o sistema politico japones moderno 10-07-2014

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  • 5/22/2018 O Sistema Politico Japones Moderno 10-07-2014

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    O SISTEMA POLTICO JAPONS MODERNO: UMA ANLISE COMPARADA

    I

    N

    este artigo, considerando a estrutura analtica das mltiplas mo-dernidades, analisamos algumas caractersticas distintivas do

    moderno sistema poltico e social japons1.

    A hiptese bsica da abordagem das mltiplas modernidades a deque as ordens institucionais modernas de modernidade (as quais sedesenvolveramcomainstitucionalizaodasordensculturaisepolti-cas da modernidade) no se desenvolveram de modo uniforme ao re-dor do mundo contrariamente aos pressupostos das teorias clssi-cas de modernizao dos anos 1950 e at mesmo dos clssicos mais an-

    tigos da sociologia, como Spencer e, em certa medida, Durkheim, quepredominavam mesmo na poca de Weber. Antes, desenvolveram-seem padres mltiplos, em modelos de mltiplas modernidades conti-nuamente cambiantes. Isso pode ser observado j no que diz respeito dimenso central do programa poltico da modernidade quer dizer,a propagao do protesto.

    11

    * A traduo do original em ingls, Japanese Modernity: The First New Western Multi-ple Modernity, de Paul Freston.

    DADOS Revista de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, no 1, 2010, pp. 11 a 54.

    Modernidade Japonesa: A Primeira ModernidadeMltipla No Ocidental*

    S. N. Eisenstadt

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    Os discursos de justia e os mecanismos polticos de mudana de regi-mesdiferementreassociedadesmodernasdeacordocomseuscontex-tos culturais. A antiga indagao de Sombart (1976), por que no hsocialismo nos Estados Unidos?, formulada na primeira dcada dosculo XX, talvez o primeiro reconhecimento dessa variabilidade nosmovimentos caractersticos de protesto em diferentes sociedades mo-dernas uma variabilidade que se tornou ainda mais visvel ao seolhar para pases como Japo e ndia ou para as sociedades muulma-nas. Em todas essas sociedades, desenvolveram-se padres ideolgi-cos e institucionais modernos, e movimentos de protesto que, emboracompartilhassem dessas orientaes bsicas, diferiam bastante dooriginal europeu e um do outro. Tudo isso comprovava a heteroge-

    neidade dentro do projeto moderno; ou, em outras palavras, o desen-volvimento contnuo de modernidades mltiplas e cambiantes.

    II

    especialmente importante para a anlise das modernidades mlti-plascontinuamentecambiantesquetaispadresdistintivosdemoder-nidade, radicalmente diferentes do original europeu, se cristaliza-ram no somente em sociedades no ocidentais mas tambm em socie-

    dadesquesedesenvolveramdentrodaestruturadasvriasgrandesci-vilizaesmuulmana,indiana,budistaouconfucianasoboimpac-to da expanso europeia e em seu posterior confronto com o programaeuropeu da modernidade. Tambm evoluram na verdade, acima detudo , dentro da estrutura da expanso ocidental, em sociedades emque aparentemente estruturas institucionais puramente ocidentaissurgiram nas Amricas. s vezes se presumia que padres europeusdamodernidadeserepetiamnasAmricas,masagoraestclaroqueos

    EstadosUnidos,oCanadeaAmricaLatinasedesenvolveramdefor-ma diferente desde o comeo. De fato, por toda a Amrica podemos en-contrar a cristalizao de novas civilizaes, e no apenas, como suge-ria Hartz (1964), fragmentos da Europa. Nessas estruturas institu-cionais e culturais ocidentais, originadas e trazidas da Europa, desen-volveram-se no somente variaes locais do modelo, ou modelos eu-ropeus, mas padres institucionais e ideolgicos radicalmente novos.bempossvelqueessatenhasidoaprimeiracristalizaodenovasci-vilizaes, desde as civilizaes axiais, e tambm a ltima at o mo-

    mento. A cristalizao de diferentes modernidades nas Amricas e fato que Weber percebera isso em sua anlise da experincia norte-americanaatestaque,mesmodentrodaabrangenteestruturadacivi-

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    lizaoocidental,independentementedaformacomoeladefinida,sedesenvolveu no somente um, mas mltiplos programas culturais epadres institucionais de modernidade2. Isso foi, obviamente, aindamais claro nas ordens institucionais que se desenvolveram alm doOcidente.

    III

    Um dos estudos de caso mais interessantes da cristalizao de pro-gramas diferentes de modernidade alm do Ocidente o Japo(Eisenstadt, 1996), no s do ponto de vista do estudo comparativo desociedades modernas mas tambm do ponto de vista mais geral das

    distines analticas e empricas entre as dimenses estruturais/orga-nizacionais e culturais da atividade humana e da constituio daordem moderna.

    Enquanto, em termos puramente estruturais/organizacionais, a socie-dade moderna japonesa conseguiu grandes realizaes e critrios uni-versalistas,essescritrioscaminharamjuntocomumaorientao/am-

    biente fortemente imanentista e foram inseridos (embedded)numambi-ente social particularista uma combinao que se havia cristalizado

    j na Restaurao Meiji.A diferena do caso japons vem antes do fato de que foi quase a nicasociedade asitica que, sob o impacto da expanso oriental, no s semanteve independente a Tailndia tambm , mas se tornou um im-portante ator na nova cena internacional moderna. O Japo se tornou

    bastante independente ao desenvolver e promover um programa dis-tinto de modernidade e, ao mesmo tempo, transformou-se muito ra-pidamente, de acordo com o modelo do Estado-nao ocidental e da

    economia capitalista que fez surgir algumas caractersticas marcan-tes que o diferenciaram daquele modelo; algumas formas bem distin-tas de lidar com o problema da relao de sua modernidade com amodernidade ocidental.

    Alm disso, dentro da estrutura de anlise do desenvolvimento dasmltiplas modernidades, o Japo constitui talvez o paradoxo mais im-portante,eaessnciadissoestnofatodeque,emboratenhasidoapri-meira e, at recentemente, a nica modernizao no ocidental to-

    talmente bem-sucedida, tenha surgido de uma civilizao no axial uma civilizao que no poderia ser vista, em termos weberianos,como uma Religio Grande ou Mundial.

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    A anlise de Weber sobre as razes civilizatrias do capitalismo, como sabido, fez parte de sua sociologia da religio comparada. Tal anlisese baseou na premissa de que, em todas as Grandes Religies queWeber estudou, estavam presentes as potencialidades estruturais eculturais para o desenvolvimento do capitalismo, mas apenas no Oci-denteessaspotencialidadesderamfruto.EmoutrasGrandesReligiesou Civilizaes mais tarde chamadas de civilizaes axiais , essaspotencialidades foram evitadas pela especfica combinao hegemni-ca dos componentes estruturais e culturais que se desenvolveram ne-las sobretudo as caractersticas do confronto entre ortodoxias e hete-rodoxias ou sectarismo. verdade que Weber lidou apenas com aemergncia do primeiro e original capitalismo, e no com sua expan-

    so. Contudo, mesmo nessa estrutura, o paradoxo do Japo umacivilizao no axial que se tornou a primeira sociedade no ocidentaltotalmente moderna se destaca.

    As explicaes para esse fato paradoxal na literatura acadmica costu-mamfocaralgumascaractersticasestruturaisdasociedadeTokugawaque, em muitos sentidos, so bem semelhantes quelas atribudas in-dustrializao europeia, como desenvolvimento do pluralismo estru-

    tural e institucional; multiplicidade de centros de poder econmico;colapso de estruturas ecolgicas restritas e segregadas; abertura da es-trutura familiar, especialmente no setor rural, o que gerou muitos no-vosrecursos;emaisdoqueumamercantilizaoincipiente,masmuitoextensa e atravessando vrias reas. Tambm tiveram importncia osaltos nveis de alfabetizao e de urbanizao, e a extensa integraoeconmica3.

    Almdisso,assimilaridadesbsicasentreoJapomodernoeaEuropapodem ser vistas no fato de que tanto no Japo como na Europa algumtipo de estado moderno constitucional se desenvolveu depois de umevento ou processo revolucionrio a Meiji Ishin, a chamada Restaura-o Meiji de 1868, que inaugurou a era moderna. A cristalizao desseestadosecaracterizoupormuitostraosquetmsidofundamentaisnaformao dos estados europeus modernos isto , o estabelecimentode um novo tipo de Estado-nao moderno, um regime autocrti-co-constitucional aparentemente parecido com o que se estabeleceu,

    porexemplo,naAlemanhaImperial,eumprocessodetransiorelati-vamente rpido para uma economia poltica capitalista, com o conco-mitante processo de urbanizao e de industrializao.

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    Os acontecimentos no Japo nesses perodos podiam ser, e geralmenteo eram, comparados com outros semelhantes ou paralelos em socieda-des modernas (especialmente europeias) constitucionais, autorit-rios ou totalitrios. Os acontecimentos no perodo Taisho tm sidocomparadoscomoestabelecimentoderegimesdemocrticoseliberaisna Europa; o regime militar pode ser comparado com os fascistas tota-litriosempaseseuropeus;e,noperodops-SegundaGuerraMundi-al, com o estabelecimento de regimes democrticos e constitucionaisplenos em sociedades da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos.

    Dada essa semelhana estrutural nas causas da modernizao e daindustrializao entre a Europa Ocidental e o Japo, bem como nos pa-

    dres institucionais gerais do Estado japons moderno, o Japo apre-senta um dos casos ou exemplos mais fortes de mltiplas modernida-des manifestando-se, acima de tudo, no fato de que, apesar de todasessas semelhanas, mudanas contnuas e cristalizadas em padres demodernidadeeconmicos,polticoseculturaisdistintostmcontinua-mentesidomarcadamentediferentesdeseuoriginalocidentalemrela-omaioriadeseuscomponentescentrais,comoacomposiodesuaidentidade coletiva, as premissas de autoridade e ordem poltica, e aprpria concepo de modernidade e seus contornos e dinmicas

    institucionais bsicos.

    As razes da modernidade distintiva que surgiu no Japo devem serencontradas (como foi o caso na cristalizao de todas as modernida-des, comeando pela europeia e passando pela americana) na combi-nao entre o programa cultural distinto de modernidade, a distintainterpretao do programa cultural moderno que tomou forma nela eas experincias histricas dessa sociedade no s em sua era pr-mo-derna mas tambm e, acima de tudo, em seu encontro com a moderni-

    dade ocidental expansionista e a incorporao do Japo em sistemasinternacionais novos e emergentes em poltica, economia e cultura.

    O PROGRAMA CULTURAL JAPONS DE MODERNIDADE

    IV

    As caractersticas distintivas das premissas bsicas da ordem polticajaponesa moderna e de sua conscincia coletiva que so, como foi o

    casocomasAmricas,oncleodadistinodamodernidadejaponesa esto estritamente relacionadas, na verdade, enraizadas, na concep-o distinta da modernidade que se desenvolveu no contexto do pro-

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    grama de modernidade que se cristalizou no Japo, e isso o distinguede forma radical de seus correspondentes europeus e americanos.

