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 O MUNDO DOS FILÓSOFOS CONTEXTO I – Pensamento Clássico Os pré-socráticos Heráclito de Éfeso Pitágoras de Samos Zenão de Eléia Demócrito de Abdera Os sofistas Sócrates Platão  Aristóteles Epicurismo, Ceticismo e Ecletismo O Estoicismo II – Pensamento Cristão Neoplatonismo – Plutarco de Queronéia O pensamento cristão O cristianismo  A praxe ascética do cristia nismo Santo Agostinho e a patrística pré-agostiniana Santo Agostinho  A escolástica pré-tomist a Santo Tomás de Aquino III – Pensamento Latino  As ciências naturais na idade helenista e o pensamento latino O direito romano e a educação romana IV – Pensamento Moderno O pensamento moderno Os pensadores renascentistas – Giordano Bruno, Nicolau de Cusa O cartesianismo – Baruch Spinoza De Aristóteles à renascença René Descartes O empirismo – Francis Bacon, John Locke, George Berkeley O iluminismo francês – Jean-Jacques Rosseau Leibniz  A renascença – o renovamento das ant igas escolas filosóficas Nicolau Machiavelli, Galileu Galilei O cartesianismo – Malebranche, Leibniz, Wolff René Descartes O empirismo – David Hume, Thomás Hobbes O iluminismo francês – Condillac, Montesquieu, Voltaire Blaise Pascal

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 O MUNDO DOS FILÓSOFOS 

CONTEXTO

I – Pensamento ClássicoOs pré-socráticosHeráclito de ÉfesoPitágoras de SamosZenão de EléiaDemócrito de AbderaOs sofistasSócrates

Platão AristótelesEpicurismo, Ceticismo e EcletismoO Estoicismo

II – Pensamento CristãoNeoplatonismo – Plutarco de QueronéiaO pensamento cristãoO cristianismo A praxe ascética do cristianismoSanto Agostinho e a patrística pré-agostinianaSanto Agostinho A escolástica pré-tomista

Santo Tomás de Aquino

III – Pensamento Latino As ciências naturais na idade helenista e o pensamento latinoO direito romano e a educação romana

IV – Pensamento ModernoO pensamento modernoOs pensadores renascentistas – Giordano Bruno, Nicolau de CusaO cartesianismo – Baruch SpinozaDe Aristóteles à renascençaRené DescartesO empirismo – Francis Bacon, John Locke, George BerkeleyO iluminismo francês – Jean-Jacques RosseauLeibniz A renascença – o renovamento das antigas escolas filosóficasNicolau Machiavelli, Galileu GalileiO cartesianismo – Malebranche, Leibniz, Wolff René DescartesO empirismo – David Hume, Thomás HobbesO iluminismo francês – Condillac, Montesquieu, VoltaireBlaise Pascal

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  V – Pensamento Contemporâneo

Emmanuel KantHegel – o idealismo lógico

NietzscheKierkegaardKant – moral, metafísica e crítica do juízoO idealismo pós-kantiano – Fichte, Schelling e SchleiermacherHegel – a idéia, a natureza, o espíritoO positivismo – Auguste Comte

 VI - Bibliografia 

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I - CLÁSSICOS

Os Pré-socráticos

Dualismo Grego

 A característica fundamental do pensamento grego está na solução dualista do problema metafísico-teológico, isto é, na solução das relações entre a realidade empírica e o Absoluto que a explique, entre omundo e Deus, em que Deus e mundo ficam separados um do outro. Conseqüência desse dualismo é oirracionalismo, em que fatalmente finaliza a serena concepção grega do mundo e da vida. O mundo realdos indivíduos e do vir-a-ser depende do princípio eterno da matéria obscura, que tende para Deus comoo imperfeito para o perfeito; assimila em parte, a racionalidade de Deus, mas nunca pode chegar até eleporque dele não deriva. E a conseqüência desse irracionalismo outra não pode ser senão o pessimismo:um pessimismo desesperado, porque o grego tinha conhecimento de um absoluto racional, de Deus, masestava também convicto de que ele não cuida do mundo e da humanidade, que não criou, não conhece,nem governa; e pensava, pelo contrário, que a humanidade é governada pelo Fado, pelo Destino, asaber, pela necessidade irracional. O último remédio desse mal da existência será procurado noascetismo, considerando-o como a solidão interior e a indiferença heróica para com tudo, a resignação ea renúncia absoluta.

O Gênio Grego 

 A característica do gênio filosófico grego pode-se compendiar em alguns traços fundamentais:racionalismo, ou seja, a consciência do valor supremo do conhecimento racional; esse racionalismo nãoé, porém, abstrato, absoluto, mas se integra na experiência, no conhecimento sensível; o conhecimento,pois, não é fechado em si mesmo, mas aberto para o ser, é apreensão (realismo); e esse realismo não serestringe ao âmbito da experiência, mas a transpõe, a transcende para o absoluto, do mundo a Deus,sem o qual o mundo não tem explicação; embora, para os gregos, o "conhecer" - a contemplação, oteorético, o intelecto - tenham a primazia sobre o "operar" - a ação, o prático, a vontade - o segundoelemento todavia, não é anulado pelo primeiro, mas está a ele subordinado; e o otimismo grego,

conseqüência lógica do seu próprio racionalismo, cederá lugar ao pessimismo, quando se manifestar todaa irracionalidade da realidade, quando o realismo impuser tal concepção. Todos esses elementos vêmsendo, ainda, organizados numa síntese insuperável, numa unidade harmônica, realizada por meio de umdesenvolvimento também harmônico, aperfeiçoado mediante uma crítica profunda. Entre as raçasgregas, a cultura, a filosofia são devidas, sobretudo, aos jônios, sendo jônios também os atenienses.

Divisão da História da Filosofia Grega Os Períodos Principais do Pensamento Grego 

 Consoante a ordem cronológica e a marcha evolutiva das idéias pode dividir-se a história da filosofiagrega em três períodos:I. Período pré-socrático (séc. VII-V a.C.) - Problemas cosmológicos. Período Naturalista : pré-socrático,em que o interesse filosófico é voltado para o mundo da natureza;

II. Período socrático (séc. IV a.C.) - Problemas metafísicos. Período Sistemático ou Antropológico : operíodo mais importante da história do pensamento grego (Sócrates, Platão, Aristóteles), em que ointeresse pela natureza é integrado com o interesse pelo espírito e são construídos os maiores sistemasfilosóficos, culminando com Aristóteles;III. Período pós-socrático (séc. IV a.C. - VI p.C.) - Problemas morais. Período Ético : em que ointeresse filosófico é voltado para os problemas morais, decaindo entretanto a metafísica;IV. Período Religioso : assim chamado pela importância dada à religião, para resolver o problema davida, que a razão não resolve integralmente. O primeiro período é de formação, o segundo de apogeu, oterceiro de decadência.

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Primeiro Período

O primeiro período do pensamento grego toma a denominação substancial de período naturalista, porquea nascente especulação dos filósofos é instintivamente voltada para o mundo exterior, julgando-seencontrar aí também o princípio unitário de todas as coisas; e toma, outrossim, a denominação

cronológica de período pré-socrático, porque precede Sócrates e os sofistas, que marcam uma mudançae um desenvolvimento e, por conseguinte, o começo de um novo período na história do pensamentogrego. Esse primeiro período tem início no alvor do VI século a.C., e termina dois séculos depois, mais oumenos, nos fins do século V. Surge e floresce fora da Grécia propriamente dita, nas prósperas colôniasgregas da Ásia Menor, do Egeu (Jônia) e da Itália meridional, da Sicília, favorecido sem dúvida na suaobra crítica e especulativa pelas liberdades democráticas e pelo bem-estar econômico. Os filósofos desteperíodo preocuparam-se quase exclusivamente com os problemas cosmológicos. Estudar o mundoexterior nos elementos que o constituem, na sua origem e nas contínuas mudanças a que está sujeito, éa grande questão que dá a este período seu caráter de unidade. Pelo modo de a encarar e resolver,classificam-se os filósofos que nele floresceram em quatro escolas: Escola Jônica ; Escola Itálica ; Escola Eleática ; Escola Atomística .

Escola Jônica

 A Escola Jônica, assim chamada por ter florescido nas colônias jônicas da Ásia Menor, compreende os jônios antigos e os jônios posteriores ou juniores. A escola jônica, é também a primeira do períodonaturalista, preocupando-se os seus expoentes com achar a substância única, a causa, o princípio domundo natural vário, múltiplo e mutável. Essa escola floresceu precisamente em Mileto, colônia grega dolitoral da Ásia Menor, durante todo o VI século, até a destruição da cidade pelos persas no ano de 494a.C., prolongando-se porém ainda pelo V século. Os jônicos julgaram encontrar a substância última dascoisas em uma matéria única; e pensaram que nessa matéria fosse imanente uma força ativa, de cujaação derivariam precisamente a variedade, a multiplicidade, a sucessão dos fenômenos na matéria una.Daí ser chamada esta doutrina hilozoísmo (matéria animada). Os jônios antigos consideram o Universodo ponto de vista estático, procurando determinar o elemento primordial, a matéria primitiva de que sãocompostos todos os seres. Os mais conhecidos são: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes

de Mileto. Os jônios posteriores distinguem-se dos antigos não só por virem cronologicamente depois,senão principalmente por imprimirem outra orientação aos estudos cosmológicos, encarando o Universono seu aspecto dinâmico, e procurando resolver o problema do movimento e da transformação doscorpos. Os mais conhecidos são: Heráclito de Éfeso, Empédocles de Agrigento, Anaxágoras deClazômenas.

Tales de Mileto (624-548 A.C.) "Água"

Tales de Mileto, fenício de origem, é considerado o fundador da escola jônica. É o mais antigo filósofogrego. Tales não deixou nada escrito mas sabemos que ele ensinava ser a água a substância única detodas as coisas. A terra era concebida como um disco boiando sobre a água, no oceano. Cultivoutambém as matemáticas e a astronomia, predizendo, pela primeira vez, entre os gregos, os eclipses dosol e da lua. No plano da astronomia, fez estudos sobre solstícios a fim de elaborar um calendário, e

examinou o movimento dos astros para orientar a navegação. Provavelmente nada escreveu. Por isso, doseu pensamento só restam interpretações formuladas por outros filósofos que lhe atribuíram uma idéiabásica: a de que tudo se origina da água. Segundo Tales, a água, ao se resfriar, torna-se densa e dáorigem à terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quandonovamente esfriados. Desse ciclo de seu movimento (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversasformas de vida, vegetal e animal. A cosmologia de Tales pode ser resumida nas seguintes proposições: Aterra flutua sobre a água; A água é a causa material de todas as coisas. Todas as coisas estão cheias dedeuses. O imã possui vida, pois atrai o ferro.

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Segundo Aristóteles sobre a teoria de Tales: elemento estático e elemento dinâmico. Elemento Estático- a flutuação sobre a água. Elemento Dinâmico - a geração e nutrição de todas as coisas pela água. Talesacreditava em uma "alma do mundo" , havia um espírito divino que formava todas as coisas da água.Tales sustentava ser a água a substância de todas as coisas.

 Anaximandro de Mileto (611-547 A.C.) "Ápeiron"

 Anaximandro de Mileto, geógrafo, matemático, astrônomo e político, discípulo e sucessor de Tales eautor de um tratado Da Natureza, põe como princípio universal uma substância indefinida, o ápeiron(ilimitado), isto é, quantitativamente infinita e qualitativamente indeterminada. Deste ápeiron (ilimitado)primitivo, dotado de vida e imortalidade, por um processo de separação ou "segregação" derivam osdiferentes corpos. Supõe também a geração espontânea dos seres vivos e a transformação dos peixesem homens. Anaximandro imagina a terra como um disco suspenso no ar. Eterno, o ápeiron está emconstante movimento, e disto resulta uma série de pares opostos - água e fogo, frio e calor, etc. - queconstituem o mundo. O ápeiron é assim algo abstrato, que não se fixa diretamente em nenhum elementopalpável da natureza. Com essa concepção, Anaximandro prossegue na mesma via de Tales, porémdando um passo a mais na direção da independência do "princípio" em relação às coisas particulares.Para ele, o princípio da "physis" (natureza) é o ápeiron (ilimitado). Atribui-se a Anaximandro a confecçãode um mapa do mundo habitado, a introdução na Grécia do uso do gnômon (relógio de sol) e a mediçãodas distâncias entre as estrelas e o cálculo de sua magnitude (é o iniciador da astronomia grega). Ampliando a visão de Tales, foi o primeiro a formular o conceito de uma lei universal presidindo oprocesso cósmico total. Diz-se também, que preveniu o povo de Esparta de um terremoto. Anaximandro julga que o elemento primordial seria o indeterminado (ápeiron), infinito e em movimento perpétuo.

Fragmentos

"Imortal...e imperecível (o ilimitado enquanto o divino) - Aristóteles, Física". Esta (a natureza do ilimitado,ele diz que) é sem idade e sem velhice. Hipólito, Refutação.

 Anaxímenes de Mileto (588-524 A.C.) "Ar"

Segundo Anaxímenes, a arkhé (comando) que comanda o mundo é o ar, um elemento não tão abstratocomo o ápeiron, nem palpável demais como a água. Tudo provém do ar, através de seus movimentos: oar é respiração e é vida; o fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas cada vez maiscondensadas do ar. As diversas coisas que existem, mesmo apresentando qualidades diferentes entre si,reduzem-se a variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento. Atribuindo vida àmatéria e identificando a divindade com o elemento primitivo gerador dos seres, os antigos jôniosprofessavam o hilozoísmo e o panteísmo naturalista. Dedicou-se especialmente à meteorologia. Foi oprimeiro a afirmar que a Lua recebe sua luz do Sol. Anaxímenes julga que o elemento primordial dascoisas é o ar.

Fragmentos

"O contraído e condensado da matéria ele diz que é frio, e o ralo e o frouxo (é assim que ele expressa) équente. (Plutarco). " Com nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todoo cosmo sopro e ar o mantém. (Aécio).

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Heráclito de Éfeso 

 Vida de Heráclito

Heráclito nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, de família que ainda conservava prerrogativas reais

(descendentes do fundador da cidade). Seu caráter altivo, misantrópico e melancólico ficou proverbial emtoda a antigüidade. Desprezava a plebe. Recusou-se sempre a intervir na política. Manifestou desprezopelos antigos poetas, contra os filósofos de seu tempo e até contra a religião. Sem ter sido mestre,Heráclito escreveu um livro Sobre a Natureza , em prosa, no dialeto jônico, mas de forma tão concisa querecebeu o cognome de Skoteinós , o Obscuro. Floresceu em 504-500 a.C. - Heráclito é por muitosconsiderados o mais eminente pensador pré-socrático, por formular com vigor o problema da unidadepermanente do ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias.Estabeleceu a existência de uma lei universal e fixa (o Lógos ), regedora de todos os acontecimentosparticulares e fundamento da harmonia universal, harmonia feita de tensões, "como a do arco e da lira".

Filosofia de Heráclito

Heráclito concebe o próprio absoluto como processo, como a própria dialética. A dialética é: A. Dialética exterior , um raciocinar de cá para lá e não a alma da coisa dissolvendo-se a si mesma;B. Dialética imanente do objeto , situando-se, porém, na contemplação do sujeito;C. Objetividade de Heráclito , isto é, compreender a própria dialética como princípio.É o progresso necessário, e é aquele que Heráclito fez. O ser é o um, o primeiro; o segundo é o devir -até esta determinação avançou ele. Isto é o primeiro concreto, o absoluto enquanto nele se dá a unidadedos opostos. Nele encontra-se, portanto, pela primeira vez, a idéia filosófica em sua forma especulativa;o raciocínio de Parmênides e Zenão é entendimento abstrato; por isso Heráclito foi tido como filósofoprofundo e obscuro e como tal criticado.O que nos é relatado da filosofia de Heráclito parece, à primeira vista, muito contraditório; mas nela sepode penetrar com o conceito e assim descobrir, em Heráclito, um homem de profundos pensamentos.Ele é a plenitude da consciência até ele - uma consumação da idéia na totalidade que é o início daFilosofia ou expressa a essência da idéia, o infinito, aquilo que é.

O Princípio Lógico

O princípio universal . Este espírito arrojado pronunciou pela primeira vez esta palavra profunda: "O ser não é mais que o não-ser" , nem é menos; ou ser e nada são o mesmo, a essência é mudança. Overdadeiro é apenas como a unidade dos opostos; nos eleatas, temos apenas o entendimento abstrato,isto é, apenas o ser é. Dizemos, em lugar da expressão de Heráclito: O absoluto é a unidade do ser e donão-ser. Se ouvimos aquela frase "O ser não é mais que o não-ser", desta maneira, não parece, então,produzir muito sentido, apenas destruição universal, ausência de pensamento. Temos, porém, ainda umaoutra expressão que aponta mais exatamente o sentido do princípio. Pois Heráclito diz: "Tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo" . E Platão ainda diz de Heráclito: "Ele compara as coisas com a corrente de um rio - que não se pode entrar duas vezes na mesma corrente" ; o rio corre e toca-se outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo  

entrar, pois que imediatamente se transforma; o que é , ao mesmo tempo já novamente não é. Alémdisso, Aristóteles diz que Heráclito afirma que é apenas um o que permanece; disto todo o resto éformado, modificado, transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada é firme, que nada sedemora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a determinação mais exata para este conteúdouniversal é o devir. Os eleatas dizem: só o ser é, é o verdadeiro; a verdade do ser é o devir; ser é oprimeiro pensamento enquanto imediato. Heráclito diz: Tudo é devir; este devir é o princípio. Isto está naexpressão: "O ser é tão pouco como o não-ser; o devir é e também não é" . As determinaçõesabsolutamente opostas estão ligadas numa unidade; nela temos o ser e também o não-ser. Dela fazparte não apenas o surgir, mas também o desaparecer; ambos não são para si, mas são idênticos. É isto

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que Heráclito expressou com suas sentenças. O não ser é, por isso é o não-ser, e o não-ser é, por issoé o ser; isto é a verdade da identidade de ambos.É um grande pensamento passar do ser para o devir; é ainda abstrato, mas, ao mesmo tempo, tambémé o primeiro concreto, a primeira unidade de determinações opostas. Estas estão inquietas nesta relação,nela está o princípio da vida. Com isto está preenchido o vazio que Aristóteles apontou nas antigas

filosofias - a falta de movimento; este movimento é aqui, agora mesmo, princípio.É uma grande convicção que se adquiriu, quando se reconheceu que o ser e o nada são abstrações semverdade, que o primeiro elemento verdadeiro é o devir. O entendimento separa a ambos comoverdadeiros e de valor; a razão, pelo contrário, reconhece um no outro, que num está contido seu outro -e assim o todo, o absoluto deve ser determinado como o devir.Heráclito também diz que os opostos são características do mesmo, como, por exemplo, "o mel é doce eamargo" - ser e não-ser ligam-se ao mesmo. Sexto observa: Heráclito parte, como os céticos, dasrepresentações correntes dos homens; ninguém negará que os sãos dizem do mel que é doce, e os quesofrem de icterícia que é amargo - se fosse apenas doce, não poderia modificar sua natureza através deoutra coisa e assim também para os que sofrem de icterícia seria doce. Zenão começa a sobressumir ospredicados opostos e aponta no movimento aquilo que se opõe - um por limites e um sobressumir oslimites; Zenão só exprimiu o infinito pelo seu lado negativo - , por causa de sua contradição, como o nãoverdadeiro. Em Heráclito, vemos o infinito como tal expresso como conceito e essência: o infinito, que éem si e para si, é a unidade dos opostos e, na verdade, dos universalmente opostos, da pura oposição,ser e não-ser. Tomamos nós o ente em si e para si, não a representação do ente, do pleno, assim o puroser é o pensamento simples, em que todo o determinado é negado, o absolutamente negativo - nada é omesmo, apenas este igual a si mesmo - , passagem absoluta para o oposto, ao qual Zenão não chegou!"Do nada, nada vem." Em Heráclito o momento da negatividade é imanente; disto trata o conceito detoda a Filosofia.Primeiro tivemos a abstração de ser e não-ser, numa forma bem imediata e universal; mais exatamente,porém, também Heráclito concebeu as oposições de maneira mais determinada. É esta unidade de real eideal, de objetivo e subjetivo; o objetivo somente é o devir subjetivo. Este verdadeiro é o processo dodevir; Heráclito expressou de modo determinado este pôr-se numa unidade das diferenças. Aristótelesdiz, por exemplo, que Heráclito "ligou o todo e o não-todo" (parte) - o todo se torna parte e a parte o épara se tornar o todo - , o "que se une e se opõe", do mesmo modo, "o que concorda e o dissonante"; e

de que de tudo (que se opõe) resulta um, e de um tudo. Este um não é o abstrato, a atividade de dirimir-se; a morta infinitude é uma má abstração em oposição a esta profundidade que vemos em Heráclito.Sexto Empírico cita o seguinte que Heráclito teria dito: A parte é algo diferente do todo; mas é também omesmo que o todo é; a substância é o todo e a parte. O fato de Deus ter criado o mundo Ter-se divididoa si mesmo, gerado seu Filho, etc. - todos estes elementos concretos estão contidos nesta determinação.Platão diz, em seu Banquete, sobre o princípio de Heráclito: "O um, diferenciado de si mesmo, une-seconsigo mesmo" - este é o processo da vida, "como a harmonia do arco e da lira". Deixa então queErixímaco, que fala no Banquete , critique o fato de a harmonia ser desarmônica ou se componha deopostos, pois que a harmonia se formaria de altos e baixos, mas da unidade pela arte da música. Masisto não contradiz Heráclito, que justamente quer isto. O simples, a repetição de um único som não éharmonia. Da harmonia faz parte a diferença; é preciso que haja essencial e absolutamente umadiferença. Esta harmonia é precisamente o absoluto devir, transformar-se - não devir outro, agora este,depois aquele. O essencial é que cada diferente, cada particular seja diferente de um outro - mas não de

um abstrato qualquer outro, mas de seu outro; cada um apenas é, na medida em que seu outro em siesteja consigo, em seu conceito. Mudança é unidade, relação de ambos a um, um ser, este e o outro. Naharmonia e no pensamento concordamos que seja assim; vemos, pensamos a mudança, a unidadeessencial. O espírito relaciona-se na consciência com o sensível e este sensível é seu outro. Assimtambém no caso dos sons; devem ser diferentes, mas de tal maneira que também possam ser unidos - eisto os sons são em si. Da harmonia faz parte determinada oposição, seu oposto, como nas harmonia dascores. A subjetividade é o outro da objetividade, não de um pedaço de papel - o absurdo disto logo semostra - , deve ser seu  outro, e nisto reside sua identidade; assim cada coisa é o outro do outroenquanto seu outro. Este é o grande princípio de Heráclito; pode parecer obscuro, mas é especulativo; e

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isto é, para o entendimento que segura para si o ser, o não-ser, o subjetivo e objetivo, o real e o ideal,sempre obscuro.

Os Modos da Realidade

Heráclito não ficou parado, em sua exposição, nesta expressão em conceitos, no puro lógico, mas alémdesta forma universal, na qual expôs seu princípio, deu à sua idéia também uma expressão real. Estafigura pura é precipuamente de natureza cosmológica, ou sua forma é mais a forma natural; por isso, éincluído ainda na Escola Jônica, e com isto deu novos impulsos à filosofia da natureza. Sobre esta formareal de seu princípio os historiadores, contudo, não estão de acordo entre si. A maioria diz que ele teriaposto a essência ontológica como fogo, outros dizem que como ar, outros dizem que antes o vapor que oar; mesmo o tempo é citado, em Sexto, como o primeiro ser do ente. A questão é a seguinte: Comocompreender esta diversidade? Não se deve absolutamente crer que se deva atribuir estas notícias ànegligência dos escritores, pois as testemunhas são as melhores, como Aristóteles e Sexto Empírico, quenão falam destas formas de passagem, mas de modo bem determinado, sem, no entanto, chamar aatenção para estas diferenças e contradições. Uma outra razão mais próxima parece-nos resultar daobscuridade do escrito de Heráclito, o qual, na confusão de seu modo de expressão, poderia dar motivospara mal-entendidos. Mas, considerando mais detidamente, esta dificuldade desaparece; esta mostra-semais para uma análise superficial; no conceito profundo de Heráclito acha-se a verdadeira saída desteempecilho. De maneira alguma podia Heráclito afirmar, como Tales, que a água ou o ar ou coisasemelhante seria a essência absoluta; e não o podia afirmar como um primeiro donde emanaria o outro,na medida em que pensou ser como idêntico como o não-ser ou no conceito infinito. Assim, portanto, aessência absoluta que é não pode surgir nele como uma determinidade existente, por exemplo, a água,mas a água enquanto se transforma, ou apenas o processo.

 A. - Processo abstrato, tempo . Heráclito, portanto, disse que o tempo é o primeiro ser corpóreo, comoexprime Sexto. "Corpóreo" é uma expressão inadequada. Os céticos escolhiam muitas vezes asexpressões mais grosseiras ou tornavam os pensamentos grosseiros para mais facilmente liquidá-los."Corpóreo" significa sensibilidade abstrata; o tempo é a intuição abstrata do processo; diz que ele é oprimeiro ser sensível. O tempo, portanto, é a essência verdadeira. Na medida em que Heráclito não parouna expressão lógica do devir, mas deu a seu princípio a forma de um ente, deduz-se disto que primeiro

tinha que oferecer-se a forma do tempo; pois precisamente, no sensível, no que se pode ver, o tempo éo primeiro que se oferece como o devir; é a primeira forma do devir. Enquanto intuído, o tempo é o purodevir. O tempo é puro transformar-se, é o puro conceito, o simples, que é harmônico a partir deabsolutamente opostos. Sua essência é ser e não-ser, sem outra determinação - ser puro e abstrato não-ser, postos imediatamente numa unidade e ao mesmo tempo separados. Não como se o tempo fosse enão fosse , mas o tempo é  isto: no ser imediatamente não-ser e no não-ser imediatamente ser - estamudança de ser para não-ser, este conceito abstrato, é, porém, visto de maneira objetiva, enquanto épara nós. No tempo não é o passado e o futuro, somente o agora; e este é , para não ser, está logodestruído, passado - e este não-ser passa, do mesmo modo, para o ser, pois ele é . É a abstratacontemplação desta mudança. Se tivéssemos de dizer como aquilo que Heráclito reconheceu como aessência existe para a consciência, nesta pura forma em que ele o reconheceu, não haveria outra quenomear a não ser o tempo; é, por conseguinte, absolutamente certo que a primeira forma do que devémé o tempo; assim isto se liga ao princípio do pensamento de Heráclito.

B. - A forma real como processo, fogo . Mas este puro conceito objetivo deve realizar-se mais. No tempoestão os momentos, ser e não-ser, postos apenas negativamente ou como momentos que imediatamentedesaparecem. Além disso, Heráclito determinou o processo de um modo mais físico. O tempo é intuição,mas inteiramente abstrata. Se quisermos representar-nos o que ele é, de modo real, isto é, expressarambos os momentos como uma totalidade para si, como subsistente, então levanta-se a questão: queser físico corresponde a esta determinação? O tempo, dotado de tais momentos, é o processo;compreender a natureza significa apresentá-la como processo. Este é o elemento verdadeiro de Heráclitoe o verdadeiro conceito; por isso, logo compreendemos que Heráclito não podia dizer que a essência é oar ou a água ou coisas semelhantes, pois eles mesmos não são (isto é o próximo) o processo. O fogo,

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porém, é o processo: assim afirmou o fogo como a primeira essência - e este é o modo real doprocesso heracliteano, a alma e a substância do processo da natureza. Justamente no processodistinguem-se os momentos, como no movimento: 1. o puro momento negativo, 2. os momentos daoposição subsistente, água e ar, e 3. a totalidade em repouso, a terra. A vida da natureza é o processodestes momentos: a divisão da totalidade em repouso da terra na oposição, o pôr desta oposição, destes

momentos - e a unidade negativa, o retorno para a unidade, o queimar da oposição subsistente. O fogo éo tempo físico; ele é esta absoluta inquietude, absoluta dissolução do que persiste - o desaparecer deoutros, mas também de si mesmo; ele não é permanente. Por isso compreendemos (é inteiramenteconseqüente) por que Heráclito pode nomear o fogo como o conceito do processo de sua determinaçãofundamental.C. - O fogo está agora mais precisamente determinado, mais explicitado como processo real; ele é parasi o processo real, sua realidade é o processo todo no qual, então, os momentos são determinados maisexata e concretamente. O fogo, enquanto o metamorfosear-se das coisas corpóreas, é mudança,transformação do determinado, evaporação, transformação em fumaça; pois ele é, no processo, omomento abstrato do mesmo, não tanto o ar como antes a evaporação. Para este processo Heráclitoutilizou uma palavra muito singular: evaporação (anathymíasis ) (fumaça, vapores do sol); evaporação éaqui apenas a significação superficial - é mais: passagem. Sob este ponto de vista, Aristóteles diz deHeráclito que, segundo sua exposição, o princípio era a alma, por ser ela a evaporação, o emergir detudo, e este evaporar-se, devir, seria o incorpóreo e sempre fluído. As determinações mais próximasdeste processo real são, em parte, falhas e contraditórias. Sob este ponto de vista, afirma-se, emalgumas notícias, que Heráclito teria determinado o processo assim: "As formas (mudanças) do fogo são,primeiro, o mar e, então, a metade disto, terra, e a outra metade, o raio" - o fogo em sua eclosão. Este éuniversal e muito obscuro. A natureza é assim esse círculo. Neste sentido ouvimo-lo dizer: "Nem um deusnem um homem fabricou o universo mas sempre foi e é e será um fogo sempre vivo, que segundo suaspróprias leis (métro ) se acende e se apaga.". Compreendemos o que Aristóteles cita, que o princípio é aalma, por ser a evaporação, este processo do mundo que a si mesmo se move; o fogo é a alma. No quese refere ao fato de Heráclito afirmar que o fogo é vivificante, a alma, encontra-se uma expressão quepode parecer bizarra, isto é, que a alma mais seca é a melhor. Nós certamente não tomamos a almamais molhada como a melhor, mas, pelo contrário, a mais viva; seco quer dizer aqui cheio de fogo: assima alma mais seca é o fogo puro, e este não é a negação do vivo, mas a própria vida. Para retornar a

Heráclito: ele é aquele que primeiro expressou a natureza do infinito e que compreendeu a naturezacomo sendo em si infinita, isto é, sua essência como processo. É a partir dele que se deve datar ocomeço da existência da Filosofia; ele é a idéia permanente, que é a mesma em todos os filósofos até osdias de hoje, assim como foi a idéia de Platão e Aristóteles.

"Os homens são deuses mortais e os deuses, homens imortais; viver é-lhes morte e morrer é-lhes vida".

"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos". 

Pitágoras de Samos 

Pitágoras , o fundador da escola pitagórica, nasceu em Samos pelos anos 571-70 a.C. Em 532-31 foi

para a Itália, na Magna Grécia, e fundou em Crotona, colônia grega, uma associação científico-ético-política, que foi o centro de irradiação da escola e encontrou partidários entre os gregos da Itáliameridional e da Sicília. Pitágoras aspirava - e também conseguiu - a fazer com que a educação ética daescola se ampliasse e se tornasse reforma política; isto, porém, levantou oposições contra ele e foiconstrangido a deixar Crotona, mudando-se para Metaponto, aí morrendo provavelmente em 497-96 a.C.Segundo o pitagorismo, a essência, o princípio essencial de que são compostas todas as coisas, é onúmero , ou seja, as relações matemáticas. Os pitagóricos, não distinguindo ainda bem forma, lei ematéria, substância das coisas, consideraram o número como sendo a união de um e outro elemento. Da

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racional concepção de que tudo é regulado segundo relações numéricas, passa-se à visão fantásticade que o número seja a essência das coisas.Mas, achada a substância una e imutável das coisas, os pitagóricos se acham em dificuldades paraexplicar a multiplicidade e o vir-a-ser, precisamente mediante o uno e o imutável. E julgam poder explicara variedade do mundo mediante o concurso dos opostos, que são - segundo os pitagóricos - o ilimitado e

o limitado, ou seja, o par e o ímpar, o imperfeito e o perfeito. O número divide-se em par, que não põelimites à divisão por dois, e, por conseguinte, é ilimitado (quer dizer, imperfeito, segundo a concepçãogrega, a qual via a perfeição na determinação); e ímpar, que põe limites à divisão por dois e, portanto, élimitado, determinado, perfeito. Os elementos constitutivos de cada coisa - sendo cada coisa número -são o par e o ímpar, o ilimitado e o limitado, o pior e o melhor. Radical oposição esta, que explicaria ovir-a-ser e o múltiplice, que seriam reconduzidos à concordância e à unidade pela fundamental harmonia(matemática), que governa e deve governar o mundo material e moral, astronômico e sonoro.Como a filosofia da natureza, assim a astronomia pitagórica representa um progresso sobre a jônica. Defato, os pitagóricos afirmaram a esfericidade da Terra e dos demais corpos celestes, bem como a rotaçãoda Terra, explicando assim o dia e a noite; e afirmaram também a revolução dos corpos celestes emtorno de um foco central, que não se deve confundir com o Sol. Pelo que diz respeito à moral, enfim,dominam no pitagorismo o conceito de harmonia, logicamente conexo com a filosofia pitagórica, e aspráticas ascéticas e abstinenciais, com relação à metempsicose e à reincarnação das almas.Para compreendermos seus princípios fundamentais, é preciso partir do eleatismo. Como é possível umapluralidade? Pelo fato de o não-ser ter um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Ápeiron  de Anaximandro, ao absolutamente Indeterminado , àquilo que não tem nenhuma qualidade; a isso opõe-seo absolutamente Determinado , o Péras . Mas ambos compõem o Uno, do qual se pode dizer que é impar,delimitado e ilimitado, inqualificado e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o Uno existe,foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse caso, há também uma pluralidade; da unidadeprocede a série dos números aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas(formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; portanto, há também uma pluralidade. Desde que setêm o ponto, a linha, as superfícies e os corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é aessência própria das coisas. Os eleatas dizem: "Não há não-ser, logo, tudo é uma unidade". Ospitagóricos: "A própria unidade é o resultado de um ser e de um não-ser, portanto há, em todo caso,não-ser e, portanto, também uma pluralidade" .

 À primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de partida me parece ser a apologia da ciência matemática  contra o eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides. Nela, é dito daUnidade (supondo que não existe pluralidade): 1) que ela não tem partes e não é um todo; 2) quetampouco tem limites; 3) portanto, que não está em parte nenhuma; 4) que não pode nem mover-senem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto adiversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É umprocedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicadoscontraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricosacreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existênciada Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira dascoisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, nãoquantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do  Ápeiron ; este é análogoao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui,

dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno,múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau;quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel,reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo,trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente,ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo.O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se naacústica.[Teoria das cordas sonoras; relação de intervalos; modo dórico.]

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 A música, con efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pitagóricos. A música, como tal, sóexiste em nossos nervos e em nosso cérebro; fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke),compõe-se somente das relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua quantidade, e quanto àtonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elementorítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em

certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio daquímica e das ciências naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forçasabsolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica. Na química, temos uma misturade atomismo e de pitagorismo, para a qual Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho. A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamente importante: a significação donúmero e, portanto, a possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas de física,tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As qualidades nasciam por combinação ou pordissociação; agora, enfim, afirma-se que as qualidades residem na diversidade das proporções. Mas essepresentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se, provisoriamente, com analogiasfantasiosas.[Simbolismo dos números pitagóricos: um é a razão, dois a opinião, quatro a justiça, cinco o casamento,dez a perfeição, etc.; um é o ponto, dois é a linha, três a superfície, quatro o volume. Cosmogonia. O Universo e os planetas esféricos. A harmonia das esferas.]Se se pergunta a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-se, inicialmente, o primeiro sistemade Parmênides, que fazia nascer todas as coisas de uma dualidade; depois, o  Ápeiron de Anaximandro,delimitado e movido pelo fogo de Heráclito. Mas estes são apenas, evidentemente, problemassecundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas no universo, ponto de vistainteiramente novo. Para defender essa idéia contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir anoção de número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram então a idéiaheraclitiana do pólemos , pai de todas as coisas, e da Harmonia que une as qualidades opostas; a essaforça, Parmênides chamava Aphrodite. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava.Decompuseram os dois elementos de que nasce o número em  par e ímpar . Identificaram essas noçõescom termos filosóficos já usuais. Chamar o Ápeiron  de Par é sua grande inovação; isso porque osímpares, os gnómones , davam nascimento a uma série limitada de números, os números quadrados.Remetem-se, assim, a Anaximandro, que reaparece aqui pela última vez. Mas identificam esse limite com

o fogo de Heráclito, cuja tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricasdeterminadas; é essencialmente uma força calculadora . Se houvessem tomado emprestado de Heráclito apalavra lógos , teriam entendido por ela a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o Péras fixa olimite). Sua idéia fundamental é esta: a matéria, que é representada inteiramente destituída de qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade determinada . Tal é a respostadada ao problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra de Leibniz, ao dizerque a música é exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi  (¹). Os pitagóricos teriampodido dizer o mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.(¹) O exercício de aritmética oculto do espírito que não sabe calcular.

Notas Biográficas sobre Pitágoras

 A doutrina e a vida de Pitágoras, desde os tempos da antiguidade, jaz envolta num véu de mistério.

 A força mística do grande filósofo e reformador religioso, há 2.600 anos vem, poderosamente, influindono pensamento Ocidentel. Dentre as religiões de mistérios, de caráter iniciático, a doutrina pitagórica foia que mais se difundiu na antiguidade.Não consideramos apenas lenda o que se escreveu sobre essa vida maravilhosa, porque há, nessasdescrições, sem dúvida, muito de histórico do que é fruto da imaginação e da cooperação ficcional dosque se dedicaram a descrever a vida do famoso filósofo de Samos.O fato de negar-se, peremptoriamente, a historicidade de Pitágoras (como alguns o fazem), por não seter às mãos documentação bastante, não impede que seja o pitagorismo uma realidade empolgante nahistória da filosofia, cuja influência atravessa os séculos até nossos dias.

