemente se vincularem a uma tal disposição ou medida, resulta do mesmo artigo 2º, mas agora a contrario, que a decisão do TJ que as interprete vinculará aqueles Estados-Membros e ser-lhes-á aplicável.

A formulação da primeira parte, in fine, do artigo 2º, para além de rebarbativa, é imprecisa: em rigor, o opt-out não acarreta só a inaplicabilidade ao Reino Unido e à Irlanda de uma decisão do TJ que interprete uma disposição ou medida à qual aqueles Estados-Membros não se vincularam. Acarreta também a inaplicabilidade de toda e qualquer decisão que o TJ profira relativamente à mesma disposição ou medida. A imprecisão torna-se manifesta quando a mesma disposição deva ser interpretada a contrario, nos casos de opt-in. Textualmente, dela apenas resultará então a aplicabilidade àqueles Estados-Membros das decisões do TJ que interpretem as disposições e medidas a que os mesmos se tenham vinculado. Sobre a aplicabilidade, nos mesmos casos, das outras decisões do TJ (anulatórias, suspensivas, etc.) o artigo 2º, primeira parte, in fine, nada diz.

Ora é essa aparente lacuna − em todo o caso ultrapassável através da correcta interpretação da disposição em causa100 − que o artigo 6º do protocolo vem definitivamente afastar, ao deixar claro que, uma vez vinculados nos termos dos artigos 3º ou 4º a uma medida adoptada pelo Conselho em aplicação do Título IV101, o Reino Unido e a Irlanda ficam em pleno pé de igualdade com os restantes Estados-Membros (com excepção da Dinamarca). E isto, tanto em relação aos efeitos jurídico-comunitários típicos dessa medida nos respectivos ordenamentos nacionais (artigo 249º e, consoante os casos, aplicabilidade directa, efeito directo, etc.), como em relação à obrigatoriedade das decisões que o TJ profira sobre a mesma medida, no exercício da competência prevista pelos artigos 220º e seguintes do TCE e modulada pelo artigo 68º.

3. A segunda razão que terá levado à inclusão do artigo 6º no Protocolo relativo à

posição do Reino Unido e da Irlanda pode descortinar-se por contraposição com o Protocolo relativo à posição da Dinamarca, onde não se encontra uma disposição equiparável. E não se encontra porque o regime nele contido para o eventual opt-in deste

99 Tendo em conta que, dos nove artigos que compõem o Título IV, seis contêm ordens de legislar ao Conselho (artigos 61º a 63º e 64º, n.º 2, a 66º), dois contêm normas de competência e procedimento relativas aos órgãos da Comunidade (artigos 67º e 68º) e um contém uma norma remissiva (artigo 69º), não se vê como é que o Reino Unido e a Irlanda se lhes possam vincular autonomamente. O mesmo vale para o artigo 64º, n.º 1, que, como se viu, limita-se a dispor que o Título IV não prejudica o exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados-Membros em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna. 100 Com efeito, sempre haveria que ter-se por indefensável a interpretação da primeira parte in fine do artigo 2º no sentido de que, em caso de opt-in, o Reino Unido ou a Irlanda só ficariam vinculados a aplicar as decisões prejudiciais de interpretação do TJ, com exclusão de quaisquer outras. 101 Ao contrário do artigo 2º, primeira parte, in fine, o artigo 6º, com mais propriedade, limita-se a prever a vinculação ao direito comunitário secundário adoptado com base no Título IV.

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Estado-Membro não o deixa em pé de igualdade com os restantes, inclusive no que diz respeito à competência do TJ.

A singularidade do opt-in dinamarquês é estabelecida pelo artigo 5º, n.º 1, do Protocolo que dispõe o seguinte: «a Dinamarca decidirá, no prazo de seis meses após o Conselho ter adoptado uma decisão sobre uma proposta ou iniciativa destinada a desenvolver o acervo de Schengen em aplicação do disposto no Título IV do Tratado que institui a Comunidade Europeia102, se procederá à transposição dessa decisão para o seu direito interno. Se decidir fazê-lo, essa decisão criará uma obrigação de direito internacional (...)». Daqui resulta que, em caso de opt-in, a Dinamarca não fica obrigada nem (1) aos efeitos típicos dos actos de direito comunitário derivado adoptado nos termos do Título IV na sua ordem jurídica, mas apenas a adoptar actos de direito interno de conteúdo compatível, nem (2) às decisões do TJ proferidas sobre tais actos de direito comunitário, mesmo que esteja em causa a aplicação das normas de direito interno de conteúdo similar. Por consequência, os tribunais dinamarqueses não poderão em caso nenhum interrogar prejudicialmente o TJ sobre o direito comunitário derivado do Título IV, transposto para a respectiva ordem interna. Tão-pouco o poderá o governo dinamarquês, nos termos do artigo 68º, n.º 3.

No entanto, se de jure a Dinamarca dispõe desta liberdade de transposição dos actos jurídico-comunitários de desenvolvimento do acervo Schengen adoptadas pelo Conselho em aplicação do Título IV, de facto não é assim. O n.º 2 do artigo 5º do protocolo dispõe que, se a Dinamarca optar por não transpor um acto daquela natureza, os Estados-Membros que o aplicam «analisarão as medidas adequadas a tomar». Ora, entre tais «medidas de retorsão» poderá até figurar a restauração dos controlos nas fronteiras comuns com a Dinamarca, quando ela ponha assim em causa a indispensável homogeneidade de aplicação do acervo Schengen103. E para isso, nem é preciso que se trate da não transposição de um tal acto. Basta apenas uma aplicação do acto transposto em contradição com uma decisão do TJ.

A solução encontrada para tranquilizar o «eurocepticismo» dinamarquês será, pois, tão fictícia na prática quanto em teoria é rebuscada. Mas a verdade é que a Dinamarca, ao contrário do Reino Unido e, por arrastamento, da Irlanda104, não rejeitou o modelo Schengen de espaço sem controlos de pessoas nas fronteiras internas.