    Dentro do programa cultural da modernidade que se cristalizou naMeiji Ishin, a modernidade foi definida no Japo como acompanharostempos,adaptar-seaostempos,significandoodomniodatecnolo-gia ocidental e a busca por seu lugar apropriado na arena internacio-nal. Acompanhar os tempos foi definido como o veredicto do movi-mento da histria. Tal movimento, porm, no foi definido como noOcidente, com suas razes crists, ou como em outras civilizaes, emtermos de progresso histrica, como um processo histrico definidoou medido por critrios, valores ou vises transcendentais e universa-

    listas, isto , em termos considerados alm da realidade mundanaexistente, mas sim como um ajuste intensivo, uma apropriao at, domovimento do tempo.

    Estritamente relacionada com a essncia do discurso japons da mo-dernidade foi a contnua dissociao entreZweckrationalitt(racionali-dade instrumental) e Wertrationalitt (racionalidade orientada paravalores), com uma tendncia muito forte de enaltecer realizaes ins-trumentais e tecnolgicas de forma tecnocrtica. Uma das mais recen-

    tes dessas manifestaes tem sido a nfase na informao como o fun-damento de uma nova ordem societal, a sociedade da informao, daqual o Japo um precursor. Tambm pode se desenvolver uma nega-o aparentemente total dessaZweckrationalittem nome de uma espi-ritualidade japonesa pura ou natural, mas com pouca discusso so-

    bre a relao dessa racionalidade instrumental com umaWertrationali-tt diferente, ou o discurso de diferentesWertrationalitten. Simulta-neamente, desenvolveu-se, no nvel do discurso ideolgico, relativa-

    mente pouca avaliao autnoma e crtica por grupos diferentes deintelectuais dos acontecimentos concretos da sociedade modernaque se desenvolveu no Japo, o que poderia nortear programas polti-cos concretos.

    Ao mesmo tempo, as antinomias bsicas da modernidade e as contra-diesetensesinternasquesurgiramsedesenvolveramdeformadis-tinta no Japo. Enquanto essas antinomias e contradies, da formacomo foram formuladas pelo discurso ocidental, foram reconhecidas e

    resolvidas, num nvel intelectual, em discurso intelectual ou acadmi-co, esse discurso no se transformou, pelo menos no totalmente,numa autnoma ao intelectual e poltico-social contnua e combina-

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    da. Mesmo no nvel intelectual, as tenses entre os diferentes compo-nentes gnsticos, ctnicos e universalistas do programa cultural damodernidadeforamsilenciadaspeloagrupamentodeseuscomponen-tes universalistas. Acima de tudo, quase nenhuma dessas orientaesintelectuais levou cristalizao de concepes alternativas de ordempoltica baseada ou enraizada em critrios fora ou alm da ordem ouda realidade existente.

    Isso pode ser visto no destino do regime liberal Taisho dos anos 1920,bem como no do regime militar nos anos 1930 especialmente na dife-rena entre este e os regimes fascistas ou totalitrios europeus. Pormais forte que fosse a inteno do grupo Taisho em abrir a mais fecha-

    daerestritivaordemMeijisuaideologianoeraumliberalismobase-adoemprincpiosenraizadosemvisestranscendentaisdeindividua-lismo , eles no foram capazes de superar algumas das premissas b-sicas dessa ordem. Em comparao, a tendncia rumo democracia to-talitria e a ideologizao do Estado-nao que se desenvolvia na Eu-ropaeram,noempequenograu,enraizadasnopanodefundoespec-fico da Europa. Essa tendncia era estritamente relacionada preva-lncia, em todas as civilizaes monotestas, de uma percepo da are-na poltica como uma das principais arenas de resoluo das tenses

    ou de superao do vcuo entre as ordens transcendental e mundana eo desenvolvimento (estritamente relacionado) do estado como umaentidadedistinta.Aausnciadaconscinciadessevcuooudetensesno Japo ajuda a explicar as diferenas entre o regime autoritrio japo-ns dos anos 1930 e o fascismo e o totalitarismo europeus4, bem comoaquelas entre as tendncias liberais do regime Taisho e os europeuseruditos.

    O PROGRAMA CULTURAL JAPONS DE MODERNIDADE E ASCARACTERSTICAS BSICAS DO MODERNO ESTADO JAPONS E ASOCIEDADE CIVIL

    V

    Foi o distintivo programa cultural de modernidade enraizada em on-tologias no axiais e imanentistas prevalecentes no Japo que influ-encioufortemente,talvezattenhaguiado,aconscinciacoletivajapo-

    nesa moderna, o Estado Meiji e, mais para a frente, o desenvolvimentoda sociedade japonesa moderna. Isso explica, pelo menos at certoponto, as caractersticas especficas das formaes institucionais prin-

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    cipais do Japo moderno e a estrutura e a orientao dos movimentosde protesto que nelas se encontram.

    A distino da modernidade japonesa claramente perceptvel, em pri-meiro lugar, nas premissas bsicas de identidade e conscincia coletivaque foram promulgadas no Japo moderno e estritamente entrelaadascom o modo de legitimao do novo regime Meiji ou, para acompanharaformulaodeDavis(1976),comadistintaideologiaouteologiacvicaoucivilpromulgadapelasprincipaiselitesdessesregimes.Oestabeleci-mento de tal ideologia ou teologia civil buscava como no processo pa-ralelo na Frana ps-revolucionria e, depois, na Rssia ps-revolucio-nria formar uma nova conscincia nacional, converter, como na frase

    de Weber (1976), camponeses em franceses no caso, em japoneses.Aqui, no entanto, algumas das caractersticas especficas da construoda moderna nao japonesa chamam a ateno.

    Aparentemente, o Japo pode ser visto como o Estado-nao modelo,porque, de uma forma ou de outra, o estado sempre se identificou coma identidade cultural coletiva japonesa. Contudo, mesmo que a con-cepo de comunidade nacional tenha sido grandemente influenciadapor noes ocidentais de nacionalismo, ela foi formulada na ideologia

    do regime Meiji de maneira diferente dos Estados-naes ocidentais,assim como o modo especfico de identidade coletiva japonesa eviden-cioudiferenassignificativasemrelaospremissasdoEstado-naoeuropeu.

    Ao contrrio da maioria das ideologias ocidentais nacionais ou nacio-nalistas modernas, a distino da coletividade japonesa moderna nofoi formulada em relao a alguma religio ou civilizao universal da

    qual fizesse parte, como no caso dos movimentos nacionalistas euro-peus radicais, ou a que pudesse s vezes at negar. Antes, essa distin-o foi fundada nas concepes dakokutai essncia ou comunidadenacional japonesa desenvolvidas pelas escolas nativistas do perodoTokugawa, que estavam enraizadas em formulaes mais antigas,mesmo que fracas, que definiam a nao japonesa como um tipo nicode coletividade sagrada, natural e primordial. A constituio da cons-cincia coletiva japonesa foi estabelecida em termos primordiais, sa-gradosenaturaiscomumanfaserestaurativamuitofortequeesta-

    vam estritamente vinculados figura do imperador, que se tornouuma figura meio mtica, captando a essncia do novo sistema poltico

    japons5. Mesmo quando havia referncias a outras civilizaes

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    confuciana ou budista no perodo Tokugawa; ou ao Ocidente no pe-rodo Meiji , essas referncias no significavam a participao totalna construo universal mais ampla. Ao contrrio da Europa, onde aconstituio de ideologias nacionais geralmente implicava fortes ten-ses entre orientaes universalistas e particularistas, e entre orienta-es religiosas universalistas ou primordiais, a ideologia da kokutaino desenvolveu tais tenses a princpio. No mximo, essa ideologiaenfatizou que a nao japonesa, por virtude de suas qualidades pri-mordiais e sacras, captava, num grau mais alto do que qualquer outracivilizao, essas mesmas virtudes que foram enaltecidas pelas ou-tras civilizaes, a chinesa antigamente e a ocidental na era moderna.Os principais componentes desse modo de identidade coletiva cultu-

    ral, de conscincia coletiva, eram as primordialidades de princpio,combinadas com elementos mais fracos de civilidade.

    A moderna identidade coletiva nacional que se cristalizou no Japomoderno tinha fortes razes na experincia histrica japonesa. Dois fa-tos estritamente interconectados so importantes aqui. A identidadepoltica e nacional, ou tnica, ou a conscincia coletiva, concebida emtermos sagrados e primordiais, desenvolveu-se cedo na histria japo-nesa mesmo que essa conscincia tenha sido limitada e restrita por

    longos perodos a grupos de elite da sociedade mais ampla e no eraum ponto de contnua contenda poltica ou ideolgica interna. O cernedessa concepo de identidade coletiva se cristalizou relativamentecedo, provavelmente no sculo VIII, advindo do encontro do Japocom outras sociedades e civilizaes (budismo e confucionismo) especialmente axiais e suas premissas universalistas.

    Noentanto,oresultadodoencontrojaponscomcivilizaesaxiaisfoi

    o estabelecimento de um modo de identidade coletiva distinta da doscoreanos ou vietnamitas, os quais tambm sofreram bastante pressobudista e confuciana. Ao contrrio desses ltimos, considerando queas identidades nacionais locais se agrupavam, pelo menos em prin-cpio,sobamplaidentidadeconfucianaebudista,oJaporeagiuaesseencontro com uma recusa principista dessas orientaes universalis-tas e uma simultnea nfase principista em elementos primordiais.Mesmo que o desenvolvimento dessas orientaes tenha sido forte-mente influenciado por seu encontro com a civilizao budista e confu-

    ciana chinesa, a maior parte das elites japonesas se recusou a lidar comos problemas do relacionamento de seus smbolos tnicos primordi-ais para a condio de membro de tais civilizaes universalistas. O

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    confronto com ideologias universalistas foi aparentemente resolvidopela negao dessas ideologias, e no pela tentativa de especificar suaimportncia relativa em comparao s primordiais.

    Um padro semelhante e estritamente relacionado se desenvolveu arespeito da definio das relaes da coletividade japonesa com outrascoletividades. Muitos intelectuais, elites ou influentes japoneses tam-

    bm sentiram agudamente a necessidade de definir a relao da naojaponesa com as outras, especialmente com a chinesa. Os conceitos decoletividade japonesa que se desenvolveram em muitos perodos dahistria significaram uma orientao muito intensiva em relao aosoutros China, ndia, Ocidente , assim como uma cincia dos ou-

    tros, englobando civilizaes que reivindicavam alguma validade uni-versal. Essa cincia constituiu o foco principal e contnuo do discursoTokugawa neoconfuciano (Nosco, 1984). Tais orientaes, porm, nofizeram surgir uma concepo da coletividade japonesa como parte deestruturas civilizatrias mais amplas, estruturadas de acordo com asrespectivas premissas universalistas que prevaleciam nelas. O Japono foi visto como um componente (ainda que possivelmente central)de tal estrutura universalista. No mximo, essas orientaes implica-vam a afirmao de que a coletividade japonesa encarnava os valores

    puros declarados pelas outras civilizaes e que foram erroneamenteapropriados por elas ou atribudos a elas.