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 Acontece com Pitágoras o que aconteceu com Shakespeare, cuja existência foi tantas vezes negada.Se não existiu Pitágoras de Samos, houve com certeza alguém que construiu essa doutrina, e que, porcasualidade, chamava-se Pitágoras. Podemos assim parafrasear o que foi dito quanto a Shakespeare.Mas, pondo de lado esses escrúpulos ingênuos de certos autores, que preferem declará-lo como nãoexistente, como se houvesse maior validez na negação da sua historicidade do que na sua afirmação,

vamos a seguir relatar algo, sinteticamente, em torno dessa lenda.Em 1917, perto de Porta Maggiori, sob os trilhos da estrada de ferro, que liga Roma a Nápoles, foidescoberta uma cripta, que se julgou a princípio fosse a porta de uma capela cristã subterrânea.Posteriormente verificou-se que se tratava de uma construção realizada nos tempos de Cláudio, por voltade 41 a 54 d.C., e que nada mais era do que um templo, onde se reuniam os membros de uma seitamisteriosa, que, afinal, averigou-se ser pitagórica. Sabe-se hoje, com base histórica, que antes, já emtempos de César, proliferavam os templos pitagóricos, e se essa seita foi tão combatida, deve-se mais aofato de ser secreta do que propriamente por suas idéias. Numa obra, hoje cara aos pitagóricos,Carcopino (La Brasilique pythagoricienne de la Porte Majeure) dá-nos um amplo relato desse templo. Efoi inegavelmente essa descoberta tão importante que impulsionou novos estudos, que se realizaramsobre a doutrina de Pitágoras, os quais tendem a mostrar o grande papel que exerceu na história,durante vinte e cinco séculos, essa ordem, que ainda existe e tem seus seguidores, mebora esteja, emnossos dias, como já esteve no passado, irremediavelmente infectada de idéias estranhas que, ao nossover, desvirtuam o pensamento genuíno de Pitágoras de Samos.É aceito quase sem divergência por todos que se debruçaram a estudar a sua vida, que Pitágoras nasceuem Samos, entre 592 a 570 antes da nossa era; ou seja, naquele mesmo século em que surgiram tantosgrandes condutores de povos e criadores de religiões, como foi Gautama Buda, Zoroastro (Zaratustra),Confúcio e Lao Tsé.Inúmeras são as divergências sobre a verdadeira nacionalidade de Pitágoras, pois uns afirmam ter sidoele de origem egípcia; outros, síria ou, ainda, natural de Tiro.Relata a lenda que Pitágoras, cujo nome significa o  Anunciador pítico (Pythios), era filho de Menesarco ede Partêmis, ou Pythaia. Tendo esta, certa vez, levado o filho à Pítia de Delfos, esta sacerdotizavaticinou-lhe um grande papel, o que levou a mãe a devotar-se com o máximo carinho à sua educação.Consta que Pitágoras, que desde criança se revelava prodigioso, teve como primeiros mestres aHermodamas de Samos até os 18 anos, depois Ferécides de Siros, tendo sido, posteriormente, aluno de

Tales, em Mileto, e ouvinte das conferências de Anaximandro. Foi depois discípulo de Sonchi, umsacerdote egípcio, tendo, também, conhecido Zaratos, o assírio Zaratustra ou Zoroastro, em Babilônia,quando de sua estada nessa grande metrópole da antiguidade.Conta-nos, ainda, a lenda que o hierofante Adonai aconselhou-o a ir ao Egito, recomendado ao faraó Amom, onde, afirma-se, foi iniciado nos mistérios egípcios, nos santuários de Mênfis, Dióspolis eHeliópolis. Afirma-se, ademais, que realizou um retiro no Monte Carmelo e na Caldéia, quando foi feitoprisioneiro pelas tropas de Cambísis, tendo sido daí conduzido para a Babilônia. Foi em sua viagem aessa metrópole da Antiguidade, que conheceu o pensamento das antigas religiões do Oriente, efreqüentou as aulas ministradas por famosos mestres de então.Observa-se, porém, em todas as fontes que nos relatam a vida de Pitágoras, que este realizou, em sua juventude, inúmeras viagens e peregrinações, tendo voltado para Samos já com a idade de 56 anos.Suas lições atraíram-lhe muitos discípulos, mas provocaram, também, a inimizade de Policrates, entãotirano de Samos, o que fez o sábio exilar-se na Magna Grécia (Itália), onde, em Crotona, fundou o seu

famoso Instituto. Antes de sua localização na Magna Grécia, relata-se que esteve em contato com os órficos, já emdecadência, no Peloponeso, tendo então conhecido a famosa sacerdotiza Teocléia de Delfos.Mas é na Itália que desempenha um papel extraordinário, porque aí é que funda o seu famoso Instituto,o qual, combatido pelos democratas de então, foi finalmente destruído, contando-nos a lenda que, emseu incêndio, segundo uns, pereceu Pitágoras, junto com os seus mais amados discípulos, enquantooutros afirmam que conseguiu fugir, tomando um rumo que permaneceu ignorado.

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Segundo as melhores fontes, Pitágoras deve ter falecido entre 510 e 480. A sociedade pitagóricacontinuou após a sua morte, tendo desaparecido quando do famoso massacre de Metaponto, depois daderrota da liga crotoniata."Com ordem e com tempo encontra-se o segredo de fazer tudo e tudo fazer bem". (Pitágoras)

O Pitagorismo

Durante o século VI a.C. verificou-se, em algumas regiões do mundo grego, uma revivescência da vidareligiosa. Os historiadores mostram que um dos fatores concorreram para esse fenômeno foi a linhapolítica adotada, em geral, pelos tiranos, para garantir seu papel de líderes populares e para enfraquecera antiga aristocracia - que se supunha descendente dos deuses protetores das  polis , das divindades"oficiais" -, os tiranos favoreciam a expansão de cultos populares ou estrangeiros."Ajuda teus semelhantes a levantar sua carga, mas não a carregues". (Pitágoras)

 A Pátria Estelar

Dentre as religiões de mistério, de caráter iniciático, uma teve enorme difusão: o culto de Dionisio,originário da Trácia, e que passou a constituir o núcleo da religião órfica. O orfismo - de Orfeu, queprimeiro teria recebido a revelação de certos mistérios e os teria confiado a iniciados sob a forma depoemas musicais - era uma religião essencialmente esotérica. Os órficos acreditavam na imortalidade daalma e na metempsicose, ou seja, na transmigração da alma através de vários corpos, a fim de efetivarsua purificação. A alma aspiraria, por sua própria natureza, a retornar à sua pátria celeste, às estrelas, deonde caíra. Para libertar-se, porém, do ciclo das reincarnações, o homem necessitaria da ajuda deDioniso, deus libertador que completava a libertação preparada pelas práticas catárticas (entre as quaisse incluia a abstinência de certos alimentos). A religião órfica pressupunha, portanto, uma distinção - nãosó de natureza como também de valor - entre a alma ignea e imortal e os corpos pereciveis através dosquais ela realizava sua purificação."O que fala, semeia - o que escuta, recolhe". (Pitágoras)

Salvação pela Matemática

Pitágoras de Samos, que se tornou figura legendária na própria Antiguidade, teria sido antes de maisnada um reformador religioso, pois realizou uma modificação fundamental na doutrina órfica,transformando o sentido da "via de salvação"; em lugar do deus Dioniso colocou a matemática.Da vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com certeza, já que ela foi objeto de uma série derelatos tardios e fantasiosos, como os referentes às suas viagens e a seus contatos com culturasorientais. Parece certo, contudo, que ele teria deixado Samos (na Jônia), na segunda metade do século VI a.C. fugindo à tirania de Polícrates, transferindo-se para Crotona (na Magna Grécia) fundou umaconfraria científico-religiosa.Pitágoras criou um sistema global de doutrinas, cuja finalidade era descobrir a harmonia que preside àconstituição do cosmo e traçar, de acordo com ela, as regras da vida individual e do governo das cidades.Partindo de idéias órficas, o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de natureza divina,entre todos os seres. Essa similitude profunda entre os vários existentes era sentida pelo homem sob a

forma de um "acordo com a natureza", que, sobretudo, depois do pitagórico Filolau, será qualificadacomo uma "harmonia", garantida pela presença do divino em tudo. Natural que dentro de tal concepção -vista por alguns autores como o fundamento do "mito helênico" - o mal seja entendido sempre comodesarmonia. A grande novidade introduzida certamente pelo próprio Pitágoras na religiosidade órfica foi atranformação do processo de libertação da alma num esforço puramente humano, porque basicamenteintelectual. A purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura numérica das coisase torna, assim, a alma semelhante ao cosmo, entendido como unidade harmônica, sustentada pelaordem e pela proporção, e que se manifesta como beleza.

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Pitágoras teria chegado à concepção de que todas as coisas são números através inclusive de umaobservação no campo musical: verificou no monocórdio que o som produzido varia de acordo com aextensão da corda sonora. Ou seja, descobriu que há uma dependência do som em relação à extensão,da música, (tão importante como propiciadora de vivências religiosas estáticas) em relação à matemática."Todas as coisas são números". (Pitágoras)

Em Todas as Coisas, o Número

 A partir do próprio Pitágoras, o pitagorismo primitivo concebe a extensão como descontínua: constituídapor unidades indivisíveis e separadas por um "intervalo". Segundo a cosmologia pitagórica - que descreveo cenário cósmico, onde se processa a purificação da alma - esse "intervalo" resultaria da respiração douniverso que, vivo, inalaria o ar infinito (pneuma ápeiron) em que estaria imerso. Mínimo de extensão emínimo de corpo, as unidades comporiam os números. Estes não seriam, portanto - como virão a sermais tarde -, meros símbolos a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, os números são reais,são essências realizadas (usando-se um vocabulário filosófico posterior), são a própria "alma das coisas",são entidades corpóreas constituídas por unidades contíguas e a prenunciar os átomos de Leucipo eDemócrito. Assim, quando os pitagóricos falam que as coisas imitam os números estariam entendendoessa imitação (mimesis)  num sentido realista: as coisas manifestariam externamente a estruturanumérica inerente.De acordo com essa concepção, os pitagóricos adotaram uma representação figurada dos números, emsubstituição às representações literais mais arcaicas, usadas pelos gregos e depois pelos romanos. Arepresentação figurada permitia explicitar a lei de composição dos números e torna-se um fator deavanço das investigações matemáticas dos pitagóricos. Os primeiros números, representadosfigurativamente, bastavam para justificar o que há de essencial no universo: o um é o ponto, mínimo decorpo, unidade de extensão; o dois determina a linha; o três gera a superfície, enquanto o quatro produzo volume. Já por sua própria notação figurativa evidencia-se que a primitiva matemática pitagóricaconstitui uma aritmo-geometria, a associar intimamente os aspectos numéricos e geométrico, aquantidade e sua expressão espacial."Pensem o que quiserem de ti; faze aquilo que te parece justo". (Pitágoras)

O Escândalo dos "Irracionais" A primitiva concepção pitagórica de número apresentava limitações que logo exigiriam dos própriospitagóricos tentativas de reformulação. O principal impasse enfrentado por essa aritmo-geometriabaseada em inteiros (já que as unidades seriam indivisíveis) foi o levantado pelo números irracionais.Tanto na relação entre certos valores musicais (expressos matematicamente), quanto na base mesma damatemática, surgem grandezas inexprimíveis naquela concepção de número. Assim, a relação entre olado e a diagonal do quadrado (que é a da hipotenusa do triângulo retângulo isósceles com o cateto)tornava-se "irracional", aquelas linhas não apresentavam "razão comum" ou "comum medida", o que seevidenciava pelo aparecimento na tradução aritmética da relação entre elas, de valores sem possibilidadede determinação exaustiva, como V¯². O "escândalo" dos irracionais manifestava-se no próprio teoremade Pitágoras (o quadrado construído sobre a hipotenusa é igual a soma dos quadrados construídos sobre os catetos) . Com efeito, desde que se atribuísse valor 1 ao cateto de um triângulo isósceles, a hipotenusa

seria igual a V¯². Ou então, quando se pressupunha que os valores correspondentes à hipotenusa e aoscatetos eram números primos entre si, acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não eraafinal nem par nem ímpar. Apesar desses impasses - e em grande parte por causa deles - o pensamento pitagórico evoluiu eexpandiu-se, influenciando praticamente todo o desenncolcimento da ciência e da filosofia gregas. Suaastronomia, estreitamente vinculada à sua religião astral foi o ponto de partida das várias doutrinas queos gregos formulariam, pressupondo o universo harmonicamente constituído por astros que desenvolvemtrajetórias, presos a esferas homocêntricas. Essa geometrização do cosmo estava aliada, no pitagorismo,às concepções musicais também desenvolvidas pela escola: separadas por intervalos equivalentes aos

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intervalos musicais, aquelas esferas produziram, em seu movimento, sons de acorde perfeito. Essa"harmonia das esferas", permanentemente soante, seria a própria tessitura do que o homem considera"silêncio"."Educai as crianças e não será preciso punir os homens". (Pitágoras)

Zenão de Eléia   Vida, Obras e Pensamento

Zenão floresceu cerca de 464/461 a.C. Nasceu em Eléia (Itália). Ao contrário de Heráclito, interveio napolítica, dando leis à sua pátria. Tendo conspirado contra a tirania e o tirano (Nearco?), acabou preso,torturado e, por não revelar o nome dos comparsas, perdeu a vida. - Escreveu várias obras em prosa:Discussões , Contra os Físicos , Sobre a Natureza , Explicação Crítica de Empédocles . - Considerado criadorda dialética (entendida como argumentação combativa ou erística), Zenão erigiu-se em defensor de seumestre, Parmênides, contra as críticas dos adversários, principalmente os pitagóricos. Defendeu o seruno, contínuo e indivisível de Parmênides contra o ser múltiplo, descontínuo e divisível dos pitagóricos. A característica de Zenão é a dialética. Ele é o mestre da Escola Eleática; nela seu puro pensamentotorna-se o movimento do conceito em si mesmo, a alma pura da ciência - é o iniciador da dialética. Poisaté agora só vimos nos eleatas a proposição: "O nada não possui realidade, não é, e aquilo que é surgir e desaparecer cai fora" . Em Zenão, pelo contrário, também descobrimos tal afirmar esobressumir daquilo que o contradiz, mas não o vemos, ao mesmo tempo, começar com esta afirmação;é a razão que realiza o começo - ela aponta, tranqüila em si mesma, naquilo que é afirmado como sendosua destruição. Parmênides afirmou: "O universo é imutável, pois na mudança seria posto o não- ser daquilo que é; mas somente é ser, no 'não-ser é' se contradizem sujeito e predicado" .Zenão, pelo contrário, diz: "Afirmai vossa mudança: nela enquanto mudança, é o nada para ela, ou ela não é nada" . Nisto consistia o movimento determinado, pleno para aquela mudança; Zenãofalou e voltou-se contra o movimento como tal ou puro movimento.Também Zenão era um eleata; é o mais jovem e viveu particularmente em convívio com Parmênides.Este o amava muito e o adotou como filho. Seu pai verdadeiro chamava-se Teleutágoras. Em sua vidanão apenas era algo de muito respeito em seu Estado, mas também em geral era célebre e muito

respeitado como professor. Platão o lembra: de Atenas e de outros lugares vinham homens a ele paraentregar-se à sua formação. Atribuiu-se-lhe orgulhosa auto-suficiência, pelo fato de (exceto sua viagem a Atenas) ter sua residência fixa em Eléia, negando-se a viver por mais tempo na grande e poderosa Atenas, para lá colher fama. Segundo muitas lendas, a fortaleza de sua alma tornou-se célebre pela suamorte. Ela teria salvo um Estado (não se sabe se sua pátria Eléia ou se Sicília) de seu tirano, sacrificandoda seguinte maneira sua vida: Teria participado de uma conjuração para derrubar o tirano, tendo, porém,esta sido traída. Quando o tirano, diante de seu povo, o fez torturar de todos os modos, para arrancar-lhe a confissão dos nomes dos outros conjuradores, e ao perguntar pelos inimigos do Estado, Zenãodelatou primeiro todos os amigos do tirano como participantes da conjuração, chamando então o tiranomesmo a peste do Estado. Dessa maneira, as poderosas admoestações ou também as torturas horríveise a morte de Zenão ergueram os cidadãos e levantaram-lhes o ânimo, para caírem sobre o tirano,liquidá-lo e assim libertar-se. De modo violento e furioso de sua reação. Diz-se que ele se postou comose quisesse dizer ainda algo aos ouvidos do tirano, mordendo-lhe, no entanto, a orelha e cerrando os

dentes até ter sido trucidado pelos outros. Outros narram que ele teria ferrado os dentes em seu nariz,segurando-o assim. Outros ainda dizem que, tendo suas respostas sido seguidas de enormes torturas, elecortou a língua com os próprios dentes e a cuspiu no rosto do tirano, para lhe mostrar que dele nadaarrancaria; depois disso teria sido triturado num pilão.1) Segundo seu elemento tético , a filosofia de Zenão é, em seu conteúdo, inteiramente igual à que vimosem Xenófanes e Parmênides, apenas com esta diferença fundamental, que os momentos e as oposiçõessão expressos mais como conceitos e pensamentos. Já em seu elemento tético vemos progresso; ele jáestá mais avançado no sobressumir das oposições e determinações.

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"É impossível", diz ele, "que, quando algo é, surja" (ele relaciona isto com a divindade); "pois teriaque surgir ou do igual ou do desigual. Ambas as coisas são, porém. impossíveis; pois não se podeatribuir, ao igual, que dele se produza mais do que deve ser produzido, Já que os iguais devem ter entresi as mesmas determinações." Com a aceitação da igualdade, desaparece a diferença entre o que produze aquilo que é produzido. "Tampouco pode surgir o desigual do desigual; pois se do mais fraco se

originasse o mais forte ou do menor o maior ou do pior o melhor, ou se, inversamente, o pior viesse domelhor, originar-se-ia o não-ser do ente, o que é impossível; portanto. Deus é eterno." Isto foidenominado panteísmo (spinozismo), que repousaria sobre a proposição ex nihilo nihil fit . Em Xenófanese Parmênides tínhamos ser e nada. Do nada é imediatamente nada, do ser, ser; mas assim já é. Ser é aigualdade expressa como imediata; pelo contrário, igualdade como igualdade pressupõe o movimento dopensamento e a mediação, a reflexão em si. Ser e não-ser situam-se assim, lado a lado, sem que suaunidade seja concebida como a de diferentes; estes diferentes não são expressos como diferentes. EmZenão a desigualdade é o outro membro em oposição a igualdade.Em seguida, é demonstrada a unidade de Deus: "Se Deus é o mais poderoso de tudo, então Ihe épróprio que seja um; pois, na medida em que dele houvesse dois ou ainda mais, ele não teria podersobre eles; mas enquanto Ihe faltasse o poder sobre os outros não seria Deus. Se, portanto, houvessemais deuses, eles seriam mais poderosos e mais fracos um em face do outro; não seriam, porconseguinte, deuses; pois faz parte da natureza de Deus não ter acima de si nada mais poderoso; pois oigual não é nem pior nem melhor que o igual - ou não se distingue dele. Se, portanto, Deus é e se ele éde tal natureza, então só há um Deus; não seria capaz de tudo o que quisesse, se houvesse maisdeuses"."Sendo um, é em toda parte igual, ouve, vê e possui também, em toda parte, os outros sentimentos;pois, não fosse assim, as partes de Deus dominariam uma sobre a outra" (uma estaria onde a outra nãoestá, reprimi-la-ia; uma parte teria determinações que faltariam às outras), "o que é impossível. ComoDeus é em toda parte igual, possui ele a forma esférica; pois não é aqui assim, em outra parte de outromodo, mas em toda parte igual." Diz ainda: "Já que é eterno, um e esférico, ele nao é nem infinito(ilimitado) nem limitado. Pois, a) ilimitado é o não-ente; pois este não possui nem meio, nem começo,nem fim, nem uma parte - tal coisa é o ilimitado. Como, porém, é o não-ente, assim não é o ente. 0ilimitado é o indeterminado, o negativo; seria o não-ente, a supressão do ser, e é assim, ele mesmo,determinado como algo unilateral. b) Dar-se-ia delimitação mútua, se houvesse diversos; mas. como é

apenas um, ele não é limitado." Assim Zenão também mostra: "O um não se move, nem é imóvel. Poisimóvel é a) o não-ente" (no não-ente não se realiza nenhum movimento; com a falta de movimentoestaria posto o não-ser ou o vazio; o imóvel é negativo; "pois para ele nenhuma outra coisa advém, nemvai para coisa alguma. b) Movido, porém, somente é o múltiplo; pois um dever-se-ia mover para ooutro." Movido só é o que é diferente de outro; pressupõe-se uma multiplicidade de tempo, espaço. "Oum, portanto, não está nem em repouso nem se movimenta; pois não se parece nem com o não-entenem com o múltiplo. Em tudo isto, Deus se comporta assim; pois ele é eterno e um, idêntico a si mesmoe esférico nem ilimitado nem limitado, nem em repouso nem em movimento." Do fato de nada poderprovir, quer do igual quer do desigual, Aristóteles conclui que, ou nada existe fora de Deus, ou tudo é eterno . Vemos, em tal tipo de raciocínio, uma dialética que se pode denominar de raciocínio metafísico. 0princípio da identidade Ihe serve de fundamento: "O nada é igual ao nada, não passa para o ser, nem vice-versa; do igual, portanto, nada pode provir" . O ser, o um da Escola Eleática é apenas esta

abstração, este afundar-se no abismo da identidade do entendimento. Este modo, o mais antigo, deargumentar é ainda, até o dia de hoje, válido, por exemplo, nas assim chamadas demonstrações daunidade de Deus. A isto vemos ligada uma outra espécie de raciocínio metafísico: são feitaspressuposições, por exemplo. o poder de Deus, raciocinando-se, a partir daí. negando-se predicados.Esta a maneira comum de nós raciocinarmos. No que se refere às determinações deve-se observar queelas, enquanto algo negativo, devem ser mantidas afastadas do ser positivo e apenas real.Para ir a esta abstração fazemos um outro caminho, não utilizamos a dialética que usa a Escola Eleática;nosso caminho é trivial e mais óbvio. Nós dizemos que Deus é imutável, a mudança apenas se atribui àscoisas finitas (isto como que sendo uma proposição empírica); de um lado temos, assim, as coisas finitas

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e a mudança; de outro lado, a imutabilidade nesta unidade abstrata e absoluta consigo mesma. É amesma separação; só que nós deixamos valer como ser também o finito. o que os eleatas desprezaram.Ou também partimos das coisas finitas para as espécies, gêneros, e deixamos, passo a passo, o negativode lado; e o gênero mais alto é então Deus, que, enquanto o ser supremo, é apenas afirmativamente,mas sem qualquer determinação. Ou passamos do finito para o infinito, dizendo que o finito, enquanto

limitado, deve ter seu fundamento no infinito. Em todas estas formas que nos são bem familiares estácontida a mesma dificuldade da questão que se levanta no que diz respeito ao pensamento eleático: Deonde vem a determinação, como deve ela ser concebida, tanto no um mesmo, que deixa o finito de lado,como no modo como o infinito se manifesta no finito? Os eleatas distinguem-se, em seu pensamento, denosso modo de refletir comum, pelo fato de terem posto mãos à obra de maneira especulativa - oespeculativo tem lugar no fato de afirmarem que a mudança não é - e pelo fato de, desta maneira. teremmostrado que, assim como se pressupõe o ser, a mudança é em si contradição, algo incompreensível:pois do um, do ser, está afastada a determinação do negativo, da multiplicidade. Enquanto nós deixamosvaler, em nossa representação, a realidade do mundo finito, os eleatas foram mais conseqüentes,avançando até a afirmação de que só o um é e de que o negativo não é - conseqüência que, ainda quedeva ser por nós admirada, é, contudo, não menos, uma grande abstraçãoParticularmente digno de nota é o fato de que. em Zenão, já há a consciência mais alta de que umadeterminação é negada de que esta negação mesma é novamente uma determinação, devendo então,na negação absoluta. não ser negada apenas uma determinação, mas ambas as negações que se opõem. Antes é negado o movimento e a essência absoluta aparece como em repouso; ou é negada enquantofinita. e então é puramente infinita. Isto, porém, também é determinação, também ela finita. Do mesmomodo, também o ser em oposição ao não-ser é uma determinação.Sendo a essência absoluta posta como o um ou o ser, ela é posta através da negação; é determinadacomo o negativo e, assim, como o nada, e ao nada se atribuem os mesmos predicados que ao ser: opuro ser não é movimento, é o nada do movimento. Isto pressentiu Zenão; e, porque previu que o ser éo oposto do nada, assim negou ele do um o que deveria dizer-se do nada. Mas o mesmo deveriaacontecer com o resto. 0 um é o mais poderoso e nisto determinado propriamente como o destruirabsoluto; pois o poder é também o não-ser absoluto de um outro, o vazio. 0 um é igualmente o não dosmuitos: tanto no nada como no um, a multiplicidade está sobressumida. Esta dialética mais altaencontramo-la em Platão, em seu Parmênides . Aqui isto surge apenas referido a algumas determinações

não com referência às determinações do um e do ser mesmo. A consciência mais alta é a consciência sobre a nulidade do ser enquanto algo determinado em face donada; isto se dá, parte em Heráclito e, então, nos sofistas; com isto não permanece verdade alguma, ser-em-si, mas apenas o ser para o outro é, ou seja, a certeza da consciência individual e a certeza comorefutação - o lado negativo da dialética.2) Já lembramos que também encontramos a verdadeira dialética objetiva igualmente em Zenão.Zenão possui o aspecto importante de ser o descobridor da dialética: se não é ele propriamente, no quevimos, o descobridor da dialética em sua plenitude, ao menos é quem está em seu começo; pois ele negapredicados que se opõem. Portanto, Xenófanes, Parmênides, Zenão põem como fundamento aproposição: Nada é nada, o nada não é, ou o igual (como diz Melisso) é a essência; isto é, eles afirmamum dos predicados que se opõem, como a essência. Eles põem-no fixamente; onde encontram, numadeterminação, o oposto, suprimem com isto essa determinação. Mas, assim, esta somente se suprimeatravés de um outro, através de minha afirmação, através da distinção que faço de que um lado é o

verdadeiro, o outro sem importância (nulo) (parte-se de uma determinada proposição); sua nulidade nãoaparece nela mesma, não de maneira que se suprima a si mesma, isto é, que contenha em si  umacontradição. Como movimento: Verifiquei algo e vejo que é o nulo; demonstrei isto, segundo opressuposto, no movimento; conclui-se, portanto, que ele é o nulo. Mas uma outra consciência nãoverifica aquilo; eu declaro isto como imediatamente verdadeiro; a outra consciência tem razão em afirmaruma outra: coisa como imediatamente verdadeira, por exemplo, o movimento. Como sempre é o casoquando um sistema filosófico refuta o outro, o primeiro sistema é posto como fundamento e a partir delese entra em debate contra o outro. Assim a coisa é facilitada: "O outro sistema não possui verdade,porque não concorda com o meu"; mas o outro sistema tem o mesmo direito de dizer assim. Eu não

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devo demonstrar sua não-ver dade através de um outro, mas em si  mesmo. De nada ajudademonstrar meu sistema ou minha proposição e então concluir: portanto, o sistema que se opõe estáerrado; para esta proposição aquela sempre parecerá algo de estranho, algo exterior. O falso não deveser apresentado corno falso porque o oposto é verdadeiro, mas em si mesmo.Esta convicção racional vemos despertar em Zenão. No Parmênides de Platão (127-128), esta dialética é

muito bem descrita. Platão fá-lo falar assim sobre isto: faz Sócrates dizer que Zenão afirma em seuescrito o mesmo que Parmênides, isto é, que tudo é um: mas que nos procura enganar com umaexpressão, procurando dar a impressão de que está dizendo algo de novo. Sócrates diz que Parmênidesafirma em seu poema que tudo é um: Zenão, pelo contrário, que o múltiplo não é. Zenão responde queescreveu isto, antes contra aqueles que procuram tornar ridícula (komodeiñ)  a proposição deParmênides, quando mostram quantas coisas ridículas e que contradições contra si mesmos resultam desuas afirmações. Diz que combateu aqueles que afirmam o ser do múltiplo, para demonstrar que distoresultariam muito mais coisas discordantes que da proposição de Parmênides.Isto é a determinação mais exata da dialética objetiva. Nesta dialética não vemos afirmar-se opensamento simples para si mesmo, mas, fortalecido, levar a guerra para território inimigo. Este ladopossui a dialética na consciência de Zenão; mas ela deve ser considerada também de seu lado positivo.Conforme a representação corrente da ciência, em que proposições são resultado da demonstração, é ademonstração o movimento da convicção, ligação através de mediação. A dialética como tal é a) dialéticaexterior, este movimento distinto do compreender deste movimento; b) não é um movimento apenas denossa intuição, mas a partir da coisa mesma, isto é, demonstrada para o puro conceito do conteúdo. Aquela dialética é uma mania de contemplar objetos, de neles apontar razões e aspectos, através dosquais se torna vacilante o que em geral vale como firme. Podem ser então razões bem exteriores. A outradialética, porém, é a consideração imanente do objeto: ele é tomado para si, sem pressuposições, idéia,dever-ser, não segundo circunstâncias exteriores, leis, razões. A gente se põe inteiramente dentro dacoisa, considera o objeto em si mesmo e o toma segundo as determinações que possui. Nestaconsideração, ele se demonstra a si mesmo, mostra que possui determinações opostas, que se suprime(sobressume): esta dialética encontramos precipuamente junto aos antigos. A dialética subjetiva, queraciocina, baseando-se em razões exteriores, torna-se norma quando se concede: "No correto está o incorreto e no falso também o verdadeiro" . A dialética verdadeira não deixa nada sobrando em seuobjeto, de tal modo que apresentaria falhas apenas de um lado; mas ele se dissolve segundo sua

natureza inteira. 0 resultado desta dialética é zero, o negativo; o afirmativo que nela se esconde aindanão aparece. A esta dialética verdadeira pode juntar-se o que os eleatas fizeram. Mas junto a eles aindanão vingou a determinação, a essência do com-preender; ficaram parados na idéia de que através dacontradição o objeto se torna nulo. A dialética da matéria de Zenão não foi até hoje ainda refutada; não se conseguiu ainda passar além delae a questão fica esquecida no indeterminado. "Ele demonstra que, quando é o múltiplo, então é grande epequeno: grande, assim o múltiplo é infinito, segundo a grandeza" (tò mégethos ), deve-se ultrapassar amultiplicidade, enquanto limite indiferente, para passar para o infinito; o que é infinito não é maisgrande, nem mais múltiplo; infinito é o negativo do múltiplo; "pequeno, de maneira que não tem maisgrandeza", átomos, o não-ente. "Aqui mostra ele que o que não tem tamanho, nem espessura, nemmassa (ónkos ), também não é. Pois se fosse acrescentado a um outro não aumentaria a este; pois, senão tem tamanho e grandeza, nada poderia acrescentar ao tamanho do outro; assim o que foiacrescentado não é nada. O mesmo aconteceria ao ser retirado; o outro não seria por isso diminuído;

não é, portanto, nada".Os aspectos mais exatos desta dialética nos conservou Aristóteles; o movimento foi tratadoparticularmente por Zenão, de maneira objetiva e dialética. Mas o caráter exaustivo que vemos noParmênides de Platão não Ihe corresponde. Vemos desaparecer para a consciência de Zenão o simplespensamento imóvel para tornar-se ele mesmo movimento pensante; na medida em que combate omovimento sensível, ele o dá a si. O fato de a dialética ter tido atraída sua atenção primeiro para omovimento é a razão de a dialética mesma ser este movimento ou o movimento mesmo ser a dialética detodo ente. A coisa tem. enquanto se move, sua dialética mesma em si, e o movimento é: tornar-se outro,sobressumir-se. Aristóteles afirma que Zenão teria negado o movimento pelo fato de possuir contradição

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interna. Mas não se deve entender isto assim como se o movimento não fosse - como nós dizemos,não há elefantes, não há rinocerontes. Que o movimento existe, que ele é fenômeno, isto nem está emquestão; o movimento possui certeza sensível, como existem elefantes. Neste sentido, Zenão nem teve aidéia de negar o movimento. Pelo contrário, seu questionar vai em busca de sua verdade; mas omovimento é não verdadeiro, pois ele é contradição. Com isto quer ele dizer que não se Ihe deveria

atribuir verdadeiro ser. Zenão mostra então que a representação do movimento contém uma contradiçãoe apresenta quatro modos de refutação do movimento. Os argumentos repousam sobre a infinita divisãodo espaço e do tempo.1) Primeira forma : Zenão diz que o movimento não tem verdade alguma, porque o movido deveriaatingir primeiro a metade do espaço como sua meta. Aristóteles diz isto de maneira tão breve por tertratado antes amplamente o objeto e tê-lo exposto detidamente. Isto deve ser compreendido de maneiramais universal; é pressuposta a continuidade do espaço. O que se move deve atingir uma determinadameta; este caminho é um todo. Para percorrer o todo, o que é movido deve antes ter percorrido ametade. Agora a meta é o fim desta metade. Mas esta metade é novamente um todo, este espaço possuiassim uma metade; deve, portanto, ter atingido antes a metade desta metade, e assim até o infinito.Zenão toca aqui na divisibilidade infinita do espaço. Pelo fato de espaço e tempo serem absolutamentecontínuos, nunca se pode parar com a divisão. Cada grandeza - e cada tempo e espaço sempre tem umagrandeza - é novamente divisível em duas metades; estas devem ser percorridas e, mesmo ondecolocamos um espaço o menor possível, sempre surge este mesmo estado de coisas. O movimento queseria o percurso destes momentos infinitos nunca termina; portanto, o que é movido nunca atinge suameta.É conhecido como Diógenes de Sínope, o Cínico, refutou tais provas da contradição do movimento, demaneira muito simples; levantou-se em silêncio e caminhou de cá para lá - ele as refutou pela ação. Masa estória é continuada também assim: a um aluno que se contentara com esta refutação, Diógenes ocastigou pela simples razão de que, se o professor havia discutido com argumentos, ele só poderia deixarvaler uma refutação também com argumentos. Da mesma maneira a gente não deve satisfazer-se com acerteza sensível; mas é preciso compreender. Vemos aqui desenvolvido o infinito aparecer. primeiro em sua contradição - uma consciência dele. Omovimento, o puro aparecer em si mesmo é o objeto e surge como um pensado, um posto segundo suaessência, a saber, (consideramos a forma dos momentos) em suas diferenças da pura igualdade consigo

mesmo e da pura negatividade - do ponto contra a continuidade. Na nossa representação não parececontraditório que o ponto no espaço ou, do mesmo modo, o momento no tempo contínuo seja posto ouque seja afirmado o agora do tempo como uma continuidade, uma duração (dia, ano); mas seu conceitocontradiz-se a si mesmo. A igualdade consigo mesmo, a continuidade é absoluta homogeneidade, éeliminação de toda diferença, de todo negativo, de todo ser para si; o ponto é, pelo contrário, o puro serpara si, o absoluto distinguir-se e a supressão de toda igualdade e homogeneidade com outro. Mas estesdois estão postos numa unidade, no espaço e no tempo, espaço e tempo, portanto, a contradição. Omais fácil é mostrá-la no movimento; pois, no movimento, o oposto é também posto para arepresentação. Pois o movimento e a essência, a realidade do tempo e do espaço; e, enquanto estaaparece, é posta, também é posto já o fenômeno da contradição. É para esta contradição que Zenãochama a atenção.É a continuidade de um espaço, é o positivo que é posto; e nele o limite que o divide ao meio. Mas olimite que divide ao meio não é limite absoluto ou em si e para si, mas é algo limitado, é novamente

continuidade. Mas esta continuidade também novamente nada é de absoluto, mas põe o oposto nela -limite que divide ao meio; mas com isto novamente não é posto o limite da continuidade, a metade aindaé continuidade e assim até o infinito. Até o infinito - com isto nos representamos um além, que não podeser atingido, fora da representação que não pode atingi-lo. É um inacabado ultrapassar, mas presente noconceito - um passar além de uma determinação oposta para outra, de continuidade para negatividade,de negatividade para continuidade; elas estão diante de nós. Destes dois momentos pode, no processo,ser afirmado um deles como o essencial. Primeiro Zenão põe o progresso contínuo de maneira tal quenão se atinge nada igual a si, um determinado - nenhum espaço limitado, portanto, continuidade; ouZenão afirma o avanço neste limitar.