4. Em contrapartida, nem o Protocolo relativo à posição do Reino Unido e da Irlanda, nem o Protocolo relativo à posição da Dinamarca dispõem sobre a questão de saber se qualquer destes Estados-Membros, nos casos em que tenha decidido não se vincular a uma medida adoptada em aplicação do Título IV, pode ou não contestá-la junto do TJ de acordo com os meios processuais previstos pelo TCE.

A resposta parece dever ser afirmativa105, com as ressalvas que a seguir se analisam. A justificação é dupla. Por um lado, é do interesse dos três Estados-Membros zelar, em qualquer caso, pela validade do direito comunitário derivado. Por outro lado, nada impede que tais Estados venham a vincular-se futuramente a uma medida adoptada sem a sua participação em determinado domínio do Título IV. Nestes casos, compreende-se que só o pretendam fazer uma vez certificada a legalidade da mesma pelo TJ. 102 Parece evidente que nem sempre será possível distinguir concretamente entre uma decisão do Conselho destinada a desenvolver o acervo de Schengen em aplicação do Título IV e uma decisão do Conselho meramente adoptada em execução do mesmo Título. 103 Neste sentido, Martin Hedemann-Robinson, The Area of Freedom, Security and Justice with Regard to the UK, Ireland and Denmark: The ‘Opt-in Opt-outs’ under the Treaty of Amsterdam, em David O’Keeffe and Patrick Twomey (edit.) Legal Issues of the Amsterdam Treaty, Oxford, 1999, p. 299. 104 Cfr. o Protocolo relativo à aplicação de certos aspectos do artigo 14º do Tratado que institui a Comunidade Europeia ao Reino Unido e à Irlanda. 105 Neste sentido, Hedemann-Robinson, op. cit., p. 301.

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Quanto às ressalvas, elas parecem impor-se por si mesmas: dado que a medida em causa não é aplicável ao território de qualquer dos Estados-Membros, não podem os respectivos tribunais submeter questões prejudiciais a seu respeito ao TJ. Ainda assim, nos termos do artigo 20º, segundo parágrafo, do Estatuto do TJ, os respectivos governos poderão sempre apresentar alegações ou observações escritas ao juiz comunitário nos processos prejudiciais de que tal medida seja objecto.

Neste contexto, o principal meio processual ao dispor do três Estados-Membros que «ficaram fora» parece portanto ser o recurso de anulação, nos termos do artigo 230º. Poder-se-ia ainda pensar no n.º 3 do artigo 68º, aplicável por exemplo na hipótese de os Estados-Membros em causa encararem um opt-in mas terem dúvidas quanto ao alcance jurídico da medida. Mas um forte motivo aponta para afastar, em tal hipótese, o processo prejudicial sui generis previsto por aquela disposição. Com efeito, tratando-se de uma medida não aplicável no Reino Unido, na Irlanda ou na Dinamarca, estar-se-ia em rigor a solicitar através dele ao TJ um simples parecer não vinculante, e não uma verdadeira e própria decisão prejudicial obrigatória, que é exactamente o que prevê o artigo 68º, n.º 3. VI − O artigo 2º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Protocolo que integra o acervo Schengen no âmbito da UE e a competência do TJ em relação a tal acervo

1. De acordo com a primeira parte da disposição em epígrafe, o TJ exerce o seu controlo sobre as disposições e decisões que constituem o acervo de Schengen consoante a base jurídica que o Conselho tenha atribuído a cada uma delas. Desta forma remissiva, vem-se pôr fim − não é demais salientá-lo − ao estigma da imunidade jurisdicional de tal acervo.

Relativamente às disposições e decisões que foram, por um lado, reconduzidas a uma base jurídica no TCE − e praticamente todas estas foram reconduzidas ao Título IV −, o TJ exerce a sua competência nos termos dos artigos 220º e seguintes, modulada pelo disposto no artigo 68º. Nos casos excepcionais em que a recondução não foi às disposições do Título IV mas a outras disposições do TCE, a competência do TJ não é obviamente modulada pelo artigo 68º.

Relativamente às disposições e decisões do acervo Schengen que, por outro lado, foram reconduzidas a uma base jurídica no Título VI do TUE, o TJ exerce a sua competência nos termos do artigo 35º deste Tratado.

Estes são os casos considerados pacíficos. Os casos também excepcionais − e inéditos − em que uma disposição ou decisão do acervo Schengen foi reconduzida a uma dupla base jurídica no TCE e no TUE levantam questões mais delicadas que adiante se analisam.

2. O acervo Schengen encontra-se definido pela decisão do Conselho de 20 de

Maio de 1999 (1999/435/CE), adoptada nos termos do artigo 2º, n.º 1, segundo parágrafo, primeira parte, do Protocolo Schengen106.

Uma segunda decisão do Conselho (1999/436/CE), adoptada na mesma data, nos termos da segunda parte do segundo parágrafo do mesmo artigo 2º, n.º 1, atribuiu a «cada uma das disposições ou decisões que constituem o acervo Schengen», com excepção das que se reportam ao Sistema de Informação Schengen (SIS), uma base jurídica nas disposições pertinentes do TUE ou do TCE107. Em termos gerais, as disposições e decisões que versam sobre a passagem das fronteiras internas, a passagem das fronteiras externas, os vistos e a circulação de estrangeiros foram reconduzidas a uma base jurídica no Título

106 JO L 176/1 de 10-7-1999. 107 JO L 176/17 de 10-7-1999.

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IV do TCE. Aquelas que se reportam à cooperação policial e à cooperação judiciária em matéria penal foram reconduzidas a uma base jurídica no Título VI do TUE. Excepcionalmente, como já se referiu, alguns elementos do acervo de Schengen foram reconduzidos a uma dupla base em ambos os Títulos, e a outros foi atribuída uma base fora daqueles Títulos108.