    VI

    Essas concepes de identidade coletiva que se desenvolveram pelomenos entre os setores mais ativos ou hegemnicos da sociedade japo-nesa, em perodos diferentes de sua histria, tinham repercusses de

    longo alcance na constituio de uma conscincia coletiva nacionalmoderna no Japo.

    Tal conceito de nacionalidade implicou uma tendncia muito forte que teve um papel importante na sociedade japonesa do perodo Meijiao perodo contemporneo de definir a coletividade japonesa em ter-mos de singularidade incomparvel, muitas vezes concebida emtermos semirraciais e genticos ou em termos de uma espiritualidadeespecial. Essa nfase na espiritualidade oriental ou asitica pode ser

    encontrada, na maioria das civilizaes asiticas, em sua confrontaoou encontro com o Ocidente. Contudo, enquanto, na maioria dos pa-ses asiticos, tal espiritualidade foi definida por algum termo univer-

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    salista (hindu, budista ou confuciano), no Japo ela foi apresen-tada em termos de espiritualidade nica da coletividade, ou nao ja-ponesa, frequentemente definida em termos altamente exclusivistas eparticularistas6.

    Outro exemplo interessante da persistncia desses conceitos de coleti-vidade japonesa pode ser encontrado na postura ante o marxismo denotveis intelectuais de esquerda japoneses do sculo XX. Em comumcom vrios intelectuais chineses da mesma disposio, esses japone-ses, como Kotoku Shusui ou Kawakawi Hajime, tentaram diminuir aimportncia das dimenses materialistas do marxismo e infundi-lascom valores espirituais, de regenerao espiritualista. No entanto,

    enquanto a maioria dos intelectuais chineses tendeu a enfatizar os te-mas transcendentais e universalistas do confucionismo clssico, osjaponeses enfatizaram a kokutai, a essncia espiritual especificamen-te japonesa7.

    Esse conceito de uma distinta particularidade japonesa forneceu opano de fundo para as diferentes escolas de singularidade japonesaque se desenvolveram no perodo moderno por exemplo, na nfasesobre a singularidade da lngua, da raa ou da cultura japonesa no de-

    senvolvimento posterior da literatura Nihonjinron. Esses conceitos os-cilavam entre, por um lado, uma forte nfase na singularidade incom-parvel do Japo, frequentemente no caminho do nacionalismo radi-cal, e, por outro, a afirmao de que a cultura ou o povo japonsencarnavam os valores puros propostos por toda a humanidade.

    Tais concepes de modernidade e de conscincia coletiva tambmmoldaram a atitude perante os outros (em tempos de guerra, masno somente nesses tempos), sendo o ncleo fundamental o fato de ser

    raro conceber os outros como participantes com o Japo numa estrutu-racivilizatriacomum,compartilhandodimensesdistintasdeidenti-dade coletiva, alm, s vezes, daquelas da humanidade geral.

    VII

    A civilidade foi o segundo componente da identidade coletiva japone-sa. Essa nfase no significou o reconhecimento da civilidade comouma dimenso autnoma, mas considerou sua contribuio para a co-

    letividadedefinidasobretudoemtermosprimordiais.Ofocoprincipalda civilidade desenvolvida no Japo era a lealdade, estritamente rela-cionada legitimao da autoridade poltica e accountability dos

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    governantes do Japo ambas implicando uma extensa transformaonas concepes confucianas.

    As concepes confucianas originais de autoridade poltica, de sualegitimidade e da accountabilitydos governantes prevalecentes naChina e depois transferidas, embora com nfases diferentes, Coreia eao Vietn passaram por uma transformao de longo alcance, muitoalinhada com a concepo de realeza e de teocracia imanentista anali-sada anteriormente8. Um dos focos principais dessa transformao foio encontro dos conceitos chineses de autoridade, especialmente o con-ceito de Mandato do Cu, que se tornou um foco de discusso ideo-lgica e intelectual muito intensa no perodo Tokugawa. Esse discursotocou no ncleo da ideologia poltica, nas concepes de legitimidade,regncia eaccountabilitydos governantes, minimizando aaccountabil-ityprincipista dos governantes e as dimenses ou princpios transcen-dentais e universalistas de legitimao, enfatizando, em vez disso, alealdade ao imperador9.

    Consequentemente, tal lealdade focada no senhor, at o impera-dor, e no grupo ou na coletividade da qual os indivduos faziam parteou em que seus destinos estavam enredados no poderia ser questio-nada(aocontrriodocasochins)emtermosdealgunsprincpiosuni-versalistas surgidos de uma autoridade maior e transcendente, tam-pouco a autoridade do senhor era legitimada por tais princpios. Oseruditosnativistasapresentavamapossibilidadedetalquestionamen-to como antema ao esprito ou cultura japonesa10.

    Na verdade, essa prpria reformulao do conceito de lealdade conti-nha fortes possibilidades de uma larga extenso da lealdade familiarpara alm de ambientes especficos, possivelmente numa direo uni-versalista. De fato, tal extenso sempre ocorreu no interior da coleti-vidadejaponesa,pormaisextensaquefosse.NaChina,anfasenapie-dade filial geralmente no podia ser facilmente estendida alm da es-trutura de parentesco; mas, com a justificativa transcendental relativa-mente forte para tal piedade, especialmente no neoconfucionismo, elapoderia parecer tambm uma base potencial para desafiar estruturas

    de autoridade existentes. Tal possibilidade era menos plausvel noJapo quando se desenvolveu por l, assumiu, como sabido, umadireo restauradora distinta, enfocada no conceito de lealdade.

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    Oeixodessanovaideologiadaidentidadenacionaledaordempolticaque se desenvolveu no perodo Meiji para acompanhar a formulaode Davis (1976), dessa ideologia cvica, ou teologia cvica foi a cons-truodanovaimagemedosimbolismodoimperador.Essaideologia,embora reivindicasse restaurar um sistema imperial antigo, foi basica-mente uma nova construo de longo alcance que combinou, de ma-neira nova, os diferentes componentes dos smbolos do imperador quese desenvolveram na histria japonesa a partir do papel antigo de ofi-ciante em rituais para a alma do arroz (Ohnuki-Tierney, 1991). O sim-

    bolismo do arroz se havia mantido vivel por meio de rituaisfolke de

    cosmologia, mesmo que o sistema imperial no houvesse recuperado opoder que tinha na era antiga e os rituais imperiais se realizassemsomente de modo intermitente.

    Baseando-se nesses fundamentos antigos, a moderna ideologia Meijifez grandes transformaes no smbolo do imperador, como mostrouCarol Gluck (1985)11. Nessa ontologia, a noo dekokutaifoi definida[] como a Cmara em sentido amplo, com parafernlia atualizadacomo a Constituio e, especialmente, [...] com a adorao dos ances-

    trais sendo seu elemento mais significativo (Hirai, 1968:48). YatsukaHozumi, que era um dos principais arquitetos dessa ideologia, cons-truiusuateoriaconstitucionaleestatalemtornodatesedequeocultoda adorao ancestral o princpio bsico de nosso regime nacional, akokutai[...] (id., ibid.:41).

    A promulgao desse programa cultural significou, de forma seme-lhante a processos paralelos na constituio de outros Estados-naesmodernos, um novo conceito de homem, de famlia, de relaes de g-

    nero,deatitudesperanteamulhereocorpohumano12,demundopol-tico e de espao pblico todos fundamentados numa legitimaoclaramente moderna do estado.

    Essa ideologia moderna restauracionista incluiu, pelo menos no co-meo, dois componentes centrais. Como disse Tatsuo Najita:

    Da mesma forma que seu prottipo histrico no fim do perodoTokugawa, o restauracionismo do sculo XX combinou duas percep-

    esdistintasdahistria:oidealismoeumavisopragmticautilitriade poltica e estratgia nacional. Restauracionistas estiveram em al-guns momentos em posies diametralmente opostas, especialmente

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    no que se refere s discutidssimas faces militares: a Faco da ViaImperial (Kodoha), orientada para a ao, e a pragmtica Faco Con-trole (Toseiha). Contudo, eram unificados em sua crena de que os ob-jetivos visados na Restaurao Meiji, em relao manuteno da inte-gridade nacional e da autonomia expansiva (jichi, como era chamadano fim do perodo Tokugawa), e da realizao da justia social dentrodo pas para as pessoas oprimidas, nunca alcanaram a maturidadedentro do governo constitucional (1974:127-128).

    Essa ideologia e esse modo especial de legitimao, que eram o eixoda sociedade japonesa moderna, e suas mltiplas derivaes institu-cionais no emergiram automaticamente como uma continuao na-

    tural da tradio japonesa. Antes, a institucionalizao dessa ideolo-gia foi o resultado de uma longa contenda em resposta aos desafiospostos pelos movimentos populares, pelos intelectuais e pelas in-fluncias externas.

    Embora muitos dos traos especficos das instituies do estado e dasociedade Meiji se desenvolvessem de formaad hoc, seu padro geralexibiu uma lgica distinta. Tal lgica estava fundamentada no progra-ma cultural geral que se cristalizou no perodo e foi disseminado,

    sobretudo, pelas novas elites.

    A institucionalizao desse modo de legitimao se efetuou por meiode uma srie de medidas de controle social tomadas pelo governo, in-cluindo algumas repressivas buscando a supresso, ou pelo menos oenfraquecimento,demovimentospopularesedeorganizaesemani-festaes espontneas da opinio pblica.

    No entanto, o crucial na institucionalizao dessa religio cvica no

    foram somente, talvez nem principalmente, essas medidas repressi-vas. Um aspecto fundamental foi a disseminao consciente da reli-giocvicaentresetoresmaisamplosdapopulao,pelaeducaomo-ral ou cvica nas escolas e pelo estabelecimento de mltiplos rituais,desde os centrais e imperiais at os locais, em que o simbolismo impe-rial era propagado por meio da apresentao pblica do imperador como quando milhares de sacerdotes nacionais foram mandados paraapresentar o imperador a grandes contingentes da populao e criar,assim, um novo consenso nacional.

    A promoo da imagem e do simbolismo imperiais, bem como da dou-trina poltica ligada a eles, comeou j nos primeiros anos do regime

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    Meiji (por exemplo, no dito Imperial sobre a Propagao do GrandeEnsino), mas se cristalizou mais plenamente no Decreto Educacionalde 187913.