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 A resposta geral e a solução de Aristóteles é que espaço e tempo não são divididos infinitamente, masapenas divisíveis. Parece, entretanto, que, enquanto são divisíveis (potentia, dynámei, não actu,energeía) , também devem estar efetivamente divididos infinitamente; pois, de outro modo, não poderiamser divididos ao infinito - uma resposta geral para a representação.2) "O segundo argumento"  (que também é pressuposição da continuidade e posição da divisão)

chama-se "argumento de Aquiles", o homem dos pés velozes. Os antigos gostavam de vestir asdificuldades com representações sensíveis. De dois corpos que se movem numa direção, dos quais umestá na frente e outro o segue numa determinada distância, movendo-se, porém, mais rapidamente queaquele, sabemos que o segundo alcançará o primeiro. Zenão, porém, diz: "O mais vagaroso nunca  poderá ser alcançado nem mesmo pelo mais rápido" ; e isto ele demonstra assim: o que segue necessitade uma determinada parte do tempo para "alcançar o lugar de onde partiu o que está em fuga" , nocomeço desta determinada parte do tempo. Durante o tempo em que o segundo atingiu o ponto onde oprimeiro se achava, este já avançou para mais longe, deixou atrás de si novo espaço que o segundonovamente deverá percorrer numa parte desta parte do tempo; e assim se vai até o infinito. B percorrenuma hora duas milhas, A , no mesmo tempo, uma milha. Se estão separados entre si por duas milhas,então B chegou numa hora onde A estava no começo da hora. Mas o espaço (uma milha), vencido por

 A , será percorrido por B na metade de uma hora, e assim ao infinito. Desta maneira, o movimento maisrápido nada ajuda ao segundo corpo para percorrer o espaço intermediário que o separa do outro; otempo de que necessita, também o mais vagaroso sempre tem à sua disposição, e "com isto ele jásempre conseguiu uma vantagem". Aristóteles, que trata disto, diz brevemente sobre o mesmo: "Este argumento representa a mesmadivisão infinita'' ou o infinito ser dividido através do movimento. "É algo não verdadeiro; pois o rápido,contudo, alcançará o vagaroso, se Ihe for permitido ultrapassar o limite, o limitado." A resposta é corretae contém tudo. Nesta representação são admitidos dois pontos de tempo e dois de espaço que estãoseparados entre si - isto é, são limitados, são limites um para o outro. Se, ao contrário, se admite quetempo e espaço são contínuos, de maneira tal que dois pontos do tempo ou dois pontos de espaço serelacionam entre si de maneira contínua, então eles são, igualmente, na medida em que são doistambém não dois - são idênticos.Zenão apenas faz valer o limite, a divisão, o momento da separação de espaço e tempo em sua totaldeterminação; por isto surge a contradição. O que gera a dificuldade sempre é o pensamento, porque

separa em sua distinção aqueles momentos de um objeto, na realidade unidos. 0 pensamento produziu aqueda original, quando o homem comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal; mas tambémressarce este prejuízo. É uma dificuldade superar o pensamento e é somente ele  que causa estadificuldade.3) "O terceiro argumento" tem a forma que Zenão descreve assim: "A flecha em vôo repousa" , e istoporque "o que se move sempre está no mesmo agora" e no aqui igual a si mesmo, no "não-distinguível"(en tõ nyn, katà tò íson) ; ele está aqui, e aqui e aqui. Assim que dizemos que sempre é o mesmo; a isto,porém, não chamamos movimento, mas repouso: o que sempre está no aqui e agora, repousa. Ou deve-se dizer da flecha que sempre está no mesmo espaço e no mesmo tempo; não consegue ultrapassar seuespaço, não conquista um outro espaço, isto é, um espaço maior ou menor. Aqui o tornar-se outro foisobressumido; o ser limitado é posto como tal, mas o limitar é, contudo, um momento. No aqui agoracomo tais, não há diferença. No espaço, um ponto é tão bem um aqui como o outro, isto aqui e isto aquie mais um outro, etc.; e, contudo, o aqui é sempre o mesmo aqui; não são distintos entre si. A

continuidade, a igualdade do aqui e afirmada aqui contra a opinião da diferença. Cada lugar é lugardiferente - portanto, o mesmo; a diferença é apenas aparente. Não é neste estado de coisas. mas nomundo do espirito que se manifesta a verdadeira e objetiva diferença.Isto acontece também na mecânica: pergunta-se qual se move de dois corpos. Para determinar qualdeles se move é preciso mais de dois lugares, ao menos três. Mas uma coisa é correta: o movimento éabsolutamente relativo; se, no espaço absoluto, por exemplo, o olho repousa ou se move, é inteiramenteo mesmo. Ou, conforme uma proposição de Newton: se dois corpos giram, em círculo, um em torno dooutro, surge a pergunta se um repousa ou se ambos se movem. Newton quer decidir isto por umacircunstância exterior, os fios estendidos (tensio filorum) . Se num navio caminho na direção oposta da

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direção em que se move o navio, o mover-me é movimento com relação ao navio, mas repouso comrelação a outra coisa.Nos dois primeiros argumentos a continuidade no avançar é o que predomina: não existe limite absoluto,nem espaço limitado, mas apenas continuidade absoluta, transgredir todos os limites. No argumentoagora em questão é retido o aspecto inverso, a saber, o absoluto ser-limitado, a interrupção da

continuidade, nenhuma passagem para outro. Sobre este terceiro argumento diz Aristóteles que ele seorigina do fato de se aceitar que o tempo consiste de "agoras"; pois, se não se concede isto, não se podetirar a conclusão a que Zenão chegou.4) "O quarto argumento" e tomado de corpos iguais que se movem no estádio ao lado de um igual,com velocidade igual, um a partir do fim do estádio, o outro a partir do meio, um em direção do outro;disto se deveria concluir que a metade do tempo é igual ao dobro. O erro da conclusão consiste no fatode admitir que, no que se move e no que está em repouso, a coisa percorre uma mesma extensão emtempo igual, com velocidade igual; isto, porém, é falso.Esta quarta forma diz respeito à contradição no movimento oposto. A oposição possui aqui uma outraforma: a) mas também novamente o universo, o comum, que deve ser atribuído inteiramente a cadaparte, enquanto realiza para si apenas uma parte; b) é apenas posto como verdadeiro (como sendo) oque cada parte faz para si. Aqui a distância de um corpo é a soma do afastar se de ambos; é o queacontece quando caminho dois pés para o leste e outro, partindo do mesmo ponto, caminha dois péspara o oeste; assim estamos distantes um do outro quatro pés - aqui ambos devem ser somados; nadistância de ambos, ambos são positivos. Ou avancei e retrocedi dois pés - no mesmo ponto; ainda quetenha andado quatro pés, não saí do ponto em que estava. 0 movimento é, portanto, nulo; pois pelomovimento de ir para frente e para trás há aqui coisas opostas que se suprimem.Isto é então a dialética de Zenão. Ele captou as determinações que contém nossa representação doespaço e tempo; ele as tinha em sua consciência e nelas mostra o aspecto contraditório. As antinomiasde Kant nada mais são do que aquilo que Zenão aqui já fizera.O elemento universal da dialética, a proposição universal da escola eleática foi, portanto: "0 verdadeiro é apenas o um, todo o resto é não-verdadeiro" ; como a filosofia kantiana chegou ao resultado: "Conhecemos apenas fenômenos" . No todo é o mesmo princípio: "O conteúdo da consciência é apenas um fenômeno, nada verdadeiro" ; mas nisto também reside uma diferença. Pois Zenão e os Eleatasafirmaram sua proposição com a seguinte significação: "O mundo sensível é em si mesmo apenas mundo

fenomenal, com suas formas infinitamente diversas - este lado não possui verdade em si mesmo". Nào é,porém, isto que pensa Kant. Ele afirma: Voltando-se para o mundo, quando o pensamento se dirige parao mundo exterior (para o pensamento também o mundo dado no interior é algo exterior), voltando-separa ele, fazemos dele um fenômeno; é a atividade de nosso pensamento que atribui ao exterior tantasdeterminações: o sensível, determinações da reflexão, etc. Só nosso conhecimento é fenômeno, o mundoé em si absolutamente verdadeiro; só nossa aplicação, nosso acréscimo o arruína para nós; o queacrescentamos, nada vale. O mundo torna-se não-verdadeiro pelo fato de Ihe jogarmos em cima umamassa de determinações. Isto é então a grande diferença. Este conteúdo também é nulo em Zenão; mas,em Kant, porque é obra nossa. Em Kant é o elemento espiritual que arruína o mundo; segundo Zenão, éo mundo, o que aparece em si que é não-verdadeiro. Segundo Kant, é nosso pensar, a atividade denosso espírito o elemento mau - é uma enorme humildade do espírito não ter confiança noconhecimento. Na Bíblia diz Cristo: "Pois não sois melhores que os pardais?" Nós o somos enquantopensamos - enquanto seres sensíveis, tão bons ou tão maus como os pardais. O sentido da dialética de

Zenão possui maior objetividade que esta dialética moderna. A dialética de Zenão ainda se conteve noslimites da metafísica: mais tarde, com os sofistas, tornou se universal.

1.5 - Demócrito de Abdera  

De sua vida sabemos poucas coisas seguras. mas muitas lendas. Viagens extraordinárias, a ruínamaterial, as honras que recebeu de seus concidadãos, sua solidão, seu grande poder de trabalho. Umatradição tardia afirma que ele ria de tudo. . .

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Demócrito e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é acreditar narealidade do movimento  porque o pensamento é um movimento. Esse é seu ponto de ataque: omovimento existe porque eu penso e o pensamento tem realidade. Mas se há movimento deve haver umespaço vazio, o que eqüivale a dizer que o não-ser é tão real quanto o ser. Se o espaço é absolutamentepleno, não pode haver movimento. Com efeito: 1) o movimento espacial só pode ter lugar no vazio, pois

o pleno não pode acolher em si nada que Ihe seja heterogêneo; se dois corpos pudessem ocupar omesmo lugar no espaço, poderia haver uma infinidade deles, pois o menor poderia acolher em si o maior;2) a rarefação e a condensação só se explicam pelo espaço vazio; 3) o crescimento só se explica porqueo alimento penetra nos interstícios do corpo; 4) em um vaso cheio de cinza pode-se ainda derramartanta água quanta se ele estivesse vazio, a cinza desaparece nos interstícios vazios da água. O não ser é,portanto, também o pleno, nastón (de nasso , ou aperto), o stereón . O pleno é aquilo que não contémnenhum Kenón . Se toda grandeza fosse divisível ao infinito, não haveria mais nenhuma grandeza, nãohaveria mais ser. Se deve subsistir um pleno, isto é, um ser, é preciso que a divisão não possa ir aoinfinito. Mas o movimento demonstra o ser, tanto quanto o não-ser. Se somente o não ser existisse, nãohaveria movimento. O que resta são os átomos. O ser é a unidade indivisível.Mas, se esses seres devem agir uns sobre os outros pelo choque, é preciso que sejam de naturezaidêntica. Demócrito afirma, portanto, como Pitágoras, que o ser deve ser semelhante a si mesmo emtodos os pontos. O ser não pertence mais a um ponto do que a outro. Se um átomo fosse o que o outronão é, haveria um não-ser, o que é uma contradição. Somente nossos sentidos nos mostram coisasqualitativamente diferentes. São chamadas também idéai ou skhémata . Todas as qualidades são nómo ,os seres só diferem pela quantidade. É preciso, pois, remeter todas as qualidades a diferençasquantitativas . Elas só se distinguem pela forma (rhysmós, skhéma ), pela ordem (diathigé, táxis ), peiaposição (tropé, thésis ). A difere de N pela forma, AN de NA pela ordem, Z de N pela posição. A principaldiferença está na forma, que indica diferença de grandeza e de peso. O peso pertence a cada corpo(como medida de todas as quantidades). Como todos os seres são da mesma natureza, o peso devepertencer igualmente a todos, isto é, à mesma massa, o mesmo peso. O ser, portanto, é definido comopleno, dotado de uma forma, pesado; os corpos são idênticos a esses predicados. Temos aqui a distinçãoque reaparece em Locke: as qualidades primárias  pertencem às coisas em si mesmas, fora de nossarepresentação; não se pode fazer abstração delas; são: a extensão, a impermeabilidade, a forma, onúmero. Todas as outras qualidades são secundárias , produzidas pela ação das qualidades primárias

sobre os órgãos de nossos sentidos, dos quais são apenas as impressões: cor, som, gosto, odor, dureza,moleza, polido, rugoso, etc. Pode-se, portanto, fazer abstração da natureza dos corpos na medida emque é apenas a ação dos nervos sobre os órgãos sensoriais.Uma coisa nasce quando se produz um certo agrupamento de átomos; desaparece quando esse grupo sedesfaz, muda quando muda a situação ou a disposição desse grupo ou quando uma parte é substituidapor outra. Cresce quando Ihe são acrescentados novos átomos. Toda ação de uma coisa sobre outra seproduz pelo choque dos átomos; se há separação no espaço, recorre-se à teoria das aporrhoaí  . Percebe-se, pois, que Empédocles foi utilizado a fundo, pois este havia discernido o dualismo do movimento em Anaxágoras e recorrido à ação mágica. Demócrito adota uma posição adversa. Anaxágoras reconheciaquatro elementos; Demócrito esforçou-se por caracterizá-los a partir de seus átomos da mesma natureza.O fogo é feito de átomos pequenos e redondos; nos outros elementos estão misturados átomos diversos;os elementos distinguem-se apenas pela grandeza de suas partes. É por isso que a água, a terra e o arpodem nascer um do outro por dissociação.

Demócrito pensa, com Empédocles, que somente o semelhante age sobre o semelhante. A teoria dos poros  e das aporrhoaí  preparava a do kenón . O ponto de partida de Demócrito, a realidade domovimento, Ihe é comum com Anaxágoras e Empédocles, provavelmente também sua dedução a partirda realidade do pensamento. Com Anaxágoras, tem em comum os ápeira  ou matérias originais.Naturalmente, é antes de tudo de Parmênides que ele procede, é este que domina todas as suasconcepções fundamentais. Ele retorna ao primeiro sistema de Parmênides, segundo o qual o mundo secompunha de ser e de não-ser. Toma emprestado de Heráclito a crença absoluta no movimento, a idéiade que todo movimento pressupõe uma contradição e de que o conflito é o pai de todas as coisas.

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De todos os sistemas antigos, o de Demócrito é o mais lógico: pressupõe a mais estrita necessidadepresente em toda parte, não há nem interrupção brusca nem intervenção estranha no curso natural dascoisas. Só então o pensamento se desprende de toda a concepção antropomórfica do mito, tem-se,enfim, uma hipótese  cientificamente utilizável; esta hipótese, o materialismo, sempre foi da maiorutilidade. É a concepção mais terra-a-terra; parte das qualidades reais da matéria, não procura logo de

início, como a hipótese do Nous ou as causas finais de Aristóteles, ultrapassar as forças mais simples. Éum grande pensamento reconduzir às manifestações inumeráveis de uma força única, da espécie maiscomum, todo esse universo cheio de ordem e de exata finalidade. A matéria que se move segundo asIeis mais gerais produz, com o auxílio de um mecanismo cego, efeitos que parecem os desígnios de umasabedoria suprema. Leia-se Kant, História Natural do Céu , p. 48. Rosenkr.: ''Admito que a matéria detodo o universo está em um estado de dispersão geral e faço dele um perfeito caos. Vejo as substânciasse formarem em virtude de leis conhecidas de atração e modificarem, pelo choque, seu movimento. Sintoo prazer de ver um todo bem ordenado nascer sem o auxílio de fábulas arbitrárias, pelo efeito de leismecânicas bem conhecidas, e esse todo é tão semelhante ao universo que temos sob os olhos que nãoposso impedir-me de tomá-lo por ele mesmo. Não contestarei então que a teoria de Lucrécio ou de seuspredecessores, Epicuro, Leucipo, Demócrito, tem muita analogia com a minha. Parece-me que se poderiadizer aqui, em certo sentido, sem muita imprudência: 'Dai-me a matéria, e eu vos farei um mundo' ".Eis como Demócrito se representa a formação de um mundo dado: os átomos flutuam, perpetuamenteagitados, no espaço infinito; censurou-se desde a Antigüidade esse ponto de partida, dizendo que omundo teria sido movido e teria nascido por "acaso", concursu quodam fortuito , que o "acaso cego"reinaria entre os materialistas. Esta é uma maneira muito pouco filosófica de se exprimir. O que é precisodizer é que há uma causalidade sem finalidade, anánke sem intenções. Não há acaso, mas um conjuntode leis rigorosas, embora não racionais.Demócrito deduz todo movimento do espaço vazio e do peso. Os átomos pesados caem e fazem subir osátomos leves com sua pressão. O movimento original é, bem entendido, vertical, uma queda regular eeterna no infinito do espaço; não se pode indicar sua velocidade, pois, como o espaço é infinito e aqueda regular não há medida para essa velocidade...Como os átomos vieram a operar movimentos laterais, a formar turbilhões na regularidade dascombinações que se faziam e se desfaziam? Se tudo caía na mesma velocidade, isso seria equivalente aorepouso absoluto; a velocidade sendo desigual, eles se encontram, alguns são repelidos, produz-se um

movimento giratório. Esse turbilhão aproxima, primeiramente, o que é de mesma natureza. Quando osátomos em equilíbrio são tão numerosos que não podem mais se mover, os mais leves são repelidos parao vazio exterior, como se fossem expulsos; os outros permanecem juntos, entrelaçando-se e formandouma espécie de conglomerado... Cada um desses conglomerados que se separam da massa dos corposprimitivos é um mundo; há infinitos mundos. Estes nasceram e perecerão.Cada vez que nasce um mundo, é que uma massa produzida pelo choque de átomos heterogêneos seseparou; as partes mais leves são empurradas para o alto; sob o efeito combinado de forças opostas, amassa entra em rotação, os elementos repelidos para fora depositam-se no exterior como uma película.Esse invólucro vai-se tornando cada vez mais fino, certas partes sendo atraídas para o centro pelarotação. Os átomos centrais formam a terra, aqueles que se elevam formam o céu, o fogo, o ar. Algunsformam massas espessas, mas o ar que os leva é por sua vez levado em um rápido turbilhão; neste elessecam pouco a pouco e se inflamam pela rapidez do movimento (astros). Do mesmo modo, as partículasdo corpo terrestre são pouco a pouco arrancadas pelos ventos e pelos astros e se acumulam em água

nos ocos. Assim a terra se solidifica. Pouco a pouco ela tomou uma posição fixa no centro do universo;no começo, quando ela era ainda pequena e leve, movia-se de um lado para outro. O sol e a lua, em umestágio antigo de sua formação, foram apanhados pelas massas que se moviam em torno do núcleoterrestre e desse modo viram-se atraídos para nosso sistema sideral.Nascimento dos seres animados . A essência da alma reside em sua força animadora; é esta que move osseres animados. O pensamento é um movimento. A alma deve, pois, ser feita da matéria mais móvel, deátomos sutis, lisos e arredondados (de fogo). Essas partículas de fogo estão espalhadas por todo ocorpo; entre todos os átomos corporais se intercala um átomo de alma. Estes se movem perpetuamente.Por causa de sua sutileza e de sua mobilidade arriscam-se a serem arrancados do corpo pelo ar

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circundante. É disso que nos preserva a respiração, que nos traz constantemente de fora novosátomos de fogo e de alma para substituir os átomos desaparecidos e que prende no interior do corpoaqueles que quereriam escapar. Se a respiração cessa, o fogo interior escapa. Disso resulta a morte. Issonão acontece em um instante; pode ocorrer que a vida seja restaurada depois da desaparição de umaparte da alma. O sono - morte aparente . . .

Teoria das percepções dos sentidos . O contato não é imediato, opera-se por meio das aporrhoaí  . Estaspenetram no corpo pelos sentidos e espalham-se por todas as partes; disso nasce a representação dascoisas. Duas condições são necessárias: uma certa força da impressão e a afinidade do órgão que arecebe. Somente o semelhante sente o semelhante, percebemos as coisas por meio das partes de nossoser que Ihes são análogas. . . A percepção é idêntica ao pensamento. Uma e outro são modificações mecânicas da matéria da alma; sea alma é levada por esse movimento à temperatura conveniente, percebe exatamente os objetos, opensamento é sadio. Se o movimento a aquece ou a esfria excessivamente, as representações são falsase o pensamento é malsão. É aqui que começam as verdadeiras dificuldades do materialismo, porque elepróprio começa a sentir seu  prõton pseudos . Tudo o que é objetivo, extenso, agente, potanto material,tudo aquilo que o materialismo considera como seu fundamento mais solido, não passa de um dadoextremamente mediato, um concreto extremamente relativo, que passou pelo mecanismo do cérebro eacomodou-se às formas do tempo, do espaço e da causalidade, graças às quais se apresenta comoextenso no espaço e agente no tempo. É de um tal dado que o materialismo quer, agora, deduzir o únicodado imediato, a representação. É uma prodigiosa petição de princípios; de repente, o último elo aparececomo o ponto de partida de que já dependia o primeiro elo da corrente. Assim, comparou-se omaterialismo ao Barão de Crac (sic ), que, quando atravessava o rio a cavalo, suspendia sua montariaapertando-a entre as pernas e se suspendia a si mesmo por meio de sua peruca, que puxava para cima.O absurdo consiste em partir do dado objetivo, enquanto, na verdade, todo dado objetivo é determinadode várias maneiras pelo sujeito pensante e desaparece totalmente quando se faz abstração do sujeito.Por outro lado, o materialismo é uma hipótese preciosa e de uma verdade relativa, mesmo depois que sedescobriu o  prõton pseudos ; é uma representação cômoda nas ciências naturais, e todos os seusresultados permanecem verdadeiros para nós, se não no absoluto. Trata-se do mundo que é o nosso,para cuja produção cooperamos sempre.

 Anotações sobre DemócritoDeveríamos a Demócrito muitos sacrifícios fúnebres, simplesmente para reparar os erros do passado paracom ele. Com efeito, é raro que um escritor considerável tenha tido de sofrer tantos ataques devidos orazões diversas. Teólogos e metafísicos acumularam sobre seu nome suas acusações inveteradas contrao rmaterialismo. O divino Platão chegou mesmo a considerar seus escritos tão perigosos que pretendiadestruí-los em um auto-de-fé privado e só foi impedido disso por considerar que já era tarde demais, queo veneno já estava por demais alastrado. Mais tarde, os obscurantistas da Antigüidade se vingaram dele,introduzindo, sob sua marca, o contrabando de seus escritos de magia e de alquimia, o que imputou aopai de todas as tendências racionais uma reputação de grande mágico. O cristianismo nascente, enfim,logrou executar o enérgico desígnio de Platão; e sem dúvida um século anticósmico devia considerar osescritos de Demócrito, assim como os de Epicuro, como a encarnação do paganismo. Enfim, foi reservadoà nossa época negar também a grandeza filosófica do homem e atribuir-lhe um temperamento de sofista.

Todos esses ataques se desenrolam em um terreno que não podemos mais defender.Os fragmentos de Moral (= Estudos Éticos) têm, por um lado, um tom desenvolto de homem do mundo euma bela forma. Não recendem a estoicismo nem a platonismo, mas, aqui e ali, lembram Aristóteles esua metropathía .Não são indignos de Demócrito. É um problema psicológico saber se foi ele que os escreveu. A tradiçãonão prova nada... Junta-se a isso a obscuridade em que nos encontramos a respeito de Leucipo. Se esteé o inventor da idéia principal, podemos entretanto atribuir também a Demócrito uma grande diversidadede concepções.

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Todos os materialistas pensam que, se o homem é infeliz, é por não conhecer a natureza. Assim oSistema da Natureza começa nestes termos: "O homem é infeliz porque não conhece a natureza" .Sobre a questão da criação do mundo, Demócrito é perfeitamente claro. Uma seqüência infinita de anos,a cada mil anos uma pedrinha é juntada às outras, e a terra acaba por ser o que é.Sobre o problema da origem do mundo, ele foi, igualmente, de uma completa clareza.

O materialismo é o elemento conservador na ciência como na vida. A ética de Demócrito é conservadora."Contenta-te com o mundo tal como é", é o cânon moral que o materialismo produziu. Uma plenavirilidade do pensamento e da investigação aparece cm Demócrito. Entretanto, ele não perde o senso dapoesia. É o que prova sua própria descrição, seu juízo sobre os poetas, que considera como profetas daverdade (isso Ihe parece um fato natural).Não acreditamos nos contos, mas sentimos sua força poética.

Características do Pensamento de Demócrito

Gosto pela ciência. Aitía i. Viagens.Clareza. Aversão ao bizarro.Simplicidade do método. Arrojo poético (poesia do atomismo).Sentimento de um progresso poderoso.Fé absoluta em seu sistema.O Mal excluído de seu sistema.Paz de espírito, resultado do estudo cientifico. Pitágoras.Inquietações míticas: racionalismo.Inquietações morais: ascetismo.Inquietações políticas: quietismo.Inquietações conjugais: adoção de filhos. Vauvenargues diz com razão que os grandes pensamentos vêm do coração. É na moral que está a chaveda física de Demócrito. Sentir-se liberto de todo Incognoscível. – É a meta de sua filosofia. Os sistemas anteriores não Ihe davam isso, pois deixavam subsistir umelemento irracional. Eis por que ele procurou remeter tudo àquilo que é mais fácil de compreender, a

queda e o choque.Queria sentir-se no mundo como em um quarto claro. Racionalista encarnado, pai do racionalismo,acomodava à sua maneira os deuses, o espetáculo dos sacrifícios, etc. Demócrito, sem dúvida, deveigualmente ser incluído entre os melancólicos... A meta é o otium litteratum : "ter a paz"Demócrito, esse Humboldt do mundo antigo.Sente-se impelido a correr o mundo. Retorna pobre e sem recursos, reduzido, como um mendigo, a viverdas esmolas de seu irmão. Sua cidade natal o toma por um pródigo. Recusam-lhe uma sepulturahonrada, até o dia em que seus parentes tomam as dores do morto e em que se elevam monumentosem honra daquele que, desprezado em vida, quase morrera de fome.Ele se desempenha com excessiva rapidez dos encargos de construir o mundo e a moral. Os problemasmais profundos Ihe permanecem ocultos. É que sua vontade é a mola de sua investigação; o que quer éterminá-la e atingir o conhecimento último. Ele se atrela a este, e é isso que Ihe dá sua segurança e sua

confiança em si. Ainda não havia notado, ao passar em revista os sistemas anteriores, uma abundânciainfinita de pontos de vista diversos; conservou, de seus raros predecessores.,aquilo que Ihe erahomogêneo, aquilo que lhe parecia inteligível e simples, e condenou sem indulgência a intrusão de ummundo mítico. É, pois, um racionalista confiante; crê na capacidade liberadora de seu sistema e eliminadele tudo aquilo que é mau e imperfeito.

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Demócrito e suas Teorias

Demócrito fez uma tentativa bem independente de reconstrução. Como Sócrates, seu contemporâneo,defrontou-se com as dificuldades referentes ao conhecimento, levantadas pelo seu concidadãoProtágoras e outros, e, da mesma forma que ele, deu grande atenção ao problema do comportamento,

ao qual também os sofistas deram impulsos. Ao contrário de Sócrates, porém, ele era um autorvolumoso, e nós ainda podemos constatar, através dos scus fragmentos, que era um dos maioresescritores da Antigüidade. Para nos, contudo, é como se não tivesse escrito quase nada; de fato,sabemos menos a seu respeito do que de Sócrates. Isto deve-se ao fato de ele ter escrito em Abdera, eas suas obras na realidade nunca foram bem conhecidas em Atenas, onde teriam tido a possibilidade deserem preservadas, como aquelas de Anaxágoras e outrem, na biblioteca da Academia. Não é certo quePlatão haja conhecido alguma coisa sobre Demócrito, pois que as poucas passagens no Timeu e alhures,no qual parece que o reproduz, são facilmente explicadas pelas influências pitagóricas que afetaram aambos. Aristóteles, por outro lado, conhece bem Demócrito, pois era também jônio do Norte.É certo, não obstante, que as obras completas de Demócrito (que incluem as obras de Leucipo e outros,bem como as de Demócrito) continuaram a existir, porquanto a escola as conservou em Abdera e Teosao longo dos tempos helenísticos. Por isso, foi possível para Trasilo, sob o reinado de Tibério, fazer umaedição das obras de Demócrito, organizada em tetralogias, exatamente como sua edição dos diálogos dePlatão. Mesmo isso não foi suficiente para preservá-las. Os epicuristas, que tinham a obrigação de terestudado o homem a quem deviam tanto, detestavam qualquer tipo de estudo, e provavelmente nem sepreocuparam em multiplicar os exemplares de um escritor cujas obras teriam sido um testemunhopermanente para a carência de originalidade que caracterizou o próprio sistema deles.Sabemos extremamente pouco sobre a vida de Demócrito. Como Protágoras, era natural de Abdera naTrácia, uma cidade que nem mereceria a reputação proverbial de embotamento, considerando que podedar origem a dois homens de tanta envergadura. Quanto à data do seu nascimento, temos apenasconjeturas para nos orientar. Em uma das principais obras, afirmou que elas foram escritas 730 anosapós a queda de Tróia; não sabemos; porém, quando, segundo a suposição dele, isto ocorrera. Havianessa época e posteriormente diversas eras em uso. Disse também algures que, quando Anaxágoras eravelho, ele era jovem, e a partir dai concluiu-se que nasceu em 460 a.C. Parece, entretanto, cedo demais,visto estar baseado na hipótese de que tinha quarenta anos quando se encontrou com Anaxágoras, e a

expressão "jovem" sugere menos que esta idade. Demais, cumpre-nos encontrar um espaço para Leucipoentre eles [Demócrito] e Zenão. Se Demócrito morreu, como se diz, com a idade de noventa ou cemanos, de qualquer maneira ainda vivia quando Platão fundara a Academia. Mesmo a partir defundamentos meramente cronológicos, é falso classificar Demócrito entre os predecessores de Sócrates,e obscurece o fato de que, como Sócrates, ele tentou responder ao seu distinto concidadão Protágoras.Demócrito foi discípulo de Leucipo, e temos uma prova contemporânea, a de Glauco de Régio, quetambém os pitagóricos foram seus mestres. Um membro posterior da escola, Apolodoro de Quizico, dizque tomou conhecimento por intermédio de Filolau, o que parece muito provável. Isto esclarece o seuconhecimento geométrico, bem como, outros aspectos do seu sistema. Sabemos, outrossim, queDemócrito falou nas obras das doutrinas de Parmênides e Zenão, que chegou a conhecê-las através deLeucipo. Fez menção a Anaxágoras, e parece ter dito que a sua teoria do sol e da lua não era original.Isto pode referir se à explicação dos eclipses, que geralmente fora atribuída em Atenas, e sem dúvidaalguma na Jonia, a Anaxágoras, ainda que Demócrito naturalmente estivesse ciente de ser ela pitagórica.

Diz-se ter visitado o Egito, mas há uma certa razão para se acreditar que o fragmento onde isto émencionado (fragmento 298 b) é apócrifo. Há um outro (fragmento 116) no qual ele diz: "Eu fui a Atenas e ninguém tomou conhecimento de mim" . Se disse isto, sem dúvida deu a entender que não conseguiracausar uma impressão tal como o fizera o seu mais brilhante concidadão Protágoras. Por outro lado,Demétrio de Falerão afirmou que Demócrito jamais visitou Atenas; então é possível que este fragmentotambém seja apócrifo. Seja como for, ele deve ter despendido a maior parte do seu tempo no estudo,ensinando e escrevendo em Abdera. Não era um sofista itinerante do tipo moderno, mas sim o cabeça deuma escola regular.

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 A verdadeira grandeza de Demócrito não está na teoria dos átomos e do vazio, que ele parece terexposto bem conforme a tinha recebido de Leucipo. Menos ainda está no seu sistema cosmológico, quederiva mormente de Anaxágoras. Pertence inteiramente a uma outra geração que a desses homens, enão está preocupado de modo especial em encontrar uma resposta a Parmênides. A questão à qual tinhaque se dedicar era a de sua própria época. A possibilidade de ciência havia sido negada, bem como todo

o problema do conhecimento levantado por Protágoras, e era isto que exigia uma solução. Ademais, oproblema do comportamento tornara-se premente. A originalidade de Demócrito, portanto, estáprecisamente na mesma linha que a de Sócrates.

Teoria do Conhecimento

Demócrito procedeu como Leucipo ao fazer uma avaliação puramente mecânica da sensação, e éprovável que ele seja o autor da doutrina minuciosa dos átomos com respeito a este assunto. Uma vezque a alma se compõe de átomos como qualquer outra coisa, a sensação deve consistir no impacto dosátomos externos sobre os átomos da alma, e os órgãos dos sentidos devem ser simplesmente''passagens" ( póroi = poros) através das quais estes átomos se introduzem. Disto decorre que os objetosda visão não são estritamente as coisas que nós mesmos presumimos ver, mas as "imagens" (deíkela,eídola ) que os corpos estão constantemente emitindo. A imagem na pupila do olho era considerada comoa coisa essencial em visão. Não é, porém, uma semelhança exata do corpo do qual provém, pois estásujeita às distorções causadas pela interferência do ar. Este é o motivo por que vemos as coisas adistância de um modo embaraçado e indistinto, e por que, se a distância for grande, não podemos vê-lasde modo algum. Se não houvesse ar, mas somente o vazio, entre nós e os objetos da visão, isto nãoseria assim; "poderíamos ver uma formiga rastejando no firmamento". As diferenças de cor devem-se àlisura ou aspereza das imagens ao tato. A audição explica-se de uma maneira similar. O som é umatorrente de átomos que jorram do corpo sonante e produzem movimento no ar entre ele [corpo] e oouvido. Chegou, portanto, ao ouvido junto com aquelas porções do ar que se Ihe assemelham. Asdiferenças de paladar são devidas às diferenças nas figuras (eide, skhémata ) dos átomos que entram emcontato com os órgãos desse sentido; e o olfato explica-se semelhantemente, embora não com osmesmos detalhes. De modo idêntico, o tato, considerado como o sentido pelo qual sentimos o calor e ofrio, o molhado e o seco e outros que tais, é afetado de acordo com a forma e o tamanho dos átomos

chocando nele. Aristóteles afirma que Demócrito reduziu todos os sentidos ao tato, e é realmente verdade seentendermos por tato o sentido que percebe qualidades, tais como forma, tamanho e peso. Este, todavia,deve ser cautelosamente distinguido do sentido próprio do tato, que acima foi descrito. Paracompreender esta questão, temos que considerar a doutrina do conhecimento "legítimo" e "ilegítimo".É aqui que Demócrito entra nitidamente em conflito com Protágoras, que asseverou serem todas assensações igualmente verdadeiras para o objeto sensível. Demócrito, pelo contrário, considera falsastodas as sensações dos sentidos próprios, posto que elas não têm uma contrapartida real fora do objetosensível. Nisto, naturalmente, está em conformidade com a tradição eleática onde repousa a teoriaatômica. Parmênides afirmara claramente que o paladar, as cores, o som e outros semelhantes eramapenas "nomes" (onómata ), e é bastante idêntico a Leucipo que disse algo de parecido, apesar de nãohaver razão de se acreditar que ele tenha elaborado uma teoria sobre o assunto. Seguindo o exemplo deProtágoras, Demócrito foi obrigado a ser explícito com referência à questão. Sua doutrina, felizmente, foi-

nos preservada através de suas próprias palavras. "Por convenção (nómo )": disse ele (fragmento 125), "há o doce; por convenção há o amargo; por convenção há o quente e por convenção há o frio; por convenção há a cor."  Porém, na realidade (etee ), há os átomos e o vazio. Deveras, as nossassensações não representam nada de externo, apesar de serem causadas por algo fora de nós, cujaverdadeira natureza não pode ser apreendida pelos sentidos próprios. Esta é a razão por que a mesmacoisa às vezes dá a sensação de doce e às vezes de amargo. "Pelos sentidos", afirmou Demócrito(fragmento 9), "nós na verdade não conhecemos nada de certo, mas somente alguma coisa que muda de acordo com a disposição do corpo e das coisas que nele penetram ou Ihe opõem resistência." Não podemos conhecer a realidade deste modo, pois "a verdade jaz num abismo" 

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(fragmento 117). Vê-se que esta doutrina tem muito em comum com a distinção moderna entre asqualidades primárias e secundárias da matéria.Demócrito, pois, rejeita a sensação como fonte de conhecimento, exatamente como fizeram ospitagóricos e Sócrates; contudo, como eles, ressalva a possibilidade de ciência, afirmando que existe umaoutra fonte de conhecimento que não a dos sentidos próprios. "Há", diz ele (fragmento 11), "duas formas 

de conhecimento (gnóme): o legítimo (gnesíe) e o ilegítimo (skotíe). Ao ilegítimo pertencem todos estes: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. O legítimo, porém, está separado daquele."  Esta é aresposta de Demócrito a Protágoras. Ele diz que o mel, por exemplo, é tanto amargo quanto doce, docepara mim e amargo para você. Na realidade, é "não mais tal do que tal" (oudèn mãllon toion è toion ).Sexto Empírico e Plutarco afirmaram claramente que Demócrito argüiu contra Protágoras, e o fato, porconseguinte, está fora da discussão. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que Demócrito dera uma explicação puramente mecânica desteconhecimento legítimo, como o fizera do ilegítimo. Defendeu, com efeito, que os átomos fora de nóspoderiam afetar diretamente os átomos da nossa alma sem a intervenção dos órgãos dos sentidos. Osátomos da alma não se restringem a algumas partes específicas do corpo, mas nele penetram emqualquer direção, e não há nada que os impeça de ter contato imediato com os átomos externos,chegando assim a conhecê-los como realmente são. O "conhecimento legítimo" é, afinal de contas, damesma natureza do "ilegítimo", e Demócrito recusou-se, como Sócrates, a fazer uma separação absolutaentre os sentidos e o conhecimento. "Pobre Mente", imagina ele os sentidos dizerem (fragmento 125); "épor causa de nós que conseguiste as provas com as quais atiras contra nós. Teu tiro é uma capitulação."O conhecimento "legítimo" não é, apesar de tudo, pensamento, mas uma espécie de sentido interno, eseus objetos são como os "sensíveis comuns" de Aristóteles.Como seria de esperar de um seguidor dos pitagóricos e de Zenão, Demócrito ocupou-se com o problemada continuidade. Em uma passagem digna de nota (fragmento 155), ele o confirma desta forma: "Se um cone fosse cortado por um plano em linha paralela à base, o que se deveria pensar das superfícies das duas partes cortadas? Seriam iguais ou desiguais? Se forem desiguais, farão irregular o cone, pois ele terá muitas incisões em forma de degraus e muitas asperezas. Se forem iguais, então as partes cortadas serão iguais, e o cone terá a aparência de um cilindro, que é composto de círculos iguais e não desiguais,o que é o maior absurdo" . Segundo um comentário de Arquimedes, parece que Demócrito prosseguiuafirmando que o volume do cone era a terça parte do volume do cilindro sobre a mesma base e do

mesmo peso, cujo teorema foi demonstrado primeiro por Eudoxo. É evidente, pois, que ele estavaempenhado em problemas tais como aqueles que finalmente deram origem ao método infinitesimal dopróprio Arquimedes. Vemos mais uma vez como foi importante a obra de Zenão como um fermentointelectual.

Teoria do Comportamento

 As concepções de Demócrito sobre o comportamento seriam até mais interessantes do que a sua teoriado conhecimento, se pudéssemos restabelecê-las integralmente. É muito difícil, porém, ter certeza sobrequais dos preceitos morais a ele atribuídos são genuínos. Não há dúvida de que o tratado Sobre a Boa Disposição ou Bem-Estar  (Perí Euthymíes ) era seu. Foi utilizado livremente por Sêneca e Plutarco, ealguns fragmentos importantes do tratado sobreviveram.[O tratado] partia (fragmento 4) do princípio de que o prazer e a dor (térpsis e aterpsíe ) são o que

determina a felicidade. Isto quer dizer fundamentalmente que a felicidade não deve ser procurada nosbens exteriores. "A felicidade não reside em rebanhos, nem em ouro; a alma é a moradia do daímon "  (fragmento 171). Para compreender isto, devemos lembrar que a palavra daímon , que significavapropriamente um espírito protetor do homem, tem sido usada no sentido equivalente de "boa sorte". É,como foi dito, o aspecto individual de týkhe , e a palavra grega que traduzimos por "felicidade"(eudaimonía ) baseia-se neste uso. De um lado, pois, a doutrina da felicidade ensinada por Demócrito éintimamente afim com a de Sócrates, embora dê mais ênfase ao prazer e à dor. "O melhor para o homem é levar a vida com o máximo de alegria e o mínimo de aborrecimentos"  (fragmento189).