No que respeita às disposições que regem o SIS, não foi possível chegar a acordo sobre a sua recondução às bases jurídicas pertinentes dos Tratados. Por isso, nos termos do quarto parágrafo do n.º 1 do artigo 2º do Protocolo Schengen, tais disposições reputam-se juridicamente baseadas no Título VI do TUE. Pretende-se com isso salvaguardar a sua natureza intergovernamental. Isto não significa porém que, quando se tratar de as alterar ou substituir não haja que recorrer, por força do artigo 5º, n.º 2, do Protocolo, a uma base jurídica no TCE ou a uma base jurídica em ambos os Tratados quando objectivamente se comprovar, sob o controlo do TJ, que as disposições relativas ao SIS relevam de ambos. O certo é que, de acordo coma própria Convenção de Schengen, o SIS tem um duplo objectivo: por um lado, a preservação da ordem e da segurança públicas, incluindo a segurança dos Estados-Membros; por outro lado, a correcta aplicação do regime de circulação de estrangeiros109.

O acervo de Schengen assim integrado na UE110 a título de cooperação reforçada, destinada a possibilitar que a União se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, de segurança e de justiça, (1) vincula integralmente os treze Estados-Membros que foram Partes Contratantes no Acordo relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns e na sua Convenção de Aplicação – Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca111, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Itália, Luxemburgo, Países Baixos, Portugal e Suécia –, (2) vincula parcialmente o Reino Unido e a Irlanda112, (3) vincula integralmente dois Estados não membros da UE que, neste domínio, mantêm relações

108 Como exemplo de atribuição de dupla base jurídica, pode citar-se a decisão do Comité Executivo que criou a chamada Comissão Permanente de Schengen, reconduzida aos artigos 66º do TCE e aos artigos 30º e 31º do TUE. Como exemplo de atribuição de uma base jurídica fora do Título IV e do Título VI, pode citar-se o artigo 82º da mesma Convenção, relativo ao controlo da aquisição e da detenção de armas de fogo e de munições, reconduzido ao artigo 95º do TCE, ou a declaração 1 à Acta Final da Convenção, reconduzida ao artigo 2º, n.º 2, do próprio Protocolo Schengen. 109 Neste sentido, a declaração da Holanda e da Bélgica à decisão do Conselho 1999/436/CE considera que as bases jurídicas de uma série de disposições relativas ao SIS devem ser encontradas no Título IV do TCE, uma vez que tais disposições «incidem sobre aspectos da livre circulação de pessoas que se prendem com a legislação respeitante aos estrangeiros». 110 Sobre a integração do acervo de Schengen na UE ver Eckart Wagner, The Integration of Schengen into the Framework of the European Union, Legal Issues of European Integration, vol. 25, 1998, p. 1 ss.; Nuno Piçarra, O modelo de integração do acervo de Schengen na União Europeia: cooperação reforçada e «ordens de legislar» ao Conselho, Legislação, n.º 22, 1998, p. 23 ss. 111 A singularidade da participação dinamarquesa na cooperação Schengen está em que mesmo a parte do acervo reconduzida a uma base jurídica no Título IV do TCE continuará a vinculá-la em termos jurídico-internacionais e não jurídico-comunitários. É o que resulta das disposições conjugadas do artigo 3º do Protocolo Schengen e do artigo 5º do Protocolo relativo à posição da Dinamarca. Sobre as causas e as consequências desta solução cfr. supra, capítulo V, n.º 3. 112 Por decisão do Conselho (2000/365/CE) de 29 de Maio de 2000 (JO L 131/43 de 1-6-2000), adoptada ao abrigo do artigo 4º do Protocolo Schengen, o Reino Unido, mantendo embora os controlos nas suas fronteiras comuns com os Estados Schengen ficou vinculado ao acervo Schengen relativo (1) às medidas de acompanhamento da circulação de estrangeiros (responsabilidade dos transportadores pelos estrangeiros cuja entrada tenha sido recusada e sanções contra os passadores de imigrantes ilegais), (2) à cooperação policial, com excepção da perseguição transfronteiriça, (3) à cooperação judiciária em matéria penal, (4) à luta contra o tráfico de estupefacientes, (5) à protecção de dados pessoais e (6) ao Sistema de Informação Schengen (com excepção dos dados relativos aos estrangeiros inadmissíveis). A Irlanda, por seu lado, apresentou ao Conselho um pedido de participação semelhante ao do Reino Unido que ainda não foi objecto de decisão.

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especiais com alguns Estados-Membros − a Islândia e a Noruega113 − e (4) vinculará obrigatoriamente, na sua integralidade, todos os Estados que vierem a aderir à UE114.

3. Duas teses são possíveis quanto ao alcance da atribuição de bases jurídicas a cada uma das disposições e decisões que constituem o acervo Schengen.

De acordo com a primeira, tal atribuição está essencialmente voltada para o futuro: ela tem como objectivo fundamental identificar as normas do TUE ou do TCE em que se deverão basear as ulteriores propostas e iniciativas de alteração ou de desenvolvimento do acervo Schengen, nos termos do artigo 5º do Protocolo. Nisto se esgotaria o efeito útil da citada Decisão do Conselho 1999/436/CE de 20 de Maio. A transformação desses elementos em direito derivado da Comunidade e da UE propriamente dito só teria lugar através de alteração ou desenvolvimento posteriores, sem prejuízo do controlo do TJ previsto pelo artigo 2º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Protocolo. Quer a parte do acervo Schengen reconduzida a uma base jurídica no TCE, mormente no seu Título IV, quer a parte desse acervo reconduzida a uma base jurídica no Título VI do TUE, quer ainda a parte reconduzida a uma dupla base jurídica e também a parte reconduzida a uma base no próprio Protocolo Schengen, anexo a ambos os Tratados e com idêntico valor jurídico, continuariam a valer como direito internacional, sem aplicabilidade directa ou efeito directo, e o seu primado no direito interno dependeria da existência de uma disposição de fonte constitucional impondo-o no respectivo Estado-Membro. A sua interpretação pelo TJ deveria fazer-se segundo os cânones próprios do direito internacional público.