    Concomitantemente, essas concepes do Estado japons moderno fo-ram promulgadas em muitos outros editos e decretos, e tambm por li-deranas locais, intelectuais, jornalistas e lideranas polticas, de for-masbemvariadasetambmnasescolas,comcursosdehistriatendoum papel muito importante na disseminao14.

    Essa ideologia ou religio cvica no emergiu imediatamente ou de for-ma muito clara; tampouco, como mostra Carol Gluck (1985), houveidentificao ou comprometimento total por parte de todos os setoresda populao. Era tambm uma ideologia relativamente frouxa emmuitossentidos.Noobstantesuafrouxido,tornou-seaideologiahe-gemnicadominantedogovernoedasociedadeMeiji;etambmnoJa-poTaisho,noqualatamaioriadospontosdevistaoposicionistaseraformulada nos mesmos termos dessa ideologia.

    Mesmo em perodos posteriores, seja no Taisho ou depois da SegundaGuerra Mundial, quando mudanas de longo alcance haviam ocorridona sociedade japonesa e no discurso cultural, algumas das premissas

    bsicas dessa ideologia e conceituao coletiva permaneceram ampla-mente difundidas mesmo que fossem formuladas de outra maneira.A ideologia da kokutaiprovou ser o componente mais persistente danova identidade coletiva japonesa, mesmo depois da perda de seuscomponentes mticos aps a Segunda Guerra Mundial.

    Foram os dois componentes dessa ideologia, a disseminao do conhe-cimento pragmtico e racional novo, frequentemente aprendido

    com modelos estrangeiros, e sua legitimao definitiva em termos res-tauracionistas-nacionais que tambm forneciam, pelo menos no come-o do perodo Meiji, as principais orientaes segundo as quais as eli-teseaburocraciaguiavamosprocessosdemobilizaosocial,dede-senvolvimento econmico e de formao do novo homem e da novamulher japonesa. Contudo, tenses surgiram no prprio ncleo dessaideologia desde o comeo de sua cristalizao, aumentando ao longodo tempo. Assim, embora a construo de seu ncleo fossem as con-cepes mticas ou religiosas do imperador e da comunidade nacional

    baseada em critrios sociais e primordiais, ela tambm apresentava aautoridadedoimperadorcomo,emcertograu,derivadadopovo,mes-mo que no da forma contratual liberal lockeana. Essa ideologia rei-

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    terou a importncia do conhecimento novo, especialmente pragmti-co, e enxergava tal conhecimento como uma base importante do novoregimesemgeralmenteespecificarasformasemquetalconhecimen-to deveria ser relacionado com a viso restauracionista15.

    IX

    A diferena entrekokutaieseitaiera um aspecto central da ideologia edas tenses que se desenvolveram nela. Como diz Duus (s.d.):

    O carter apoltico da instituio imperial foi fortalecido por umadistino feita no discurso poltico entrekokutai(estrutura nacional) eseitai(estrutura poltica) [...]. A kokutaiera vista como absoluta, imut-

    vel,eternaeessencial;a seitai, relativa, transitria, temporria e contin-gente [...]. A nova estrutura constitucional, anunciada como uma d-divaimperialaopovo,fundamentavasualegitimidadenabenevoln-cia imperial. Em linguagem jurdica moderna, a Constituio afirmavaque a soberania se localizava no imperador. Da mesma forma que nacultura poltica tradicional, o imperador no era nem uma figura ac-countablenem responsvel; os outros eramaccountablea ele. Nesse sen-tido, a instituio imperial estava acima da poltica. Contudo, o que

    isso significava exatamente na prtica provocou intenso debate entretericos constitucionais [...]. O imperador ficou distante das disputassobre poder e polticas, e ele nunca se tornou um monarca em exerc-cio, mesmo no grau limitado do imperador alemo16.

    A diferena entre kokutaie seitaiimplicou um conceito em que, parausar a terminologia de Rousseau, a vontade geral estava investida no,ou representada pelo, imperador e naqueles a quem ele delegava suaautoridade, ao passo que a vontade de todos era deixada aos polti-

    cos rotineiros, especialmente aos polticos eleitos.

    Essa diferena dividiu o comportamento poltico em duas esferas mo-rais distintas. Enquanto akokutai(representada pela instituio impe-rial) foi sacralizada, aseitai, a esfera do governo, ou da poltica, mante-ve-se profana e secular. O imperador, identificado com a e simbolizadopelakokutai, permaneceu distante dos conflitos partidrios dentro daDieta Imperial ou entre o gabinete e a Dieta. Deixavam-se s institui-es democrticas representativas as preocupaes cotidianas, profa-

    nas e mundanas. A Dieta no era um frum para se debater ideais ouvalores ltimos; antes, era um mercado poltico no qual polticas einteresses eram negociados17.

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    Desse modo, o lugar do imperador no Meiji e no posterior sistema ja-pons moderno era um tanto ambguo. Ele estava, assim como seuspredecessores, fora da poltica, simbolizando a kokutai; mas tambmconstitua o piv dos sistemas polticos, pois a maioria dos atores pol-ticos respondia a ele e era ele quem delegava posies. Esses papisambguos do imperador criavam um vcuo no processo decisrio e naaccountability pelas decises possibilitando burocracia e ao Exrcitoum papel especial e crucial no processo poltico.

    X

    Essa distinta religio ou ideologia cvica, com sua forte nfase nakoku-

    tai simbolizada pelo imperador, em que a comunidade nacional eraconstruda de forma a englobar todas as reas da vida, teve repercus-ses muito importantes e um tanto paradoxais na estruturao daarena poltica e nas relaes entre estado e sociedade civil. As repercus-ses mais importantes dessa religio cvica distinta e das diferenasentrekokutaieseitaiforam: fuso entre estado e sociedade civil na co-munidade nacional mais ampla; quase total eliminao ou negao dosocial como arena autnoma; desenvolvimento concomitante deuma concepo relativamente fraca do estado como uma unidade on-tolgica distinta e uma concepo ainda mais fraca de sociedade(civil); quase total ausncia de uma arena pblica autnoma indepen-dente do estado; e uma desconfiana da poltica.

    Assim, um dos aspectos mais paradoxais dessa religio civil era o fatode que nenhum conceito de estado distinto da comunidade nacionalencarnada na e simbolizada pela figura do imperador se desenvol-veu completamente. Foi o conceito de comunidade nacional, dekoku-

    tai, englobando atividades polticas e administrativas, que predomi-nou18. Simultaneamente, desenvolveu-se um estado caracterizado poruma forte tendncia a enfatizar a orientao em vez da regulao dire-taepelapenetraodaperiferiapelocentro.AvisodoEstadojaponscomo fraco foi proposta por Daniel Okimoto, que tambm sugeriuque o poder no Japo no concebido como uma entidade indepen-dente a ser aplicada em diferentes arenas da vida de acordo com crit-rios objetivos. Antes, enraizado numa estrutura de relacionamen-tos interdependentes que operam na base de aes dispersas e na coor-

    denao para cima e para baixo de redes hierrquicas verticais, emvez de uma base coercitiva vinda de cima. Ele se baseia numa sintoniafina, na construo do consenso e na adaptao contnua. Consequen-

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    temente,ogovernopodesercomparadoaumregentedeorquestraedesenvolveu-se uma tendncia acentuada para usar um termo pro-posto por Koschmann (1978) ao governo suave (soft rule), o gover-no de uma autoridade no fundamentada em alguma viso transcen-dental e por isso tambm sem confrontar a sociedade em termos de talviso.

    O fraco desenvolvimento da sociedade civil autnoma est estrita-mente relacionado a isso, embora seja desnecessrio dizer que elemen-tos dessa sociedade, especialmente os componentes estruturais e orga-nizacionais (como organizaes diferentes), no tm faltado. No foipermitido a esses numerosos ncleos organizacionais se desenvolve-

    remnumasociedadecivilplena,comumespaopblicoautnomoex-tenso e acesso independente ao centro poltico. Espao pblico e dis-cursopblicoforam,emgrandemedida,monopolizadospelogovernoe pela burocracia como representantes da comunidade nacional legiti-mada pelo imperador (Silberman e Harootunian, 1999).

    Um dos corolrios mais interessantes desse enraizamento da arena po-lticaedasociedade(civil)nacomunidadegeralfoiafraquezanaver-dade, ausncia , em perodos histricos (feudais) e modernos (no

    comeo), de concepes de direitos legais autnomos e instituies so-beranas representativas autnomas. Contudo, no Japo, ao contrriode muitos sistemas absolutistas ou totalitrios, a ausncia dessas insti-tuies no estava relacionada com uma distino simblica forte docentro, do estado, ou com grandes esforos pelo centro de controlar etambmreestruturaremobilizaraperiferiadeacordocomumanovaviso destrutiva dos valores prevalecentes at aquele momento naperiferia.

    Tal fuso entre estado e sociedade civil foi muito indicativa da grandedesconfiana da poltica transparente daseitai, como potencialmentesubversiva da vontade geral, e fez surgir a apropriao da regulaodaarenapolticapelocentro,oqueopsaparentementealmdapolti-ca e o legitimou em termos do novo conhecimento objetivo, usadopara servir comunidade19.

    Por conseguinte, no Japo moderno, do perodo Meiji em diante, ten-tou-se criar um sistema poltico moderno capaz de mobilizar os recur-

    sos necessrios para reivindicar seu lugar no cenrio internacional,masbaseadonaretiradadequalquernfaseempolticaeemparticipa-o poltica.

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    XI

    tambm a diferena entrekokutai eseitai e a fuso entre estado, soci-

    edade civil e a comunidade nacional, e a consequente desconfiana dapoltica que explica o lugar especial da burocracia no cenrio polticojapons, bem como o fato de que essa burocracia tendeu a aproximar otipo ideal de burocracia racional-legal. Dada a desconfiana da polti-ca, a burocracia pde, com relativa facilidade, apropriar para si, com alegitimao do imperador, a representao dakokutai, a vontade ge-ral sem a mcula da considerao pelaseitai. A burocracia legitimoutal apropriao acima de tudo por se retratar como a combinao das

    virtudes confuciana e samurai dos verdadeiros governantes. Comono poderia mais ser baseada em statushereditrio, a educao e onovo conhecimento passaram a ser a base. Tais conhecimento e educa-o, no entanto, refinados por meio das emergentes universidades deelite, tambm eram vistos como sendo de qualidade moral dinmica,pelo fato de representarem e servirem vontade geral.