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Isto não é, porém, hedonismo vulgar. Os prazeres dos sentidos são prazeres verdadeiros tão brevescomo as sensações são verdadeiro conhecimento. "O bom e o verdadeiro são a mesma coisa para todos os homens, mas o agradável é diferente para gente diferente"  (fragmento 69). Alémdisso, os prazeres dos sentidos são de duração demasiado curta para preencher uma vida, e facilmentese transformam ao contrário. Nós somente podemos ter certeza de superar a dor pelo prazer se não

procurarmos os nossos prazeres nas coisas "mortais" (fragmento 189).O que devemos nos esforçar por conseguir é o "bem-estar" (euestó ) ou a "alegria" (euthymíe ), e este éum estado da alma. Para atingi-lo, devemos ser capazes de ponderar, julgar e discernir o valor dosdiferentes prazeres. Demócrito afirmou, como Sócrates, que "a ignorância do melhor" (fragmento 83) é acausa do erro. Os homens puseram a culpa na sorte, mas esta é apenas uma "imagem" que inventarampara justificar a sua própria ignorância (fragmento 119). 0 grande principio que nos deve guiar é o da"simetria" ou "harmonia". Este é, sem dúvida, pitagórico. Se aplicarmos este critério aos prazeres,poderemos alcançar o sossego, o sossego do corpo, que é a saúde, e o sossego da alma, que é a alegria,cujo sossego se deve procurar principalmente nos bens da alma. "Quem escolhe os bens da alma,escolhe os mais divinos; quem escolhe os bens do 'tabernáculo' (isto é, o corpo), escolhe os humanos" (fragmento 37).Para o nosso presente objetivo, não é necessário discutir detalhadamente a cosmologia de Demócrito. Elaé totalmente retrógrada e demonstra, se fosse preciso uma demonstração, que o seu real interesse estáem outro sentido. Ele herdara a teoria dos átomos e do vazio de Leucipo, que foi um verdadeiro gênioneste campo, e, quanto ao resto, contentou-se em adotar a crua cosmologia dos jônios, como Leucipohouvera feito. Deve ter conhecido ainda o sistema mais cientifico de Filolau. A idéia da forma esférica daTerra era amplamente difundida na época de Demócrito, e Sócrates é descrito no Fédon tomando-a porcerta. Para Demócrito, a Terra era ainda um disco. Ele também aderiu a Anaxágoras defendendo que aTerra era sustentada no ar "como a tampa de uma tina", cuja concepção Sócrates rejeita enfaticamente.Por outro lado, Demócrito parece ter contribuído valiosamente à ciência natural. Infelizmente, as nossasinformações são extremamente escassas para possibilitar mesmo uma reconstrução aproximada do seusistema. A perda da edição completa das suas obras feita por Trasilo é talvez a mais deplorável dasmuitas perdas desse tipo. É possível que tenham sido abandonadas à ruína porque Demócrito chegara acompartilhar do descrédito que o prendera aos epicureus. O que temos dele foi preservadoprincipalmente porque ele foi um grande criador de frases notáveis, que foram dignas de constar nas

antologias. Este, porém, não é o tipo de material que se requer para a interpretação de um sistemafilosófico, e é muito duvidoso se de fato conhecemos as suas idéias mais profundas. Ao mesmo tempo,não podemos deixar de reconhecer que é sobretudo pelo seu mérito literário que lamentamos a perdadas obras. Tem-se a impressão de que ele se situa à parte da corrente principal da filosofia grega, e é aesta que devemos agora retornar. Do nosso ponto de vista, o único fato importante com referência aDemócrito é que ele também sentiu a necessidade de uma resposta a Protágoras.

Os Sofistas

Período Sistemático

O segundo período da história do pensamento grego é o chamado período sistemático. Com efeito, nesseperíodo realiza-se a sua grande e lógica sistematização, culminando em Aristóteles, através de Sócrates e

Platão, que fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da precedente crise cética dasofística. O interesse dos filósofos gira, de preferência, não em torno da natureza, mas em torno dohomem e do espírito; da metafísica passa-se à gnosiologia e à moral. Daí ser dado a esse segundoperíodo do pensamento grego também o nome de antropológico, pela importância e o lugar centraldestinado ao homem e ao espírito no sistema do mundo, até então limitado à natureza exterior.Esse período esplêndido do pensamento grego - depois do qual começa a decadência - teve duraçãobastante curta. Abraça, substancialmente, o século IV a.C., e compreende um número relativamentepequeno de grandes pensadores: os sofistas e Sócrates, daí derivando as chamadas escolhas socráticasmenores, sendo principais a cínica e a cirenaica, precursoras, respectivamente, do estoicismo e do

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epicurismo do período seguinte; Platão e Aristóteles, deles procedendo a Academia e o Liceu  , quesobreviverão também no período seguinte e além ainda, especialmente a Academia por motivos éticos ereligiosos, e em seus desenvolvimentos neoplatônicos em especial - apesar de o aristotelismo tersuperado logicamente o platonismo.

 A Sofística

 Após as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o império persa, houve um triunfo político dademocracia, como acontece todas as vezes que o povo sente, de repente, a sua força. E visto que odomínio pessoal, em tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão,compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a oratória e, por conseguinte, osmestres de eloqüência. Os sofistas, sequiosos de conquistar fama e riqueza no mundo, tornaram-semestres de eloqüência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a maneira deconsegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o ensinamento dos sofistas não era ideal,desinteressado, mas sobejamente retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber, a cultura,uma enciclopédia, não para si mesma, mas como meio para fins práticos e empíricos e, portanto,superficial. A época de ouro da sofística foi - pode-se dizer - a segunda metade do século V a.C. O centro foi Atenas,a Atenas de Péricles, capital democrática de um grande império marítimo e cultural. Os sofistas maioresforam quatro. Os menores foram uma plêiade, continuando até depois de Sócrates, embora semimportância filosófica. Protágoras foi o maior de todos, chefe de escola e teórico da sofística.

Moral, Direito e Religião

Em coerência com o ceticismo teórico, destruidor da ciência, a sofística sustenta o relativismo prático,destruidor da moral . Como é verdadeiro o que tal ao sentido, assim é bem o que satisfaz ao sentimento,ao impulso, à paixão de cada um em cada momento. Ao sensualismo, ao empirismo gnosiológicoscorrespondem o hedonismo e o utilitarismo ético: o único bem é o prazer, a única regra de conduta é ointeresse particular. Górgias declara plena indiferença para com todo moralismo: ensina ele a seusdiscípulos unicamente a arte de vencer os adversários; que a causa seja justa ou não, não lhe interessa.

 A moral, portanto, - como norma universal de conduta - é concebida pelos sofistas não como lei racionaldo agir humano, isto é, como a lei que potencia profundamente a natureza humana, mas como umempecilho que incomoda o homem.Desta maneira, os sofistas estabelecem uma oposição especial entre natureza e lei, quer política, quermoral, considerando a lei como fruto arbitrário, interessado, mortificador, uma pura convenção, eentendendo por natureza, não a natureza humana racional, mas a natureza humana sensível, animal,instintiva. E tentam criticar a vaidade desta lei, na verdade tão mutável conforme os tempos e os lugares,bem como a sua utilidade comumente celebrada: não é verdade - dizem - que a submissão à lei torne oshomens felizes, pois grandes malvados, mediante graves crimes, têm freqüentemente conseguido grandeêxito no mundo e, aliás, a experiência ensina que para triunfar no mundo, não é mister justiça e retidão,mas prudência e habilidade.Então a realização da humanidade perfeita, segundo o ideal dos sofistas, não está na ação ética eascética, no domínio de si mesmo, na justiça para com os outros, mas no engrandecimento ilimitado da

própria personalidade, no prazer e no domínio violento dos homens. Esse domínio violento é necessáriopara possuir e gozar os bens terrenos, visto estes bens serem limitados e ambicionados por outroshomens. É esta, aliás, a única forma de vida social possível num mundo em que estão em jogounicamente forças brutas, materiais. Seria, portanto, um prejuízo a igualdade moral entre os fortes e osfracos, pois a verdadeira justiça conforme à natureza material, exige que o forte, o poderoso, oprima ofraco em seu proveito.Quanto ao direito e à religião, a posição da sofística é extremista também, naturalmente, como nagnosiologia e na moral. A sofística move uma justa crítica, contra o direito positivo , muitas vezesarbitrário, contingente, tirânico, em nome do direito natural . Mas este direito natural - bem como a moral

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natural - segundo os sofistas, não é o direito fundado sobre a natureza racional do homem, e simsobre a sua natureza animal, instintiva, passional. Então, o direito natural é o direito do mais poderoso,pois em uma sociedade em que estão em jogo apenas forças brutas, a força e a violência podem ser oúnico elemento organizador, o único sistema jurídico admissível. A respeito da religião e da divindade, os sofistas não só trilham a mesma senda dos filósofos racionalistas

gregos do período precedente e posterior, mas - de harmonia com o ceticismo deles - chegam até oextremo, até o ateísmo, pelo menos praticamente. Os sofistas, pois, servem-se da injustiça e do muitomal que existe no mundo, para negar que o mundo seja governado por uma providência divina.

Protágoras de Abdera

Protágoras nasceu em Abdera - pátria de Demócrito  , cuja escola conheceu - pelo ano 480. Viajou portoda a Grécia, ensinando na sua cidade natal, na Magna Grécia, e especialmente em Atenas, onde tevegrande êxito, sobretudo entre os jovens, e foi honrado e procurado por Péricles e Eurípedes. Acusado deateísmo, teve de fugir de Atenas, onde foi processado e condenado por impiedade, e a sua obra sobre osdeuses foi queimada em praça pública. Refugiou-se então na Sicília, onde morreu com setenta anos (410a.C.), dos quais, quarenta dedicados à sua profissão. Dos princípios de Heráclito   e das variações dasensação, conforme as disposições subjetivas dos órgãos, inferiu Protágoras a relatividade doconhecimento. Esta doutrina enunciou-a com a célebre fórmula; o homem é a medida de todas ascoisas. Esta máxima significava mais exatamente que de cada homem individualmente consideradodependem as coisas, não na sua realidade física, mas na sua forma conhecida. Subjetivismo, relativismoe sensualismo são as notas características do seu sistema de ceticismo parcial. Platão deu o nome deProtágoras a um dos seus diálogos, e a um outro o de Górgias .

Górgias de Leôncio

Górgias nasceu em Abdera, na Sicília, em 480-375 a.C - correlacionado com Empédocles - representa amaior expressão prática da sofística, mediante o ensinamento da retórica; teoricamente, porém, foi umfilósofo ocasional, exagerador dos artifícios da dialética eleática. Em 427 foi embaixador de sua pátria em Atenas, para pedir auxílio contra os siracusanos. Ensinou na Sicília, em Atenas, em outras cidades da

Grécia, até estabelecer-se em Larissa na Tessália, onde teria morrido com 109 anos de idade. Menosprofundo, porém, mais eloqüente que Protágoras, partiu dos princípios da escola eleata e concluiutambém pela absoluta impossibilidade do saber. É autor duma obra intitulada "Do não ser", na qualdesenvolve as três teses: Nada existe; se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; sea conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros. A prova de cada uma destasproposições e um enredo de sofismas, sutis uns, outros pueris.No Górgias de Platão, Górgias declara que a sua arte produz a persuasão que nos move a crer semsaber, e não a persuasão que nos instrui sobre as razões intrínsecas do objeto em questão. Em suma, émais ou menos o que acontece com o jornalismo moderno. Para remediar este extremo individualismo,negador dos valores teoréticos e morais, Protágoras recorre à convenção estatal, social, que deveriaestabelecer o que é verdadeiro e o que é bem!

Sócrates

 A Vida

Quem valorizou a descoberta do homem feita pelos sofistas, orientando-a para os valores universais,segundo a via real do pensamento grego, foi Sócrates . Nasceu Sócrates em 470 ou 469 a.C., em Atenas,filho de Sofrônico, escultor, e de Fenáreta, parteira. Aprendeu a arte paterna, mas dedicou-seinteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem recompensa alguma, não obstante sua pobreza.Desempenhou alguns cargos políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão. Combateu aPotidéia, onde salvou a vida de Alcebíades e em Delium, onde carregou aos ombros a Xenofonte,

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gravemente ferido. Formou a sua instrução sobretudo através da reflexão pessoal, na moldura da altacultura ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade de Péricles.Inteiramente absorvido pela sua vocação, não se deixou distrair pelas preocupações domésticas nempelos interesses políticos. Quanto à família, podemos dizer que Sócrates não teve, por certo, uma mulherideal na quérula Xantipa; mas também ela não teve um marido ideal no filósofo, ocupado com outros

cuidados que não os domésticos.Quanto à política, foi ele valoroso soldado e rígido magistrado. Mas, em geral, conservou-se afastado davida pública e da política contemporânea, que contrastavam com o seu temperamento crítico e com oseu reto juízo. Julgava que devia servir a pátria conforme suas atitudes, vivendo justamente e formandocidadãos sábios, honestos, temperados - diversamente dos sofistas, que agiam para o próprio proveito eformavam grandes egoístas, capazes unicamente de se acometerem uns contra os outros e escravizar opróximo.Entretanto, a liberdade de seus discursos, a feição austera de seu caráter, a sua atitude crítica, irônica ea conseqüente educação por ele ministrada, criaram descontentamento geral, hostilidade popular,inimizades pessoais, apesar de sua probidade. Diante da tirania popular, bem como de certos elementosracionários, aparecia Sócrates como chefe de uma aristocracia intelectual. Esse estado de ânimo hostil aSócrates concretizou-se, tomou forma jurídica, na acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon:de corromper a mocidade e negar os deuses da pátria introduzindo outros. Sócrates desdenhoudefender-se diante dos juizes e da justiça humana, humilhando-se e desculpando-se mais ou menos.Tinha ele diante dos olhos da alma não uma solução empírica para a vida terrena, e sim o juízo eterno darazão, para a imortalidade. E preferiu a morte. Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-secom indômita fortaleza de ânimo diante do tribunal, que o condenou à pena capital com o voto damaioria.Tendo que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava as execuções capitaisdurante a viagem votiva de um navio a Delos - o discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre.Sócrates, porém, recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da pátria. E passouo tempo preparando-se para o passo extremo em palestras espirituais com os amigos. Especialmentefamoso é o diálogo sobre a imortalidade da alma - que se teria realizado pouco antes da morte e foidescrito por  Platão  no Fédon  com arte incomparável. Suas últimas palavras dirigidas aos discípulos,depois de ter sorvido tranqüilamente a cicuta, foram: "Devemos um galo a Esculápio". É que o deus da

medicina tinha-o livrado do mal da vida com o dom da morte. Morreu Sócrates em 399 a.C. com 71 anosde idade.

Método de Sócrates

É a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na variabilidade extrema das impressõessensitivas determinadas pelos indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas pelaimpossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates restabelece-lhe a possibilidade, determinando overdadeiro objeto da ciência.O objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo que passa; é o inteligível, o conceito que seexprime pela definição. Este conceito ou idéia geral obtém-se por um processo dialético por ele chamadoindução  e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma espécie, eliminar-lhes as diferençasindividuais, as qualidades mutáveis e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a

essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não tem o caráter demonstrativo do modernoprocesso lógico, que vai do fenômeno à lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo ànoção universal.Praticamente, na exposição polêmica e didática destas idéias, Sócrates adotava sempre o diálogo, querevestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um adversário a confutar ou de um discípulo ainstruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando asperguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissãohumilhante de sua ignorância. É a ironia socrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e eramuitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda as perguntas, dirigindo-as agora ao fim de

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obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto emquestão. A este processo pedagógico, em memória da profissão materna, denominava ele maiêutica  ouengenhosa obstetrícia do espírito, que facilitava a parturição das idéias.

Doutrinas Filosóficas

 A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo  - isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o ápice da sabedoria, que é odesejo da ciência mediante a virtude. E alcançava em Sócrates intensidade e profundidade tais, que seconcretizava, se personificava na voz interior divina do gênio  ou demônio .Como é sabido, Sócrates não deixou nada escrito. As notícias que temos de sua vida e de seupensamento, devemo-las especialmente aos seus dois discípulos Xenofonte e  Platão  , de feiçãointelectual muito diferente. Xenofonte, autor de  Anábase , em seus Ditos Memoráveis , legou-nos depreferência o aspecto prático e moral da doutrina do mestre. Xenofonte, de estilo simples e harmonioso,mas sem profundidade, não obstante a sua devoção para com o mestre e a exatidão das notícias, nãoentendeu o pensamento filosófico de Sócrates, sendo mais um homem de ação do que um pensador.Platão, pelo contrário, foi filósofo grande demais para nos dar o preciso retrato histórico de Sócrates;nem sempre é fácil discernir o fundo socrático das especulações acrescentadas por ele. Seja como for,cabe-lhe a glória e o privilégio de ter sido o grande historiador do pensamento de Sócrates, bem como oseu biógrafo genial. Com efeito, pode-se dizer que Sócrates é o protagonista de todas as obras platônicasembora Platão conhecesse Sócrates já com mais de sessenta anos de idade."Conhece-te a ti mesmo" - o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O perfeitoconhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e a moral, o centro para o qualconvergem todas as partes da filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de estímulo àvirtude e de natural complemento da ética.Em psicologia, Sócrates professa a espiritualidade e imortalidade da alma, distingue as duas ordens deconhecimento, sensitivo  e intelectual , mas não define o livre arbítrio, identificando a vontade com ainteligência.Em teodicéia, estabelece a existência de Deus: a) com o argumento teológico, formulando claramente oprincípio: tudo o que é adaptado a um fim é efeito de uma inteligência; b) com o argumento, apenas

esboçado, da causa eficiente: se o homem é inteligente, também inteligente deve ser a causa que oproduziu; c) com o argumento moral: a lei natural supõe um ser superior ao homem, um legislador, quea promulgou e sancionou. Deus não só existe, mas é também Providência, governa o mundo comsabedoria e o homem pode propiciá-lo com sacrifícios e orações. Apesar destas doutrinas elevadas,Sócrates aceita em muitos pontos os preconceitos da mitologia corrente que ele aspira reformar.Moral. É a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar para bem viver. O meio únicode alcançar a felicidade ou semelhança com Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. Avirtude adquiri-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta doutrina, uma das maiscaracterísticas da moral socrática, é conseqüência natural do erro psicológico de não distinguir a vontadeda inteligência. Conclusão: grandeza moral e penetração especulativa, virtude e ciência, ignorância evício são sinônimos. "Se músico é o que sabe música, pedreiro o que sabe edificar, justo será o que sabea justiça".Sócrates reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de uma lei natural -

independente do arbítrio humano, universal, fonte primordial de todo direito positivo, expressão davontade divina promulgada pela voz interna da consciência.Sublime nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática, sugere quase sempre a utilidadecomo motivo e estímulo da virtude. Esta feição utilitarista empana-lhe a beleza moral do sistema.

Gnosiologia

O interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano, espiritual, com finalidades práticas,morais. Como os sofistas, ele é cético a respeito da cosmologia e, em geral, a respeito da metafísica;

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trata-se, porém, de um ceticismo de fato, não de direito, dada a sua revalidação da ciência. A únicaciência possível e útil é a ciência da prática, mas dirigida para os valores universais, não particulares. Valedizer que o agir humano - bem como o conhecer humano - se baseia em normas objetivas etranscendentes à experiência. O fim da filosofia é a moral; no entanto, para realizar o próprio fim, émister conhecê-lo; para construir uma ética é necessário uma teoria; no dizer de Sócrates, a gnosiologia

deve preceder logicamente a moral. Mas, se o fim da filosofia é prático, o prático depende, por sua vez,totalmente, do teorético, no sentido de que o homem tanto opera quanto conhece: virtuoso é o sábio,malvado, o ignorante. O moralismo socrático é equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo,que está contra todo voluntarismo, sentimentalismo, pragmatismo, ativismo. A filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia e à ética, sem metafísica. A gnosiologia de Sócrates,que se concretizava no seu ensinamento dialógico, donde é preciso extraí-la, pode-se esquematicamenteresumir nestes pontos fundamentais: ironia , maiêutica , introspecção , ignorância , indução , definição . Antes de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, opiniões;este é o momento da ironia, isto é, da crítica. Sócrates, de par com os sofistas, ainda que com finalidadediversa, reivindica a independência da autoridade e da tradição, a favor da reflexão livre e da convicçãoracional. A seguir será possível realizar o conhecimento verdadeiro, a ciência, mediante a razão. Isto querdizer que a instrução não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente, mas omestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e constitutiva do espírito humano, a qualé um valor universal. É a famosa maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, comosua mãe auxiliava os partos do corpo.Esta interioridade do saber, esta intimidade da ciência - que não é absolutamente subjetivista, mas é acerteza objetiva da própria razão - patenteiam-se no famoso dito socrático  "conhece-te a ti mesmo" que,no pensamento de Sócrates, significa precisamente consciência racional de si mesmo, para organizarracionalmente a própria vida. Entretanto, consciência de si mesmo quer dizer, antes de tudo, consciênciada própria ignorância  inicial e, portanto, necessidade de superá-la pela aquisição da ciência. Estaignorância não é, por conseguinte, ceticismo sistemático, mas apenas metódico, um poderoso impulsopara o saber, embora o pensamento socrático fique, de fato, no agnosticismo filosófico por falta de umametafísica, pois, Sócrates achou apenas a forma conceptual da ciência, não o seu conteúdo.O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro, científico, conceptual é, antes de tudo, aindução : isto é, remontar do particular ao universal, da opinião à ciência, da experiência ao conceito. Este

conceito é, depois, determinado precisamente mediante a definição , representando o ideal e a conclusãodo processo gnosiológico socrático, e nos dá a essência da realidade.

 A Moral

Como Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do conceito, assim é o fundador,em particular da ciência moral , mediante a doutrina de que eticidade significa racionalidade, açãoracional. Virtude é inteligência, razão, ciência, não sentimento, rotina, costume, tradição, lei positiva,opinião comum. Tudo isto tem que ser criticado, superado, subindo até à razão, não descendo até àanimalidade - como ensinavam os sofistas. É sabido que Sócrates levava a importância da razão para aação moral até àquele intelectualismo que, identificando conhecimento e virtude - bem como ignorânciae vício - tornava impossível o livre arbítrio. Entretanto, como a gnosiologia socrática carece de umaespecificação lógica, precisa - afora a teoria geral de que a ciência está nos conceitos - assim a ética

socrática carece de um conteúdo racional, pela ausência de uma metafísica. Se o fim do homem for obem - realizando-se o bem mediante a virtude, e a virtude mediante o conhecimento - Sócrates nãosabe, nem pode precisar este bem, esta felicidade, precisamente porque lhe falta uma metafísica.Traçou, todavia, o itinerário, que será percorrido por Platão e acabado, enfim, por   Aristóteles. Estes doisfilósofos, partindo dos pressupostos socráticos, desenvolverão uma gnosiologia acabada, uma grandemetafísica e, logo, uma moral.

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Escolas Socráticas Menores

 A reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A doutrina do conceito determina para sempre overdadeiro objeto da ciência: a indução dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeiravez e com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa. Não é, pois, de admirar que

um homem, já aureolado pela austera grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas idéias,exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus numerosos discípulos, além desimples amadores, como Alcibíades e Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri ),como Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus ensinamentos. Dentre estes,alguns, saídos das escolas anteriores não lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveramexageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto.Sócrates não elaborou um sistema filosófico acabado, nem deixou algo de escrito; no entanto, descobriuo método e fundou uma grande escola. Por isso, dele depende, direta ou indiretamente, toda aespeculação grega que se seguiu, a qual, mediante o pensamento socrático, valoriza o pensamento dospré-socráticos desenvolvendo-o em sistemas vários e originais. Isto aparece imediatamente nas escolassocráticas. Estas - mesmo diferenciando-se bastante entre si - concordam todas pelo menos nacaracterística doutrina socrática de que o maior bem do homem é a sabedoria. A escola socrática maior éa platônica; representa o desenvolvimento lógico do elemento central do pensamento socrático - oconceito - juntamente com o elemento vital do pensamento precedente, e culmina em Aristóteles, ovértice e a conclusão da grande metafísica grega. Fora desta escola começa a decadência e desenvolver-se-ão as escolas socráticas menores.São fundadores das escolas socráticas menores, das quais as mais conhecidas são:1. A escola de Megara, fundada por Euclides (449-369), que tentou uma conciliação da nova ética com ametafísica dos eleatas e abusou dos processos dialéticos de Zenão.2. A escola cínica, fundada por Antístenes (n. c. 445), que, exagerando a doutrina socrática do desapegodas coisas exteriores, degenerou, por último, em verdadeiro desprezo das conveniências sociais. São bemconhecidas as excentricidades de Diógenes.3. A escola cirenaica ou hedonista, fundada por Aristipo, (n. c. 425) que desenvolveu o utilitarismo domestre em hedonismo ou moral do prazer. Estas escolas, que, durante o segundo período, dominadopelas altas especulações de Platão e Aristóteles , verdadeiros continuadores da tradição socrática,

vegetaram na penumbra, mais tarde recresceram transformadas ou degeneradas em outras seitasfilosóficas. Dentre os herdeiros de Sócrates, porém, o herdeiro genuíno de suas idéias, o seu mais ilustrecontinuador foi o sublime Platão.

Introdução à Apologia de Sócrates

De acordo com Diógenes Laércio, a acusação apresentada contra Sócrates, em janeiro de 399 a.C., foi aque segue:"A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates, filhode Sofronisco, do povoado de Alópece. Sócrates é culpado de não aceitar os deuses que sãoreconhecidos pelo Estado, de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude.Pena: a morte" A cidade de Atenas não podia mover ações, mas um cidadão podia, assumindo, porém, total

responsabilidade, se a acusação não fosse considerada procedente pelo júri. O acusador era Meleto, masnão só ele; também Ânito e Lícon, com os mesmos direitos à palavra no decorrer do processo. Meleto erao acusador oficial, porém nada exigia que o acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível,mas somente aquele que assinava a acusação.E, neste caso, a influência exercida por Ânito constituiu o elemento mais respeitável no desfecho doprocesso, que foi por ele zelosamente preparado nas reuniões dos diversos cidadãos, sustentando-o coma autoridade de seu nome.No Eutífron , vemos que Sócrates, ao se aproximar do Pórtico do Rei, onde fora afixada a acusação porMeleto, ao ser inquirido pelo adivinho Eutífron a respeito de quem era aquele que o acusava, respondeu:

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"Sei bem pouco a respeito dele, talvez porque seja um homem jovem e desconhecido. Acreditochamar-se Meleto, do povoado de Piteo, de cabelos lisos, barba rala e nariz em forma de bico depássaro". A respeito de saber com exatidão quem era esse Meleto, existem muitas dúvidas, sendo uma delas se setratava do personagem citado por Aristófanes. Mas não há elementos em que basear essa suposição,

pois um jovem poeta de 399 a.C. pouco provavelmente chamaria a atenção de Aristófanes em 405 a.C.,além de considerar que Sócrates insiste no fato de que Meleto é desconhecido.Julgar tratar-se do Meleto que, em 399 a.C., chegou a tomar parte da acusação contra Andócides, nocélebre processo por causa da mutilação da estátua de Hermes e da profanação dos Mistérios, seriamuito conveniente, por haver sido essa também uma acusação de impiedade. Contudo, existe outroobstáculo, de acordo com a própria informação de Andócides: esse Meleto foi um dos que, em 404 a.C.,por ordem dos Trinta Tiranos, se prestaram a deter Leon de Salamina. À parte o problema da mudançade lado - de partidário dos Trinta Tiranos tornar-se aliado de Ânito, que derrotara e expulsara essesmesmos Trinta Tiranos –, sobra a dificuldade de explicar por que motivo Sócrates, que conforme elemesmo afirma na Apologia, juntamente com outros quatro homens recebera a ordem de deter a Leon deSalamina, tendo sido o único a recusar-se a obedecer, não disse que Meleto era um desses homens.Exceto se reputarmos que essa defesa não seja de fato de Sócrates, e sim escrita por Platão, que se valedo nome de Meleto, já então tido como um fanático religioso, a fim de engrandecer o mestredesaparecido.Desse modo, podemos considerar Meleto de Sócrates o mesmo Meleto de Andócides, assim solucionandoo problema que tanta discussão tem provocado, embora, logicamente, fique apenas no campo dasuposição, já que nada corrobora realmente esta pretensão.O pouco que conhecemos ou podemos presumir a respeito de Lícon é que pouca importância eautoridade teve no decorrer do processo, com seu nome sendo citado sempre com evidente desapreço. Ânito, o mais importante dos acusadores, é aquele que, não resta dúvida, dava a impressão de conhecerSócrates, que a ele alude como se Meleto fosse seu subordinado, como se deste tivesse se originado aidéia da pena de morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo tivesseseguimento. Ânito era filho de Antemione, comerciante de couro, nascera por volta de – 150 a.C. e jáhavia exercido importantes cargos e magistraturas, sendo estratego em 410 a.C. Após ter sido enviadoao exílio pelos Trinta Tiranos, juntamente com Trasíbulo e outros, regressou de File com estes e tomou

parte da expedição armada contra o governo dos tiranos. Depois da restauração do regime democrático,tornou-se um dos mais eminentes cidadãos de Atenas. Ânito manteve relação com Sócrates, segundo comprova sua atuação no Mênon , onde manifesta umaameaça velada a este: "Afigura-se-me, ó Sócrates, que com muita facilidade te dedicas à maledicência, eeu te aconselho, se quiseres me ouvir, que tenhas cuidado". A opinião de Platão a esse respeito é bem clara: não foi por razões religiosas que Sócrates recebeu acondenação, mas sim por questões evidentemente políticas. A bem da verdade, Sócrates dera, mediante palavras e atos, patente mostra de sua obstinada repulsaaos governos democráticos.Portanto, nessa época de instalação do regime democrático, convinha afastar de Atenas o mestre deCrísias, o homem que sempre se recordava de haver sido discípulo de Arquesilau, o qual, por sua vez,fora discípulo de Anaxágoras, expulso de Atenas em decorrência de um processo parecido com o seu.Mas é preciso frisar que o propósito, como o próprio Sócrates repete, não era matá-lo, e sim afastá-lo de

 Atenas, e se isso não ocorreu deveu-se à demasiada teimosia do próprio Sócrates, que em vez deescolher o exílio preferiu a proposta de uma multa irrisória, vindo a ser, por conseguinte, condenado.No que concerne à condenação por motivos religiosos, da mesma maneira que se dá com condenaçõespor motivos políticos, o texto da sentença preocupa-se muito mais em esconder do que apresentar asverdadeiras causas. Tanto isso é verdade que, em sua defesa, vemos o réu inverter a ordem dasacusações e colocar em primeiro lugar a última imputação: corromper os jovens.Desde a época de Sócrates, afirmara-se o culto patriarcal, em que Zeus era o deus-pai, o líder máximo.Se a acusação tivesse se dado em épocas mais antigas, poderíamos presumir que Sócrates teria adotadoa defesa do culto da deusa, isto é, um movimento reacionário em termos de culto.

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Coloquemos a questão com mais clareza: as lendas referem a revolta patriarcal contra o matriarcado. A Tripla Deusa, venerada como Réia, esposa de Cronos, em seus três aspectos: lua crescente, lua cheia alua minguante, era a suprema deusa e gerava uma vez por ano a Dionisos – Zagreus, seu filho, que erasempre devorado pelo tempo.Dessa maneira, as múltiplas facetas da deusa prevaleciam, constituindo as sacerdotisas os verdadeiros

líderes das povoações e os homens, seus instrumentos de fertilização e prazer, executando os trabalhosmais necessários à sobrevivência e à defesa.Numerosas revoltas começaram a eclodir com a chegada de contínuas levas de dórios, minianos e jônios,em cujas culturas o patriarcalismo era arraigado, que acabaram por fomentar a rebelião de Zagreuscontra seu pai e mãe. Zagreus torna-se Zeus, o Deus-Agnes, ou o Agnos-Deus, que pode significar tantoo deus desconhecido quanto o deus-carneiro; Réia vem a ser adorada como Hera, e seus aspectos:marinho, lunar e noturno, como Anfitrite, Ártemis e Cérbero. Anfitrite é esposa de Posêidon, um dosaspectos de Zeus; Ártemis é filha de Zeus, e permanece virgem; quanto a Cérbero, representa Hécate,sendo fiel guardião dos domínios de Hades, outro aspecto de Zeus, seu culto tendo sido de novo extintodurante o período de estabelecimento do culto olímpico.Nessa fase seria de fato correto crer que alguém sofresse um processo por questões religiosas, mas àépoca de Sócrates tudo isso já se encontrava devidamente solidificado, e a argumentação de Burnet, emseu comentário à  Apologia , revela-se, portanto, bem pouco confiável, quando afirma "que esses novosdeuses da cosmologia jônica eram uma antiga história e que poderia ser uma violação da anistia colocá-los de novo à luz do dia".Portanto, considerando-se a anistia garantida até mesmo pelo próprio Ânito, que juntamente comTrasíbulo fora seu principal defensor, não era possível levar em conta as culpas passadas de Sócratespara condená-lo, isso presumindo que existisse alguma, e era necessário arranjar o pretexto paraexecutá-lo.Era todo o ensinamento socrático que se tornava perigoso, e não os novos fatos. O que significavaaquela sabedoria, proclamada superior até mesmo pelo oráculo, que consistia em saber que não se sabe?Qual a postura dos políticos diante disso? Que direitos seriam mais opostos aos da democracia do queaqueles originados da experiência e da competência, e a superioridade da inteligência sobre os direitosda assembléia popular e soberana?É isso que causou a condenação de Sócrates, a exigência de que o piloto do barco conheça seu ofício,

isto é, a superioridade do saber sobre a aclamação do povo. Ademais, é necessário recordar que Sócrates manteve relações com os Trinta Tiranos: estes não Iheteriam ordenado a prisão de Leon de Salamina se não o considerassem um deles; Crísias, o mais ferozdos Tiranos, havia sido seu discípulo, e também Alcebíades, que voltara a ser assunto pela recenteinclusão de seu nome entre os envolvidos na profanação dos Mistérios. E mais: Sócrates menciona a seufavor sua participação no caso do exílio de Querofonte, porém, assim, insiste no fato de que, durante omandato dos Trinta, Querofonte foi obrigado a se exilar, enquanto Sócrates pôde permanecer.Some-se a isto que Sócrates jamais desejou exercer nenhuma magistratura, nem participar de algumaforma do governo de sua cidade, embora não seja verdade que permanecesse fora do âmbito dogoverno, pois com freqüência era visto discutindo em público; e não se pode afirmar, pelos testemunhosque possuímos, que fosse singularmente prudente ou diplomático em sua maneira de discutir. As mais importantes orientações da vida eram subvertidas por seu orgulho de ter consciência da suaignorância, e os jovens, de fato, iriam acabar desrespeitando qualquer autoridade que não se

identificasse com a inteligência e a sabedoria, provocando ainda o desapreço por tudo que não buscassea sabedoria, desprezando a economia doméstica e a riqueza.

Preâmbulo

Desconheço atenienses, que influência tiveram meus acusadores em vosso espírito; a mim próprio, quaseme fizeram esquecer quem sou, tal o poder de persuasão de sua eloqüência. De verdades, porém, nãodisseram nenhuma. Uma, sobretudo, me espantou das muitas perfídias que proferiram: a recomendaçãode precaução para não vos deixardes seduzir pelo orador formidável que sou. Com efeito, não corarem

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de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidável,eis o que me pareceu a maior de suas insolências, salvo se essa gente chama formidável a quem diz averdade; se é o que entendem, eu admitiria que, em contraste com eles, sou um orador. Seja como for,repito-o, de verdades eles não disseram alguma; de mim, porém, vós ouvireis a verdade inteira. Mas nãopor Zeus, atenienses, não ouvireis discursos como os deles, aprimorados em substantivos e verbos, em

estilo florido; serão expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito confiançana justiça do que digo; nem espere outra coisa qualquer um de vós. Verdadeiramente, senhores, nãoficaria bem a um velho como eu vir diante de vós modelar seus discursos como um rapazinho. Faço-vos,contudo, um pedido, atenienses, uma súplica premente; se ouvirdes, na minha defesa, a mesmalinguagem que habitualmente emprego na praça, junto das bancas, onde tantos dentre vós me haveisescutado, e em outros lugares, não a estranheis nem vos revolteis por isso. Acontece que venho aotribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me, assim, completamente estrangeiro àlinguagem do local. Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e olinguajar de minha criação; peço-vos nesta oportunidade a mesma tolerância, que é de justiça a meu ver,para a minha linguagem, que poderia ser talvez pior, talvez melhor, e que examineis com atenção se oque digo é justo ou não. Nisso reside o mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a verdade.

 A Defesa de Sócrates 

Enunciado

Diversidade Entre Duas Categorias de Acusadores: os Antigos e os Recentes

Em princípio, ó atenienses, é legítimo que eu me defenda das calúnias das primeiras acusações que meforam dirigidas e dos primeiros acusadores, e depois das mais recentes acusações e dos novosacusadores. Pois muitos que se encontram entre vós já me acusaram no passado, sempre faltando com averdade, e esses me causam bem mais temor do que Ânito e seus amigos, embora estes sejamacusadores perigosos. Mas os primeiros são muito mais perigosos, ó cidadãos, aqueles que convivendocom a maior parte de vós, como crianças que deviam ser educadas, procuraram convencer-vos deacusações não menos caluniosas contra mim: que existe um certo Sócrates, homem de muita sabedoria,

que especula a respeito das coisas do céu, que esquadrinha todos os segredos obscuros, que transformaas razões mais fracas nas mais consistentes. Estes, ó atenienses, que propalaram essas coisas acerca demim, são os acusadores que mais receio, porque, ao ouvi-los, as pessoas acreditam que quem se dedicaa tais investigações não admite a existência dos deuses. E esses acusadores são muito numerosos e meacusaram há bastante tempo, e, o que é mais grave, caluniaram-me quando vós tínheis aquela idade emque é bastante fácil – alguns de vós éreis crianças ou adolescentes – dar crédito às calúnias, e assim, emresumo, acusaram-me obstinadamente, sem que eu contasse com alguém para me defender. E o que émais assombroso é que seus nomes não podem sequer ser citados, exceto o de um comediógrafo; porémos outros – os que, por inveja ou por vício em fazer falsas acusações, procuraram colocar-vos contramim, ou os que pretenderam convencer os outros por estarem verdadeiramente convencidos e de boa fé –, esses todos não podem ser encontrados, nem se pode exigir que ao menos alguns deles venham atéaqui, nem acusar ninguém por difamação, e, em verdade, a fim de me defender só posso lutar contrasombras, e acusar de mentiroso a quem não responde. Portanto, vós deveis vos certificar de que existem

duas categorias de acusadores: de um lado, os que me acusam há pouco tempo, e de outro, os que jáme acusam há bastante tempo e dos quais tenho falado a respeito, e então reconhecereis que devodefender-me destes em primeiro lugar. Ainda mais porque esses acusadores fizeram-se ouvir por vósantes e mais demoradamente do que aqueles que vieram depois.Defender-me-ei, portanto, ó atenienses, e assim descobrirei se aquela calúnia, que martiriza meu coraçãohá tanto tempo, possa ser extirpada, embora deva fazê-lo em tão curto prazo. E se eu for bem-sucedido,se conseguir acarretar-vos algum benefício com a minha defesa, será excelente para vós e para mim.Bem sei quanto isto é difícil e tenho plena consciência da enorme dificuldade que me espera. Que tudo sepasse de acordo com a vontade do Deus, pois à lei é necessário obedecer e defender-se.