De acordo com a segunda tese, só as disposições e decisões do acervo Schengen reconduzidas pela decisão do Conselho ao Título VI do TUE continuam a valer como direito internacional e, por conseguinte, a dever ser interpretadas como tal pelo TJ nos termos do artigo 35º do TUE. Em contrapartida, as disposições e decisões reconduzidas a uma base no TCE seriam eo ipso direito supranacional e, como tal, produziriam os mesmos efeitos que as normas de direito comunitário, apesar de não terem sido adoptadas sob as formas e segundo os procedimentos previstos pelo TCE. Prevaleceriam, nomeadamente, sobre o direito interno por força de um princípio vigente no próprio ordenamento comunitário e deveriam ser interpretadas pelo TJ de acordo com os cânones específicos deste ordenamento. Estaria assim criada uma nova categoria de direito comunitário, a que se chamaria «direito Schengen subordinado ao TCE»115.

A segunda tese parece ser a que melhor se coaduna quer com o teor do artigo 2º, n.º 1, segundo parágrafo, segunda parte, do Protocolo, quer com o do terceiro parágrafo da mesma disposição. Com efeito, a consequência mais lógica da atribuição formal de uma base jurídica no TCE às disposições e decisões do acervo Schengen, conjugada com a atribuição expressa ao TJ de competência para o controlo das mesmas nos termos daquele Tratado será a equiparação de tais disposições e decisões, para todos os efeitos, ao direito comunitário derivado, sendo irrelevante a circunstância de não terem sido adoptadas sob as formas e segundo os procedimentos previstos pelo TCE.

4. A tese adoptada não esclarece, porém, o tratamento jurídico e jurisdicional a dar à parte do acervo Schengen reconduzida a uma dupla base jurídica, nem à parte reconduzida ao Protocolo homónimo. Quais então «as pertinentes disposições aplicáveis»

113 Cfr. o acordo concluído nos termos do artigo 6º do Protocolo Schengen entre estes dois Estados e o Conselho em 18 de Maio de 1999 (JO L 176/35 de 10-7-1999). 114 De acordo com o artigo 8º do Protocolo Schengen «para efeitos das negociações de adesão de novos Estados-Membros à União Europeia, o acervo de Schengen e as demais medidas adoptadas pelas instituições no seu âmbito de aplicação entendem-se como sendo um acervo que deve ser aceite na totalidade por todos os Estados candidatos à adesão». 115 Neste sentido, Hailbronner e Thiery, op. cit., p. 609.

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nos termos do artigo 2º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Protocolo Schengen, para o TJ exercer o seu controlo nestes casos?

A questão assume uma importância prática considerável. Com efeito, o controlo dos actos Schengen que relevam do TCE faz-se através do recurso de anulação, do processo prejudicial e da excepção de ilegalidade. Ora, não só esta última via processual não vem prevista pelo artigo 35º do TUE, como este Tratado configura o recurso de anulação em termos mais restritivos do que o artigo 230º do TCE. Além disso, o processo prejudicial previsto no artigo 35º apresenta diferenças significativas em relação ao previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 68º e 234º do TCE.

Com vista a uma solução, cabe notar antes de mais que tanto as disposições e decisões do acervo reconduzidos a uma base no Protocolo Schengen como os actos do Conselho que futuramente serão adoptados com base nele versam sobre o regime da associação à cooperação reforçada Schengen (artigos 2º, n.º 2, 4º e 8º do Protocolo). Assim sendo, devem poder ser fiscalizados pelo TJ nos termos dos artigos 220º e seguintes do TCE, tal como aliás todas as restantes decisões fundamentais sobre cooperação reforçada, incluindo as tomadas no âmbito do Título VI, por imposição do artigo 40º, n.º 4, segundo parágrafo do TUE, a seguir analisado.

Por outro lado, relativamente aos casos de dupla base jurídica no TCE e no TUE, sublinhe-se que o TJ é competente para controlar o bem-fundado da própria atribuição de tal base, levada a cabo pela decisão do Conselho de 20 de Maio de 1999. Em princípio, o controlo de que se trata não se exerce directamente sobre esta decisão mas sobre os actos adoptados pelo Conselho com base nela, destinados à modificação, substituição ou desenvolvimento do acervo Schengen. Para este efeito, a referência decisiva para o TJ é, como não podia deixar de ser, o TCE, com base no qual delimita, em última instância, a competência da Comunidade Europeia face ao Terceiro Pilar. Por conseguinte, a correcta interpretação do artigo 2º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Protocolo Schengen levará o TJ a exercer a sua competência nos termos dos artigos 220º e seguintes do TCE, agora conjugado, salvo raras excepções, com o artigo 68º, sempre que se tratar de apreciar não só a justeza da dupla base jurídica atribuída a um acto Schengen, mas também, por arrastamento, qualquer outro aspecto da legalidade desse acto.

5. Finalmente, importa referir que a segunda parte do terceiro parágrafo do artigo 2º, n.º 1, do Protocolo Schengen dispõe que o TJ não tem competência, em caso algum, para se pronunciar sobre medidas ou decisões relativas à manutenção da ordem pública e à garantia da segurança interna. Trata-se de uma disposição que reproduz o artigo 68º, n.º 2, do TCE e o artigo 35º, n.º 5, segunda parte, do TUE, já analisados.