    A estrutura da burocracia em si que aparentemente se tornou exem-

    plo perfeito de uma burocracia racional-legal weberiana totalmenteautnoma e livre de consideraes polticas emergiu, como mostraSilberman(1993),dascontendasentreosvriosgruposdeliderananocomeo da era Meiji. O autor afirma que:

    Disso emergiu uma estrutura burocrtica que possua todas as caracte-rsticas da estrutura organizacional racional-legal de Weber. Indefini-

    o sobre suas posies levou os lderes Meiji a, cada vez mais, formu-lar e perseguir estratgias que lhes dariam controle inconteste sobre as

    tomadas de deciso. Nisso eles foram extremamente bem-sucedidos[]. A burocracia civil havia emergido at 1900 como instrumento pri-mrio de tomada de decises e estrutura primria de seleo da lide-

    rana poltica. O desafio dos partidos continuou, mas estes eram toisolados e, com o passar do tempo, to subordinados ao poder burocr-

    tico que desapareceram aos poucos e se tornaram fantasmas de seusprogenitores Meiji (ibid.:221).

    Basicamente, apenas o Exrcito podia competir (e de fato competiu) comos diferentes escales da burocracia, reivindicando uma relao diretacomoimperadoreumaposioautnomaeespecialnaarenapoltica.

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    XII

    Essas premissas bsicas da moderna ordem poltica japonesa e suasimplicaes institucionais tambm explicam algumas das caractersti-cas especficas dos movimentos de protesto que se desenvolveram no

    Japo: os temas bsicos anunciados por esses movimentos e a forma desua incorporao no sistema poltico; simultaneamente, as caracters-ticas distintas do sistema poltico japons moderno; o padro de regi-mes constitucionais que l se desenvolveram, seus pontos de vulnera-

    bilidade e seus modos de transformao e colapso.

    Assim como o Estado-nao introduzido pela Meiji Ishin (a Restaura-o de 1868) e os diferentes regimes que se desenvolveram no Japoevidenciaram uma combinao singular de semelhanas e diferenasem relao Europa Ocidental, isso tambm pode ser dito dos movi-mentos de protesto que surgiram na estrutura desses regimes.

    Esses movimentos estabeleceram com a cristalizao dessa estruturana parte final do perodo Meiji, no perodo Taisho e no comeo do pe-rodo Showa mudanas econmicas e sociais de longo alcance na ur-

    banizao e na industrializao ocorridas. Esses processos abriram o

    regime oligrquico Meiji, originando uma deslocao crescenteno campo e a emergncia de um proletariado urbano e de uma classeeducada e profissional mais diversificada, bem como uma nfase cres-cente no consumismo e uma concomitante conscincia crescente dascontradies internas da ideologia do Estado Meiji. Por outro lado,tudo isso fez com que inmeros movimentos de protesto surgissem,aparentementemuitoparecidoscomaquelesquesedesenvolveramnaEuropa, como os movimentos de Direitos do Cidado no comeo doperodoMeiji,asrevoltasdoarrozeocomeodomovimentodostra-

    balhadores.

    No perodo Taisho, novos movimentos sociais de protesto surgiram (aRevolta do Parque Hibiya contra o Tratado de Portsmouth em 1905,as Revoltas do Arroz de 1918), e novas organizaes econmicas e pro-fissionais, sindicatos, alm de novos grupos intelectuais, desafiaram aestrutura hegemnica restrita das instituies dominantes. Nesse pe-rodo, pela primeira vez na histria japonesa moderna, os partidosaparentemente se tornaram a fora poltica predominante, e a emer-

    gncia de um gabinete composto de membros desses partidos contri-buiu, em certa medida, para a culminao desses processos desafiado-res. Foi tambm um perodo em que ideais liberais e democrticos

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    eram muito populares internacionalmente, e parecia que o Japo esta-va indo numa direo um tanto liberal-democrtica, mesmo que mui-tasdessasmudanasnaarenapolticapudessemservistascomoacon-tinuao de acontecimentos anteriores. Todavia, apesar desse desen-volvimento aparentemente natural ou orgnico em direo a um regi-me de partidos constitucionais, tal regime no se cristalizou totalmen-te no Japo durante o comeo do perodo Showa e no perodo Taisho, efoi derrubado pelo regime militar dos anos 1930.

    Foi, acima de tudo, no perodo depois da Segunda Guerra Mundial,dada a democratizao do regime, que inmeros movimentos de pro-testo realmente emergiram plenamente de forma clara. Nesse perodo,

    os vrios movimentos de oposio especialmente os de esquerda, oscomunistas e os socialistas, que eram ilegais nos perodos anteriores foram plenamente legitimados e poderiam participar abertamente doprocesso poltico. Alm disso, emergiram no setor pblico relaes re-lativamente fortes entre polticos socialistas e intelectuais e as organi-zaes da classe trabalhadora. Tambm houve um aumento de cons-cincia de classe entre amplos setores dos trabalhadores industriais, emovimentos polticos classistas surgiram, com alguns sindicatos de-sempenhando um papel importante neles20. O desenvolvimento mais

    intensivodetaismovimentosdeprotestoocorreunofimdosanos1940e no incio dos anos 1950. Tambm foi nesse perodo que muitos dessesmovimentos especialmente os trabalhistas se tornaram radicais erelativamente difundidos, de forma semelhante aos movimentos tra-

    balhistas e socialistas da Europa. Nesse mesmo perodo, os partidostrabalhistas e socialistas foram legalizados, sinalizando pelo menos apossibilidade de uma ordem social-democrtica, seno socialista, no

    Japo.

    Esses movimentos e partidos os partidos marxista e socialista, e umpartido comunista um tanto radical eram mais proeminentes do queseus correspondentes nos Estados Unidos e, em contraste com os nor-te-americanos, eram capazes de comandar durante o perodo ps--guerra em torno de um tero dos votos (36% em 1957, 32% em 1992)(Livingston, Moore e Oldfather, 1973). Contudo, foi somente nas elei-esde199321 que o partido socialista emergiu como uma fora vigoro-sa e potencialmente inovadora, aparentemente se movendo numa di-

    reo social-democrtica semelhante aos acontecimentos contempor-neos na Europa daquele perodo. Em comparao, brotou no Japo umtipo especial de movimento religioso com fortes razes no perodo

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    Tokugawa as chamadas Novas Religies, que tiveram um papel maiscentral do que os movimentos religiosos na Europa.

    Simultaneamente, durante os anos 1960 e 1970, surgiram nos cenrios

    local e, em certa medida, nacional muitos outros movimentos inme-ros movimentos ecolgicos e de cidadania, movimentos feministas evrios movimentos de oposio local. Tais movimentos continuam a

    brotar e tm se tornado parte integral do cenrio poltico japons.Alguns eram tambm ligados a partidos polticos de oposio quemuitas vezes tinham fora num nvel local22. No fim dos anos 1960 e nocomeo dos anos 1970, a onda mundial de revolta estudantil se espa-lhou pelo Japo tambm, fazendo surgir um radicalismo estudantil

    profundo23

    .Entre esses movimentos se estabeleceu uma ampla gama de atividadesdeprotesto,muitosdiscursossociaisaltamentecrticoseatividadesar-tsticas por exemplo, o novo teatro proletrio, que surgiu especial-mente no perodo ps-guerra, e muitos filmes crticos. Em muitos ca-sos, intelectuais participaram de movimentos ou de manifestaes deprotesto: aquelas relacionadas ao Tratado de Paz e, muito tempo de-pois, quase no fim do perodo Showa, com a oposio ao fechamento

    daUniversidadeToshiba.OutroexemplofoiocomportamentodaUni-versidade Meiji Gakuin por ocasio da morte do imperador Showa,quandocomeouumasriedediscussesedepalestrasabertassobreosistema do imperador e a universidade no colocou a bandeira meia-haste24.

    Em muitos desses movimentos talvez especialmente entre os estu-dantes radicais e, mais tarde, entre os grupos terroristas extremos ,surgiu uma tendncia crescente a confrontos, s vezes violentos, com

    as autoridades e ao litgio, minando a imagem de uma sociedade base-ada num consenso harmonioso. Tais temas confrontacionistas geral-mente se exprimiam em termos da negao da legitimidade moral dasautoridades e do abandono da confiana que lhes fora depositada.

    XIII

    Assim,osmovimentosdeprotestoquesedesenvolveramnoJapomo-derno, sob o impacto dos vrios processos de modernizao, eram, na

    aparncia, em larga medida, muito semelhantes queles que se desen-volveram na Europa. Isso vlido, particularmente, para os movimen-tos pelos direitos dos cidados, bem como para os vrios movimentos

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    trabalhistasesocialistas,afimdeaumentaraparticipaonaarenapo-ltica. Movimentos nacionais ou tnicos eram de menor importncia,sobretudoemvirtudedosucessorelativodoEstadoMeijiemconstruirsobre os desenvolvimentos anteriores, da poca dos Tokugawa, parapromover e institucionalizar o conceito de nao japonesa como umacoletividade nacional, construda em termos primordiais e facilitadapela homogeneidade tnica relativa na verdade, apenas relativa deamplos setores da sociedade japonesa.

    No entanto, por maiores que fossem as semelhanas entre os principaismovimentos sociais do Japo e da Europa, algumas diferenas impor-tantes surgiram. Tais diferenas podem ser identificadas tanto nos ob-

    jetivos dos movimentos quanto no impacto sobre a sociedade mais am-pla. Ao contrrio da Europa, pelo menos em certa medida, esses movi-mentos no foram capazes de obter qualquer papel de destaque nouniversopolticoemtermosdereestruturaodaspremissasdocentroe em termos de princpios universalistas ou transcendentais, conside-rando a maneira com que os movimentos socialistas na Europa foramcapazes de impregnar o centro com seus smbolos, influenciar as polti-cas diretamente e participar na formulao e na implementao de po-lticas. Na verdade, muitos lderes dos movimentos japoneses expuse-ram tais princpios, mas no foram muito bem-sucedidos na dissemi-nao em setores mais amplos e independentes da sociedade.

    Portanto, os movimentos socialista e comunista no foram capazesnem de formar um governo, nem de, depois de 1955, pelo menos deleparticipar e, sobretudo, influenciar as polticas. Em meados dos anos1950,osmovimentossocialistaetrabalhistasedividiram,eseuncleo,o PartidoSocialista, perdeu seu mpeto original e aparentemente se do-

    mesticou no sistema poltico japons em evoluo. Esses movimentos especialmente o Partido Socialista no minaram, pelo menos at1993, a hegemonia do Partido Liberal Democrtico (PLD); e, mesmoem 1993, o PLD perdeu sua maioria pela desero de muitos gruposque o compunham, e no pelo desafio dos socialistas.

    claroquearepressoteveumpapelimportantenafaltadesucesso.Arepresso, contudo, no era exclusividade do Estado japons; podiaser encontrada em todos os regimes capitalistas constitucionais mo-

    dernos. O que era mais caracterstico do Japo era a dificuldade demuitos lderes em mobilizar apoio para a confrontao de princpios.Tampouco foram os movimentos socialistas no Japo capazes de mu-

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    dar as formas de tomada de deciso e de discurso poltico pblico oude fazer surgir uma sociedade civil e uma arena pblica mais autno-masmesmoqueelestenhamalargadoombitododiscursopblico.