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 Defesa Contra os Antigos Acusadores 

Calúnia a Respeito do Saber de Sócrates

 Vamos começar desde o início e examinar que tipo de acusação motivou essa calúnia, na qual Meleto sebaseou para redigir sua acusação neste processo. Que afirmavam meus detratores? Façamos de contaque se trate de uma acusação juramentada de acusadores reais e dos quais seja preciso ler o texto:"Sócrates é réu de haver-se ocupado de assuntos que não eram de sua alçada, e investigando o queexiste embaixo da terra e no céu, procurando transformar a mentira em verdade e ensinando-a àspessoas". A acusação possui mais ou menos este teor. Assististes a alguma coisa semelhante na comédiade Aristófanes, na qual um certo Sócrates aparece andando de lá para cá, afirmando que caminha emcima das nuvens, e outro amontoado de tolices, que não consigo compreender nem um pouco. E nãodigo isso por julgar aquelas ciências coisas vis, se é mesmo verdade que haja cientistas de tais ciências.Não faltaria quem, acompanhando Meleto, fizesse contra mim uma acusação tão grave! Eu só vosasseguro, ó atenienses, que não me ocupo desses assuntos, e recorro à maioria de vós para que sirvamde testemunhas. Peço que revelem publicamente quantos de vós já me ouviram falar a respeito dessascoisas, e então compreendereis que tudo o mais que dizem sobre mim possui o mesmo valor.Resumindo: nada existe em tudo isso que corresponda à verdade; e, mais ainda, se ouvistes alguémdeclarar que instruo os homens em troca de dinheiro, isto também não passa de mentira. Mesmo que, sealguém se propõe a instruir homens como fazem Górgias de Leontini, Pródico de Ceo e Hípias de Élida,se me afigure coisa em absoluto nada condenável. Esses valorosos homens percorrem as cidades com opropósito de instruir os jovens, aos quais seria mais fácil, e sem ter de gastar dinheiro, fazer-se instruirpor um de seus concidadãos; e convencem esses jovens a preferir a sua companhia à dos seus,recebendo em troca dinheiro e ainda por cima gratidão. Ouvi também referências a outro homem, deParos, que possui muita sabedoria e veio morar em Atenas, e o soube por intermédio de Cálias, filho deHipônico, homem que gastou mais dinheiro com sofistas do que qualquer outro ateniense. Perguntei aele: – Cálias, se teus dois filhos fossem dois potros ou duas vitelas, terias de contratar e pagar uma pessoaque tomasse conta deles, que tivesse a capacidade de Ihes ensinar as virtudes para serem acrescentadas

à sua natureza, e eles se tomariam cavalariços ou agricultores; mas teus filhos são homens; queeducação, então: tencionas proporcionar-lhes? Quem entende das virtudes que Ihes são necessárias, ouseja, das virtudes do homem e cidadão? Acredito que pensaste a respeito disso quando puseste os filhosno mundo. Existe alguém capaz de fazê-lo? – Claro que sim – respondeu-me. – E quem é ele? – indaguei-lhe. – de onde é e quanto cobra para ensinar? – Eveno de Paros. E seu preço é cinco minas – respondeu-me.No íntimo, parabenizei esse tal de Eveno, se é de fato possuidor dessa doutrina e a ensina a tão baixopreço. Eu mesmo me orgulharia se fosse capaz de tal coisa, contudo eu não sei, ó atenienses.

O Que é o Saber de Sócrates 

O Oráculo de Delfos

 Algum de vós poderia questionar-me: "Ó Sócrates, o que fazes então? Que motivo originou essascalúnias? Com certeza, se muitos te acusaram, não se deveu ao fato de que nada fizeste fora do comum;tantas vozes não teriam se erguido se tivesses te comportado como todos se comportam Conte o quefizestes, pois não desejamos julgar-te irrefletidamente".Procurarei esclarecer-vos a respeito da causa dessas calúnias contra mim. Escutai-me, portanto. Épossível que alguns entre vós creiam que eu esteja brincando; não, estou falando sério. Ó atenienses, éverdade que adquiri renome por possuir certa sabedoria. E que tipo de sabedoria é essa? Possivelmente,uma sabedoria estritamente humana. E a respeito de ser sábio, receio possuir esta única sabedoria. Ao

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passo que esses, de quem vos falava há pouco, talvez sejam possuidores de uma sabedoria sobre-humana, mas afirmo que não a conheço, e quem diz o contrário mente, apenas com o intuito decaluniar-me. Peço-vos para não fazer algazarra, ó atenienses, embora possais ter a impressão de que euesteja proferindo palavras por demais fortes; que não é meu depoimento, mas o de uma testemunha quemerece toda a vossa confiança. De minha sabedoria, se de fato se trata de sabedoria, e de sua natureza,

invocarei como testemunha, diante de vós, o próprio deus de Delfos. Todos vós conheceis Querefonte.Era meu amigo desde o tempo da juventude e pertencente ao vosso partido popular; partiu no últimoexílio em vossa companhia e regressou também em vossa companhia. Sabeis que tipo de homem eraQuerofonte e de como era determinado em suas resoluções Dirigiu-se em certa ocasião a Delfos eatreveu-se a perguntar ao oráculo se existia alguém mais sábio que eu. A pitonisa respondeu que nãoexistia ninguém. Como testemunho deste fato se prestará o irmão de Querefonte, em virtude de estehaver falecido.

Pesquisa Junto aos Políticos

Saberão agora o motivo pelo qual vos relato isso: meu intento é pôr-vos a par de onde se originou acalúnia contra mim. Após ter ouvido a resposta do oráculo, refleti da seguinte maneira: "Que pretende odeus dizer? Qual é o significado oculto do enigma? Tendo em vista que eu não me considero sábio, quequer dizer o deus ao afirmar que sou o mais sábio dos homens? Com certeza não mente, pois ele nãopode mentir". E longamente me mantive nesta dúvida. Por fim, ao arrepio de minha vontade, comecei ainvestigar acerca disso. Fui ter com um daqueles que possuem reputação de sábios, julgando quesomente assim poderia desmentir o oráculo e responder ao vaticínio: "Este é mais sábio que eu eafirmastes que era eu". Mas enquanto estava analisando este – o nome não é necessário que eu vosrevele, ó cidadãos; basta dizer que era um de nossos políticos –, enfim, este com que, analisando eraciocinando em conjunto, fiz a experiência que irei descrever-vos, e este homem aparentava ser sábio,no entender de muitas pessoas e especialmente de si mesmo, mas talvez não o fosse de verdade.Procurei fazê-lo compreender que embora se julgasse sábio, não o era. Em vista disso, a partir daquelemomento, não só ele passou a me odiar, como também muitos dos que se encontravam presentes. Afastei-me dali e cheguei à conclusão de que era mais sábio que aquele homem, neste sentido, que nós,eu e ele, podíamos não saber nada de bom, nem de belo, mas aquele acreditava saber e não sabia,

enquanto eu, ao contrário, como não sabia, também não julgava saber, e tive a impressão de que, aomenos numa pequena coisa, fosse mais sábio que ele, ou seja, porque não sei, nem acredito sabê-lo. Aí procurei um outro, entre os que possuem reputação de serem mais sábios que aqueles, e me ocorreuexatamente a mesma coisa, e também este me dedicou ódio, juntamente com muitos outros.

Pesquisa Junto aos Poetas

Não obstante isso, continuei diligentemente com minha pesquisa, embora notando, com desagrado eassombro, que todos passaram a me odiar e que, contudo, afigurava-se-me impossível deixar de atentarpara as palavras do deus. "Se almejas saber o que o oráculo quer dizer", dizia a mim mesmo, "deves visitar todos aqueles que possuem reputação de sabedoria."  Por isso, ó atenienses, devo dizer-vos de novo a verdade; juro-vos que este foi o resultado da minha pesquisa: os que eram famosos porpossuírem maior sabedoria, conforme minha pesquisa, conforme a palavra do deus, pareceram-me quase

todos em maior erro. E outros, sem fama alguma, se me afiguraram melhores e mais sábios. Mas desejoterminar de relatar-vos minhas peregrinações e as fadigas que sofri para convencer-me de que a palavrado oráculo era incontestável.Em seguida aos políticos, fui procurar os poetas, tanto os que escreviam ditirambos' e tragédias como osdemais, convencido de que diante daqueles confirmaria minha ignorância e sua superioridade. Pegueisuas melhores poesias, as que considerava mais bem construídas, e indaguei aos próprios poetas o queeles pretendiam dizer; porque dessa maneira aprenderia alguma coisa com eles. Estou com vergonha, óatenienses, de contar-vos a verdade! Mas é obrigatório que eu a diga. Resumindo, todas as outraspessoas presentes discorriam melhor a respeito do que os poetas haviam escrito que os próprios autores;

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diante disto, descobri que não era por nenhum tipo de sabedoria que eles faziam versos, mas por umapropensão e inspiração natural que eu desconheço, como os adivinhos e vaticinadores, que dizem de fatomuitas coisas belas, mas não conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eupercebi com clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os poetas, pelo fato defazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos homens até mesmo em outras coisas em que realmente

não o eram. Então afastei-me deles, com a certeza de ser mais sábio que eles, pelo mesmo motivo queera mais que os políticos.

Pesquisa Junto aos Artesãos

No final, dirigi-me aos artesãos, que de sua arte tinha a consciência de não conhecer nada, e eles sabiamque eu os considerava conhecedores de numerosas e belas coisas. E não me equivoquei, eles conheciamcoisas que eu não conhecia, e nisso eram mais sábios do que eu. Porém, ó atenienses, também osartesãos famosos apresentavam o mesmo defeito dos poetas: por conhecerem muito bem sua arte, cadaum deles julgava-se extremamente sábio, até mesmo em outros assuntos de maior realce e dificuldade, eeste importante defeito deslustrava toda sua sabedoria. De forma que eu, em nome do oráculo, indagueia mim mesmo se deveria permanecer tal como era, nem sabedor de minha sabedoria nem ignorante deminha ignorância, ambas as coisas, como eles, e respondi a mim e ao oráculo que convinha continuar talqual eu era.

O Verdadeiro Saber Consiste em Saber Que Não se Sabe

Em virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosíssimas inimizades, e a partir destas inimizadessurgiram muitas calúnias, e entre as calúnias, a fama de sábio, porque, toda vez que participava de umadiscussão, as pessoas julgavam que eu fosse sábio naqueles assuntos em que somente punha adescoberto a ignorância dos demais. A verdade, porém, é outra, ó atenienses: quem sabe é apenas odeus, e ele quer dizer, por intermédio de seu oráculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria dohomem, e, ao afirmar que Sócrates é sábio, náo se refere propriamente a mim, Sócrates, mas só usameu nome como exemplo, como se tivesse dito: "Ó homens, é muito sábio entre vós aquele que, igualmente a Sócrates, tenha admitido que sua sabedoria nao possui valor algum" . É por esta

razao que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a palavra do deus, se existe alguém entre osatenienses ou estrangeiros que possa ser considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho emajuda ao deus provando que nao há sábio algum. E tomado como estou por esta ânsia de pesquisa, nãome restou mais tempo para realizar alguma coisa de importante nem pela cidade nem pela minha casa, élevo uma existência miserável por conta deste meu serviço ao deus.

 As Muitas Inimizades e a Acusação

 Vós tendes conhecimento de que os jovens que dispõem de mais tempo que os outros, os filhos dasfamílias mais ricas, seguem-me de livre e espontânea vontade, e se regozijam em assistir a esta minhaanálise dos homens; inúmeras vezes procuram imitar-me e tentam, por sua própria conta, analisaralguma pessoa. Logicamente, deparam-se com numerosos homens que julgam saber alguma coisa esabem pouco ou nada, e então, aqueles que são analisados por eles voltam-se contra mim e não contra

quem os analisou, declarando que Sócrates é homem por demais infame e corruptor dos jovens. E sealguém indaga: "Afinal, o que faz e o que ensina este Sócrates para corromper os jovens?"  ,nada respondem, porque o desconhecem, e, só para não evidenciar que estão confusos, dizem as coisasque comumente são ditas contra todos os filósofos, além de afirmar que ele especula sobre as coisas quese encontram no céu e as que ficam embaixo da terra, e que também ensina a não acreditar nos deusese apresenta como melhores as piores razões. A verdade, porém, é que esses homens demonstraram serpessoas que dão a impressão de saber tudo, porém, naturalmente, não querem dizer a verdade. Destamaneira, ambiciosos, dominados pela paixão e numerosos como são, e todos da mesma opinião nestadifamação a meu respeito e com argumentos que podem parecer também convincentes, sem escrúpulo

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algum encheram vossos ouvidos com suas calúnias. Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram-se contra mim Meleto, Ânito e Lícon: Meleto profundamente irado por causa dos poetas, Ânito por causados artesãos e dos políticos, Lícon por causa dos oradores. Contudo, como vos disse desde o início, seriade fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade de arrancar-vos do coração esta calúnia quepossui raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó cidadãos, a verdade, e eu a revelo por completo, sem

ocultar-vos nada, nem mesmo esquivando-me dela, embora saiba que sou odiado por muitos exatamentepor isso. Por sinal, é outra prova de que digo a verdade, e que esta é a calúnia contra mim e esta acausa. Indagai quanto quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a mesma resposta.

Defesa Contra Meleto

No que diz respeito aos meus primeiros acusadores, isso é o bastante para a defesa das culpas a mimatribuídas; procurarei em seguida defender-me de Meleto, homem digno e patriota, como ele mesmo sedefine, e dos acusadores que virão depois. Vou começar desde o início e como se na verdade dissesserespeito a outra espécie de acusadores, analisemos também o ato de acusação deste. Declarou mais oumenos isto: " Sócrates é réu de corromper os jovens, de não crer nos deuses nos quais a cidade crê e também de praticar cultos religiosos extravagantes" .  Analisemos esta acusação minuciosamente. Meleto afirma que corrompo a juventude, e eu digo, óatenienses, que o réu é o próprio Meleto, porque aborda com leviandade assuntos sérios e tãoinescrupulosamente leva homens diante do tribunal, com o intuito de fazer crer que se preocupa comcoisas com as quais, na verdade, nunca se preocupou. E procurarei provar-vos que isso é a puraverdade.

Meleto Não Sabe o Que é Educar Nem Corromper

Meleto, mostra-te e responde. Não julgas de suprema importância que os jovens consigam se tornar osmelhores possíveis?MELETO: — Julgo.SÓCRATES: — Dize, então, aos juizes o que os torna melhores. Com certeza o sabes, pois esta é umapreocupação tua e descobriste quem os corrompe, conforme afirmas, e por este motivo citaste-me diante

do tribunal e me acusaste. Vamos, dize aos juizes o que os faz melhores. Vês, Meleto, como ficas calado,sem saber o que dizer? E isto não te se afigura vergonhoso, e prova suficiente do que afirmo: que nuncate preocupaste com estes assuntos? Vamos, ó excelente homem, responde: que os faz melhores?MELETO: — As leis.SÓCRATES: — Não se trata disto, meu amigo. Indago-te qual é o homem que, em primeiro lugar, deveter conhecimento, conforme dizes, das leis.MELETO: — Estes, ó Sócrates, os juizes.SÓCRATES: — Afirmas, então, Meleto, que estes possuem a capacidade de educar os jovens e torná-losmelhores?MELETO: — Afirmo.SÓCRATES: — Crês que todos, ou alguns sim e outros não?MELETO: — Todos.SÓCRATES: — Dizes bem, por Hera! E grande a quantidade de bons educadores! Também estes que

estão nos ouvindo tornam os jovens melhores ou não?MELETO: — Sim, também estes.SÓCRATES: — E os senadores?MELETO:  — Também os senadores.SÓCRATES: — Quer dizer, então, Meleto, que talvez aqueles das Assembléias Populares corrompam os jovens? Ou também aqueles os tornam melhores?MELETO: — Também aqueles.SÓCRATES: — Todos os atenienses que te ouvem tornam os jovens bons e belos, todos, exceto eu.Portanto, sou eu quem os corrompe. É isto que queres dizer?

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MELETO: — Exatamente isto.SÓCRATES:  — Como sou infeliz! Mas responde-me a isto: também com os cavalos crês que seja assim?Que todos os homens os tornem melhores e somente um os mutile? Ou, ao contrário, que somente umos torne melhores, ou poucos, aqueles que são peritos em cavalos, e que os demais se sirvam doscavalos e os mutilem? E não acontece assim, ó Meleto, com os cavalos e com todos os seres vivos? Com

certeza é assim, digam Ânito e tu mesmo que sim ou não. Seria uma grande felicidade para os jovens secorrespondesse à verdade que somente um Ihes causa danos e todos os outros os educam e melhoram.Mas, prossegue, Meleto, já que demonstrei a contento que tu nunca te preocupaste com os jovens. Maisainda, demonstrei que nunca tiveste preocupação com as coisas pelas quais me trouxeste diante destetribunal. Agora dize-me, ó Meleto, o que mais convém, viver entre bons cidadãos ou entre maus cidadãos? Amigo,responde, não é difícil o que te pergunto. Os maus não prejudicam aqueles que Ihes são próximos? E osbons não Ihes fazem o bem?MELETO:  — Com toda a certeza.SÓCRATES:  — Pode existir alguém que esteja com eles e que prefira receber o mal em lugar do bem?Responde, excelente homem. Também a lei deseja que respondas. Pode existir alguém que prefirareceber o mal?MELETO: — Não, realmente.SÓCRATES:  — Então, trouxeste-me a este tribunal porque corrompo os jovens por querer è os tornomaus, ou faço isto sem querer?MELETO: — Afirmo que é por querer.SÓCRATES:  — Quer dizer, então, ó Meleto, tua sabedoria sendo maior que a minha, na tua idade, tendoeu os anos que tenho, que pensas conhecer melhor do que eu que os maus sempre causam algum mal,principalmente àqueles mais próximos deles, e que os bons façam o bem, e que eu ignore essas coisas aponto de não saber que se se torna mau a um deles corre-se o risco de receber algo mau dele e que, nocaso de saber disso, eu me empenhe em torná-los maus? Não me persuadirás disto, ó Meleto. Nemacredito que possas persuadir a ninguém. Ou seja, não corrompo os jovens, ou, se os corrompo, faço-osem querer, de maneira que em ambos os casos mentes. Se eu os corrompo sem querer, por faltasinvoluntárias, não existe lei alguma que poisa me obrigar a vir até aqui, mas sim que faça com que sejaafastado, a fim de advertir-me ou censurar-me, e é claro que, uma vez advertido, não mais farei o que

fazia sem querer. Tens evitado encontrar-te comigo e advertir-me; não o quiseste fazer de forma algumae me trazes aqui, embora as leis estabeleçam que aqui sejam trazidos somente os que devem sercastigados, e não censurados.

Meleto Acusa Sócrates de Ateísmo e se Contradiz

Neste momento, cidadãos de Atenas, é bastante evidente aquilo que eu afirmava: que Meleto nunca sepreocupou com essas coisas. Apesar disso, dize-nos, Meleto, de que maneira, de acordo com tua opinião,eu corrompo a juventude? Não o faço, como afirma com clareza a acusação que apresentaste contramim, ensinando-os a não acreditar nos deuses nos quais a cidade acredita, mas em outras divindadesnovas? Não é, conforme dizes, ensinando estas coisas que os corrompo?MELETO:  — Sim, eu digo exatamente isto.SÓCRATES:  — Em nome desses mesmos deuses a respeito dos quais agora falamos, explica-te com

maior clareza, tanto para mim como para estes juizes, porque não consigo compreender a quais deuseseu ensino que os jovens devem acreditar, pois se naqueles que acredito são deuses, não sou ateu e, porconseguinte, não posso ser culpado disso, mesmo que não sejam os da cidade, e sim outros; é por causadisso que me trazes a este tribunal, por que são outros ou por que afirmas que não acredito de maneiraalguma nos deuses e ensino isto aos jovens?MELETO: — Eu afirmo que não acreditas de maneira alguma nos deuses.SÓCRATES:  — Ó excelente Meleto! Por que dizes que não acredito, da mesma maneira que os outroshomens, que o sol e a lua sejam deuses?MELETO: — Com certeza, ó juizes, pois afirma que o sol é uma pedra e a lua é feita de terra.

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SÓCRATES:  — Pensas, meu bom Meleto, em acusar também Anaxágoras? E tens em tão poucaestima e reputas tão ignorantes nas letras a estes juizes, a ponto de não saberem que os livros de Anaxágoras de Clazomena estão repletos destes ensinamentos? E por que motivo os jovens iriamaprender de mim estas coisas que por uma simples dracma podem comprar na ágora e zombarem deSócrates, se este as apresentasse como suas, ainda mais sendo tão extravagantes? Por Zeus, pensas de

fato que eu não acredite em deus algum?MELETO: — Em nenhum, com certeza.SÓCRATES:  — Ninguém acredita em ti, ó Meleto, e naquilo que afirmas; creio que não conseguespersuadir nem a ti mesmo. Na verdade, ó atenienses, tudo isto se me afigura desaforado e atrevido, equem escreveu esta acusação foi desaforado e a escreveu por atrevimento e desrespeito juvenil. É comose alguém desejasse por-me à prova compondo uma espécie de enigma: "Dar-se-á conta Sócrates, aquele grande sábio, que o estou ridicularizando e me contradigo? Ou conseguirei enganá-lo e a todos aqueles que me ouvem?"  Com efeito, parece-me que Meleto se contradiz na acusação,como se declarasse: "Sócrates é réu de não acreditar nos deuses, mas também de acreditar nos deuses" . E isto significa desejo de se divertir.Ó atenienses, analisai comigo de que maneira creio que ele se contradiz. Responde, ó Meleto. E vós,como já vos exortei no começo, recordai-vos de não me interromper se continuo a raciocinar à minhamaneira.Existe alguém, ó Meleto, que acredite na existência de fatos humanos e não em homens? Fazei com queresponda, ó atenienses, e não criai tanta agitação por causa de uma palavra. Há quem não acredite na existência de cavalos, mas sim nas coisas relativas a cavalos? E que não acredite na existência de flautistas, mas sim que existam sons de flauta?  Não ha ninguém, eu mesmorespondo, a ti e aos outros que aqui se encontram, se não queres responder. Mas responde ao menos àpergunta seguinte: existe quem possa acreditar em coisas demoníacas, mas não em demônios?MELETO: — É completamente impossível.SÓCRATES:  — Quanta satisfação me proporcionou tua resposta, embora tenhas sido obrigado pelos juizes. Portanto, acusas-me de acreditar em coisas demoníacas e de ensiná-las; é isto que afirmas e que juraste no teu ato de acusação. Mas se acredito em coisas demoníacas, devo obrigatoriamente crer emdemônios, não é assim? Com certeza é assim. Parece-me que aceitas, já que não contestas. E nãoconsideramos estes demônios filhos dos deuses?

MELETO: — Logicamente.SÓCRATES:  — Ora, se afirmas que existem demônios, se estes demônios são deuses, é neste ponto queeu digo que fazes enigmas e brincadeiras, quando declaras que eu, embora não acreditando naexistência dos deuses, afirmo a sua existência, uma vez que digo existirem demônios. De outra forma, seestes demônios são filhos dos deuses, são também filhos bastardos gerados por ninfas ou outras mães;então, quem poderá pensar que existam filhos de deuses e de deuses não? Seria disparate igual sepensasse que os mulos fossem filhos de jumentos e cavalos e que estes últimos não existissem. Por isso,Meleto, é impossível, exceto que haja sido para pôr-me à prova, que tenhas escrito contra mim umaacusação como esta, ou é necessário dizer que não sabias do que me acusar? Mas que consigaconvencer quem quer que seja, mesmo se fraco de intelecto, que a mesma pessoa que acredita emcoisas demoníacas possa não acreditar em coisas divinas e, de outra forma, que a mesma pessoa queacredita em coisas demoníacas possa não acreditar nem em demônios, nem em deuses, nem em heróis,isto é impossível.

 A Missão Divina

Fazer o Que é Justo, Permanecer no Lugar Adequado, Obedecer ao Deus

Chega, ó atenienses, isto é o bastante para demonstrar que não sou culpado das acusações de Meleto,pois não se faz necessária uma defesa muito longa. O que eu vos disse, desde o início, que um profundoódio ergueu-se contra mim, e vindo de muitas pessoas, é verdade, vós sabeis; e se algo me causará

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dano, não será nem Meleto nem Ânito, mas sim este ódio, esta calúnia e esta raiva das pessoas.Pessoas estas que já causaram a perda de tantos outros e valorosos homens, e, acredito, outros aindairão perder, não havendo perigo que causem somente a minha perda. Algum de vós poderia talvez altercar-me: "Sócrates, não te envergonhas de haveres exercido talatividade, que agora coloca em risco tua vida?" Eu responderia a este: "Não falas bem se pensas que

alguém, tendo a capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo pequeno, deva calcular os riscos de vidaou de morte e não deva olhar o injusto e se pratica as ações de homem honesto e corajoso ou de infamee mau. Por outro lado, acompanhando este teu raciocínio, teriam sido néscios todos os heróis quemorreram em Tróia, e o mais néscio de todos seria o filho de Tétis que, sem se envergonhar, tamanhodesdém mostrou pelo perigo, quando sua mãe, uma deusa, estando ele ávido do sangue de Heitor,disse-lhe, se bem me lembro: 'Ó filho, se vingares a morte do teu companheiro Pátroclo e mataresHeitor, também morrerás'. Ao ouvir tais palavras, Aquiles negligenciou o perigo e a morte, receandomuito mais viver miseravelmente sem vingar o amigo, e declarou: 'Rapidamente eu morra, logo após tercastigado a quem matou, nem que para isso me torne objeto de desprezo'. Acreditas que Aquiles tenhapensado na morte e no perigo?"É assim que deve ser, ó atenienses, que onde alguém se haja instalado, considerando ser aquele seulugar mais honroso, ou onde tenha sido instalado por quem ordena, aí, creio, deve ficar e enfrentar osriscos e não pensar na morte, nem em outra desgraça qualquer, à exceção de na desonra e na vergonha.Declaro-vos, ó cidadãos, que meu comportamento seria anormal e excêntrico se, ao passo que emPotidéia, Anfípolis e Délio, quando os comandantes que vós elegestes me designaram uma posição, láfiquei, como qualquer outro, arriscando minha vida, aqui, ao contrário, ao receber ordens do deus, aomenos conforme pude ouvir e interpretar essa mesma ordem, pela qual deveria viver filosofando ededicando-me a conhecer a mim mesmo e aos outros, que, digo, por temor à morte ou a outra desgraçasemelhante, tivesse desertado do posto a mim designado pelo deus. Seria algo, repito, anormal e, defato, existiriam então motivos para trazer-me aqui no tribunal como sendo um desumano que não cressenos deuses, já que desobedece ao oráculo, receia a morte e julga ser sábio sem sê-lo. Com efeito,atenienses, recear a morte não passa de julgar ser sábio e não sê-lo, dado que significa pensar saberaquilo que não se sabe. E, em verdade, ninguém sabe se, por acaso, ela não seja o maior de todos osbens que podem ser dados ao homem e, contudo, receiam-na como se soubessem que ela é a maior dasdesgraças. E não é ignorância, a mais vergonhosa das ignorâncias, acreditar saber o que não se sabe?

Ora, atenienses, acredito distinguir-me por este motivo e precisamente neste ponto da maior parte doshomens, e se me atrevesse a dizer que em alguma coisa sou mais sábio que os outros, somente por istoo diria, que como não sei nada de preciso a respeito das coisas do Hades, também nada penso saber aesse respeito. Mas ser injusto e desobedecer a quem é melhor que nós, seja deus, seja homem, isto bemsei que é coisa vergonhosa e indecente. Por isso, como ocorre diante dos males que sei que sãonefastos, nunca acontecerá que eu fuja diante daqueles de que não sei se por acaso não são bens.Portanto, mesmo que me concedesses a liberdade, contra a vontade de Ânito que, desde o começo,declarava não ser necessário que eu viesse até este tribunal, ou, uma vez aqui trazido, que eraimpossível não condenar-me à morte, porque, dizia, se consigo safar-me da condenação, daquelemomento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os ensinamentos de Sócrates, estariaminapelavelmente perdidos e corrompidos; se, ao ouvir este raciocínio de Ânito, me dissésseis: "ÓSócrates, não pretendemos dar, agora, atenção a Ânito e deixamos-te livre, desde que não empreguesmais teu tempo nessas pesquisas, nem te ocupes mais de filosofia, e se fores surpreendido a praticar

ainda estas coisas, morrerás"; se, como dizia, com esta condição me deixásseis em liberdade, eu vosresponderia: "Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro ao deus do que a vós, e enquanto tiverânimo, e enquanto for capaz, não pararei de filosofar, não pararei de estimular-vos e censurar-vos; e aquem quer que eu encontrasse de vós, em qualquer ocasião, conversando da minha maneira habitual,assim diria: "E tu, que és o melhor dos homens; tu, ateniense, cidadão da maior cidade e mais célebrepor sabedoria e poder, não te envergonhes de pensar em acumular o máximo de riquezas, fama ehonras, sem te preocupar em cuidar da inteligência, da verdade e da tua alma, para que se tornem tãoboas quanto possível?" E se algum de vós retrucasse que cuida de fato delas, não o deixaria afastar-senem iria embora, mas o interrogaria, o analisaria, o impugnaria, e se me afigurasse que não possui

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virtude mas apenas afirma possuí-la, eu o envergonharia demonstrando-lhe que considera infames ascoisas mais estimáveis e de valor, as infames. E agiria assim com qualquer um que eu quisesse: jovensou velhos, atenienses ou estrangeiros, e também com vós, que me sois mais estritamente próximos. Isto,vós não desconheceis, é ordem do deus e estou convencido de que haja para vós maior bem na cidadedo que esta minha obediência ao deus.

Em verdade, com este meu caminhar não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, deque não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisaantes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa, e de que dasriquezas não se origina a virtude, mas da virtude se originam as riquezas e todas as outras coisas quesão venturas para os homens, tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se ao falardesta maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que minhas palavras são nocivas, mas sealguém afirma que falo diferentemente e não deste modo, então diz coisas insensatas. Por tudo isso,permiti que vos diga, ó cidadãos atenienses: ou dareis ouvidos a Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis ounão, mas, de qualquer forma, tende a certeza de que nunca agirei de outra maneira que esta, mesmoque não só uma, mas muito mais vezes devesse morrer.Não promoveis algazarra, ó cidadãos, lembrai-vos de meu pedido de que não causásseis balbúrdia diantedo que eu dissesse, mas que vos limitásseis a ouvir. Ademais, creio que vos será útil escutar. Restam-mealgumas outras coisas a dizer-vos, às quais, talvez, erguereis a voz. Não, não fazei assim. Convencei-vos:se me condenardes à morte, a mim que sou como vos disse, não me causareis maior dano que podeiscausar a vós mesmos. A mim não causarão dano nem Meleto nem Ânito. E nem o poderiam. Não pensoque seja possível que um homem de bem receba o mal de um malvado. Poderá sim, Ânito, condenar-meà morte, ou ao desterro, espoliar-me dos direitos civis; tudo em que este homem crer e outros creremserão grandes males, não o creio eu; penso que seja um mal bem mais grave aquele que é cometido poresses que tentam condenar à morte um homem inocente. Logo, ó atenienses, de maneira alguma estoufalando em minha defesa, como alguém poderia achar, mas falo por vós, que não necessitais pecar,condenando-me à morte, contra o dom do deus. Pois se me matardes, não encontrarão facilmente umoutro igual a mim, que, não riam da comparação, tenha sido colocado de fato pelo deus aos flancos dacidade como aos flancos de um cavalo grande e de boa raça, mas pelo seu próprio tamanho, um poucolerdo e necessitado de estímulo, um ferrão. Assim parece-me que o deus me colocou aos flancos dacidade; nunca paro de exortar-vos, de convencer-vos, de falar-vos, um por um, estando a vosso lado, em

todo lugar. Afirmo, pois, que outro como eu não nascerá facilmente, ó atenienses, e se desejais meouvir, me poreis a salvo. Mas se estais irritados comigo como o que está em vias de adormecer comquem o desperta, e golpeais como a matar um inseto inoportuno, condenar-me-eis à morte, porobediência a Ânito, e depois, no decorrer de todo o resto de vossa existência, dormireis tranqüilamente,se o deus não vos mandar algum outro para substituir-me. E se for eu mesmo a pessoa indicada pelodeus para presentear a cidade, podereis me reconhecer por isso: que não parece humano que hajadescuidado todos os meus negócios e ainda agüentar por tantos anos que tenham sido descuidadas ascoisas da minha casa, e sempre, ao contrário, cuidando das vossas, estando por perto como estaria umpai ou irmão mais velho, para convencer-vos a buscar a virtude. Que se desta vida tirasse algum proveitoe se pelos conselhos que dou recebesse alguma compensação, aí sim haveria uma razão, mas vistes quemeus detratores, que me acusaram tão despudoradamente de tantas outras culpas, desta não tiveram odespudor de me acusar, pondo-me frente a frente com uma testemunha, somente uma, que provasse tereu recebido uma única vez compensação ou de havê-la solicitado. E a prova cabal de que é verdade o

que vos declaro, eu dou: a minha pobreza.

Repugnância e Abstenção Socrática da Política Comum

É possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar tanto ao trabalho de fornecerconselhos a este ou àquele em particular, se, ao se tratar de aconselhar a cidade e de ir à tribuna parafalar ao povo, então me falte coragem. E o motivo disso me haveis ouvido dizer várias vezes e em várioslugares, que existe em mim não sei que espírito divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto,com jeito de estar se divertindo, aponta no ato da acusação. É como uma voz que possuo dentro de mim

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desde criança, e que, toda vez que eu a ouço, sempre faz com que eu desista do que estou parafazer, e nunca me convence a realizar qualquer outra coisa. É essa voz que me impede de me ocupar dascoisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir dessa forma. Sabeis perfeitamente, ócidadãos, que se eu tivesse, por algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido mortotambém num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim. E não

me desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não existe homem que possa se salvar ao opor-se comsinceridade, não digo a vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes secometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que aquele que luta em defesa do que é justo,se de fato pretende escapar da morte, mesmo que por breve tempo, de viver de forma privada e nãoexercer funções públicas.Daquilo que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras, mas do que maisnecessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis então que diante do que é justo não sou homem deceder a ninguém por temor à morte; e que, além de não ceder, estou pronto a morrer. Falarei um poucogrosseiramente, como fazem alguns dos freqüentadores dos tribunais, mas com sinceridade. Tendesconhecimento, ó cidadãos, de que nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vezem que fiz parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo julgar em conjunto, aoarrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao meu parecer, aqueles dez capitães que não haviamrecolhidos os náufragos e os mortos depois da batalha naval das Arginusas.Então eu me opus, lutandopara que nada fosse feito contra a lei, e votei contra. Os oradores habituais já estavam prontos parasuspender-me da função e aprisionar-me, e vós a intigá-los e a gritar; julguei que era meu dver correraquele risco mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de apoiar-vos e deliberar o injusto portemer a prisão e a morte. E isto ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma democracia. Maistarde, depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me chamar, e a mais outros quatros, levaram-nos à sala do Tolo e ordenaram que retirássemos de Salamina o Leon de Salamina, para que este viessea morrer. E davam ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em seus atoscruéis o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião, não com palavras, e sim com fatos,demonstrei que a morte, se a palavra não soar por demais vulgar, não possui importância alguma paramim, mas de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de qualquer coisa.Eaquele governo, apesar de prepotente, não me atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e,quando saímos do Tolo e os outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar Leon, deixei-os ir e

voltei para casa. Acredito que só por causa disso, eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse sidodeposto logo em seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas.

O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos

Credes que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos públicos e, fazendo-ocomo homem de bem, tivesse lutado em defesa da justiça e tivesse considerado esta defesa, como énecessário, meu dever mais alto? Com certeza, atenienses, não existe homem que o tivesse conseguido!Em verdade, em toda minha existência, tanto em público, nas poucas vezes que me ocupei de coisaspúblicas, como privadamente, sempre fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quemquer que fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus discípulos.Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é uma pessoa que , quando falo ou atendoàquilo que acredito ser meu ofício, deseja escutar-me; seja jovem, seja velho, nunca me refutaram, e

não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo e se não recebo, fico calado, porque estou da mesmamaneira à disposição de todos, pobres e ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhasrespostas. Por conseguinte, se entre os homens que me freqüentam, um se torne de boa formação moralou não, não será justo que eu receba elogios ou impropérios, já que não prometi ensinamento algum aninguém, nem nunca ensinei coisa alguma. E se há quem diga que aprendeu ou ouviu alguma coisa demm, em particular, alguma coisa que todos os outros não tenham aprendido ou ouvido, tenhais a certezade que este não diz a verdade.Diante disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? Vós ouvistes, ó cidadãos,que eu disse toda a verdade: têm prazer de ouvir-me quando submeto à prova aqueles que pensam

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serem sábios e não o são. Com efeito, não é desagradável. Ao fazer isso, repito-vos, cumpro asordens do deus, dadas por intermédios de vaticínios e sonhos, e por outros meios de que se serve aprovidência divina para ordenar ao homem que faça alguma coisa. E estas coisas, ó atenienses, sãoverdadeiras e demonstráveis. Se de fato eu corrompo os jovens, se já corrompi algum, seria aindanecessário que estes, ao envelhecerem, tomassem consciência de que quando eram jovens eu os

aconselhei a praticar o mal, e que viessem à tribuna para acusar-me e para exigir minha punição, e, senão quisessem fazê-lo diretamente, que enviassem hoje para cá as pessoas de sua família, pais, irmãos,e outros, se os que lhe são caro sofreram algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar porisso. Muitos destes estão presentes, eu os vejo. Ali está Críton, meu contemporâneo e conterrâneo comsei filho Critóbulo, e também Lisânias de Esfeto, com seu filho Ésquino,e ainda Antífon de Cefísia, pai deEpígeno, e ali estão outros, cujos irmãos viveram comigo familiarmente, Nicóstrato, , filho de Teozótides,irmão de Teódoto, e como Teódoto faleceu, não poderá falar com o irmão a meu favor, e aí está Parálio,filho de Demódoco,de quem era irmão Teages, e ali Adimanto, filho de Aríston, de quem ali se encontra oirmão Platão, e Aantodoro, de quem temos aqui o irmão Apolodoro. E poderia nomear muitos outros. Econseguiria indicar vários outros que Meleto poderia apresentar como testemunhas na sua acusação; seele se esqueceu disso, que os apresente agora, cedo-lhe o lugar; se existe alguma testemunha destetipo, que se manifeste.Porém, atenienses, vereis que todos farão o contrário, todos falarão a favor do corruptor, em defesadaquele que causa o mal de seus familiares, como afirmam Meleto e Ânito. Talvez esses, os corrompidos,tenham alguma razão para me defender, mas aqueles que não foram corrompidos, que são agoraanciãos, que outra razão podem ter para me defender exceto esta, que é verdadeira e justa: a certeza deque Meleto mente e eu digo a verdade?