Ora, tendo em conta que a primeira parte da disposição em análise submete o acervo Schengen ao controlo jurisdicional do TJ, ou nos termos das disposições conjugadas dos artigos 68º e 220º e seguintes, ou nos termos do artigo 35º, a segunda parte soa a absolutamente supérflua para não dizer obsessiva, uma vez que já consta, como se sabe, tanto do artigo 68º como do artigo35º. VII − A competência do TJ no âmbito da cooperação reforçada: o artigo 40º, n.º 4, segundo parágrafo, do TUE

1. A disposição em epígrafe atribui expressamente ao TJ competência para fiscalizar, não nos termos do artigo 35º do TUE, mas dos artigos 220º e seguintes do TCE, as decisões do Conselho autorizando ou não (1) a instauração de uma cooperação reforçada no âmbito do Terceiro Pilar e (2) a participação ulterior nela. O que a disposição em causa prevê é, pois, uma excepção à regra geral segundo a qual, no âmbito do Terceiro Pilar, o TJ exerce a sua competência nos termos do artigo 35º do TUE.

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O artigo 40º, n.º 4, segundo parágrafo, não inclui porém no seu âmbito de aplicação os actos propriamente ditos de execução de uma cooperação reforçada assim instaurada. Segue-se a contrario que estes ficam sujeitos à competência do TJ nos termos do artigo 35º116.Isto significa portanto que, no âmbito do Título VI do TUE, a cooperação reforçada fica sujeita a uma dualidade de regimes de competência do TJ, consoante os actos de que se trate.

Uma excepção com consequências tão importantes como a prevista pela disposição em análise não pode manifestamente ter resultado do puro arbítrio ou de alguma falha ou descoordenação nas negociações da CIG. Com efeito, o que os autores do TA pretenderam com o artigo 40º, n.º 4, segundo parágrafo, foi que as decisões de natureza «quase constitucional» adoptadas pelo Conselho em virtude do artigo 40º, n.ºs 1 a 3, ficassem sujeitas à plena competência do TJ nos termos dos artigos 220º e seguintes do TCE e não à competência restrita do artigo 35º do TUE. E isto, tanto mais que cabe em última instância ao juiz comunitário garantir que as cooperações reforçadas instauradas no âmbito do Terceiro Pilar não invadam as competências da Comunidade Europeia117.

2. A cooperação reforçada específica do Terceiro Pilar, prevista pelo artigo 40º

conjugado com a cláusula geral dos artigos 43º e seguintes do TUE, constitui, juntamente com aquela que é específica do Primeiro Pilar (artigo 11º do TCE, igualmente conjugado com os artigos 43º e seguintes do TUE), a modalidade de cooperação reforçada que representa a verdadeira inovação trazida pelo TA, ou seja, aquela que é instaurada caso a caso por decisão do Conselho, ao abrigo das cláusulas de habilitação constantes daquelas disposições.

A «cooperação reforçada por autorização do Conselho» vem portanto permitir à UE avançar em domínios abrangidos pelos respectivos Tratados mas não definidos a priori, sem a participação obrigatória de todos os Estados-Membros. O direito adoptado nestas condições só se aplica obviamente aos Estados-Membros que participam na correspondente cooperação reforçada. Tal significa, noutra perspectiva, que aquilo que é direito comunitário ou direito da União para uns Estados-Membros não o é para outros118. O instituto em análise implica efectivamente a quebra do princípio da unidade do direito aplicável na UE.

Tal como as cooperações reforçadas previstas directamente pelos Tratados, a modalidade em causa também prevê o direito de os Estados-Membros que, num primeiro momento, não queiram ou não possam participar, virem a fazê-lo ulteriormente, desde que reunam os critérios objectivos para tal e aceitem o acervo entretanto estabelecido. No entanto, no conjunto dos, no máximo, sete Estados-Membros que à partida fiquem à margem de uma cooperação reforçada instaurada por decisão do Conselho − sem prejuízo do seu direito de veto, nos termos do segundo parágrafo do n.º 1 do artigo 40º −, haverá que distinguir pelo menos de facto entre dois grupos. Por um lado, o daqueles que têm à partida condições objectivas de participação mas não o fazem por falta de vontade política (por exemplo, por «eurocepticismo»). Por outro lado, o grupo daqueles que manifestam vontade política de participação, não pretendendo ficar isolados, mas não têm condições para tal ou são considerados pelos seus parceiros como incapazes de reunir tais condições. Este aspecto é essencial para ajudar a perceber o alcance que poderá vir a ter a intervenção do TJ no âmbito da cooperação reforçada.

116 Dado o carácter comprovadamente excepcional da norma do artigo 40º, n.º 4, segundo parágrafo, o argumento a contrario não suscita qualquer dúvida quanto à sua idoneidade para fundamentar a solução a que se chegou. 117 Sobre este ponto, cfr. Bribosia, op. cit., p. 78. 118 Salientando este ponto Gaja, op. cit., p. 867.

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3. As condições gerais a que se subordina a autorização, pelo Conselho ou excepcionalmente pelo Conselho Europeu, de instauração de uma cooperação reforçada vêm previstas no artigo 43º do TUE. De acordo com ele, a cooperação reforçada deve: (1) ter por objectivo favorecer a realização dos objectivos da União; (2) respeitar os princípios do TUE e do TCE e o quadro institucional único da União; (3) ser utilizada apenas em último recurso, quando não seja possível alcançar os objectivos dos Tratados através dos processos comuns neles previstos; (4) envolver pelo menos a maioria dos Estados-Membros; (5) não afectar o acervo comunitário nem o acervo da União; (6) não afectar as competências, os direitos, as obrigações e os interesses dos Estados-Membros que não participem nela; (7) estar aberta a todos os Estados-Membros e permitir que estes se associem a ela em qualquer momento, desde que respeitem a decisão inicial e as decisões tomadas nesse âmbito; (8) observar as condições adicionais específicas constantes, consoante o caso, do artigo 11º do TCE ou do artigo 40º do TUE e (9) ser autorizada nos termos da respectiva disposição.