    Noquetangesfraquezasrelativasdoconfrontodiretocomocentro,amaioria desses movimentos foi bem-sucedida no s em obter muitosde seus objetivos mais concretos, mas, sobretudo, na criao de espa-os sociais e culturais novos espaos para o discurso pblico, novostipos de associao, de estilos de vida (por exemplo, a presena dasmulheres em muitos setores de classe mdia e classe mdia alta). Para-lelamente, foram bem-sucedidos como ocorreu em perodos anterio-res em relao ao impacto do confucionismo e do budismo no Japo

    na construo de espaos de ao social e de criatividade cultural emqueasregrashegemnicasnopredominavamenosquaisnovostiposde discurso sofisticado e novos nveis de reflexo crtica puderam sur-gir. Nesses espaos de vida, muitos dos temas aparentemente reprimi-dos, rebeldes e subversivos, como igualdade e vida em comum, tmconseguido certa expresso, e muitos estilos de vida novos e diferen-tes, com potencialidades inovadoras, surgiram, embora todos essesespaos fossem segregados do centro num grau muito maior do queem outros regimes constitucionais modernos.

    Um dos exemplos mais fascinantes desse processo o surgimento denovas religies. Estas brotaram a partir do final do perodo Tokugawa,foram, em certa medida, suprimidas no comeo do perodo Meiji e du-rante o regime militar, e prosperaram novamente depois da SegundaGuerra Mundial. Embora muitos desses movimentos, especialmen-te as Novas Religies, evidenciassem tendncias milenaristas muitofortes, as orientaes utpicas eram bastante fracas, ou mesmo inexis-

    tentes. Mesmo quando esses movimentos se engajavam na poltica, amaioria deles raramente desafiava a ordem existente. Tinham orienta-es intramundanas muito fortes, mas sem elaborar orientaes crti-cas enraizadas em vises transcendentais e universalistas ou em prin-cpios que transcendessem a ordem existente.

    Contudo, ao mesmo tempo, todos construram novos espaos, nosquais novos tipos de atividade e discursos e muitos temas potencial-mente subversivos puderam se desenvolver, permitindo a seus mem-

    bros escapar das restries da ordem existente e desenvolver estilosde vida prprios. Por todos esses perodos, novos tipos de discurso e deconscinciasocialsurgiramdeformacontnua,incluindotemaspoten-

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    cialmente subversivos proclamados em nome de uma viso antiestatalautnoma. Alguns desses discursos poderiam fundir com as pers-pectivas romnticas dos folcloristas, e outros tomaram uma direomais racional ou humanista.

    Alm da criao de tais espaos, esses movimentos ampliaram grande-mente o escopo da agenda poltica e do discurso poltico no Japo.Mesmo quando acabaram os perodos de abertura seja nas eras Meijiou Taisho, seja em meados dos anos 1950 e muitos temas e demandasforam suprimidos da arena pblica de discusso, isso no significouqueentraramemesquecimentototal.Odestinodevriostemaspropa-gados pelos liberais Taisho fornece um bom exemplo para nossa dis-

    cusso. Esses temas no foram totalmente esquecidos, pelo contrrio.Tiveram consequncia e impacto de longo alcance, como podemos verem Sharon Nolte (1987), em seu estudo sobre o liberalismo no Japo, e,mais plenamente ainda, numa coleo de estudos organizada porThomas Rimer (1990) sobre os intelectuais Taisho. Temas como libera-lismo, liberdade de imprensa, direitos da mulher, problemas sociais eafins, e uma nfase geral, mesmo que difusa, em igualdade permane-ceram na agenda pblica de uma forma ou de outra, no sendo removi-dos completamente do discurso poltico, literrio ou ideolgico

    (Nolte, 1987). Antes, foram discutidos e debatidos oralmente e em pu-blicaes especializadas nos grupos intelectuais, bem como nas publi-caesmaisgerais.Pormeiodelas,muitosespaosabrangentesdedis-curso novo foram gerados na sociedade japonesa, e muitos desses te-mas foram incorporados na ideologia predominante, cujos portadoresdiziam que haviam solucionado as questes levantadas por esses te-mas na maneira japonesa correta.

    XIVAssim,oquadrodoimpactodosmovimentossociaisnoJapopodeservisto como um copo meio cheio ou meio vazio, de acordo com a pers-pectiva de cada um. De certa forma, isso vale para movimentos de pro-testo em todas as sociedades, especialmente as modernas, se bem queos contornos concretos da percepo variam enormemente. Os contor-nos especficos que surgiram no Japo se caracterizavam por um dis-tinto processo duplo de desenvolvimento e pelo impacto dos proces-

    sos de mudana e dos movimentos de protesto. Esta caracterstica du-pla a autorrealizao especfica dela, o eptome desses processos secaracterizou, por um lado, pelo impacto de longo prazo dos processos

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    de mudana e abertura s novas influncias em todo o cenrio culturale social. Tais processos geraram novos tipos de discurso e fizeram sur-girmuitossetoressegregadosdeaoeumareflexividadecrescente,em que novos tipos de atividade cultural e social prosperaram, e aconscincia de muitas possibilidades culturais e sociais alternativasaumentou. Os vrios temas disseminados por tais movimentos e pelasrespostas pblicas a eles, e frequentemente sob o impacto de foras ex-ternas, foram em muitos casos incorporados ao discurso pblico; dis-cursos novos e mais sofisticados surgiram e muitas demandas concre-tas foram aceitas, sobretudo novos espaos sociais foram frequente-mente criados, nos quais novos padres de atividades econmicas esociais, tipos de criatividade cultural e padres de discurso puderam

    emergir.

    Por outro lado, os movimentos no foram capazes, apesar de seu im-pacto de longo alcance, de obter a institucionalizao plena da maioriados temas amplos que disseminaram, como as demandas pelo reco-nhecimento do acesso totalmente autnomo arena poltica ou a gene-ralizaodesuasqueixasconcretasemquestesmaisamplasouemte-mas mais gerais, para transformar radicalmente as premissas bsicasdo sistema poltico. Por mais bem-sucedidos que fossem em alguns de

    seus objetivos concretos, ou em algumas retificaes por parte dasautoridades, e na criao de espaos para novas atividades sociais eculturais,essesmovimentosquepareciamarticularalgunstemasideo-lgicosmaisamplos,comoocomunalismoouoigualitarismo,notmsidocapazes,geralmente,delegitimaressestemasnodiscursopolticocentral ou incorpor-los aos smbolos do centro. Esses temas continu-am sendo relegados ao repertrio de orientaes de protesto que nuncase institucionalizaram plenamente. Tambm no conseguiram criar

    um espao geral, aberto e pblico independente do centro e capaz deinfluenci-lo diretamente, por meio da ao poltica autnoma.

    As vrias situaes de confronto em que os movimentos tiveram visi-bilidade no levaram (ou levaram apenas breve e intermitentemente) institucionalizao de novas formas de resoluo de conflito porexemplo, mais legais, formais ou universalistas ou reformulaodas premissas bsicas da ordem social e poltica, mesmo que eles te-nham providenciado a reinterpretao e a reconstruo de muitas des-

    sas premissas. As muitas aberturas que se desenvolveram de forma re-lativamente rpida nessas situaes foram fechadas embora de v-rias maneiras por coalizes ou contracoalizes de elites, grupos in-

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    fluentes e mesmo contraelites, e reestruturadas de acordo com algumaverso e recombinao dos smbolos e critrios primordiais e sagradosou naturais, alm das orientaes enraizadas em estruturas solidrias,as quais constrangeram tais evolues.

    Concomitantemente, a forma de resoluo de conflito que emergiu detais situaes geralmente restabeleceu alguns dos princpios verticaishierrquicos em novas configuraes organizacionais e institucionais,ampliando o escopo dessas redes e incorporando novos elementos aossignificados ideolgicos subjacentes. Esses novos significados geral-menteseimpregnaramdealgunsdosmuitostemasdeprotestocomoos temas milenaristas e comunitrios que antes apareciam em rebe-

    lies de camponeses ou em diferentes movimentos de protesto, comoos movimentos pelos direitos dos cidados , mas foram ambientadosdentro da estrutura dos contratos sociais hegemnicos centrais eprevalecentes.Oscontratosdemaissucessoerameficazesemrelaoamuitas demandas concretas, mas no em relao s orientaes gerais

    baseadas em princpios.

    As Novas Religies tambm so de especial interesse aqui. Por umlado foram impregnadas com temas e orientaes muito comunais e,

    em menor medida, igualitrios; por outro, no tentaram transcender arealidade seu intramundanismo no se enraizava numa viso trans-cendental em confronto com a realidade , ou seja, no serviam comoponto de partida para reforma ou transformao radical. Portanto,nessas religies, como na maioria dos outros movimentos, os temasmais radicalmente democrticos, igualitrios ou comunitrios eramfrequentemente cercados pelas estruturas hegemnicas e geralmen-te no tinham permisso para desafiar diretamente as premissas ou ossmbolos dessas estruturas. Quando se faziam algumas tentativas,

    como descreve Norma Field (1991) a respeito dos vrios debates sobreo papel do imperador Showa na Segunda Guerra Mundial, elas eramreprimidas ou desconsideradas.

    Em outras palavras, esses movimentos no fizeram surgir uma socie-dade civil que promovesse seus prprios critrios de legitimao, per-measseoestadoemnomedeprincpiosquetranscendessemtantooes-tado quanto a comunidade nacional e em que diferentes grupos mino-ritrios pudessem fundamentar suas demandas por incluso. O exem-

    plo mais marcante dessa limitao e potencial e muitas vezes repres-so pode ser visto nas atitudes perante aqueles que esto fora dos li-mites da comunidade nacional pura: os coreanos e os burakumin.

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    o outro lado da criao contnua de novos espaos; o lado enfatizadopor aqueles que enxergam a sociedade japonesa moderna e contempo-rnea como um sistema imobilizado, repressivo e manipulado.

    AS RAZES HISTRICAS DO SISTEMA JAPONS MODERNO: A MEIJI ISHINCOMO UMA REVOLUO RESTAURADORA

    XV

    As caractersticas especficas do sistema poltico japons moderno de-monstram a habilidade dos japoneses em domesticar as tendnciasrevolucionrias transcendentais e universalistas inerentes ao progra-

    ma cultural e poltico que surgiu inicialmente na Europa, por meio desua transformao em orientaes mais particularistas e imanentes.

    Esses conceitos bsicos de modernidade e as premissas da ordem so-cial moderna, o padro de legitimao da ordem poltica e as concep-es de conscincia coletiva analisadas anteriormente foram cristali-zados na Meiji Ishin. Essa Restaurao geralmente comparada sGrandes Revolues, com as quais compartilhou algumas caractersti-casbsicas,masdasquaissediferenciouemalgunsaspectoscruciais.