Epílogo  

Sócrates não quer Misericórdia

Cidadãos, são estas, enfim, as razões que posso apresentar em minha defesa, e algumas mais, que,porém, são bem poucos diferentes destas. É possível que alguém entre vós, ao pensar em si mesmo,possa irritar-se comigo se, algum dia, ao ter de enfrentar um processo menos arriscado do que este,

suplicou clemência aos juizes, e, além disso, trouxe ao tribunal os filhos e vários de seus parentes eamigos, ao passo que eu não me porto desta maneira, embora, ao que parece, esteja arriscando a vida.É possível que alguém, ao fazer intimamente esta comparação, se deixe influenciar pelo amor-próprioferido e, desta forma, enraivecido com minha atitude, emita seu voto com raiva. A uma pessoa assim,que talvez esteja entre vós, não afirmo categoricamente que há, poderei responder da seguinte maneira:"Meu estimado amigo, eu também trouxe alguém da minha família, e aqui caberia aquele dito deHomero: 'Que não de carvalho, nem de pedra nasci, mas de criaturas humanas'.Eu também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e dois ainda crianças, mas nãoos trouxe aqui para despertar vossa misericórdia e absolver-me". E não é por orgulho que me comportoassim, nem por desprezo, nem para provar que sou corajoso diante da mote, mas pela minha reputação,pela vossa e de toda a cidade, não me pareceu honroso agir dessa maneira, ainda mais na minha idade ecom o meu nome, verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer aspectos,Sócrates se distingue da maioria dos homens. Ora, se aquele que entre vós possuem fama de se

distinguirem pela sabedoria e coragem, ou por outra virtude qualquer, se procedessem dessa maneira,seria vergonhoso, e pessoas desse tipo, eu mesmo presenciei muitas vezes, quando eram réus em umprocesso, embora possuíssem alguma boa reputação, têm atitudes excepcionais, como se achassem queiriam sofrer sabe-se lá que tortura se devessem morrer e como se tornassem imortais se não fossemcondenados à morte por vós. Estes, sim, envergonham a toda a cidade, tanto que qualquer forasteiropoderia imaginar que aqueles atenienses que se distinguem por sua virtude e que seus concidadãoselegem à magistratura e outras honras não são em nada melhores que as mulheres. Por isso, não nosportamos dessa maneira é o que compete a nós, que temos fama de sermos ainda alguma coisa. Nemvos conviria, se nos comportássemos assim, deixar-nos fazê-lo, mas sim mostrar a todos que julgais com

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maior rigor quem encena esses dramas lastimosos e cobre a cidade de ridículo do que quem suportacom serenidade o próprio destino.Não considero justo, ó cidadãos, tentar influir nos juízes e, mediante súplicas, livrar-me da condenação,mas sim infomá-los e convencê-los.Os juízes não se encontram aqui para favorecer o justo, mas para julgar o justo, nem juraram que

favorecerão a quem lhes paga, mas que farão justiça de acordo com as leis. Portanto, não é necessárioque vos habitueis a isso; não faremos coisas boas e piedosas, nem vos nem eu. Não iríeis querer então,ó atenienses, que eu cometesse diante de vós atos que reputo desonestos, injustos e vis, e eu menosainda, eu que sou acusado por Meleto, aqui presente, de impiedade. Porque é evidente que se eu, pormeio de súplicas procurasse convencer-vos e obrigar-vos a violar o juramento, eu vos ensinaria que,desta acusação, seria culpado de não crer nos deuses. E é justamente o contrário que sucede. Acreditonos deuses mais do que qualquer um dos meus acusadores, e deixo a vosso critério, e ao do deus, julgaro que será para vós e para mim o melhor.

 A Pena 

Do Esperado da Pena

Se eu não estou abalado, ó atenienses, com o que acaba de ocorrer, o de terem votado pela minhacondenação, isso deve-se, entre outras razões, ao fato de não haver sido apanhado de surpresa. O que,no entanto, me causa mais estranheza é o grande número de votos favoráveis a mm , pois acreditavaque seria condenado por muito mais votos, e não por tão poucos. Ao que me parece, com apenas maistrinta votos a meu favor teria sido absolvido. Portanto, penso haver escapado das mãos de Meleto, e nãosó haver escapado delas, mas, o que é bastante evidente, se Ânito e Lícon não tivessem vindo para meacusar, eu teria sido multado em mil dracmas por não haver conseguido um quinto dos votos.Este homem, então, pensa que mereço a pena capital. E eu, que pena apresentarei em oposição à vossa,ó atenienses? Não é evidente que seja a mesma que me foi imposta? Qual será então? Que penamerecerei ou que multa, por não haver usufruído em paz, ao longo da minha existência, o que aprendi, epor ter desprezado aquilo que atrai a maioria; riquezas, interesses particulares, cargos militares epolíticos e todas as outras magistraturas, e as agitações e conspirações que acontecem nas cidades, pois

sempre me considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se me dedicasse a tais coisas econvencido de que não teria sido útil nem para mm nem para vós, e porque sempre acudi rapidamenteaonde quer que eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada um de vós em particular, tentandoconvencer-vos de que, antes de qualquer coisa e de vós mesmos, procurásseis ser os melhores e maissensatos possível, e que vos esforçásseis ao máximo para trabalhar em prol da cidade. Que mereço porsempre haver agido desta forma? Algum grande bem, ó atenienses, se é que devo ser recompensadocomo mereço. Que será apropriado para um pobre benfeitor que precisa de tempo para aconselhar-vosnos vossos assuntos? O que mais seria conveniente a esse homem, atenienses não seria mantê-lo noPritaneu com muito maior razão do que aqueles que, com cavalo, biga ou quadriga, tenham conseguidotriunfos nos Jogos Olímpicos. Porque estes vos proporcionam felicidade, e também a mim, e nãoprecisam ser sustentados como eu precioso. Se, então, devo pedir, de acordo com o direito, aquilo a quefaço jus, peço se alimentado no Pritaneu.Contudo, mesmo nestas minhas palavras de agora, talvez julgais notar quase o mesmo sentimento de

ofensivo orgulho que acreditáveis ter percebido quando falava a respeito de suplicar e despertarcomiseração. Não, não é isso, ó cidadãos, mas algo bastante diferente. Penso nunca haver prejudicadoninguém por querer, e mesmo assim não logrei convencer-vos; tivemos muito pouco tempo para nosentendermos. E acredito que se houvesse leis entre nós, como as que há entre outros povos, queproíbem que uma pena de morte seja aplicada em apenas um dia, e sim em mais, estaríeis convencidos,e, mesmo assim, não é fácil livrar-se em tão breve espaço de tempo de acusações tão graves. E tambémpensa em prejudicar a mm mesmo ao declarar que sou merecedor da pena e pedir que esta pena sejaaplicada a mim. E por temer o que eu deveria agir dessa forma? Talvez por temer sofrer aquilo queMeleto exige para mim e que eu declaro não saber se é bom ou mau? E em troca desta pena devo

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escolher outra entre aquelas que eu sei serem más? Deverei solicitar a prisão? E por que motivodeverei viver preso, a serviço da eterna magistratura dos Onze? Uma pena em dinheiro e permanecerenjaulado enquanto não for paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior, porque não possuodinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente esta pena que desejastes para mim.Porém, em verdade, ó atenienses, eu teria de estar imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se

fosse assim tão irracional a ponto de não poder nem mesmo fazer este raciocínio, que enquanto vós,embora sendo meus concidadãos, não fostes capazes de agüentar minha companhia e os meusdiscursos, e mais, que minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela, queoutros a agüentariam de bom grado? E ainda, atenienses, que excelente vida seria a minha, nesta idade,exilado, mudando sempre de país para país, perseguido em todos os lugares. Porque sei muito bem queaonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de me ouvir, como aqui, e, se eu os repelir, serão estesmesmos que me farão perseguir, convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido porseus pais e demais parentes. Algum de vós talvez pudesse contestar-me: "Em silêncio e quieto, ó Sócrates, não poderias viver após tersaído de Atenas?" Isso seria simplesmente impossível. Porque, se vos dissesse que significariadesobedecer ao deus e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio, nãoacreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico. Se vos dissesse que esse é o maior bem para ohomem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo eanalisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de servivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos digo, ó atenienses,porém é difícil convencer-vos. Por outro lado, não estou habituado a considerar-me merecedor de malalgum. Se eu possuísse dinheiro, poderia ter-me aplicado uma multa que conseguisse pagar, porque,assim, não teria me infligido mal algum. Mas não possuo dinheiro e não posso fazer isso, exceto sedesejeis multar-me de uma quantia que eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenasuma mina de prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata.Mas vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem que eu me multe em trintaminas, que eles mesmos garantirão. Multo-me então em trinta minas. E esses homens, dignos de créditoe confiança, serão garantes dessa quantia.

 Após a Condenação 

 Aos que Votaram Contra

Por não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem injuriar a cidade vosimpingirão a fama e a acusação de terdes matado Sócrates, um sábio. Sim, chamar-me-ão de sábio,apesar de que eu não o seja, os que vos quiserem censurar. Se esperásseis mais algum tempo, a próprianatureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis a minha idade, já distante da vida e próxima da morte.Não dirijo essas palavras a todos vós, mas aos que votaram pela minha morte.Para esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursoscom que vos poderia persuadir, se na minha opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça.Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento, por me recusar aproferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas quedeclaro indignas de mm, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o perigo não

 justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da maneira por que me defendi; ao contrário,muito mais folgo em morrer após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele outromodo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não deve ninguém lançar mão de todo e qualquerrecurso para escapar à morte. Com efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar àmorte arrojando as armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada perigo, tem muitos outrosmeios de escapar à morte quem ousa tudo fazer e dizer. Não se tenha por difícil escapar à morte, porquemuito mais difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte. Neste momento, fomosapanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta das duas, eu e os meus acusadores, ágeis evelozes, pela mais ligeira, a malvadez. Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles,

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condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles igualmente. Porcerto, tinha de ser assim e penso que não houve excessos. Acerca do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores; de fato, eis-me chegadoàquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço,homens que me mandais matar, que o castigo os vos alcançará logo após a minha morte e será, por

Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes. Vós o fizestes supondo que vos livraríeisde dar boas contas de vossa vida; mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serãomais numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não os percebíeis; eles serãotanto mais importunos quanto são mais jovens, e vossa irritação será maior. Se imaginais que, matandohomens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma forma delibertação, enm é inteiramente eficaz nem honrosa; esta outra, sim, é a mais honrosa e mais fácil; emvez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-mede vós que me condenastes.

 Aos que o Absolveram 

Com os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao que se acaba de suceder,enquanto os magistrados estão ocupados e antes de ir para onde devo morrer. Por conseguinte,senhores, ficai comigo mais um pouco; nada obsta que nos entretenhamos enquanto dispomos detempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o sentido exato de que me aconteceu agora.O que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes, foi algo prodigioso. A usualinspiração, a da divindade, sempre foi rigorosamente assídua em opor-se a ações mínimas, quando eu iacometer um erro; agora, porém, acaba de me ocorrer o que vós estais vendo, o que se poderiaconsiderar, e há quem o faça, como o maior dos males; mas a advertência divina não se me opôs demanhã, ao sair de casa, nem enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa; noentanto, quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos! Mas hoje não se me opôs vezalguma no decorrer do julgamento, em nenhuma ação ou palavra. A que devo atribuir isso? Vou dizer-vos: é bem possível que seja um bem para mim o que aconteceu e não é forçoso acreditar que a morteseja um mal. Disso tenho agora uma boa prova, porque a usual advertência não poderia deixar de opor-se, se não fosse uma ação boa o que eu estava para praticar.

Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duascoisas: ou o morte é igual a nada, e não sente nenhuma sensação d coisa nenhuma; ou, então, como secostuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar.Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, quemaravilhosa vantagem seria a morte!Bem posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que estivéssemos dormindo tãoprofundamente que nem mesmo sonhássemos e, contrapondo a essa as demais noites e dias de nossavida, pensar e dizer quantos dias e noites de nossa existência vivemos melhor e mais agradavelmente doque naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo um homem comum, mas o próprio rei da Pérsiaacharia fácil enumerar tal noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isso, digo que é umavantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite.Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que láestão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes?

Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar osverdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, Minos,¹ Radamanto, Éaco, Triptólemo eoutros semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem? Quanto não dariaqualquer de vós para estar na companhia de Orfeu,² Museu, Hesíodo e Homero? Por mm, estou pronto amorrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso,quando encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos antigos, que tenham morrido por umsentença iníqua; não me seria desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que émais, passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver quem deles é sábio equem, não o sendo, cuida que é. Quanto não se daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que

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comandou a imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros se poderiamnomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade indizível estar junto, conversando com eles,sujeitando-os a exame! Os de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são maisfelizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição estácerta.

 Vós também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar particularmente esta verdade:não há, para o homem bom, mal algum, quer na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seudestino. O meu não é conseqüência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim morrer agora eficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada me impediu. Não me insurjo absolutamentecontra os que votaram contra mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram comesse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem censura. Noentanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos crescerem, castigai-os, atormentai-os comos mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza oude outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, comovos fiz eu, por não cuidarem do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assimagirdes, eu terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também.Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, seeu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade.¹ Rei lendário de Creta, filho de Europa e de Zeus, marido de Pasífae, sábio legislador, juiz dos Infernoscom Éaco e Triptólemo.² Célebre aedo da era pré-homérica, cantava e tocava a lira com tal perfeição que até as feras seaquietavam e vinham deitar-se a seus pés. Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos edivinatórios, origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo .

Platão

 A Vida e as Obras

Diversamente de Sócrates , que era filho do povo, Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de paisaristocráticos e abastados, de antiga e nobre prosápia. Temperamento artístico e dialético - manifestação

característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao seu talento poético, que oacompanhou durante a vida toda, manifestando-se na expressão estética de seus escritos; entretantoisto prejudicou sem dúvida a precisão e a ordem do seu pensamento, tanto assim que várias partes desuas obras não têm verdadeira importância e valor filosófico. Aos vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele quarenta anos - e gozou poroito anos do ensinamento e da amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platãoestudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão retirou-se com outrossocráticos para junto de Euclides, em Mégara.Daí deu início a suas viagens, e fez um vasto giro pelo mundo para se instruir (390-388). Visitou o Egito,de que admirou a veneranda antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve ocasião detravar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo para o desenvolvimento do seupensamento); a Sicília, onde conheceu Dionísio o Antigo, tirano de Siracusa e travou amizade profundacom Dion, cunhado daquele. Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua fraqueza, foi vendido como

escravo. Libertado graças a um amigo, voltou a Atenas.Em Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua célebre escola, que, dos jardins de Academo, ondesurgiu, tomou o nome famoso de Academia . Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma herdade,onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi por elaconservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador Justiniano (529 d.C.).Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela filosofia política. Foi assimque o filósofo, após a morte de Dionísio o Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion,esperando poder experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista. Estas duas viagenspolíticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito do que a precedente: a primeira viagem terminou

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com desterro de Dion; na segunda, Platão foi preso por Dionísio, e foi libertado por Arquitas e pelosseus amigos, estando, então, Arquistas no governo do poderoso estado de Tarento. Voltando para Atenas, Platão dedicou-se inteiramente à especulação metafísica, ao ensino filosófico e àredação de suas obras, atividade que não foi interrompida a não ser pela morte. Esta veio operar aquelalibertação definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia - como lemos no Fédon - não é senão uma

assídua preparação e realização no tempo. Morreu o grande Platão em 348 ou 347 a.C., com oitentaanos de idade.Platão é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras completas. Dos 35 diálogos, porém, quecorrem sob o seu nome, muitos são apócrifos, outros de autenticidade duvidosa. A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o ensinamento oral efragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de Aristóteles. No fundador da Academia, omito e a poesia confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do sistema. Faltam-lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia científica que tanto caracterizam os escritos dosábio estagirita. A atividade literária de Platão abrange mais de cinqüenta anos da sua vida: desde a morte de Sócrates ,até a sua morte. A parte mais importante da atividade literária de Platão é representada pelos diálogos -em três grupos principais, segundo certa ordem cronológica, lógica e formal, que representa a evoluçãodo pensamento platônico, do socratismo ao aristotelismo.

O Pensamento: A Gnosiologia

Como já em Sócrates, assim em Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é a grande ciência queresolve o problema da vida. Este fim prático realiza-se, no entanto, intelectualmente, através daespeculação, do conhecimento da ciência. Mas - diversamente de Sócrates, que limitava a pesquisafilosófica, conceptual, ao campo antropológico e moral - Platão estende tal indagação ao campometafísico e cosmológico, isto é, a toda a realidade.Este caráter íntimo, humano, religioso da filosofia, em Platão é tornado especialmente vivo, angustioso,pela viva sensibilidade do filósofo em face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de todas as coisas; emface do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o corpo é inimigo do espírito, osentido se opõe ao intelecto, a paixão contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano

peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois, transpor este mundo e libertar-sedo corpo para realizar o seu fim, isto é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído porum amor nostálgico, pelo eros platônico .Platão como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do vulgo e dos sofistas, parachegar ao conhecimento intelectual, conceptual, universal e imutável. A gnosiologia platônica, porém,tem o caráter científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda que as conclusões sejam, maisou menos, idênticas. O conhecimento sensível deve ser superado por um outro conhecimento, oconhecimento conceptual, porquanto no conhecimento humano, como efetivamente, apresentam-seelementos que não se podem explicar mediante a sensação. O conhecimento sensível, particular, mutávele relativo, não pode explicar o conhecimento intelectual, que tem por sua característica a universalidade,a imutabilidade, o absoluto (do conceito); e ainda menos pode o conhecimento sensível explicar o deverser, os valores de beleza, verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito humano, ese distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e mal-posição e distinção que o sentido

não pode operar por si mesmo.Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: oconhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o conhecimento intelectual, universal, imutável,absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar. A diferença essencialentre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o conhecimento intelectual, racional em geral, estánisto: o conhecimento sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passarindiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao passo que o segundo, além deser um conhecimento verdadeiro, sabe que o é, não podendo de modo algum ser substituído por umconhecimento diverso, errôneo. Poder-se-ia também dizer que o primeiro sabe que as coisas estão assim,

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sem saber porque o estão, ao passo que o segundo sabe que as coisas devem estar necessariamenteassim como estão, precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas causas.Sócrates estava convencido, como também Platão, de que o saber intelectual transcende, no seu valor, osaber sensível, mas julgava, todavia, poder construir indutivamente o conceito da sensação, da opinião;Platão, ao contrário, não admite que da sensação - particular, mutável, relativa - se possa de algum

modo tirar o conceito universal, imutável, absoluto. E, desenvolvendo, exagerando, exasperando adoutrina da maiêutica socrática, diz que os conceitos são a priori , inatos no espírito humano, donde têmde ser oportunamente tirados, e sustenta que as sensações correspondentes aos conceitos não lhesconstituem a origem, e sim a ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme a lei da associação. Aqui devemos lembrar que Platão, diversamente de Sócrates, dá ao conhecimento racional, conceptual,científico, uma base real, um objeto próprio: as idéias eternas e universais, que são os conceitos, oualguns conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento empírico, sensível, àopinião verdadeira, uma base e um fundamento reais, um objeto próprio: as coisas particulares emutáveis, como as concebiam Heráclito e os sotistas . Deste mundo material e contigente, portanto, nãohá ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensívelverdadeiro - opinião verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza inferior.Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional das idéias pela sua natureza superior.Este mundo ideal, racional - no dizer de Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, emque vivemos.

Teoria das Idéias

Sócrates mostrara no conceito o verdadeiro objeto da ciência. Platão aprofunda-lhe a teoria e procuradeterminar a relação entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da suafilosofia. A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a realidade. Ora, de um lado, os nossosconceitos são universais, necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do outro, tudo no mundo éindividual, contigente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, além do fenomenal, um outro mundode realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que asrepresentam. Estas realidades chamam-se  Idéias . As idéias não são, pois, no sentido platônico,

representações intelectuais, formas abstratas do pensamento, são realidades objetivas, modelos earquétipos eternos de que as coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim a idéia de homem éo homem abstrato perfeito e universal de que os indivíduos humanos são imitações transitórias edefeituosas.Todas as idéias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste. Acerteza da sua existência funda-a Platão na necessidade de salvar o valor objetivo dos nossosconhecimentos e na importância de explicar os atributos do ente de Parmênides  , sem, com ele, negar aexistência do fieri . Tal a célebre teoria das idéias, alma de toda filosofia platônica, centro em torno doqual gravita todo o seu sistema.

 A Metafísica

 As Idéias 

O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino das idéias; e estas contrapõe-sea matéria obscura e incriada. Entre as idéias e a matéria estão o Demiurgo e as almas , através de quedesce das idéias à matéria aquilo de racionalidade que nesta matéria aparece.O divino platônico é representado pelo mundo das idéias e especialmente pela idéia do Bem, que está novértice. A existência desse mundo ideal seria provada pela necessidade de estabelecer uma baseontológica, um objeto adequado ao conhecimento conceptual. Esse conhecimento, aliás, se impõe aolado e acima do conhecimento sensível, para poder explicar verdadeiramente o conhecimento humano na

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sua efetiva realidade. E, em geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os valores,o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a que aspira. Visto serem as idéias conceitos personalizados, transferidos da ordem lógica à ontológica, terãoconsequentemente as características dos próprios conceitos: transcenderão a experiência, serãouniversais, imutáveis. Além disso, as idéias terão aquela mesma ordem lógica dos conceitos, que se

obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são ordenadas em sistema hierárquico, estando novértice a idéia do Bem, que é papel da dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidadedos indivíduos é unificada nas idéias respectivas, assim a multiplicidade das idéias é unificada na idéia doBem. Logo, a idéia do Bem, no sistema platônico, é a realidade suprema, donde dependem todas asdemais idéias, e todos os valores (éticos, lógicos e estéticos) que se manifestam no mundo sensível; é oser sem o qual não se explica o vir-a-ser. Portanto, deveria representar o verdadeiro Deus platônico. Noentanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe a personalidade e a atividade criadora. Destapersonalidade e atividade criadora - ou, melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo oqual, embora superior à matéria, é inferior às idéias, de cujo modelo se serve para ordenar a matéria etransformar o caos em cosmos.

 As Almas 

 A alma , assim como o Demiurgo, desempenha papel de mediador entre as idéias e a matéria, à qualcomunica o movimento e a vida, a ordem e a harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgosobre a alma. Assim, deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto Platão é umpampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à alma humana um lugar e umtratamento à parte, de superioridade, em vista dos seus impelentes interesses morais e ascéticos,religiosos e místicos. Assim é que considera ele a alma humana como um ser eterno (coeterno às idéias,ao Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual, inteligível, caído no mundo material como que por umaespécie de queda original, de um mal radical. Deve portanto, a alma humana, libertar-se do corpo, comode um cárcere; esta libertação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filosofia, que éseparação espiritual da alma do corpo, e se realiza com a morte, separando-se, então, na realidade, aalma do corpo. A faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal, transcendental: contemplação

em que se realiza a natureza humana, e da qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendoque a alma racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e vegetativa, deve existirum princípio de uma e outra. Segundo Platão, tais funções seriam desempenhadas por outras duas almas- ou partes da alma: a irascível  (ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível (apetite), que residiriano abdome - assim como a alma racional  residiria na cabeça. Naturalmente a alma sensitiva e avegetativa são subordinadas à alma racional.Logo, segundo Platão, a união da alma espiritual com o corpo é extrínseca, até violenta. A alma nãoencontra no corpo o seu complemento, o seu instrumento adequado. Mas a alma está no corpo comonum cárcere, o intelecto é impedido pelo sentido da visão das idéias, que devem ser trabalhosamenterelembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das tendências. E, apenas mediante umadisciplina ascética do corpo, que o mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, quedesvencilha para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a contemplaçãointuitiva do mundo ideal.

O Mundo 

O mundo  material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as idéias e amatéria. O Demiurgo plasma o caos da matéria no modelo das idéias eternas, introduzindo no caos aalma, princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser (idéia) e o não-ser (matéria),e é o devir ordenado, como o adequado conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é aopinião verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista platônica, haveria, antes de tudo, uma alma do

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mundo e, depois, partes da alma, dependentes e inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens,etc.O dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e do não-ser, da ordem e dadesordem, do bem e do mal, que aparecem no mundo. Da idéia - ser, verdade, bondade, beleza -depende tudo quanto há de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria - indeterminada,

informe, mutável, irracional, passiva, espacial - depende, ao contrário, tudo que há de negativo naexperiência.Consoante a astronomia platônica, o mundo, o universo sensível, são esféricos. A terra está no centro,em forma de esfera e, ao redor, os astros, as estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéisrodantes, transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles.No seu conjunto, o mundo físico percorre uma grande evolução, um ciclo de dez mil anos, não no sentidodo progresso, mas no da decadência, terminados os quais, chegado o grande ano  do mundo, tudorecomeça de novo. É a clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico dualismo grego,que domina também a grande concepção platônica.

Moral

Segundo a psicologia platônica, a natureza do homem é racional, e, por conseqüência, na razão realiza ohomem a sua humanidade: a ação racional realiza o sumo bem, que é, ao mesmo tempo, felicidade e virtude . Entretanto, esta natureza racional do homem encontra no corpo não um instrumento, mas umobstáculo - que Platão explica mediante um dualismo filosófico-religioso de alma e de corpo: o intelectoencontra um obstáculo nos sentidos, a vontade no impulso, e assim por diante. Então a realização danatureza humana não consiste em uma disciplina racional da sensibilidade, mas na sua final supressão,na separação da alma do corpo, na morte. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir racionalmente éfilosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos sentidos, ao corpo, ao mundo, para o espírito, ointeligível, a idéia.Em todo caso, visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste mundo, unida ao corpo e aossentidos, deve principiar a sua vida moral sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro sejaobstáculo ao segundo, à espera de que a morte solte definitivamente a alma dos laços corpóreos.Noutras palavras, para que se realize a sabedoria , a contemplação, a filosofia, a virtude suma, a única

virtude verdadeiramente humana e racional, é necessário que a alma racional domine, antes de tudo, aalma concupiscível, derivando daí a virtude da temperança , e domine também a alma irascível, donde avirtude da fortaleza . Tal harmônica distribuição de atividade na alma conforme a razão constituiria, pois,a justiça , virtude fundamental, segundo Platão, juntamente com a sapiência, embora a esta naturalmenteinferior. Temos, destarte, uma classificação, uma dedução das famosas quatro virtudes naturais ,chamadas depois cardeais  - prudência, fortaleza, temperança, justiça - sobre a base da metafísicaplatônica da alma.Quanto ao destino das almas depois da morte, eis o pensamento de Platão: em geral, o destino da almadepende da sua filosofia, da razão; em especial, depende da religião, dos mistérios órfico-dionisíacos. Emgeral, distingue ele três categorias de alma:1. As que cometeram pecados inexpiáveis, condenadas eternamente;2. As que cometeram pecados expiáveis;3.  As que viveram conforme à justiça. As almas destas últimas duas categorias nascem de novo,

encarnam-se de novo, para receber a pena ou o prêmio merecidos. Segundo o pensamento que lemos noFédon, seria mister acrescentar uma quarta categoria de almas, as dos filósofos, videntes de idéias,libertados da vida temporal para sempre.

 A Política

Os escritos em que Platão trata especificamente do problema da política , são a República , o Político e asLeis . Na República , a obra fundamental de Platão sobre o assunto, traça o seu estado ideal, o reino doespírito, da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo.

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Qual é, pois, a justificação da sociedade e do estado? Platão acha-a na própria natureza humana,porquanto cada homem precisa do auxílio material e moral dos outros. Desta variedade de necessidadeshumanas origina-se a divisão do trabalho e, por conseqüência, a distinção em classes, em castas, querepresentam um desenvolvimento social e uma sistematização estável da divisão do trabalho no âmbitode um estado. A essência do estado seria então, não uma sociedade de indivíduos semelhantes e iguais,

mas dessemelhantes e desiguais. Tal especificação e concretização da divisão do trabalho seriarepresentada pela instituição da escravidão; tal instituição, consoante Platão, é necessária porquanto ostrabalhos materiais, servis, são incompatíveis com a condição de um homem livre em geral.Segundo Platão, o estado ideal deveria ser dividido em classes sociais. Três são, pois, estas classes: ados filósofos, a dos guerreiros, a dos produtores, as quais, no organismo do estado, corresponderiamrespectivamente às almas racional, irascível e concupiscível no organismo humano. À classe dos filósofos  cabe dirigir a república. Com efeito, contemplam eles o mundo das idéias, conhecem a realidade dascoisas, a ordem ideal do mundo e, por conseguinte, a ordem da sociedade humana, e estão, portanto, àaltura de orientar racionalmente o homem e a sociedade para o fim verdadeiro. Tal atividade políticaconstitui um dever para o filósofo, não, porém, o fim supremo, pois este fim supremo é unicamente acontemplação das idéias. À classe dos guerreiros  cabe a defesa interna e externa do estado, de conformidade com a ordemestabelecida pelos filósofos, dos quais e juntamente com os quais, os guerreiros receberam a educação.Os guerreiros representam a força a serviço do direito, representado pelos filósofos. À classe dos  produtores , enfim, - agricultores e artesãos - submetida às duas precedentes, cabe aconservação econômica do estado, e, consequentemente, também das outras duas classes, inteiramenteentregues à conservação moral e física do estado. Na hierarquia das classes, a dos trabalhadores ocupa oínfimo lugar, pelo desprezo com que era considerado por Platão - e pelos gregos em geral - o trabalhomaterial.Na concepção ideal, espiritual, ética, ascética do estado platônico, pode causar impressão, à primeiravista, o comunismo dos bens, das mulheres e dos filhos, que Platão propugna para as classes superiores.Entretanto, Platão foi levado a esta concepção política - tornada depois sinônimo de imanentismo,materialismo, ateísmo - não certamente por estes motivos, mas pela grande importância e função moralpor ele atribuída ao estado, como veículo dos valores transcendentais da Idéia. Tinha ele compreendidobem que os interesses particulares, privados, econômicos e, especialmente, domésticos, estão

efetivamente em contraste com os interesses coletivos, sociais, estatais, sendo estes naturalmentesuperiores àqueles - eticamente considerados. E não hesita em sacrificar totalmente os interessesinferiores aos superiores, a riqueza, a família, o indivíduo ao estado, porquanto representa precisamente- consoante seu pensamento - um altíssimo valor moral terreno, político-religioso, como única e totalexpressão da eticidade transcendente.Se a natureza do estado é, essencialmente, a de organismo ético-transcendente, a sua finalidadeprimordial é pedagógico-espiritual; a educação deve, por isso, estar substancialmente nas mãos doestado. O estado deve, então, promover, antes de tudo, o bem espiritual dos cidadãos, educá-los para avirtude, e ocupar-se com o seu bem estar material apenas secundária e instrumentalmente. Platão tendea desvalorizar a grandeza militar e comercial, a dominação e a riqueza, idolatrando a grandeza moral. Ogrande, o verdadeiro político não é - diz Platão - o homem prático e empírico, mas o sábio, o pensador;não realiza tanto as obras exteriores, mas, sobretudo, se preocupa com espiritualizar os homens. Destamaneira é concebido o estado educador de homens virtuosos, segundo as virtudes que se referem a cada

classe, respectivamente. Esta educação é dispensada essencialmente às classes superiores -especialmente aos filósofos, a quem cabem as virtudes mais elevadas, e, portanto, a direção darepública. Ao contrário, o estado em nada se interessa - ao menos positivamente - pelo povo, pelo vulgo,pela plebe, cuja formação é inteiramente material e subordinada, consistindo sua virtude apenas naobediência, visto a alma concupiscível estar sujeita à alma racional. A educação das classes superiores importa, fundamentalmente, música e ginástica. A música -abrangendo também a poesia, a história, etc., e, em geral, todas as atividades presididas pelas Musas -é, todavia, cultivada apenas para fins práticos e morais. Deveria ela equilibrar, com a sua natureza gentile civilizadora, a ação oposta, fortificadora, da ginástica. Platão reconhece a importância da ginástica, mas

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não passa de uma importância instrumental e parcial, pois o prevalecer da cultura física do corpotorna os homens grosseiros e materiais. Daí a sua aversão ao culto idolátrico dos exercícios físicos, quefoi um dos indícios da decadência grega.

 A Religião e a Arte

 A idéia do Bem seria o centro da religião platônica. Seu culto essencial é representado pela ciência e,portanto, pela virtude que deriva necessariamente da ciência. Ao lado, e subordinadas a esta espécie deDeus supremo, estão as demais idéias, denominadas por Platão, deuses eternos . Entretanto, esteabsoluto - o Bem e as idéias - embora transcendente, espiritual e ético, não pode tornar-se objeto dereligião, nem sequer da religião assim chamada natural, dadas a sua impersonalidades e inatividade arespeito do mundo.Quanto à avaliação da religião positiva, Platão hostiliza o antromorfismo, até querer banidos de seuestado ideal os poetas, inclusive Homero, pelos mitos fantásticos e imorais, narrados em torno dosdeuses e dos heróis. Apesar de repelir os deuses da mitologia popular e poética, aceita francamente opoliteísmo. É um politeísmo estranho, cujas divindades são os astros e o cosmo, animados e racionais, osassim chamados deuses visíveis , subordinados ao Demiurgo, bem como à idéia do Bem e às outrasidéias. Platão pode, pois, conservar - reformada e purificada - a religião helênica, como religião do seuestado ideal. As doutrinas estéticas de Platão são algo oscilantes entre uma valorização e uma desvalorização da arte .Em todo caso, no conjunto do seu pensamento, em oposição ao seu gênio e ao gênio artístico grego,prevalece a desvalorização por dois motivos, teorético um, prático outro. O motivo teorético é que a arteresultaria como cópia de uma cópia: cópia do mundo empírico, que é já uma cópia do mundo ideal; cópianão de essências, como a ciência, mas de fenômenos. Por conseqüência, a arte deveria ser,gnosiologicamente, inferior à ciência. O motivo prático é que a arte - dada esta sua inferior naturezateorética, impura fonte gnosiológica - torna-se outro tanto danosa no campo moral. Atuando cegamentesobre o sentimento, a arte nos atrai para o verdadeiro, como para o falso, para o bem como para o mal.Seja como for, encontramos em Platão uma tentativa de valorização da arte em si, sendo considerada aarte como uma espécie de loucura divina, de mania , semelhante à religião e ao amor, ou seja, umaespécie de revelação superior. A arte, pois - como o amor, que tem por objeto a Beleza eterna e os graus

que levam até ela - deveria ser um itinerário especial do espírito para o Absoluto e o inteligível, algocomo que uma filosofia, porquanto deveria atingir intuitivamente, encarnada em formas sensíveis, aquelemesmo ideal inteligível que a filosofia atinge abstratamente, na sua pureza lógica, conceptual.

 A Academia

 A escola filosófica fundada por Platão, a Academia , sobreviveu-lhe por quase um milênio, até o VI séculod.C. Costuma-se dividi-la - cronologicamente e logicamente - em antiga, média e nova. A antiga  academia dura até o ano de 260 a.C., mais ou menos, isto é, quase um século. É governada pordiscípulos, reitores, sucessores de Platão. A ela pertencem homens insignes e de grande doutrina. Vai-seacentuando a importância da experiência, segundo os interesses do último Platão, como também umatendência para uma sempre maior sistematização do pensamento platônico, provavelmente também pelainfluência de Aristóteles .

Segue-se na média academia, que toma uma orientação cética, sobretudo graças a Carnéades (213-128a.C.). Finalmente, a nova academia volta ao antigo dogmatismo e, depois, orienta-se para o ecletismo,prevalecendo simpatias pitagóricas. Chegamos assim ao princípio da era vulgar. No entanto, a academiaplatônica sobreviverá ainda e tomará uma última forma e feição com o neoplatonismo. É este o últimoesforço grandioso do pensamento grego para resolver o problema filosófico, desenvolvendo o dualismono panteísmo emanatista, e valorizando o elemento religioso positivo, que Platão já tinha valorizado nomito.

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Para Entender Platão

Platão, nascido em 428 a.C., é o primeiro grande filósofo da tradição ocidental a deixar uma obra escritaconsiderável. Todavia, a obra de Platão só pode ser entendida em função de outros pensamentos,anteriores e contemporâneos - de saída, o pensamento de seu mestre Sócrates, como também o

pensamento dos filósofos anteriores, precisamente denominados pré-socráticos.Tratemos, inicialmente, de evocar Pitágoras de Samos, que viveu no século V antes de nossa era e quesabemos ter sido um ilustre matemático. Na realidade, sua matemática desemboca numa metafísica, jáque Pitágoras acredita que os números são o princípio e a chave de todo o universo; assim como anatureza do som é função do comprimento da corda que vibra, as aparências coloridas do universo,infinitamente diversas, dissimulam relações numéricas que constituem o fundo das coisas: idéia capital,que não só reencontramos em Platão, mas que está na origem da ciência moderna. Pitágoras (que teriainventado a palavra filosofia, amor à sabedoria), também é um místico, fundador de sociedadesiniciáticas que visam à salvação de seus membros. A doutrina pitagórica da salvação está muito próximados mistérios do orfismo. Os pitagóricos acreditam na metempsicose. A alma, como punição de faltaspassadas, torna-se prisioneira de um corpo (soma = sema; corpo = túmulo). A encarnação é tãosomente um encarceramento provisório para a alma. A morte anuncia o renascimento num outro corpoaté que a alma, simultaneamente purificada pela virtude e pela prática de ritos iniciáticos, mereça serfinalmente libertada de toda materialização.Muitas outras doutrinas dessa época tentam explicar o mundo. Empédocles vê na matéria quatroelementos (terra, água, ar e fogo), enquanto o ódio que dissocia e o amor que unifica seriam osprincípios motores do universo. Anaxágoras, que foi professor de Péricles, acha que os elementosconstitutivos do mundo são ordenados por uma Inteligência cósmica, o Nous .Duas doutrinas se opõem radicalmente entre si. Para  Heráclito de Éfeso, tudo muda infinitivamente."Planta rei", tudo flui: a morte sucede à vida, a noite ao dia, a vigília ao sono. "Não nos banhamos duasvezes no mesmo rio". O fluxo que faz do universo uma torrente é constantemente produzido e destruídopor um Fogo  cósmico, segundo um ritmo regular. A esta filosofia da mobilidade universal se opõemParmênides e seu discípulo Zenão de Eléia: para eles, a mobilidade não passa de uma ilusão que engananossos sentidos; o real é o Ser único, imóvel, eterno. "O Ser é, o não-ser não é"; o não-ser é a mudança(mudar é deixar de ser o que se é para ser o que não se é). Demócrito tenta conciliar as duas doutrinas

por intermédio de sua filosofia de átomos, elementos eternos, cujas combinações mutáveis são infinitas.Diremos uma palavra sobre os sofistas, cujo ceticismo é engendrado pela multiplicidade de doutrinascontraditórias, pelo abuso da retórica (um orador hábil pode demonstrar o que quiser) e, de um modogeral, pelo incremento do individualismo e decadência dos costumes após Péricles.Um dos mais célebres, Protágoras de Abdera, dizia, segundo o testemunho de Platão, que "o homem é amedida de todas as coisas". Em outras palavras: não existe verdade absoluta, mas tão somente opiniõesrelativas ao homem (este vinho, delicioso para o amador, é amargo para o enfermo).Platão, no entanto, só reencontra a filosofia a partir de preocupações de caráter político. É um jovemaristocrata que une aos seus dons intelectuais e físicos (duas vezes coroado nos jogos atléticos nacionais,é belo e vigoroso: apelidam-no "Platão" em virtude de seus ombros largos), o nascimento maisprestigioso: sua mãe descendia de Sólon, seus ancestrais paternos, do último rei de Atenas. Estavadestinado, portanto, a uma brilhante carreira política. Mas Atenas, que por ocasião do nascimento dePlatão se encontra no apogeu - com inigualável poder marítimo - , esboroa-se na época em que Platão

atinge a idade adulta. Platão tinha quatro anos quando começaram as guerras do Peloponeso e trinta eum quando eles terminaram, com a capitulação de Atenas. A destruição da frota, a peste, o arrasamentodos famosos muros (uniam a cidade ao Pireu) pelos esparciatas vencedores, assinalam a importância dacatástrofe. Platão vai sonhar com a reconstrução de uma cidade, mas uma cidade cuja potência é antesmoral e espiritual do que material, uma cidade que seja a encarnação da Justiça.Para compreender isto, recordemos o acontecimento fundamental da juventude de Platão, seu encontrocom Sócrates. Sócrates tem sessenta e três anos quando, em 407, Platão a ele se une. Alain falou apropósito desse "choque dos contrários": Platão, aristocrata jovem e belo, torna-se discípulo de umcidadão de origem modesta, velho e muito feio (seus olhos salientes e seu nariz achatado são célebres).