De acordo com o artigo 40º, n.º 1, são duas as condições adicionais a que a cooperação reforçada no âmbito do Título VI está sujeita: ela deve (1) respeitar as competências da Comunidade Europeia, bem como os objectivos do Título VI e (2) ter por objectivo possibilitar que a União se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

Em contrapartida, de forma compreensivelmente mais exigente, dado o contexto, o artigo 11º, n.º 1, do TCE prevê cinco condições adicionais para as cooperações reforçadas a instaurar no seu âmbito: (1) não incidência em domínios da competência exclusiva da Comunidade; (2) não afectação das políticas, acções ou programas da Comunidade; (3) não incidência sobre a cidadania e da União e não discriminação entre os nacionais dos Estados-Membros; (4) inclusão nos limites das competências atribuídas à Comunidade; (5) não provocação de discriminações ou restrições ao comércio entre os Estados-Membros, nem de distorções das condições de concorrência entre estes últimos.

4. São cinco as decisões susceptíveis de serem tomadas ao abrigo do artigo 40º do TUE: • a autorização concedida pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada119, a pedido

dos Estados-Membros que se propõem instaurar entre si uma cooperação reforçada no domínio policial ou judiciário penal, uma vez constatado o preenchimento das condições acima enumeradas − artigo 40º, n.º 2, primeiro parágrafo;

• a decisão do Conselho, deliberando por maioria qualificada, de devolver ao Conselho Europeu a decisão sobre o pedido de autorização de uma cooperação reforçada, se um Estado-Membro declarar que, «por importantes e expressas razões de política nacional, se tenciona opor à concessão de uma autorização por maioria qualificada» − artigo 40º, n.º 2, segundo parágrafo, primeira frase120;

• a decisão do Conselho Europeu, deliberando por unanimidade (incluindo, portanto, o voto do presidente da Comissão), sobre o pedido de decisão que lhe tenha sido devolvido nos termos acima indicados − artigo 40º, n.º 2, segundo parágrafo, in fine;

119 Segundo o artigo 44º, in fine, a maioria qualificada dos Estados-Membros participantes na cooperação reforçada é constituída pela mesma proporção dos votos ponderados daqueles no Conselho, de acordo com o disposto no artigo 205º, n.º 2. 120 O terceiro parágrafo do n.º 2 do artigo 40º especifica que, para efeitos das decisões a adoptar nos termos dos primeiro e segundo parágrafos do mesmo número, a maioria qualificada no Conselho exige, pelo menos, sessenta e dois votos ponderados nos termos do artigo 205º, n.º 2, que exprimam a votação favorável de, no mínimo, dez membros.

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• a autorização tácita concedida pelo Conselho ao ou aos Estados-Membros que, num primeiro momento, não participaram numa cooperação reforçada, de ulterior participação nessa cooperação − artigo 40º, n.º 3121;

• a decisão do Conselho, deliberando por maioria qualificada, de suspensão rectius de adiamento da tomada de decisão sobre o pedido de participação numa cooperação reforçada − artigo 40º, n.º 3, penúltima frase.

5. De todas as decisões adoptadas com base no artigo 40º, n.º 1 a 3, apenas uma não

se afigura susceptível de fiscalização pelo TJ, apesar de nenhuma das disposição em análise o ressalvar. Trata-se da decisão do Conselho Europeu a adoptar nos termos do artigo 40º, n.º 2, segundo parágrafo, in fine. Com efeito, em nenhuma disposição do TCE vem prevista a legitimidade passiva do Conselho Europeu ou a sindicabilidade dos actos por ele adoptados. De resto, este foi um dos argumentos decisivamente invocados pelo próprio TJ para declarar inadmissível um recurso de anulação interposto de um alegado acto do Conselho Europeu122. Esta solução contrasta com a resultante do artigo 11º, n.º 2, segundo parágrafo, do TCE, em que o autor da decisão homóloga é o Conselho, reunido a nível de chefes de Estado ou de governo, que dispõe de legitimidade passiva perante o TJ123.

Em contrapartida, todas as decisões do Conselho supra-enumeradas são em princípio susceptíveis de constituírem objecto de qualquer das vias processuais previstas pelo TCE: recurso de anulação, reenvio prejudicial de interpretação e de validade, excepção de ilegalidade, suspensão da executoriedade ou outras medidas provisórias. No entanto, a natureza específica daquelas decisões não poderá deixar de se repercutir sobre a intensidade e os limites do controlo jurisdicional a exercer sobre elas.

Com efeito, a apreciação do preenchimento, ou não, de algumas das condições previstas pelas disposições conjugadas dos artigos 40º, n.º 1, e 43º, n.º 1, convoca critérios essencialmente políticos. Pense-se, por exemplo, nas condições relativas: (1) ao favorecimento da realização dos objectivos da União e à preservação dos seus interesses; (2) à não afectação das competências, dos direitos, das obrigações e dos interesses dos Estados-Membros não participantes, ou ainda (3) ao objectivo de «possibilitar que a União se transforme mais rapidamente num espaço de liberdade, de segurança e de justiça»124. 121 O processo conducente a tal autorização tácita vem minuciosamente regulado no próprio n.º 3. De acordo com esta disposição, qualquer Estado-Membro que deseje participar numa cooperação reforçada já instaurada ao abrigo do artigo 40º, nºs 1 e 2, notifica a sua intenção ao Conselho e à Comissão. Esta, no prazo de três meses a contar da data da notificação, deve apresentar ao Conselho um parecer, eventualmente acompanhado de uma recomendação relativa a disposições específicas que considere necessárias para que o Estado-Membro em causa possa participar na cooperação reforçada que pretende. No prazo de quatro meses a contar da notificação do Estado-Membro em causa ao Conselho, a autorização solicitada considera-se concedida por este órgão, excepto em caso de manifestação de vontade contrária nos termos da parte final do n.º 3. 122 Cfr. os despachos de 13 de Janeiro de 1995, Roujanski/Conselho C-253/94 P, ponto 4 e Bonnamy/Conselho, C-264/94 P, ponto 4 , Colect. p. I-7 e I-15. 123 Note-se que, na versão portuguesa, o artigo 11º, n.º 2, segundo parágrafo, última parte, do TCE refere-se erradamente ao Conselho Europeu em vez de se referir, à semelhança das outras versões oficiais, ao Conselho reunido a nível de chefes de Estado ou de governo (cfr. artigo 121º, n.º 3). A diferença entre ambos é, como se sabe, substancial. No primeiro caso, trata-se de um órgão autónomo da União (artigo 4º do TUE), ao passo que no segundo trata-se de uma formação de outro órgão da UE (artigo 202º). Além disso, o Conselho Europeu reúne os chefes de Estado ou de governo dos Estados-Membros, bem como o presidente da Comissão, assistidos pelos ministros dos negócios estrangeiros daqueles e por um membro da Comissão, ao passo que aquela formação do Conselho apenas reúne os chefes de Estado ou de governo e um representante da Comissão. 124 Em contrapartida, o preenchimento da condição relativa à utilização do instituto em análise «apenas em último recurso, quando não seja possível alcançar os objectivos dos citados Tratados mediante a aplicação dos processos neles previstos» é de demonstração bem menos sujeita a controvérsia. Com efeito, ela estará