    Como, em nossa anlise, enfatizamos a relao estreita entre as Gran-des Revolues, por um lado, e o programa cultural e poltico japonsmoderno, por outro, de interesse examinar a relao entre o progra-ma distinto de modernidade e as caractersticas bsicas da Meiji Ishinque as distingue das Grandes Revolues apesar de grandes seme-lhanas entre elas.

    As causas bsicas, de longo alcance, que levaram queda do regime

    Tokugawa foram muito parecidas com aquelas das Grandes Revolu-es. As mais importantes foram: a desintegrao do velho modelo depoltica econmica, por meio do aparecimento de novas foras econ-micas25, e o consequente enfraquecimento das bases de controle dosgrupos governantes; a propagao da educao e a crescente mercanti-lizao de amplos setores da economia dois processos que atraves-sam os diferentes domnios; a deteriorao da situao econmica dossamurais inferiores e de amplos setores do campesinato; e a melhorada situao econmica dos comerciantes e de alguns grupos campone-

    ses. Por ltimo, mas no menos importante, havia as lutas internas naelite central em vrios grupos samurais no bakufue nos domnios.Nas ltimas dcadas do regime Tokugawa, assim como nos regimes

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    absolutistas da Europa, surgiram novos tipos de discurso intelectuale ideolgico que puseram em questo muitas das premissas bsicasda ideologia Tokugawa. Todos esses processos constituram um pa-no de fundo muito importante para os movimentos que derrubaram osbakufuTokugawa.

    A Meiji Ishin tambm compartilhou algumas caractersticas importan-tes com as Grandes Revolues em termos de seus resultados. Emcomum, ela deps um governante tradicional no caso, oshogun emudou totalmente a composio da classe governante. Alm disso, osefeitos institucionais da Restaurao Meiji, em termos de moderniza-oedemudanaestrutural,sofacilmentecomparveisaosdasrevo-

    lues ocidentais. No Japo, ao contrrio das revolues americanasou europeias iniciais, esses processos foram, em larga medida, resulta-do de polticas intencionais. De vrias maneiras, os processos de mo-dernizao eram mais rpidos e intensivos do que os processos pa-ralelosemmuitospaseseuropeus,comotambmaorientaointerna-cional era muito forte ou seja, uma orientao que visava alcanaruma posio independente e possivelmente destacada na nova ordeminternacional dominada por interesses coloniais, econmicos e polti-

    cos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos.

    Semelhantemente, a Meiji Ishin introduziu uma nova forma de legiti-maodosistemapoltico,mesmoqueatenhaapresentadocomoares-tauraodeumaformaantigaetradicional,eatenhalegitimadonumacombinao de conceitos restauradores e de conhecimentos novos epragmticos. Alm do mais, assim como nas Grandes Revolues, aMeijiIshinintroduziunosumanovaformadelegitimaomastam-

    bm um novo essencialmente moderno programa cultural geralque englobou a maioria das reas da vida. Este constituiu, de fato, umamudana total na sociedade japonesa26. Era, na verdade, um programamoderno, mesmo que de vrias maneiras cruciais se tenha diferencia-do do programa cultural da modernidade no Ocidente.

    Logo no comeo, a Meiji Ishin diferiu em alguns aspectos cruciais dasrevolues europeia e norte-americana (e, mais para frente, russa e chi-nesa). A primeira diferena se manifesta, claro, no prprio nome; o

    termo Ishin talvez seja mais prximo em significado de renovaoou inclinao para uma nova direo do que simplesmente Restaura-o, como geralmente traduzido na literatura ocidental.

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    O discurso que surgiu no final do perodo Tokugawa, durante a Ishin eno Estado Meiji continha vrios elementos que podem ser encontradosprovavelmente em todos os programas de modernidade. Dois dessescomponentes (potencialmente contraditrios) eram a orientao maispragmtica de formao do estado e os temas sociais mais comuns eigualitrios,temasdejustiasocialedeparticipao.Noentanto,afor-ma como essas tenses se desenvolveram ideolgica e institucional-mente era muito diferente no regime Meiji, em comparao com osregimes ps-revolucionrios em sociedades surgidas das civilizaesaxiais.

    EsseprogramadiferiuenormementedaquelesdamaioriadasGrandes

    Revolues. O ponto crucial da diferena estava nas razes axiais e noaxiais, respectivamente, das Grandes Revolues e da Meiji Ishin. Aideologia desta era, de certo modo, o espelho invertido daquela dasGrandes Revolues de certa maneira, no menos radical e, em ter-mos de polticas institucionais, possivelmente mais radical. O novoprograma cultural, bem como a cosmologia e a ontologia nele implica-das, foi proclamado como a renovao de um sistema arcaico que defatonuncaexistira,enocomoumarevoluovisandomudaraordemsocial e poltica para reconstruir totalmente o estado e a sociedade

    numa direo universalista inteiramente nova. As orientaes utpi-cas, direcionadas para o futuro e enraizadas numa viso universalis-ta-transcendental,erammuitofracasouquaseinexistentes,emborate-masrestauradoresmilenaristasfossemproeminentesemdiferentesse-tores dos revoltosos antes e durante a Restaurao.

    Simultaneamente, na Meiji Ishin, no se estabeleceu, ao contrrio dasGrandes Revolues da Europa, dos Estados Unidos, da Rssia e daChina, uma ideologia universalista, transcendental e missionria ou

    quaisquer componentes dessa ideologia de classe esses elementostambm eram muito fracos nas rebelies camponesas e nos movimen-tos de protesto do perodo Tokugawa. Alguns elementos de uma mis-socivilizatriauniversalsurgiramnofimdoperodoMeiji,empostu-ras diante da Coreia e da China, mas no implicaram a concepo da-quelas sociedades como parte de um universo civilizatrio geral juntocom a sociedade japonesa. AMeiji Ishin se orientava para dentro, parao povo japons; seu objetivo era a revitalizao da nao japonesa, defaz-la capaz de conquistar seu lugar no mundo moderno, mas no ti-

    nha a pretenso de salvar o mundo inteiro ou a humanidade emtermos de uma nova viso utpica, universalista e orientada para o fu-turo. Muitos dos lderes de grupos ativos durante a Restaurao enfati-

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    zaram a importncia de aprender e de espalhar o conhecimento uni-versal, mas bem poucos traduziram isso em princpios de ao polticageral, a fim de reconstruir a coletividade e o governo japoneses, e essespoucos logo perderam espao no jogo. De modo semelhante, o simbo-lismo social explcito especialmente o simbolismo de classe estavaquase totalmente ausente e certamente no incorporado aos principaissmbolos do regime novo, nem mesmo em relao aos temas restaura-cionistas semiutpicos, ou utpicos invertidos.

    O programa cultural disseminado na Meiji Ishin e mais tarde no Esta-do Meiji consistiu numa mistura de orientaes pragmticas ques-to de adaptao ao novo ambiente internacional e de fortes compo-

    nentes ou orientaes restauracionistas. Era uma combinao de visorestauracionista e nativista com o que se pode chamar de pr-requisi-tos funcionais da sociedade moderna, como eficcia, realizao eigualdade. Esses temas posteriores eram, de fato, enfatizados muitofortemente, mas, sobretudo, como Sonoda (1990) mostrou, em termosde sua contribuio funcional para a organizao da sociedade moder-na. Segundo o autor,

    o carter de igualdade social expresso nessas tendncias era, claro,

    bem diferente do igualitarismo europeu. Igualdade, nesse contextohistrico, significava que quem tivesse a habilidade de desempenharas obrigaes especializadas do samurai poderia ter uma chanceigual de faz-la. Inversamente, todo o povo japons deveria ter obri-gaes ou funes iguais em relao ao Estado, que antes havia sidoocupado exclusivamente pelo estrato samurai [...]. Gostaramos dechamar esse tipo de igualdade social igualitarismo funcionalista,porque se caracterizava pela exigncia igual de todas as pessoas emsuas obrigaes ou funes perante o Estado.

    O igualitarismo funcionalista no era o reconhecimento de direitos hu-manos iguais, como uma ideologia poltica que se originou na Euro-pa e teve papel importante na histria europeia. Antes, foi resultadono intencional da minuciosa busca da praticidade em servio ao Esta-do por parte do samurai (ibid.:101).

    Somente entre pequenos grupos de intelectuais que se desenvolveuuma tendncia para fundamentar esses pr-requisitos funcionais em

    orientaes transcendentais ou metafsicas baseadas em princpios,mas no conseguiram mudar as premissas e as orientaes hegemni-cas. A mensagem propagada pela Restaurao Meiji foi orientada re-

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    novao da nao japonesa ela praticamente no tinha dimensesuniversalistas ou missionrias. Durante a Ishin, e especialmente de-pois da Restaurao, inmeros acadmicos individuais se engajaramna busca pelo conhecimento do exterior e disseminaram vrias ideiasnovas no pas, incluindo algumas fortemente universalistas, mas, emltima anlise, era a chamada oligarquia Meiji, composta dos lderesdas diferentes faces rebeldes na Restaurao, que modelou o regimeMeiji.

    JAPO, EUROPA E ESTADOS UNIDOS ALGUMAS OBSERVAES FINAISSOBRE A MODERNIDADE JAPONESA E ALGUMAS INDICAESCOMPARATIVAS PRELIMINARES

    XVI

    Foram as caractersticas da Meiji Ishin listadas anteriormente que fize-ram surgir traos distintos da ordem japonesa moderna; especial-mente a combinao dessas caractersticas que torna a designaoRestaurao revolucionria, ou Renovao revolucionria, a maisapropriada para descrever a Meiji Ishin. Por buscar um novo tipo de

    sociedade, um novo programa cultural moderno, A Meiji Ishin consti-tua verdadeiramente uma transformao revolucionria, mais do queuma mera mudana violenta de regime ou de acontecimento poltico.A Meiji Ishin forneceu uma viso totalmente nova de sociedade. Con-tudo, o programa cultural que gradualmente se cristalizou na Ishin sobretudo no regime do Estado Meiji a distingue das Grandes Revo-lues e dos programas culturais de modernidade que se propagarampor meio delas.

    Afortetendnciaafundiracomunidadenacional,oestadoeasocieda-de teve vrias repercusses na estruturao das regras bsicas da arenapoltica, sendo a mais importante o estabelecimento de um conceitofraco do estado como diferente da comunidade nacional mais ampla egeral (o nacional sendo definido em termos sagrados, naturais e pri-mordiais); em segundo lugar, de um estado societrio caracterizadopor forte tendncia a enfatizar a orientao em vez da regulao diretaepelapenetraodaperiferiapelocentro;emterceiro,deumasocieda-

    de civil autnoma fracamente estabelecida, embora seja desnecessriodizer que elementos desta, especialmente os estruturais e organizacio-nais (como as diferentes organizaes), no tm faltado.