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E isto é significativo e simbólico. A verdade e a justiça (das quais Sócrates será o símbolo) nãopossuem bom aspecto, pertencem a um mundo que não o das aparências. Na Atenas vencida, o jovemPlatão é convocado por parentes e amigos a participar do governo autoritário dos Trinta; ele se retrai,porém, e constata que os Trinta acumulam injustiças e violências. Devemos agora, portanto, caracterizaros grandes traços da filosofia de Sócrates:

1. Sócrates não pretende, como Empédocles ou Heráclito, elaborar uma cosmologia; segundo ele, deve-se deixar aos deuses o cuidado de se ocupar com o universo; devemos nos interessar, de preferência,por aquilo que nos concerne diretamente. "Conhece-te a ti mesmo". Esta máxima gravada no frontão dotemplo de Delfos, é a palavra-chave do humanismo socrático.2. Sócrates, todavia, não pretende ensinar coisa alguma sobre a natureza humana; não quer noscomunicar um saber que não possuiríamos. Ajuda-nos tão somente a refletir, isto é, a tomar consciênciados nossos próprios pensamentos, dos problemas que eles colocam. Muitas vezes, ele se comparava àsua mãe, que era parteira. Nada ensinava e limitava-se a partejar os espíritos, ajudá-los a trazer à luz oque já trazem em si mesmos. Tal é a maiêutica socrática.3. Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio pensamento, Sócratesfá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava saber. Tal é a ironia, que, ao pé da letra,significa a arte de interrogar. Sócrates, de fato, faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar umalição no interlocutor. Aborda com humildade fingida os sofistas inflados de falso-saber. E as perguntasfeitas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus pensamentos e aprofundidade de sua ignorância.4. Na realidade, se Sócrates é o primeiro a reconhecer sua própria ignorância, ele funda todas as suasesperanças na verdade tão somente. Seu método é, antes de tudo, um esforço de definição. Porexemplo: partindo dos aspectos os mais diversos da justiça, ele procura depreender o conceito de justiça,a idéia geral que contém os caracteres constitutivos da justiça. Sócrates possui tal confiança no saber ena verdade que está firmemente persuadido que os injustos e os maus não passam de ignorantes. Seconhecessem verdadeiramente a justiça, eles a praticariam, pois ninguém é "maus voluntariamente".Segundo sua perspectiva racionalista, só há salvação pelo saber. O verdadeiro ponto de partida dafilosofia de Platão é a morte de Sócrates em 399 a.C. Acontecimento político: é o partido popular, denovo no poder, que, por iniciativa de um certo Anytos (filho de um rico empreiteiro e antigo amigo dosTrinta, aos quais traiu para assumir a liderança do outro partido), condena Sócrates a beber a cicuta

como corruptor da juventude e adversário dos deuses da cidade. Condenação injusta e escandalosa queexprime uma incompatibilidade trágica entre o poder político e a sabedoria do filósofo. Daí as resoluçõesque Platão nos apresenta na sétima carta . "Reconheço que todos os Estados atuais, sem exceção, são mal governados...É somente pela filosofia que se pode discernir todas as formas de justiça política e individual" . Talvez a solução seja a evasão do filósofo que "foge daqui debaixo " para se refugiar nameditação pura (tal é o filósofo cujo retrato nos é traçado no Teeteto; filósofo puramente contemplativoque nem sabe onde se reúne o Conselho e cujo corpo está apenas presente na Cidade). Mas uma outrasolução seria o próprio filósofo encarregar-se do governo da cidade (a Justiça reinará, diz Platão, no diaem que os filósofos forem reis ou no dia em que os reis forem filósofos).Tal é o sonho que Platão tentaria realizar em Siracusa. Encontrara aí um discípulo estusiasta na pessoade Dion , cunhado do novo tirano, Dionísio I. Este último, todavia, não se revelou muito adequado para setornar o rei filósofo que Platão quisera fazer dele. Dionísio I prendeu Platão e, na ilha de Egina, fê-loexpor no mercado de escravos para ser vendido. Resgatado por Anikeris de Cítera por vinte minas, Platão

retornou a Atenas.É então que ele funda, aos quarenta anos, uma escola de filosofia à portas da cidade, perto de Colona,nos jardins de Academos. Devemos representar a Academia como uma espécie de Universidade onde seensina matemáticas (não entra aqui quem não for geômetra), filosofia e a arte de governar as cidadessegundo a justiça. O ensino esotérico (isto é, secreto, reservado aos iniciados) dado por Platão a seusdiscípulos só nos é conhecido atualmente pelas críticas de Aristóteles; restam-nos, porém, a obra escritade Platão, seus diálogos célebres tais como o Gógias, o Fedro , o Fédon , o Banquete , a República , oTeeteto , o Sofista , o Político , o Parmênides , o Timeu , as Leis . Esses trabalhos esotéricos de Platãoconstituem a mais pura jóia da filosofia de todos os tempos. Platão morre em 348 a.C.

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Se quiséssemos resumir a filosofia de Platão em uma palavra, poderíamos dizer que ela éfundamentalmente um dualismo . Platão, de certo modo, reconcilia Parmênides e Heráclito ao admitir aexistência de dois mundos: o mundo das idéias imutáveis, eternas, e o mundo das aparências sensíveis,perpetuamente mutáveis. Acrescenta-se que o mundo das Idéias é, no fundo, o único mundo verdadeiro.Platão concede ao mundo sensível uma certa realidade, mas ele só existe porque participa do mundo das

idéias do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Um belo efebo , por exemplo, só é beloporque participa da Beleza em si.Podemos mostrar de duas maneiras que a intuição fundamental de Platão se prende ao ensinamento deSócrates:a) Recordemos o ensinamento socrático sobre a definição, sobre o conceito; para que haja, por exemplo,como Sócrates o estabeleceu, uma definição do homem em geral, uma essência universal do homem, épreciso que exista algo além dos homens particulares e diferentes entre si que nós reconhecemos, umoutro mundo onde exista o Homem em si, a Justiça em si, isto é, as Idéias. Em suma, Platão dá realidadeao conceito socrático. A idéia platônica é uma promoção ontológica do conceito socrático.b) Mas é sobretudo a vida e a morte de Sócrates que suscitam o idealismo platônico. Como diz muitobem André Bonnard, a cidade que condena Sócrates à morte, a cidade que vê triunfar a injustiça e amentira é "um mundo ao inverso, um mundo de pernas para o ar". Desse modo, o idealismo platônico"traz a marca de um grave traumatismo. A morte de Sócrates feriu-o mortalmente. É no mundo invisívelque a justiça e a verdade triunfam". E Sócrates, pela tranqüilidade quase contente de sua morte, atesta aexistência desse mundo invisível, mostra que, para ele, as Idéias contam mais que a vida.Os temas principais do platonismo podem ligar-se à distinção entre o mundo das Idéias eternas e omundo das aparências mutáveis. A ascensão dialética, por exemplo, é o itinerário pelo qual nos levamosdo mundo sensível ao mundo das Idéias: no mais baixo grau, as simples impressões sensíveis (eikasia) ,um pouco mais acima, as opiniões estabelecidas (pistis) , em seguida, o pensamento discursivo (dianoia)  que constrói o raciocínio partindo de figuras, como fazem os geômetras, e, finalmente, no mais alto grau,o pensamento intuitivo, a iluminação direta pela Idéia (noesis) . A teoria platônica da alma está ligada à doutrina das Idéias. As almas outrora contemplaram às Idéias àvontade. Depois, por punição de alguma falta, segundo a doutrina órfico-pitagórica, elas foramaprisionadas no corpo. Todavia, elas continuam capazes de reminiscência, uma vez que guardaram umalembrança obscura - que, no entanto, pode ser redespertada - de seu antigo contato com as Idéias.

 Assim, o jovem escravo que Sócrates interroga no Mênon descobre propriedades geométricas quase semajuda. Platão pensa igualmente que a emoção amorosa, a emoção que rebata a alma diante da Beleza -de todas as idéias a mais fácil de reconhecer - é o meio de uma conversão dialética: o amor por um belocorpo, em seguida pelos belos corpos, depois pelas belas almas e pelas belas virtudes conduz àredescoberta do Belo em si (leia-se o Banquete). À doutrina das Idéias também se correlaciona a esperança da imortalidade da alma, "esse belo risco a sercorrido". Uma vez que a alma é feita para as Idéias - visto que sua união com o corpo é acidental emonstruosa - por que não seria eterna como as Idéias que ela tem por vocação contemplar?Do mesmo modo, uma vez que as Idéias constituem absolutos referenciais - não o homem, mas Deus éque é a medida de todas as coisas, objeta Platão a Protágoras - é preciso renunciar do oportunismo e àimoralidade dos sofistas. Platão sustenta contra Cálicles (no Górgias), contra Trasímaco e Gláucon (naRepública) o valor absoluto da Idéia de justiça. A justiça é a hierarquia harmônica das três partes daalma - a sensibilidade , a vontade  e o espírito . Ela também se encontra em cada uma das virtudes

particulares: a temperança nada mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da vontade e a sabedoria é a justiça do espírito . A justiça política é uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo, mas "escritas em caracteres maisfortes" na escala do Estado... A política de Platão distingue, à imagem de todas as sociedades indo-européias primitivas, três classes sociais: os artesãos dos quais a Justiça exige a temperança, os militaresnos quais a Justiça será coragem, os chefes cuja Justiça é, antes de tudo, Sabedoria e que são filósofoslongamente instruídos. Entre todas as formas de governo, Platão prefere a aristocracia e, nele, é precisotomar a palavra em seu sentido etimológico: governo dos melhores.Finalmente, podemos ligar à distinção dos dois mundos algumas observações sobre o mito platônico:

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a) O mito, procedimento pedagógico paradoxal, traduz uma espécie de narração poética legendária,isto é, numa linguagem de imagens uma verdade filosófica estranha ao mundo sensível! É o mundo dasIdéias eternas transposto em imagens sensíveis, sugerido pelo mundo das imagens!b) O mito é o único meio de exposição para os problemas de origem (acontecimentos sem testemunhos)e dos fins últimos (que ainda não existem!), pois a inteligência abstrata só compreende o eterno e não

pode bastar para evocar o que pertence à história.c) O mito indica que o pensamento filosófico vem se abeberar nas fontes das crenças religiosastradicionais.d) Finalmente, o mito ressalta as relações que, segundo Platão, existem entre a poesia e a verdade. Apoesia mítica é uma mensagem metafísica, o belo não é senão o "esplendor do verdadeiro" e a arte estáem segundo lugar em relação à filosofia.

 Aristóteles

 A Vida e as Obras

Este grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da Macedônia, nasceu em Estagira,colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foipara Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos, até à morte do Mestre. Nesseperíodo estudou também os filósofos pré-platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grandesistema.Em 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedônia, como preceptor do Príncipe Alexandre,então jovem de treze anos. Aí ficou três anos, até à famosa expedição asiática, conseguindo um êxito nasua missão educativo-política, que Platão não conseguiu, por certo, em Siracusa. De volta a Atenas, em335, treze anos depois da morte de Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo Lício, a suaescola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada peripatética devido ao costume de darlições, em amena palestra, passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Esta escola seria agrande rival e a verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia platônica. Morto Alexandre em 323,desfez-se politicamente o seu grande império e despertaram-se em Atenas os desejos de independência,estourando uma reação nacional, chefiada por Demóstenes. Aristóteles, malvisto pelos atenienses, foi

acusado de ateísmo. Preveniu ele a condenação, retirando-se voluntariamente para Eubéia, Aristótelesfaleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322. Tinha pouco mais de 60 anos de idade. Arespeito do caráter de Aristóteles, inteiramente recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico,sem se deixar distrair por motivos práticos ou sentimentais, temos naturalmente muito menos a revelardo que em torno do caráter de Platão, em que, ao contrário, os motivos políticos, éticos, estéticos emísticos tiveram grande influência. Do diferente caráter dos dois filósofos, dependem também asvicissitudes exteriores das duas vidas, mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a dePlatão. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, de pesquisas, de pensamento,que se foi isolando da vida prática, social e política, para se dedicar à investigação científica. A atividadeliterária de Aristóteles foi vasta e intensa, como a sua cultura e seu gênio universal. "Assimilou Aristótelesescreve magistralmente Leonel Franca todos os conhecimentos anteriores e acrescentou-lhes o trabalhopróprio, fruto de muita observação e de profundas meditações. Escreveu sobre todas as ciências,constituindo algumas desde os primeiros fundamentos, organizando outras em corpo coerente de

doutrinas e sobre todas espalhando as luzes de sua admirável inteligência. Não lhe faltou nenhum dosdotes e requisitos que constituem o verdadeiro filósofo: profundidade e firmeza de inteligência, agudezade penetração, vigor de raciocínio, poder admirável de síntese, faculdade de criação e invenção aliados auma vasta erudição histórica e universalidade de conhecimentos científicos. O grande estagirita explorouo mundo do pensamento em todas as suas direções. Pelo elenco dos principais escritos que dele aindanos restam, poder-se-á avaliar a sua prodigiosa atividade literária". A primeira edição completa das obrasde Aristóteles é a de Andronico de Rodes pela metade do último século a.C. substancialmente autêntica,salvo uns apócrifos e umas interpolações. Aqui classificamos as obras doutrinais de Aristóteles do modoseguinte, tendo presente a edição de Andronico de Rodes.

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I. Escritos lógicos : cujo conjunto foi denominado Órganon mais tarde, não por Aristóteles. O nome,entretanto, corresponde muito bem à intenção do autor, que considerava a lógica instrumento da ciência.II.  Escritos sobre a física : abrangendo a hodierna cosmologia e a antropologia, e pertencentes àfilosofia teorética, juntamente com a metafísica.III. Escritos metafísicos : a Metafísica famosa, em catorze livros. É uma compilação feita depois da

morte de Aristóteles mediante seus apontamentos manuscritos, referentes à metafísica geral e à teologia.O nome de metafísica é devido ao lugar que ela ocupa na coleção de Andrônico, que a colocou depois da física .IV.  Escritos morais e políticos : a Ética a Nicômaco , em dez livros, provavelmente publicada porNicômaco, seu filho, ao qual é dedicada; a Ética a Eudemo , inacabada, refazimento da ética de Aristóteles, devido a Eudemo; a Grande Ética , compêndio das duas precedentes, em especial dasegunda; a Política , em oito livros, incompleta.

 V. Escritos retóricos e poéticos : a Retórica , em três livros; a Poética , em dois livros, que, no seuestado atual, é apenas uma parte da obra de Aristóteles. As obras de Aristóteles as doutrinas que nosrestam - manifestam um grande rigor científico, sem enfeites míticos ou poéticos, exposição e expressãobreve e aguda, clara e ordenada, perfeição maravilhosa da terminologia filosófica, de que foi ele ocriador.

O Pensamento: A Gnosiologia

Segundo Aristóteles, a filosofia é essencialmente teorética: deve decifrar o enigma do universo, em facedo qual a atitude inicial do espírito é o assombro do mistério. O seu problema fundamental é o problemado ser, não o problema da vida. O objeto próprio da filosofia, em que está a solução do seu problema,são as essências imutáveis e a razão última das coisas, isto é, o universal e o necessário, as formas esuas relações. Entretanto, as formas são imanentes na experiência, nos indivíduos, de que constituem aessência. A filosofia aristotélica é, portanto, conceptual como a de Platão mas parte da experiência; édedutiva, mas o ponto de partida da dedução é tirado - mediante o intelecto da experiência. A filosofia,pois, segundo Aristóteles, dividir-se-ia em teorética , prática e poética , abrangendo, destarte, todo o saberhumano, racional. A teorética, por sua vez, divide-se em física , matemática e filosofia primeira (metafísicae teologia); a filosofia prática divide-se em ética e política ; a poética em estética e técnica . Aristóteles é o

criador da lógica , como ciência especial, sobre a base socrático-platônica; é denominada por ele analítica  e representa a metodologia científica. Trata Aristóteles os problemas lógicos e gnosiológicos no conjuntodaqueles escritos que tomaram mais tarde o nome de Órganon . Limitar-nos-emos mais especialmenteaos problemas gerais da lógica de Aristóteles, porque aí está a sua gnosiologia . Foi dito que, em geral, aciência, a filosofia - conforme Aristóteles, bem como segundo Platão - tem como objeto o universal e onecessário; pois não pode haver ciência em torno do individual e do contingente, conhecidossensivelmente. Sob o ponto de vista metafísico, o objeto da ciência aristotélica é a forma , como idéia erao objeto da ciência platônica. A ciência platônica e aristotélica são, portanto, ambas objetivas, realistas:tudo que se pode aprender precede a sensação e é independente dela. No sentido estrito, a filosofiaaristotélica é dedução  do particular pelo universal, explicação do condicionado mediante a condição,porquanto o primeiro elemento depende do segundo. Também aqui se segue a ordem da realidade, ondeo fenômeno particular depende da lei universal e o efeito da causa. Objeto essencial da lógica aristotélicaé precisamente este processo de derivação ideal, que corresponde a uma derivação real. A lógica

aristotélica, portanto, bem como a platônica, é essencialmente dedutiva, demonstrativa, apodíctica. Oseu processo característico, clássico, é o silogismo. Os elementos primeiros, os princípios supremos, asverdades evidentes, consoante Platão, são fruto de uma visão imediata, intuição intelectual, em relaçãocom a sua doutrina do contato imediato da alma com as idéias - reminiscência. Segundo Aristóteles,entretanto, de cujo sistema é banida toda forma de inatismo, também os elementos primeiros doconhecimento - conceito e juízos - devem ser, de um modo e de outro, tirados da experiência, darepresentação sensível, cuja verdade imediata ele defende, porquanto os sentidos por si nunca nosenganam. O erro começa de uma falsa elaboração dos dados dos sentidos: a sensação, como o conceito,é sempre verdadeira. Por certo, metafisicamente, ontologicamente, o universal, o necessário, o

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inteligível, é anterior ao particular, ao contigente, ao sensível: mas, gnosiologicamente,psicologicamente existe primeiro o particular, o contigente, o sensível, que constituem precisamente oobjeto próprio do nosso conhecimento sensível, que é o nosso primeiro conhecimento. Assim sendo,compreende-se que Aristóteles, ao lado e em conseqüência da doutrina de dedução, seja constrangido aelaborar, na lógica, uma doutrina da indução. Por certo, ela não está efetivamente acabada, mas pode-se

integrar logicamente segundo o espírito profundo da sua filosofia. Quanto aos elementos primeiros doconhecimento racional, a saber, os conceitos, a coisa parece simples: a indução  nada mais é que aabstração do conceito, do inteligível, da representação sensível, isto é, a "desindividualização" douniversal do particular, em que o universal é imanente. A formação do conceito é, a posteriori , tirada daexperiência. Quanto ao juízo, entretanto, em que unicamente temos ou não temos a verdade, e que é oelemento constitutivo da ciência, a coisa parece mais complicada. Como é que se formam os princípios dademonstração, os juízos imediatamente evidentes, donde temos a ciência? Aristóteles reconhece que éimpossível uma indução completa, isto é, uma resenha de todos os casos os fenômenos particulares parapoder tirar com certeza absoluta leis universais abrangendo todas as essências. Então só resta possíveluma indução incompleta, mas certíssima, no sentido de que os elementos do juízo os conceitos sãotirados da experiência, a posteriori , seu nexo, porém, é a priori , analítico, colhido imediatamente pelointelecto humano mediante a sua evidência, necessidade objetiva.

Filosofia de Aristóteles

Partindo como Platão do mesmo problema acerca do valor objetivo dos conceitos, mas abandonando asolução do mestre, Aristóteles constrói um sistema inteiramente original. Os caracteres desta grandesíntese são:1. Observação fiel da natureza    Platão, idealista, rejeitara a experiência como fonte de conhecimentocerto. Aristóteles, mais positivo, toma sempre o fato como ponto de partida de suas teorias, buscando narealidade um apoio sólido às suas mais elevadas especulações metafísicas.2. Rigor no método    Depois de estudas as leis do pensamento, o processo dedutivo e indutivo aplica-os, com rara habilidade, em todas as suas obras, substituindo à linguagem imaginosa e figurada dePlatão, em estilo lapidar e conciso e criando uma terminologia filosófica de precisão admirável. Podeconsiderar-se como o autor da metodologia e tecnologia científicas. Geralmente, no estudo de uma

questão, Aristóteles procede por partes: a) começa a definir-lhe o objeto; b) passa a enumerar-lhes assoluções históricas ; c) propõe depois as dúvidas; d) indica, em seguida, a própria solução; e) refuta, porúltimo, as sentenças contrárias.3. Unidade do conjunto    Sua vasta obra filosófica constitui um verdadeiro sistema , uma verdadeirasíntese . Todas as partes se compõem , se correspondem, se confirmam.

 A Teologia

Objeto próprio da teologia é o primeiro motor imóvel, ato puro, o pensamento do pensamento, isto é,Deus, a quem Aristóteles chega através de uma sólida demonstração , baseada sobre a imediataexperiência, indiscutível, realidade do vir-a-ser, da passagem da potência ao ato. Este vir-a-ser,passagem da potência ao ato, requer finalmente um não-vir-a-ser, motor imóvel, um motor já em ato,um ato puro enfim, pois, de outra forma teria que ser movido por sua vez. A necessidade deste primeiro

motor imóvel não é absolutamente excluída pela eternidade do vir-a-ser, do movimento, do mundo. Comefeito, mesmo admitindo que o mundo seja eterno, isto é, que não tem princípio e fim no tempo,enquanto é vir-a-ser, passagem da potência ao ato, fica eternamente inexplicável, contraditório, sem umprimeiro motor imóvel, origem extra-temporal, causa absoluta, razão metafísica de todo devir. Deus, oreal puro, é aquilo que move sem ser movido; a matéria, o possível puro, é aquilo que é movido, sem semover a si mesmo.Da análise do conceito de Deus, concebido como primeiro motor imóvel, conquistado através doprecedente raciocínio, Aristóteles, pode deduzir logicamente a natureza essencial de Deus, concebido,antes de tudo, como ato puro, e, consequentemente, como pensamento de si mesmo. Deus é

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unicamente pensamento, atividade teorética, no dizer de Aristóteles, enquanto qualquer outraatividade teria fim extrínseco, incompatível com o ser perfeito, auto-suficiente. Se o agir, o querer têmobjeto diverso do sujeito agente e "querente", Deus não pode agir e querer, mas unicamente conhecer epensar, conhecer a si próprio e pensar em si mesmo. Deus é, portanto, pensamento de pensamento,pensamento de si, que é pensamento puro. E nesta autocontemplação imutável e ativa, está a beatitude

divina.Se Deus é mera atividade teorética, tendo como objeto unicamente a própria perfeição, não conhece omundo imperfeito, e menos ainda opera sobre ele. Deus não atua sobre o mundo, voltando-se para ele,com o pensamento e a vontade; mas unicamente como o fim último, atraente, isto é, como causa final,e, por conseqüência, e só assim, como causa eficiente e formal (exemplar). De Deus depende a ordem, avida, a racionalidade do mundo; ele, porém, não é criador, nem providência do mundo. Em Aristóteles opensamento grego conquista logicamente a transcendência de Deus; mas, no mesmo tempo, permaneceo dualismo, que vem anular aquele mesmo Absoluto a que logicamente chegara, para dar uma explicaçãofilosófica da relatividade do mundo pondo ao seu lado esta realidade independente dele.

 A Moral

 Aristóteles trata da moral em três Éticas , de que se falou quando das obras dele. Consoante sua doutrinametafísica fundamental, todo ser tende necessariamente à realização da sua natureza, à atualizaçãoplena da sua forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade, e, por conseqüência, a sua lei. Visto ser a razão a essência característica do homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente esenso disto consciente. E assim consegue ele a felicidade e a virtude, isto é, consegue a felicidademediante a virtude, que é precisamente uma atividade conforme à razão, isto é, uma atividade quepressupõe o conhecimento racional. Logo, o fim do homem é a felicidade, a que é necessária à virtude, ea esta é necessária a razão. A característica fundamental da moral aristotélica é, portanto, oracionalismo , visto ser a virtude ação consciente segundo a razão, que exige o conhecimento absoluto,metafísico, da natureza e do universo, natureza segundo a qual e na qual o homem deve operar. As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas; masimplicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão,e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as

paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razãopura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência.Uma doutrina aristotélica a respeito da virtude doutrina que teve muita doutrina prática, popular, emborase apresente especulativamente assaz discutível é aquela pela qual a virtude é precisamente concebidacomo um  justo meio  entre dois extremos, isto é, entre duas paixões opostas: porquanto o sentidopoderia esmagar a razão ou não lhe dar forças suficientes. Naturalmente, este justo meio, na ação de umhomem, não é abstrato, igual para todos e sempre; mas concreto, relativo a cada qual, e variávelconforme as circunstâncias, as diversas paixões predominantes dos vários indivíduos.Pelo que diz respeito à virtude, tem, ao contrário, certamente, maior valor uma outra doutrinaaristotélica: precisamente a da virtude concebida como hábito racional . Se a virtude é,fundamentalmente, uma atividade segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão,um costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, isto é, a virtude não é inata, como não éinata a ciência; mas adquiri-se mediante a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se,

mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de fácil execução - como o vício.Como já foi mencionado, Aristóteles distingue duas categorias fundamentais de virtudes: as éticas , queconstituem propriamente o objeto da moral, e as dianoéticas , que a transcendem. É uma distinção e umahierarquia, que têm uma importância essencial em relação a toda a filosofia e especialmente à moral. Asvirtudes intelectuais, teoréticas, contemplativas, são superiores às virtudes éticas, práticas, ativas.Noutras palavras, Aristóteles sustenta o primado do conhecimento, do intelecto, da filosofia, sobre aação, a vontade, a política.

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 A Política

 A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do estado é a virtude, isto é, aformação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismomoral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema

atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo oindivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social.Desta ciência trata Aristóteles precisamente na Política , de que acima se falou.O estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a coletividade é superior ao indivíduo, o bem comumsuperior ao bem particular. Unicamente no estado efetua-se a satisfação de todas as necessidades, pois ohomem, sendo naturalmente animal social, político, não pode realizar a sua perfeição sem a sociedade doestado. Visto que o estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas se compõem de muitosindivíduos, antes de tratar propriamente do estado será mister falar da família, que precedecronologicamente o estado, como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-sede quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além, naturalmente, do chefe a quepertence a direção da família. Deve ele guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes.Deve fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim educativo, tem também um fimeconômico. E, como ao estado, é-lhe essencial a propriedade, pois os homens têm necessidadesmateriais. No entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários instrumentos inanimadose animados; estes últimos seriam os escravos. Aristóteles não nega a natureza humana ao escravo; mas constata que na sociedade são necessáriostambém os trabalhos materiais, que exigem indivíduos particulares, a que fica assim tirada fatalmente apossibilidade de providenciar a cultura da alma, visto ser necessário, para tanto, tempo e liberdade, bemcomo aptas qualidades espirituais, excluídas pelas próprias características qualidades materiais de taisindivíduos. Daí a escravidão . Vejamos, agora, o estado  em particular. O estado surge, pelo fato de ser o homem um animalnaturalmente social, político. O estado provê, inicialmente, a satisfação daquelas necessidades materiais,negativas e positivas, defesa e segurança, conservação e engrandecimento, de outro modo irrealizáveis.Mas o seu fim essencial é espiritual, isto é, deve promover a virtude e, consequentemente, a felicidade

dos súditos mediante a ciência.Compreende-se, então, como seja tarefa essencial do estado a educação, que deve desenvolverharmônica e hierarquicamente todas as faculdades: antes de tudo as espirituais, intelectuais e,subordinadamente, as materiais, físicas. O fim da educação é formar homens mediante as artes liberais,importantíssimas a poesia e a música, e não máquinas, mediante um treinamento profissional. Eis porque Aristóteles, como Platão, condena o estado que, ao invés de se preocupar com uma pacífica educaçãocientífica e moral, visa a conquista e a guerra. E critica, dessa forma, a educação militar de Esparta, quefaz da guerra a tarefa precípua do estado, e põe a conquista acima da virtude, enquanto a guerra, comoo trabalho, são apenas meios para a paz e o lazer sapiente.Não obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles, diversamente de Platão, salva o direitoprivado, a propriedade particular e a família. O comunismo como resolução total dos indivíduos e dosvalores no estado é fantástico e irrealizável. O estado não é uma unidade substancial, e sim uma síntesede indivíduos substancialmente distintos. Se se quiser a unidade absoluta, será mister reduzir o estado à

família e a família ao indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta aos doisprecedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das castas, e, precisamente, duas classesreconhece: a dos homens livres, possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores,sem direitos políticos.Quanto à forma exterior do estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia , que é o governo deum só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia , que é ogoverno de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; ademocracia , que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade, e cuja degeneração é ademagogia. As preferências de Aristóteles vão para uma forma de república democrático-intelectual, a

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forma de governo clássica da Grécia, particularmente de Atenas. No entanto, com o seu profundorealismo, reconhece Aristóteles que a melhor forma de governo não é abstrata, e sim concreta: deve serrelativa, acomodada às situações históricas, às circunstâncias de um determinado povo. De qualquermaneira a condição indispensável para uma boa constituição, é que o fim da atividade estatal deve ser obem comum e não a vantagem de quem governa despoticamente.

 A Religião e a Arte

Com Aristóteles afirma-se o teísmo do ato puro. No entanto, este Deus, pelo seu efetivo isolamento domundo, que ele não conhece, não cria, não governa, não está em condições de se tornar objeto dereligião , mais do que as transcendentes idéias platônicas. E não fica nenhum outro objeto religioso.Também Aristóteles, como Platão, se exclui filosoficamente o antropomorfismo, não exclui uma espéciede politeísmo, e admite, ao lado do Ato Puro e a ele subordinado, os deuses astrais, isto é, admite que oscorpos celestes são animados por espíritos racionais. Entretanto, esses seres divinos não parecem e nãopodem ter função religiosa e sem física.Não obstante esta concepção filosófica da divindade, Aristóteles admite a religião positiva do povo, atésem correção alguma. Explica e justifica a religião positiva, tradicional, mítica, como obra política paramoralizar o povo, e como fruto da tendência humana para as representações antropomórficas; e não dizque ela teria um fundamento racional na verdade filosófica da existência da divindade, a que o homemse teria facilmente elevado através do espetáculo da ordem celeste. Aristóteles como Platão considera a arte como imitação, de conformidade com o fundamental realismogrego. Não, porém, imitação de uma imitação, como é o fenômeno, o sensível, platônicos; e sim imitaçãodireta da própria idéia, do inteligível imanente no sensível, imitação da forma imanente na matéria. Naarte, esse inteligível, universal é encarnado, concretizado num sensível, num particular e, destarte,tornando intuitivo, graças ao artista. Por isso, Aristóteles considera a arte a poesia de Homero que tempor conteúdo o universal, o imutável, ainda que encarnado fantasticamente num particular, comosuperior à história e mais filosófica do que a história de Heródoto que tem como objeto o particular, omutável, seja embora real. O objeto da arte não é o que aconteceu uma vez como é o caso da história ,mas o que por natureza deve, necessária e universalmente, acontecer . Deste seu conteúdo inteligível,universal, depende a eficácia espiritual pedagógica, purificadora da arte.

Se bem que a arte seja imitação da realidade no seu elemento essencial, a forma, o inteligível, esteinteligível recebe como que uma nova vida através da fantasia criadora do artista, isto precisamenteporque o inteligível, o universal, deve ser encarnado, concretizado pelo artista num sensível, numparticular. As leis da obra de arte serão, portanto, além de imitação do universal verossimilhança enecessidade coerência interior dos elementos da representação artística, íntimo sentimento do conteúdo,evidência e vivacidade de expressão. A arte é, pois, produção mediante a imitação; e a diferença entre asvárias artes é estabelecida com base no objeto ou no instrumento de tal imitação.

 A Metafísica

 A metafísica aristotélica é "a ciência do ser como ser, ou dos princípios e das causas do ser e de seusatributos essenciais". Ela abrange ainda o ser imóvel e incorpóreo, princípio dos movimentos e dasformas do mundo, bem como o mundo mutável e material, mas em seus aspectos universais e

necessários. Exporemos portanto, antes de tudo, as questões gerais da metafísica, para depoischegarmos àquela que foi chamada, mais tarde, metafísica especial; tem esta como objeto o mundo quevem-a-ser   natureza e homem   e culmina no que não pode vir-a-ser, isto é, Deus. Podem-se reduzirfundamentalmente a quatro as questões gerais da metafísica aristotélica: potência e ato, matéria eforma, particular e universal, movido e motor. A primeira e a última abraçam todo o ser, a segunda e aterceira todo o ser em que está presente a matéria.I. A doutrina da  potência e do ato  é fundamental na metafísica aristotélica: potência significapossibilidade, capacidade de ser, não-ser atual; e ato significa realidade, perfeição, ser efetivo. Todo ser,que não seja o Ser perfeitíssimo, é portanto uma síntese   um sínolo    de potência e de ato, em diversas

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proporções, conforme o grau de perfeição, de realidade dos vários seres. Um ser desenvolve-se,aperfeiçoa-se, passando da potência ao ato; esta passagem da potência ao ato é atualização de umapossibilidade, de uma potencialidade anterior. Esta doutrina fundamental da potência e do ato é aplicada   e desenvolvida - por Aristóteles especialmente quando da doutrina da matéria e da forma, querepresentam a potência e o ato no mundo, na natureza em que vivemos. Desta doutrina da matéria e da

forma, vamos logo falar.II. Aristóteles não nega o vir-a-ser de Herácllito, nem o ser de Parmênides, mas une-os em uma sínteseconclusiva, já iniciada pelos últimos pré-socráticos e grandemente aperfeiçoada por Demócrito e Platão.Segundo Aristóteles, a mudança, que é intuitiva, pressupõe uma realidade imutável, que é de duasespécies. Um substrato comum, elemento imutável da mudança, em que a mudança se realiza; e asdeterminações que se realizam neste substrato, a essência, a natureza que ele assume. O primeiroelemento é chamado matéria  (prima), o segundo forma  (substancial). O primeiro é potência,possibilidade de assumir várias formas, imperfeição; o segundo é atualidade - realizadora, especificadorada matéria   , perfeição. A síntese   o sinolo    da matéria e da forma constitui a substância, e esta, por suavez, é o substrato imutável, em que se sucedem os acidentes, as qualidades acidentais. A mudança,portanto, consiste ou na sucessão de várias formas na mesma essência, forma concretizada da matéria,que constitui precisamente a substância. A matéria sem forma, a pura matéria, chamada matéria-prima, é um mero possível, não existe por si, éum absolutamente interminado, em que a forma introduz as determinações. A matéria aristotélica,porém, não é o puro não-ser de Platão, mero princípio de decadência, pois ela é também condiçãoindispensável para concretizar a forma, ingrediente necessário para a existência da realidade material,causa concomitante de todos os seres reais.Então não existe, propriamente, a forma sem a matéria, ainda que a forma seja princípio de atuação edeterminação da própria matéria. Com respeito à matéria, a forma é, portanto, princípio de ordem efinalidade, racional, inteligível. Diversamente da idéia platônica, a forma aristotélica não é separada damatéria, e sim imanente e operante nela. Ao contrário, as formas aristotélicas são universais, imutáveis,eternas, como as idéias platônicas.Os elementos constitutivos da realidade são, portanto, a forma e a matéria. A realidade, porém, écomposta de indivíduos, substâncias, que são uma síntese   um sínolo     de matéria e forma. Porconseqüência, estes dois princípios não são suficientes para explicar o surgir dos indivíduos e das

substâncias que não podem ser atuados bem como a matéria não pode ser atuada

 a não ser por umoutro indivíduo, isto é, por uma substância em ato. Daí a necessidade de um terceiro princípio, a causa 

eficiente , para poder explicar a realidade efetiva das coisas. A causa eficiente, por sua vez, deve operarpara um fim, que é precisamente a síntese da forma e da matéria, produzindo esta síntese o indivíduo.Daí uma quarta causa, a causa final , que dirige a causa eficiente para a atualização da matéria mediantea forma.III. Mediante a doutrina da matéria e da forma, Aristóteles explica o indivíduo, a substância física, aúnica realidade efetiva no mundo, que é precisamente síntese   sínolo    de matéria e de forma. A essência   igual em todos os indivíduos de uma mesma espécie   deriva da forma; a individualidade, pela qual todasubstância é original e se diferencia de todas as demais, depende da matéria. O indivíduo é, portanto,potência realizada, matéria enformada, universal particularizado. Mediante esta doutrina é explicado oproblema do universal e do  particular , que tanto atormenta Platão; Aristóteles faz o primeiro   a idéia   imanente no segundo   a matéria, depois de ter eficazmente criticado o dualismo platônico, que fazia os

dois elementos transcendentes e exteriores um ao outro.IV. Da relação entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma, surge o movimento, a mudança, ovir-a-ser, a que é submetido tudo que tem matéria, potência. A mudança é, portanto, a realização dopossível. Esta realização do possível, porém, pode ser levada a efeito unicamente por um ser que já estáem ato, que possui já o que a coisa movida deve vir-a-ser, visto ser impossível que o menos produza omais, o imperfeito o perfeito, a potência o ato, mas vice-versa. Mesmo que um ser se mova a si mesmo,aquilo que move deve ser diverso daquilo que é movido, deve ser composto de um motor e de uma coisamovida. Por exemplo, a alma é que move o corpo. O motor pode ser unicamente ato, forma; a coisamovida   enquanto tal   pode ser unicamente potência, matéria. Eis a grande doutrina aristotélica do motor 

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e da coisa movida , doutrina que culmina no motor primeiro, absolutamente imóvel, ato puro, isto é,Deus.