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Pense-se, por outro lado, nas «importantes e expressas razões de política nacional» invocadas por um Estado-Membro para se opor à concessão de uma autorização de cooperação reforçada125.

Seja como for, trata-se de uma situação que não é inédita para o TJ, e que previsivelmente o levará a autolimitar o seu controlo sobre qualquer das decisões do Conselho em análise à questão de saber se ela está viciada por erro manifesto ou desvio de poder, ou se o Conselho ultrapassou manifestamente os limites do seu amplo poder discricionário num domínio em que é chamado a efectuar apreciações complexas. Basta tornar extensiva à cooperação reforçada uma jurisprudência bem estabelecida126.

6. O que antecede deixa em aberto a questão de saber que margem de influência

caberá ao TJ perante as duas possibilidades de evolução que se abrem ao instituto da cooperação reforçada, e isto no pressuposto de que a sua enorme complexidade e pouca flexibilidade não dissuadirão os próprios Estados-Membros de recorrerem a ele127.

Nesse pressuposto − mais facilmente verificável se o futuro Tratado de Nice vier, como se prevê, a suprimir o direito de veto de que actualmente os Estados-Membros dispõem neste âmbito −, só o tempo poderá esclarecer se o TJ estará em condições de contribuir efectivamente para que o instituto da cooperação reforçada venha a corresponder a «fórmulas vanguardistas tendentes a impulsionar o avanço da União» e não a «fórmulas de dualização permanente de grupos de Estados-Membros, no caminho para um processo desintegrador»128. VIII − Conclusões

1. No seu conjunto, as cinco disposições analisadas ampliam consideravelmente a competência do TJ. O seu conteúdo reflecte, antes de mais, o carácter fortemente compromissório do acordo conseguido, com tudo o que isso implica. Mas reflecte também toda a complexidade intrínseca gerada pelo facto de o TA repartir o regime sob o qual o espaço de liberdade, de segurança e de justiça se deve desenvolver por dois Tratados

preenchida, consoante os casos, quando não se verificar no Conselho, ou a unanimidade ou a maioria qualificada requeridas para a adopção de uma medida destinada a alcançar um objectivo dos Tratados; cfr. Bribosia, op. cit., p. 68-69. Por outro lado, a condição relativa ao envolvimento pelo menos da maioria dos Estados-Membros − oito actualmente − é estritamente objectiva. 125 Nada parece obstar juridicamente a que um Estado-Membro ou a Comissão (pelo menos no caso de ter dado um parecer favorável à instauração da cooperação reforçada) intentem uma acção por incumprimento contra o Estado-Membro que invoca «importantes e expressas razões de política nacional», com fundamento na invocação abusiva de tais razões. 126 Cfr., entre tantos, o acórdão de 12 de Novembro de 1996, Reino Unido c. Conselho, C-84/94, Colect. p. I-5755, ponto 58. 127 Neste sentido, Medeiros Ferreira, Relatório sobre a proposta de resolução com vista à aprovação para ratificação do Tratado de Amesterdão pela Assembleia da República, p. 29 da versão policopiada; Cloos, op. cit.; Gaja, op. cit., p. 869. Este autor admite que, se assim for, certos Estados-Membros poderão ser levados a instaurar, como antes, «cooperações reforçadas» entre si, à margem das «instituições processos e mecanismos da UE». Só que, para o efeito, deixaram de se poder prevalecer de uma cláusula habilitadora correspondente à do ex-artigo K.7, ora suprimida. 128 As expressões são de Francisco Seixas da Costa, Conferência Intergovernamental: a perspectiva portuguesa de negociação do Tratado de Amesterdão, Novas Fronteiras, n.º 2, 1997. Na doutrina, os juízos sobre a cooperação reforçada são fortemente contrastantes. Com diversas matizes, vão desde considerá-la como garantia contra o risco de estagnação da UE até à afirmação de que ela representa o abandono do princípio da solidariedade entre os Estados-Membros. Para as diferentes perspectivas ver Constantinesco, op. cit., p. 56; Ehlermann, op. cit. p. 65; Kortenberg, op. cit., p. 854; Louis, op. cit., p. 18; Monar, op. cit. p. 22; Petite, op. cit., p. 18; Weiler, Amsterdam, Amsterdam, European Law Review, 1997, p. 311; Maria João Palma, Desenvolvimentos recentes na União Europeia: o Tratado de Amesterdão, Lisboa, 1998, p. 13 ss., maxime p. 21.

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diferentes, com as suas lógicas e os seus mecanismos próprios. Tal complexidade é ainda agravada pela «omnipresença» do instituto da cooperação reforçada, com o seu dédalo de opt-outs e opt-ins.