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    O tipo especfico de sociedade civil que surgiu no Japo se mostra naconstruo contnua de novos espaos sociais, que fornecem arenas se-miautnomas em que novos tipos de atividade, conscincia e discur-sos se estabelecem, sem, contudo, influenciar diretamente o centro. Osparticipantes de tais espaos no tm acesso autnomo ao centro e cer-tamente no so capazes de desafiar suas premissas. Antes, as relaesentre estado e sociedade se efetuam na forma do pluralismo padroni-zado, de contratos sociais mltiplos e dispersos.

    Estritamente relacionado a essas caractersticas da sociedade civil noJapo moderno est o surgimento de um padro distinto de dinmicapoltica, especialmente o impacto dos movimentos de protesto sobre ocentro. A caracterstica mais importante desse impacto est no con-fronto ideolgico principista relativamente fraco com o centro, sobre-tudo a falta de sucesso das lideranas de tais movimentos confronta-cionistas em mobilizar amplo apoio; e o simultneo sucesso de longoalcance em influenciar, mesmo que geralmente de forma indireta, aspolticas das autoridades e a criao de novos espaos sociais autno-mos, mas segregados, em que as atividades promovidas por esses mo-vimentos podiam ser implementadas. Consequentemente, mudanas

    no tipo de regime poltico ou na relativa fora de diferentes gruposno implicaram necessariamente mudanas nos princpios de legiti-mao e nas premissas e regras bsicas da ordem poltica e social.

    Todas essas caractersticas da arena poltica e das relaes entre nao,pas, estado e sociedade estavam estritamente relacionadas s fortesconcepes ontolgicas particularistas e imanentistas, cuja dinmicaprevaleceuemtodaahistriajaponesa.Asfortesorientaesuniversa-

    listas inerentes ao budismo, e mais latentes no confucionismo, foramsubjugadas e nativizadas no Japo. Quando o Japo foi definidocomo uma nao divina, isso significou uma nao protegida pelosdeuses, sendo, em certo sentido, um povo escolhido, mas no uma na-o portadora de uma misso universal de Deus. Tal transformaoteveumimpactodelongoalcanceemalgumasdaspremissaseconcep-esbsicasdaordemsocial,talcomooMandatodoCu,comsuasim-plicaes para o conceito de autoridade e da accountabilitydos gover-nantes, bem como para os conceitos de comunidade. Ao contrrio da

    China, onde, a princpio, o imperador, mesmo sendo uma figura sacra,estavasoboMandatodoCu,noJapoeleerasagradoevistocomoaencarnao do Sol, e no poderia ser responsabilizado perante qual-

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    quer um. Somente o shogun e outros governantes podiam serresponsabilizados, mas de maneira no especificada claramente.

    XVII

    Um dos aspectos mais importantes da ordem poltica japonesa moder-na foi que mudanas em regimes polticos ou na relativa fora de dife-rentes grupos exemplificado pela cristalizao do regime Taisho nosanos 1920 e do militar nos anos 1930, e tambm, mesmo que de formadiferente, do regime constitucional estabelecido depois da SegundaGuerra Mundial no significaram necessariamente mudanas emprincpiosdelegitimaoenaspremissaseregrasbsicasdaordemso-

    cial e poltica.

    a esse respeito que as diferenas mais importantes do sistema polti-co constitucional moderno do Japo incluindo o democrtico, que secristalizou depois da Segunda Guerra Mundial, como analisamos an-teriormente se destacam em relao aos europeus. Na Europa, as de-mandas por mudanas radicais, feitas sobretudo por movimentossocialistas e nacionalistas, foram fortemente orientadas para a recons-truo do centro em termos de seu confronto entre igualdade e hierar-quia,e/ouemtermosdereconstruodossmbolosedoselementosdeidentidade coletiva e suas respectivas sociedades. No Japo, tais tenta-tivas de reconstruo do centro e de seus elementos de identidade co-letiva eram muito fracas; foram promovidas sobretudo por vrios gru-pos marginais que no foram capazes de mobilizar apoio extenso. Aorientao principal e o impacto dos movimentos de protesto no Ja-po, que superficialmente eram muito parecidos com os da Europa foiacriaodenovosespaossociaiseculturaisemquediferentesgru-

    pos podiam desenvolver atividades e identidades coletivas relativa-mente autnomas. No significa que os vrios movimentos na Europano tenham construdo tais espaos inclusive, em termos puramentequantitativos, isso foi provavelmente seu maior impacto , mas, pelomenos at recentemente, os principais desafios aos regimes constitu-cionais democrticos na Europa vieram de movimentos orientadospelareconstruodeseusrespectivoscentroseidentidadescoletivas.

    OutraimportantediferenaentreEuropaeJapofoi,comovimosante-

    riormente, que no Japo praticamente inexistiu um movimento nacio-nal, ou at mesmo tnico, forte. S recentemente que tem havidodesenvolvimentos nessa direo em certa medida, entre os coreanos

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    noJapoeentreosAinue burakumin,masessesmovimentosforamori-entados sobretudo para a criao de espaos legtimos para si mesmos,em que sua distino e identidade seriam facilmente reconhecidas semnecessariamente serem orientadas para a reconstruo do centro oupara os conceitos gerais da identidade coletiva.

    Tais diferenas se destacam tanto em relao Europa quanto em rela-o aos Estados Unidos. O Japo compartilhou com os Estados Unidosumacaractersticacrucialdeseusrespectivosmovimentosdeprotesto:em ambas as sociedades, os movimentos de protesto que surgiram noeram orientados para a reconstruo de seus respectivos centros oupara as fronteiras simblicas de suas respectivas coletividades. Contu-

    do, essas caractersticas se desenvolveram nas duas sociedades pormotivos um tanto opostos motivos que, de certa forma, constituramimagens espelhadas uma da outra e que so de grande importnciapara a compreenso das razes da cristalizao de diferentes moderni-dades nessas sociedades, e que tambm explicam o fato de o Japo e osEstados Unidos terem desenvolvido formas completamente diferentesde dinmica poltica e de confrontos com o centro.

    Nos Estados Unidos, surgiu um sistema poltico baseado numa postu-

    ra muito mais complexa em relao autoridade e s estruturas insti-tucionais bsicas, especialmente as que foram incorporadas na Cons-tituio americana. A forte dimenso religiosa utpica do programacultural e poltico norte-americano, bem como o formato ideolgicogeral desse programa, fez surgir um dos aspectos mais importantes domododevidaamericano:umacombinaodeaceitaoforteeenfticada estrutura institucional bsica, especialmente a constitucional, comuma forte desconfiana das autoridades e do governo.

    As breves observaes comparativas sobre alguns aspectos da dinmi-ca social e poltica nos Estados Unidos, no Japo e na Europa ressaltamalguns dos problemas mais gerais das caractersticas bsicas de dife-rentes modernidades e de alguns dos fatores que influenciam a crista-lizao desses diferentes programas de modernidade.

    Tal anlise indica que, entre esses fatores, duas dimenses bsicas daconstruo da ordem social so de grande importncia: a construoda identidade coletiva e as premissas de autoridade e ordem social. A

    anlise dessas dimenses de ordem social tem sido, na maior parte daliteratura das cincias sociais, negligenciada, ou suas constelaes eu-ropeias especficas tm sido tomadas como certas na investigao das

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    sociedades modernas. Contudo, embora essas dimenses sejam sem-pre estritamente entrelaadas com as formaes econmicas e de po-der enfatizadas em tais anlises, elas exibem fortes tendncias auto-nomia e so de crucial importncia no remodelamento da dinmica dediferentes sociedades modernas de fato, mais amplamente, de qual-quer padro de interao social contnua e de ordem social27.

    Um dos aspectos mais importantes na constituio de identidades co-letivasaformacomquecomponentesprimordiais,civisesagradosseentrelaam nelas. Esses componentes eram estritamente entrelaadosem vrias dimenses das premissas de ordem social e poltica, espe-cialmente nas relaes entre hierarquia e igualdade, e na relao estrei-

    ta, mas no idntica, em que a autoridade responsabilizada em ter-mos transcendentais, e no puramente imanentes. a diferena entreessas duas dimenses que explica algumas das diferenas entre asordens polticas e os movimentos de protesto norte-americanos e

    japoneses.

    As duas formas contrastantes embora imagens espelhadas uma daoutra de constituir identidade coletiva e concepo de ordem social edeautoridadeeaformadesualegitimaonosEstadosUnidosenoJa-

    po devem ser brevemente comparadas com o que se estabeleceu naEuropa. Uma das caractersticas mais importantes da construo dasidentidades coletivas na experincia europeia histrica, especialmentena moderna, foi a forma com que os elementos primordiais, civis euniversalistas continuamente se entrelaaram em diversos pases eu-ropeus.

    Em todas as sociedades europeias modernas, estabeleceu-se um con-

    fronto contnuo entre os componentes primordiais das identida-des coletivas, continuamente reconstrudo em termos modernos, taiscomo nacionalismo e etnicidade, e os componentes universalistas ecivis modernos. A forma de entrelaamento desses diferentes compo-nentes de identidade coletiva configurou fortemente alguns dos as-pectos mais importantes da dinmica institucional de diferentes so-ciedades da Europa, especialmente o escopo do pluralismo que lsurgiu. Sociedades em que os componentes primordiais foram subor-dinados com relativo sucesso aos componentes civis e universalistas,

    e todos foram pacificamente entrelaados na construo de suasrespectivas identidades coletivas permitiram um escopo relativa-mente amplo de arranjos pluralistas.

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    As tendncias contrrias absolutizao das principais dimenses daexperincia humana e da ordem social, bem como a simultnea exclu-sividade baseada em princpios, forneceram um pano de fundo prop-cio ao surgimento de vrios movimentos radicais com tendncias jaco-

    binas: a esquerda revolucionria e os nacionalistas radicais. Todos es-ses movimentos, porm, se passaram dentro da estrutura das premis-sas bsicas de conceitos europeus de ordem social e poltica e deidentidade coletiva que divergiam enormemente das premissas nor-te-americanas e japonesas.

    (Recebido para publicao em junho de 2009)(Verso definitiva em novembro de 2009)

    Modernidade Japonesa: A Primeira Modernidade Mltipla No Ocidental

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  • 5/22/2018 O Sistema Politico Japones Moderno 10-07-2014

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    NOTAS

    1. Esse conceito foi inicialmente desenvolvido em Multiple Modernities (Eisenstadt,2002b)eem Die Vielfalt der Moderne (Eisenstadt,2000).Aanlisedaexperinciahist-

    rica japonesa vista de forma mais completa em Eisenstadt (1996).2. Ver Eisenstadt (2002a) e Roniger e Sznajder (1998).

    3. Ver Smith (1985), Baechler (1975; 1988) e Mutel (1988).

    4. Ver Duus e Okimoto (1979); Arielie Rotenstreich (1984), sobretudo a parte II,intitula-da Totalitarian Democracy Cultural Traditions and Modernization, pp. 83-164; eTipton (1977).