A exacta determinação do sentido e alcance deste conjunto de disposições constitui, por tudo isso, um dos desafios mais sérios lançados pelo TA.

2. Na perspectiva do reforço do princípio do Estado de Direito na sua vertente de um controlo jurisdicional adequado dos actos da União, as disposições analisadas merecem uma apreciação globalmente positiva, apesar de incluírem derrogações a tal princípio não isentas de críticas. Nesta medida, o próprio TJ fica legitimado a interpretá-las restritivamente. Através delas, um importante sector do direito da UE torna-se finalmente justiciável.

3. Uma parte significativa do contencioso susceptível de ser submetido ao TJ ao abrigo das disposições sobre cooperação reforçada é marcadamente política, o que nem sequer é caso único. Encontram-se em idêntica situação quer o contencioso relativo às «violações graves e persistentes», por parte dos Estados-Membros, de algum dos princípios fundamentais enunciados no n.º 1 do artigo 6º do TUE (artigos 7º do TUE e 309º do TCE)129, quer o contencioso relativo ao princípio da subsidiariedade (artigo 5º, segundo parágrafo do TCE)130.

O TJ poderá portanto ser chamado a dirimir litígios politicamente muito delicados entre os Estados-Membros, o que acentuará o seu papel de tribunal constitucional da União. Mais do que nunca, será confrontado com a necessidade de apurar as suas técnicas de judicial self restraint131. E se é verdade que o princípio da autolimitação judicial deverá vedar-lhe o conhecimento da oportunidade dos actos adoptados nos domínios referidos, já não poderá todavia escusá-lo de interpretar as cláusulas vagas e indeterminadas contidas tanto nos artigos 5º e 7º do TCE como nos artigos 40º e 43º do TUE ou 11º do TCE, extraindo delas, em toda a medida do possível, os parâmetros à luz dos quais apreciará, numa postura de autocontenção, as «inconstitucionalidades» alegadamente cometidas pelo Conselho ou pelos Estados-Membros, consoante os casos.

4. A ampla competência do TJ relativamente aos diversos domínios cobertos pelo espaço de liberdade, de segurança e de justiça significa que aquele órgão deverá debruçar-se sobre um número crescente de casos em que será invocada a violação de direitos fundamentais, tal como os garante a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6º, n.º 2, do TUE).

Dado que, nestas condições, o TJ será levado a interpretar e aplicar cada vez mais frequentemente a CEDH, ganha nova actualidade o tema da sua coordenação com o Tribunal de Estrasburgo, guardião daquele instrumento, em ordem a evitar contradições entre a jurisprudência de ambos. Nesta perspectiva, a questão sempre adiada da adesão da Comunidade e da União à CEDH continua a colocar-se, independentemente da aprovação da Carta de Direitos Fundamentais da UE. 129 Para as diversas posições sobre a extensão e o alcance de um tal contencioso ver Bruno Nascimbene, Tutela dei Diritti Fondamentali e Competenza della Corte de Giustizia nel Trattato di Amsterdam, Scritti Mancini, cit., p. 690; Tulips or nettles from Amsterdam?, European Law Review, 22, 1997, p. 289; Gialdino, op. cit., p. 71-72; Maria Luísa Duarte, A União Europeia e os Direitos Fundamentais, cit., p. 45; Arnull, op. cit., p. 113. 130 Sobre o tema ver Maria Luísa Duarte, A aplicação jurisdicional do princípio da subsidiariedade no Direito Comunitário − Pressupostos e limites, Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Professor Lumbrales, Lisboa, 2000, p. 779 ss. 131 Sobre este conceito de origem jurídico-constitucional, ver a síntese de J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 1170-1171.

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5. Por último, mas não menos importante, a aplicação do conjunto das disposições

analisadas acarretará a prazo um aumento considerável do volume do contencioso perante o TJ e também perante o TPI, susceptível de agravar ainda mais os sérios problemas de perda progressiva de funcionalidade com que o sistema jurisdicional da UE se debate. O juiz comunitário será chamado a decidir prejudicialmente numa série de domínios como o direito de asilo, o direito da família e o direito penal, domínios esses que mal se compadecem com a actual duração média dos processos prejudiciais. Nesta perspectiva, o espaço de liberdade, de segurança e de justiça representa também uma dura prova para o sistema jurisdicional da UE.

Por isso, se não se quiser anular na prática o progresso que, apesar de tudo, as disposições analisadas representam, há que enveredar sem hesitações pela reforma do sistema jurisdicional da União, através nomeadamente de uma repartição mais racional de competências entre o TJ e o TPI e da criação progressiva de instâncias jurisdicionais especializadas. Propostas nesse sentido não têm faltado, e a diversos níveis132, merecendo destaque especial quer o documento de reflexão apresentado ao Conselho pelos dois tribunais comunitários133 em Maio de 1999, quer o relatório do grupo de reflexão sobre o futuro do sistema jurisdicional das Comunidades Europeias, elaborado a pedido da Comissão e apresentado em 4 de Fevereiro de 2000 ao presidente desta134.

Seria lamentável que, a este respeito, o Tratado de Nice a celebrar no final do ano 2000 viesse a ser (mais) uma ocasião perdida.

132 Para uma panorâmica, ver José Luís da Cruz Vilaça, A protecção dos direitos dos cidadãos no espaço comunitário, in Álvaro de Vasconcelos, (coord.) Valores da Europa − identidade e legitimidade, Lisboa, 1999, p. 78 ss.; para maiores desenvolvimentos ver Chavrier, op. cit., p. 621 ss.; Editorial: The new judicial architecture takes shape, European Law Review, vol. 25, 2000, p. 217 ss. 133 Publicado na European Law Review, n.º 24, 1999, p. 516 ss. 134 Publicado em http://europa.eu.int/en/comm/sj/due-pt.pdf