 A Psicologia

Objeto geral da psicologia aristotélica é o mundo animado, isto é, vivente, que tem por princípio a alma ese distingue essencialmente do mundo inorgânico, pois, o ser vivo diversamente do ser inorgânico possuiinternamente o princípio da sua atividade, que é precisamente a alma, forma do corpo. A característicaessencial e diferencial da vida e da planta, que tem por princípio a alma vegetativa , é a nutrição e areprodução. A característica da vida animal, que tem por princípio a alma sensitiva , é precisamente asensibilidade e a locomoção. Enfim, a característica da vida do homem, que tem por princípio a alma racional , é o pensamento. Todas estas três almas são objeto da psicologia aristotélica. Aqui nos limitamosà psicologia racional, que tem por objeto específico o homem, visto que a alma racional cumpre nohomem também as funções da vida sensitiva e vegetativa; e, em geral, o princípio superior cumpre asfunções do princípio inferior. De sorte que, segundo Aristóteles diversamente de Platão todo ser vivo temuma só alma, ainda que haja nele funções diversas faculdades diversas porquanto se dão atos diversos. Eassim, conforme Aristóteles, diversamente de Platão, o corpo humano não é obstáculo, mas instrumentoda alma racional, que é a forma do corpo.O homem é uma unidade substancial de alma e de corpo, em que a primeira cumpre as funções deforma em relação à matéria, que é constituída pelo segundo. O que caracteriza a alma humana é aracionalidade, a inteligência, o pensamento, pelo que ela é espírito. Mas a alma humana desempenhatambém as funções da alma sensitiva e vegetativa, sendo superior a estas. Assim, a alma humana, sendoembora uma e única, tem várias faculdades, funções, porquanto se manifesta efetivamente com atosdiversos. As faculdades fundamentais do espírito humano são duas: teorética e prática, cognoscitiva eoperativa, contemplativa e ativa. Cada uma destas, pois, se desdobra em dois graus, sensitivo eintelectivo, se se tiver presente que o homem é um animal racional, quer dizer, não é um espírito puro,mas um espírito que anima um corpo animal.O conhecimento sensível , a sensação, pressupões um fato físico, a saber, a ação do objeto sensível sobreo órgão que sente, imediata ou à distância, através do movimento de um meio. Mas o fato físicotransforma-se num fato psíquico, isto é, na sensação propriamente dita, em virtude da específica

faculdade e atividade sensitivas da alma. O sentido recebe as qualidades materiais sem a matéria delas,como a cera recebe a impressão do selo sem a sua matéria. A sensação embora limitada é objetiva,sempre verdadeira com respeito ao próprio objeto; a falsidade, ou a possibilidade da falsidade, começacom a síntese, com o juízo. O sensível  próprio  é percebido por um só sentido, isto é, as sensaçõesespecíficas são percebidas, respectivamente, pelos vários sentidos; o sensível comum , as qualidadesgerais das coisas tamanho, figura, repouso, movimento, etc. são percebidas por mais sentidos. O sensocomum é uma faculdade interna, tendo a função de coordenar, unificar as várias sensações isoladas, quea ele confluem, e se tornam, por isso, representações, percepções. Acima do conhecimento sensível está o conhecimento inteligível , especificamente diverso do primeiro. Aristóteles aceita a essencial distinção platônica entre sensação e pensamento, ainda que rejeite oinatismo platônico, contrapondo-lhe a concepção do intelecto como tabula rasa , sem idéias inatas. Objetodo sentido é o particular, o contingente, o mutável, o material. Objeto do intelecto é o universal, onecessário, o imutável, o imaterial, as essências, as formas das coisas e os princípios primeiros do ser, o

ser absoluto. Por conseqüência, a alma humana, conhecendo o imaterial, deve ser espiritual e, quanto atal, deve ser imperecível. Analogamente às atividades teoréticas, duas são as atividades práticas da alma: apetite e vontade. Oapetite é a tendência guiada pelo conhecimento sensível, e é próprio da alma animal. Esse apetite éconcebido precisamente como sendo um movimento finalista, dependente do sentimento, que, por suavez depende do conhecimento sensível. A vontade é o impulso, o apetite guiado pela razão, e é própriada alma racional. Como se vê, segundo Aristóteles, a atividade fundamental da alma é teorética,cognoscitiva, e dessa depende a prática, ativa, no grau sensível bem como no grau inteligível.

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 A Cosmologia

Uma questão geral da física  aristotélica, como filosofia da natureza, é a análise dos vários tipos demovimento , mudança, que já sabemos ser passagem da potência ao ato, realização de umapossibilidade. Aristóteles distingue quatro espécies de movimentos:

1. Movimento substancial - mudança de forma, nascimento e morte;2. Movimento qualitativo    mudança de propriedade;3. Movimento quantitativo    acrescimento e diminuição;4. Movimento espacial    mudança de lugar, condicionando todas as demais espécies de mudança.Outra especial e importantíssima questão da física aristotélica é a concernente ao espaço e ao tempo, emtorno dos quais fez ele investigações profundas. O espaço é definido como sendo o limite do corpo, istoé, o limite imóvel do corpo "circundante" com respeito ao corpo circundado. O tempo é definido comosendo o número   isto é, a medida   do movimento segundo a razão, o aspecto, do "antes" e do "depois". Admitidas as precedentes concepções de espaço e de tempo   como sendo relações de substâncias, defenômenos   é evidente que fora do mundo não há espaço nem tempo: espaço e tempo vazios sãoimpensáveis.Uma terceira questão fundamental da filosofia natural de Aristóteles é a concernente ao teleologismo     finalismo   por ele propugnado com base na finalidade, que ele descortina em a natureza. "A natureza faz,enquanto possível, sempre o que é mais belo". Fim de todo devir é o desenvolvimento da potência aoato, a realização da forma na matéria.Quanto às ciências químicas, físicas e especialmente astronômicas, as doutrinas aristotélicas têm apenasum valor histórico, e são logicamente separáveis da sua filosofia, que tem um valor teorético.Especialmente célebre é a sua doutrina astronômica geocêntrica, que prestará a estrutura física à Divina Comédia de Dante Alighieri.

Juízo sobre Aristóteles

É difícil aquilatar em sua justa medida o valor de Aristóteles. A influência intelectual por ele até hojeexercida sobre o pensamento humano e à qual se não pode comparar a de nenhum outro pensador dá-nos, porém, uma idéia da envergadura de seu gênio excepcional. Criador da lógica, autor do primeiro

tratado de psicologia científica, primeiro escritor da história da filosofia, patriarca das ciências naturais,metafísico, moralista, político, ele é o verdadeiro fundador da ciência moderna e "ainda hoje estápresente com sua linguagem científica não somente às nossas cogitações, senão também à expressãodos sentimentos e das idéias na vida comum e habitual".Nem por isso podemos deixar de apontar as lacunas do seu sistema. Sua moral, sem obrigação nemsanção, é defeituosa e mais gravemente defeituosa ainda que a teodicéia, sobretudo na parte que tratadas relações de Deus com o mundo. O dualismo primitivo e irredutível entre Deus, ato puro, e a matéria,princípio potencial, é, na própria teoria aristotélica, uma verdadeira contradição e deixa subsistir, comoenigma insolúvel e inexplicável, a existência dos seres fora de Deus.

 Vista Retrospectiva

Com Sócrates entre a filosofia em seu caminho definitivo. O problema do objeto e da possibilidade da

ciência é posto em seus verdadeiros termos e resolvido, nas suas linhas gerais, pela doutrina do conceito. Platão dá um passo além, procurando determinar a relação entre o conceito e a realidade, mas encalha,dum lado, nas dificuldades insolúveis de um realismo exagerado; de outro, nas extravagâncias dumidealismo extremo. Aristóteles, com o seu espírito positivo e observador, retoma o mesmo problema nopé em que o pusera Platão e dá-lhe, pela teoria da abstração e da inteligência ativa, uma soluçãosatisfatória e definitiva nos grandes lineamentos. Em torno desta questão fundamental, que entende coma metafísica, a psicologia e a lógica, se vão desenvolvendo harmoniosamente as outras partes da filosofiaaté constituírem em Aristóteles esta grandiosa síntese do saber universal, o mais precioso legado dacivilização grega que declinava à civilização ocidental que surgia.

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 O Epicurismo

Epicuro , fundador da escola que tomou o seu nome, nasceu em Atenas, provavelmente, em 341 a.C.,do ateniense Néocles, e foi criado em Samos. A mãe praticava a magia. Cedo dedicou-se à filosofia,

sendo iniciado por Nausífanes de Teo no sistema de Demócrito. Em 306 abriu a sua famosa escola em Atenas, nos jardins da sua vila, que se tornaram centro das reuniões aristocráticas dos seus admiradores,discípulos e amigos. Epicuro expôs a sua doutrina num grande número de escritos, pela maior parteperdidos. Faleceu em 270 a.C. com setenta anos de idade. O epicurismo teve, desde logo, rápida e vastadifusão no mundo romano, onde encontramos, sobretudo, Tito Lucrécio Caro - I século a.C. - o poetaentusiasta, autor de De rerum natura , que venerava Epicuro como uma divindade. A ele devemos asmelhores notícias sobre o sistema epicurista. A escola epicurista durou até o IV século d.C., mas teveescasso desenvolvimento, conforme o desejo do mestre, que queria os discípulos fiéis até a letra dosistema. A originalidade deveria manifestar-se na vida.Epicuro foi pessoa fidalga e refinada, o ideal da fidalguia antiga: fazer da formosura o princípio inspiradorda vida, e fruir dessa formosura na própria existência pessoal. E foi um mestre eficaz de sabedoriaaristocrática, feita de nobreza de sentimentos, senso refinado, gosto para a formosura, para a culturasuperior. Em seus jardins, num sereno lazer, semelhante ao dos deuses, deu vida a uma sociedadegenial, em que dominava o vínculo da amizade. As amizades dos epicuristas ficaram famosas como asdos pitagóricos. A associação espalhou-se depois, mas conservou-se fortemente organizada, medianteuma estável constituição, ajudas materiais, cartas, missões. O mestre pareceu aos discípulos como queum redentor; a sua filosofia foi considerada como uma religião, a sua doutrina, resumida em catecismos,a sua imagem, gravada nas jóias, em sua honra celebravam-se festas comemorativas, mensais e anuais.Se não houve pensadores epicuristas notáveis depois de Epicuro no mundo clássico nem depois, houvetodavia, em todos os tempos e lugares, homens famosos, pertencentes a classes sociais elevadas, osquais aplicaram a sua doutrina à vida e dela fizeram a substância de sua arte.

O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica

Também o epicurismo - como o estoicismo - divide a filosofia em lógica, física e ética; também subordina

a teoria à pratica, a ciência à moral, para garantir ao homem o bem supremo, a serenidade, a paz, aapatia. A filosofia é a arte da vida. Precisamente, é tarefa do conhecimento do mundo, da física - dizEpicuro - libertar o homem dos grandes temores que ele tem a respeito da sua vida, da morte, do além-túmulo, de Deus e fazer com que ele atue de conformidade. Portanto, recorre Epicuro à física atomista,mecanicista, democritiana, pela qual também os deuses vêm a ser compostos de átomos, e - habitadoresfelizes de intermundos - desinteressam-se por completo dos homens. Aliás, não é excluído o fato de quea necessidade universal oprimiria o homem ainda mais do que o arbítrio divino. Igualmente, a alma -formada de átomos sutis, mas sempre materiais - perece com o corpo; daí, nenhuma preocupação com amorte, nem com o além-túmulo: seria igualmente absurdo preocupar-se com aquilo que se segue àmorte, como com aquilo que precede o nascimento. A gnosiologia (lógica , canônica) epicurista é rigorosamente sensista. Todo o nosso conhecimento derivada sensação, é uma complicação de sensações. Estas nos dão o ser, indivíduo material, que constitui arealidade originária. O processo cognoscitivo da sensação é explicado mediante os assim chamados

fantasmas , que seriam imagens em miniatura das coisas, arrancar-se-iam destas e chegariam até à almaimediatamente, ou mediatamente através dos sentidos. Dada tal gnosiologia coerentemente sensista, énatural que o critério fundamental e único da verdade seja a sensação, a percepção sensível, que éimediata, intuitiva, evidente. Como a sensação, a evidência sensível é o único critério de verdade nocampo teorético, da mesma forma o sentimento (prazer e dor) será o critério supremo de valor no campoprático.Como a gnosiologia epicurista é rigorosamente sensista, a metafísica epicurista é rigorosamentematerialista: quer dizer, resolve-se numa física . Epicuro, seguindo as pegadas de Demócrito, concebe oselementos últimos constitutivos da realidade como corpúsculos inúmeros, eternos, imutáveis, invisíveis,

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homogêneos, indivisíveis (átomos), iguais qualitativamente e diversos quantitativamente - notamanho, na figura, no peso. Também segundo Epicuro, os átomos estão no espaço vazio, infinito,indispensável para que seja possível o movimento e, consequentemente, a origem e a variedade dascoisas. Os átomos são animados de movimento necessário para baixo. Entretanto, no movimentouniforme retilíneo para baixo introduz Epicuro desvios múltiplos, sem causa, espontâneos (clinamen ); daí 

derivam encontros e choques de átomos e, por conseqüência, os vórtices e os mundos. Estes, de fato,não teriam explicações se os átomos caíssem todos com movimentos uniforme e retilíneos para baixo -como pensava Demócrito. Mediante o clinamen Epicuro justifica ainda o livre arbítrio, que é uma simplescombinação da contingência, do indeterminismo universal. O universo não é concebido como finito e uno,mas infinito e resultante de mundos inúmeros divididos por intermundos, espalhado pelo espaço infindo,sujeitos ao nascimento e à morte. Nesse mundo o homem, sem providência divina, sem alma imortal,deve adaptar-se para viver como melhor puder. Nisto estão toda a sabedoria, a virtude, a moralepicuristas.

 A Moral e a Religião

 A moral epicurista é uma moral hedonista. O fim supremo da vida é o  prazer sensível; critério único demoralidade é o sentimento. O único bem é o prazer, como o único mal é a dor; nenhum prazer deve serrecusado, a não ser por causa de conseqüências dolorosas, e nenhum sofrimento deve ser aceito, a nãoser em vista de um prazer, ou de nenhum sofrimento menor. No epicurismo não se trata, portanto, doprazer imediato, como é desejado pelo homem vulgar; trata-se do prazer imediato, refletido, avaliadopela razão, escolhido prudentemente, sabiamente, filosoficamente. É mister dominar os prazeres, e nãose deixar por eles dominar; ter a faculdade de gozar e não a necessidade de gozar. A filosofia toda estánesta função prática. Este prazer imediato deveria ficar sempre essencialmente sensível, mesmo quandoEpicuro fala de prazeres espirituais, para os quais não há lugar no seu sistema, e nada mais seriam quecomplicações de prazeres sensíveis. O prazer espiritual diferenciar-se-ia do prazer sensível, porquanto oprimeiro se estenderia também ao passado e ao futuro e transcende o segundo, que é unicamentepresente. Verdade é que Epicuro mira os prazeres estéticos e intelectuais, como os mais altos prazeres. Aqui, porém, se ele faz uma afirmação profunda, está certamente em contradição com a sua metafísicamaterialista.

Em que consiste, afinal, esse prazer imediato, refletido, racionado? Na satisfação de uma necessidade, naremoção do sofrimento, que nasce de exigências não satisfeitas. O verdadeiro prazer não é positivo, masnegativo , consistindo na ausência do sofrimento, na quietude, na apatia, na insensibilidade, no sono, ena morte. Mas precisamente ainda, Epicuro divide os desejos em naturais e necessários - por exemplo, oinstinto da reprodução; não naturais e não necessários - por exemplo, a ambição. O sábio satisfaz osprimeiros, quando for preciso, os quais exigem muito pouco e cessam apenas satisfeito; renuncia ossegundos, porquanto acarretam fatalmente inquietação e agitação, perturbam a serenidade e a paz; masainda renuncia os terceiros, pelos mesmos motivos. Assim, a vida ideal do sábio, do filósofo, que aspira aliberdade e à paz como bens supremos, consistiria na renúncia a todos os desejos possíveis, aos prazerespositivos, físicos e espirituais; e, por conseguinte, em vigiar-se, no precaver-se contra as surpresasirracionais do sentimento, da emoção, da paixão. Não sofrer no corpo, satisfazendo suas necessidadesessenciais, para estar tranqüilo; não ser perturbado no espírito, renunciando a todos os desejospossíveis, visto ser o desejo inimigo do sossego: eis as condições fundamentais da felicidade, que é

precisamente liberdade e paz.Em realidade, Epicuro, se ensina a renúncia, não tem a coragem de ensinar a renúncia aos prazerespositivos espirituais, estéticos e intelectuais, a amizade genial, que representa o ideal supremo naconcepção grega da vida. E sustenta isto em contradição com a sua ascética radical, bem como contradiza sua metafísica materialista com a sua moral, que encontra precisamente a mais perfeita realizaçãonestes bens espirituais. O mundo e a vida são um espetáculo: melhor é ser espectadores e atores,melhor é conhecer do que agir. No entanto, o bem espiritual não consiste unicamente na contemplação(cfr. a virtude dianoética de Aristóteles), mas também na ação (cfr. a virtude ética de Aristóteles), eprecisamente em uma vida curta e refinada, esteticamente, a maneira grega, no isolamento do mundo,

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do vulgo, na unidade da amizade, na conversa arguta e delicada: numa palavra, vivendo ocultamente.É de fato, nos jardins de Epicuro, a vida se inspirava nos mais requintados costumes, preenchida com asmais nobres ocupações - como na Academia e no Liceu. Almejava, no entanto, dar uma unidade estéticae racional à vida, mais do que ao mundo. O epicurismo, portanto, considerado vulgarmente comopropulsor de devassidão e sensualidade, representa, inversamente, uma norma de vida ordinária e

espiritual, até um verdadeiro pessimismo e ascetismo, praticamente ateu. A serenidade do sábio não é perturbada pelo medo da morte, pois todo mal e todo bem se acham nasensação, e a morte é a ausência de sensibilidade, portanto, de sofrimento. Nunca nos encontraremoscom a morte, porque quando nós somos, ela não é, quando ela é nós não somos mais, Epicuro, porém,não defende o suicídio que poderia justificar com maior razão do que os estóicos.Dado este conceito da vida concebida como liberdade, paz e contemplação, é natural que Epicuro sejahostil ao matrimônio e à família , aliás geralmente desvalorizado no mundo grego. Epicuro é tambémhostil à atividade pública, à política considerando a família e a pátria como causas de agitações e inimigosda autarquia.Não obstante o seu materialismo teórico e o seu ateísmo prático, Epicuro admite a divindade  transcendente, diversamente do imanentismo estóico. A prova da existência da divindade estaria no fatode que temos na mente humana a sua idéia, que não pode ser senão cópia de realidade. Os fantasmasdos deuses proviriam dos próprios deuses - como os fantasmas de todas as outras coisas - desceriam aténós dos intermundos , especialmente durante o sono. Os deuses de Epicuro são muitos, constituídos deátomos etéreos, sutis e luzentes, dotados de corpos luminosos, tendo forma humana belíssima, imortais -diversamente dos deuses estóicos - beatos, contemplados - segundo ideal grego da vida - sempreacordados e sentados em jovial convívio, sorvendo ambrósia, conversando em grego! Mas - como asidéias transcendentes de Platão e ato puro de Aristóteles - não atuam sobre o mundo e a humanidade,para não serem contaminados, perturbados. Vivem, portanto, fora do mundo e dos mundos, nos espaçosentre mundo e mundo, na beata solidão dos intermundos, escapando destarte a fatal destruição dosmundos. É uma teologia refinada de ateniense e de artista, que vive no mundo de estátuas divinas,encarnando na serenidade do mármore o ideal grego contemplativo e estético da vida.Epicuro venera os deuses, não para receber auxílio, mas porque eles encarnam o ideal estético grego davida, ideal que tem uma expressão concreta precisamente nas belas divindades do panteão helênico.Então, se os deuses não proporcionam ao homem nenhuma vantagem prática, proporcionam-lhe contudo

o bem da elevação, que importa na contemplação do ideal. É preciso venerá-los para imitá-los. Destemodo, Epicuro, proclamado ateu, teria praticado - entre os limites impostos pelo pensamento grego epelo seu pensamento - o mal da religião, uma religião desinteressada, uma espécie de puro amor deDeus dos ascetas e dos místicos.

Ceticismo e Ecletismo

O ceticismo   apresenta-se mais coerente do que as escolas precedentes, especialmente do que oestoicismo, com os fins práticos de uma filosofia da renúncia, da indiferença, do sossego. É o ceticismo aúltima palavra da sabedoria antiga, desesperada por não ter podido resolver o problema da vidamediante a razão. O estoicismo procura realizar a apatia ainda mediante uma metafísica positiva, emboraimperfeita, incoerente. O epicurismo tende a realizar o mesmo fim com uma metafísica negativa,negando todo absoluto e transcendente. O ceticismo visa sempre um fim último ético-ascético, sem

qualquer metafísica, mesmo negativa. Através da mais absoluta indiferença, prática e teorética, procura-se realizar finalmente tão almejada paz. A felicidade não é mais uma coisa positiva, nem está no saber e não se pode alcançar mediante o saber,mas pode ser alcançada unicamente negando o saber. Chega-se, destarte, à destruição de todos osvalores. Substancialmente, a grande metafísica platônico-aristotélica é posta de lado, mas não é atacadapelo ceticismo. Persiste nos céticos uma fé nostálgica e realista e o conceito da objetividade da ciência: oser, o objeto, existem, mas não se podem conhecer por falta de meios. Diz Argesilau: "Deus unicamenteconhece a verdade, que é inacessível ao homem".

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O ceticismo clássico começa com Pirro de Elis (365-275 a.C., mais ou menos), cuja escola terminoupouco depois do seu discípulo Timon . Encarna-se na média academia com  Argesilau e Carnéades . E,enfim, surge de novo na forma pirroniana com Enesidemo e Sexto Empírico , em princípios da era vulgar.O ceticismo critica o conhecimento sensível, bem como o intelectual, e também a opinião. A primeiraescola cética serve-se, geralmente, do relativismo sofista; a segunda afirma-se de modo original graças a

Carnéades; a terceira, de tendência pirroniana, faz uso da dialética eleática, da tese e da antítese.O ecletismo apresenta-se como um sistema afim, embora imensamente inferior ao ceticismo. Também oecletismo, como o ceticismo, substitui ao critério da verdade o da verossimilhança, embora acriticamente.O nem-nem dos céticos é mudado em e-e pelos ecléticos; se nada é verdadeiro, tudo vale igualmente. Eisto basta aos fins ético-empíricos dos ecléticos, semelhantes e diversos ao mesmo tempo dos fins éticos-ascéticos dos céticos. É o ecletismo filosofia de espíritos pragmáticos ou decadentes, não filosóficos, queconcebem a filosofia popularmente, moralisticamente, ou não têm a força da crítica, nem a da afirmação,que implica sempre numa crítica, pois a filosofia é escolha, construção, sistema, organismo especulativo,e não justaposição mecânica de peças sem vida.O advento de uma semelhante filosofia foi favorecido pela permanência e pela coexistência, no períodohelenista e depois ainda, de várias escolas filosóficas, que surgiram em tempos diferentes, e por demaisdespersonalizadas, esvaziadas do seu conteúdo original, característico - como acontece nos períodos dedecadência especulativa - de sorte que se torna fácil a síntese eclética, feita de abstratas generalidadesou de particularidades secundárias. O pragmatismo eclético foi, enfim, favorecido pelo contato dopensamento grego com a romanidade dominante, inteiramente voltada para a prática e para a ação, cujagrande obra, portanto será não a filosofia, e sim o jus.O ecletismo apresenta-se como uma síntese prática ou, melhor ainda, como uma suma de elementosestóicos, acadêmicos e também peripatéticos. Contém muito menos elementos céticos e epicuristas, dadaa natureza crítica do ceticismo, e a coerência materialista do epicurismo. Temos precisamente, em ordemcronológica, um ecletismo estóico, depois acadêmico e, enfim, peripatético, segundo os elementos deuma ou de outra escola na síntese prática do próprio ecletismo.

O Período Ético(300 a.C. - 529 D.C.)

Características GeraisO terceiro período do pensamento grego abrange os três séculos que decorrem da morte de Aristótelesao início da era vulgar. Na história da civilização e da cultura, este período toma o nome de helenismo ,significando a expansão da cultura grega, helênica, no mundo civilizado; na história da filosofiadenomina-se período ético , porquanto o interesse filosófico é voltado para os problemas morais.Primeiramente (estoicismo e epicurismo), retorna-se à metafísica naturalista dos pré-socráticos, bemcomo à moral das escolas socráticas menores, cínica e cirenaica; depois (ceticismo e ecletismo), anula-setoda metafísica e, consequentemente, toda moral, voltando-se para a sofística, menosprezando o grandedesenvolvimento filosófico platônico-aristotélico.Os motivos desta filosofia pragmatista devem ser procurados na decadência espiritual e moral da época,faltando ao homem interesse e a força para a especulação pura, bem como na profunda tristeza dostempos e na profunda sensibilidade diante do mal. Tudo isto torna dolorosa a vida do homem, que

procura na filosofia um conforto, uma orientação moral, encontrando-a na renúncia ao mundo e à própriavida. Do contingente e do temporal, o homem volta-se para o transcendente e para o eterno; a filosofiatorna-se uma preparação para a morte, como julga Platão, e a sabedoria é desapego da ação, comoopina Aristóteles.O interesse teorético, o vigor especulativo, restringem-se ao particular, à erudição e às ciências especiaisque se desenvolvem, ao passo que a metafísica esmorece. Não filosofia teorética, mas filologia, história,literatura; ciências naturais, medicina, geografia, física, astronomia, matemática. E, com relação àsciências especiais, desenvolve-se naturalmente a técnica, como na idade moderna. A arte resolve-se novirtuosismo e na imitação. Em conclusão, a cultura helenista reduz-se à erudição e ao virtuosismo, ciência

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e técnica, filosofia moral e moral prática. Nesta civilização cosmopolita encontram-se dois valoresuniversais: o pensamento e a arte dos gregos, isto é, o helenismo; o jus e a política dos romanos. Oprimeiro valor dá o conteúdo, o segundo a forma - Graecia capta ferum victorem cepit .No terceiro período do pensamento grego não se encontram mais alguns poucos e grandes pensadores,como no precedente, mas vastas orientações e escolas; não sistemas críticos, mas afirmações

dogmáticas. Trataremos, antes de tudo, da escola estóica , em que ainda há uma metafísica, elementar,porém, e anacrônica, em contradição consigo mesma e com a moral; em segundo lugar, da escolaepicuréia , em que a metafísica tem apenas uma função negativa, a saber, libertar o homem daspreocupações transcendentais, do temor de além-túmulo; em terceiro lugar, da escola cética , em quenão há mais metafísica alguma, e, portanto, nem moral, como na escola eclética , em que a metafísica emoral são sincretistas, e, por conseqüência, anuladas; enfim exporemos o pensamento latino , o qual,pelo que diz respeito à filosofia, depende de cultura grega, e precisamente desse terceiro período -ecletismo e estoicismo. A grandeza verdadeira e original do pensamento latino é o  jus , o direito romano,valor universal como a filosofia grega.

O Estoicismo

Em seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período antigo ou ético, um períodomédio ou eclético, um período recente ou religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismoclássico.O fundador da antiga  escola estóica é Zenão de Citium (334-262 a.C., mais ou menos). Seu pai,mercador, leva para ele, de Atenas, uns tratados socráticos, que lhe despertam o entusiasmo para comos estudos filosóficos. Aos vinte e dois anos vai para Atenas; aí - perdidos seus bens - dedica-se àfilosofia, freqüentando por algum tempo várias escolas e mestres, entre os quais o cínico Crates.Finalmente, pelo ano 300, funda a sua escola, que se chamou estóica , do lugar onde ele costumavaensinar: pórtico em grego, stoá . Iniciou, juntamente com a atividade didática, a de escritor. Em seusescritos já se encontram a clássica divisão estóica da filosofia em lógica , física e ética , a primazia da éticae a união de filosofia e vida. A escola estóica média ou eclética, surge pela influência de outras escolas e para responder às objeçõesdessas escolas. Podem-se, pois, agrupar na escola estóica nova  ou religiosa os que entendiam

absolutamente a filosofia, o estoicismo, não como ciência, metafísica, mas como uma missão e umaprática religiosa, sacerdotal.

O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica

O estoicismo não apresenta o fenômeno de um grande filósofo, seguido por uma série de discípulos maisou menos originais, mas sim uma turma bastante uniforme de pensadores medíocres. No dizer dosestóicos, a tarefa essencial da filosofia é a solução do problema da vida; em outras palavras, a filosofia écultivada exclusivamente em vista da moral, para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem afelicidade. Entende-se, pois, como a filosofia estóica chega a ser substancialmente pragmatista e, porconseguinte, no fundo, acaba não sendo mais filosofia. E compreende-se o seu vasto êxito em todos ostempos, amiúde apresentando-se como a filosofia dos não filósofos que têm pretensões filosóficas,moralizadoras, rigoristas. Não obstante esse absorvente moralismo, os estóicos distinguem na filosofia

uma lógica , uma física , uma ética . Na lógica trata-se da gnosiologia; a física iguala a metafísica; a ética éo fim último e único de toda a filosofia, inclusive da política e da religião.Os estóicos dividem a lógica  em dialética e retórica, em correspondência com o discurso interior eexterior. A mente humana é concebida como uma tabula rasa . Como em Aristóteles, o conhecimentoparte dos dados imediatos do sentido; mas, diversamente de Aristóteles, o conhecimento é limitado aoâmbito dos sentidos, não obstante as repetidas e múltiplas declarações estóicas em louvor da razão. Oconhecimento intelectual nada mais pode ser que uma combinação, uma complicação quantitativa deelementos sensíveis. O conceito, pois, é destruído, seguindo-se o aniquilamento da ciência, da metafísicae, logo, também da moral.

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 A metafísica estóica reduz-se à física, porquanto é radicalmente materialista: se tudo é material, todaatividade é movimento, devem-se conceber materialisticamente também Deus, a alma, as propriedadesdas coisas. Esta matéria está em perpétuo vir-a-ser, conforme a concepção de Heráclito; e a lei desseprincípio material só pode ser, naturalmente, uma necessidade mecânica, à maneira de Demócrito.Devendo os estóicos, todavia, fornecer alguma base à sua ética do dever, e dar uma explicação à razão,

que se manifesta no mundo, em especial no homem, incoerentemente declaram racional o fogo -substância metafísica da realidade -, atribuem-lhe arbitrariamente os atributos divinos da sabedoria e daprovidência, imaginam-no como espírito ordenador, razão da vida, fazendo emergir todas as qualidadesda matéria, como o Sol faz brotar da semente a planta, segundo uma ordem teológica. Deus,providência, espírito, ordem são afirmados ao lado dos conceitos opostos de fado, destino, necessidade,mecanicismo. Como se vê, a metafísica dos estóicos é uma metafísica elementar, decadente,contraditória, e os estóicos não são filósofos, metafísicos, mas pragmatistas, moralistas, inteiramenteabsorvidos na prática, na ética.

 A Moral e a Política

No pensamento dos estóicos, o fim supremo, o único bem do homem, não é o prazer, a felicidade, mas avirtude ; não é concebida como necessária condição para alcançar a felicidade, e sim como sendo elaprópria um bem imediato. Com o desenvolvimento do estoicismo, todavia, a virtude acaba por se tornarmeio para a felicidade da tranqüilidade, da serenidade, que nasce da virtude negativa da apatia, daindiferença universal. A felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, a tranqüilidadeda alma, a independência interior, a autarquia.Como o bem absoluto e único é a virtude, assim o mal único e absoluto é o vício. E não tanto pelo danoque pode acarretar ao vicioso, quanto pela sua irracionalidade e desordem intrínseca, ainda que se acabepor repudiá-lo como perturbador da indiferença, da serenidade, da autarquia do sábio. Tudo aquilo quenão é virtude nem vício, não é nem bem nem mal, mas apenas indiferença; pode tornar-se bem se forunido com a virtude, mal se for ligado ao vício; há o vício quando à indiferença se ajunta a paixão, isto é,uma emoção, uma tendência irracional, como geralmente acontece. A  paixão , na filosofia estóica, é sempre e substancialmente má; pois é movimento irracional, morbo evício da alma - quer se trate de ódio, quer se trate de piedade. De tal forma, a única atitude do sábio

estóico deve ser o aniquilamento da paixão, até a apatia. O ideal ético estóico não é o domínio racionalda paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homemsem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra osentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados. A virtude estóica é, no fundo, a indiferença e a renúncia a todos os bens do mundo que não dependemde nós, e cujo curso é fatalmente determinado. Por conseguinte, indiferença e renúncia a tudo, salvo epensamento, a sabedoria, a virtude, que constituem os únicos bens verdadeiros: indiferença e renúncia àvida e à morte, à saúde e à doença, ao repouso e à fadiga, à riqueza e à pobreza, às honras e àobscuridade, numa palavra, ao prazer e ao sofrimento - pois o prazer é julgado insana vaidade da alma.Dada a indiferença estóica do suicídio como voluntário e moral afastamento do mundo; isto não seconcilia, porém, com a virtude da fortaleza que o estoicismo reconhece e louva, e nem se pode explicarracionalmente o suicídio, se a ordem do universo é racional, como precisamente afirmam os estóicos .O estóico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado, magoado pela possível e freqüente

carência dos bens terrenos, e para não perder, de tal maneira, a serenidade, a paz, o sossego, que são overdadeiro, supremo, único bem da alma. O sábio é beato, porque, inteiramente fechado na sua torre demarfim, nada lhe acontece que não seja por ele querido, e se conforma com o demais, sem saudades esem esperanças; pois sabe que tudo é efeito de um determinismo universal. A serenidade, a apatia dosestóicos seria, sem dúvida, fruto de uma fatigosa conquista, de uma dura virtude. Mas é uma virtudeabsolutamente negativa. Com efeito, quando o homem se torna indiferente a tudo, e a tudo renuncia,salvo o seu pensamento - cujo conteúdo é, em definitivo, esta mesma renúncia -, não lhe restaefetivamente mais nada. Não Deus, pois no sistema estóico, é uma pura palavra; não a alma, destinada a

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resolver-se na matéria. A sabedoria estóica é ação negadora da expansão das forças espirituais,virtude corrosiva, morte moral.Pelo que diz respeito à política, manifesta-se na filosofia estóica um racionalismo cosmopolita radical apropósito da sociedade estatal : o homem, político por natureza, torna-se cosmopolita por natureza. Diz oestóico Musônio: "O mundo é a pátria comum de todos os homens". Tal cosmopolitismo foi fecundo em

progresso, em civilização humana e moral. Abre-se caminho a um sentimento de caridade, de perdão, atépara os infelizes e os escravos, os estrangeiros e os inimigos, em virtude da doutrina que afirma aidentidade da natureza humana, sentimento este inteiramente desconhecido ao mundo antigo, clássico,onde campeia solitária uma justiça, que existe, porém, apenas para os concidadãos, livres e íntegros. Eaté começam a nascer instituições caritativas para com os pobres e os doentes. Destarte, essecosmopolitismo, a que os estóicos não podem fornecer uma base racional e metafísica, promove todaviaos conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei racional, conceitos que deveriam serdeduzidos da natureza racional do homem.

II - Cristão

O Neoplatonismo

Características Gerais do Neoplatonismo

O neoplatonismo pode ser considerado como o último e supremo esforço do pensamento clássico pararesolver o problema filosófico, que tinha encontrado um obstáculo intransponível no dualismo eracionalismo gregos - dualismo e racionalismo que nem sequer o gênio sintético e profundo de Aristótelesconseguiu superar. O neoplatonismo julga poder superar o dualismo, mediante o monismo estóico, naqual o aristotelismo fornece sobretudo os quadros lógicos; e julga poder superar, completar, integrar afilosofia mediante a religião, o racionalismo grego mediante o misticismo oriental, proporcionando oracionalismo grego especialmente a forma, e o misticismo oriental o conteúdo.Será acentuado o dualismo platônico entre sensível e inteligível, entre matéria e espírito, entre finito einfinito, entre o mundo e Deus: primeiro, identificando, por um lado, a matéria com o mal, e elevando,por outro lado, o vértice da realidade inteligível ao suprainteligível e, em segundo lugar, elaborando uma

moral ascética e mística, em relação com tal metafísica, a qual, todavia, se esforçará por unificar os pólosopostos da realidade, fazendo com que da substância do Absoluto seja gerado todo o universo até amatéria obscura. A filosofia antiga, em seu último período, não tem mais sua capital tradicional em Atenas, cidade gregapor excelência. O centro do pensamento então se estabelece em Alexandria, cidade cosmopolita na qualvivem egípcios, judeus, gregos e romanos. É o local privilegiado de todos os intercâmbios,particularmente os intelectuais. A cidade é povoada de pensadores que dispõem de uma admirávelbiblioteca.Isto nos ajuda a compreender o caráter sincrético, ou sintético, da filosofia neoplatônica. O racionalismolúcido dos gregos se une - numa síntese muito original - aos fervores do misticismo oriental. Apesar dasdenegações dos céticos e da propaganda materialista dos epicuristas, nunca os homens foram tãofamintos de Deus quanto nessa época. As religiões de salvação, o culto de Mitra, de Ísis, então sedesenvolvem. O cristianismo tomará impulso. Preocupações filosóficas e religiosas se unem

estreitamente. Os filósofos, além da verdade suprema, buscam a salvação. Os homens piedosos queremfundamentar suas crenças filosoficamente. Tal é a atmosfera que vamos encontrar envolvendo tantoFilon de Alexandria, quanto Plutarco ou Plotino.

Filon de Alexandria

Filon de Alexandria (nascido por volta de 25 a.C.) é bem representativo dos meios judeus helenizadosque só sabiam ler a Bíblia na versão grega denominada dos Setenta (segundo a tradição, a Bíbliahebraica teria sido traduzida para o grego por setenta sábios, em Alexandria). Seus correligionários

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tinham-no encarregado de uma missão junto ao imperador Calígula (para serem dispensados do cultoao imperador, incompatível com o monoteísmo judaico).Filon pretende fazer uma síntese entre os ensinamentos de Moisés, de Platão e de Zenão de Citium. Paraele, a Bíblia diz a verdade, mas sob forma alegórica. Platão traz a mesma mensagem sob forma filosófica.Como dirá mais tarde um discípulo de Filon, "Platão é um Moisés que fala grego". A idéia de Filon de

harmonizar a revelação e a razão, a Bíblia e Platão, estaria fadada a uma grande existência. Num sentido,o grande problema da escolástica medieval, o da concordância entre razão e fé, é uma herança legadapor Filon (é nesse sentido que Wolfson dirá que a filosofia medieval é inteiramente filoniana ).Para Filon, o próprio Deus é inefável, inacessível às nossas abordagens. Todavia, podemos nos aproximard'Ele por intermédio da renúncia ao mundo e do recolhimento da alma. Já Platão não houvera dito que épreciso morrer para o sensível, a fim de nascer para o inteligível? Se Deus é inacessível, o espíritohumano, ao menos, pode participar do Inteligível - ao qual Filon denomina Logos , Verbo eterno de Deus,seu filho primogênito (protógonos). A concepção que São João faz do Verbo divino muito deve àsfórmulas e às idéias de Filon de Alexandria.

Plutarco de Queronéia

O autor da Vida dos Homens Ilustres também é um pensador religioso. Colocou em particular o problemado mal e da Providência em seu ensaio sobre as Dilações da Justiça Divina , que levou Joseph de Maistre,que o admirou, a traduzi-lo.Para Plutarco, não podemos, à maneira dos estóicos, identificar Deus com o universo. Isto porque, aoprincípio transcendente do Bem se opõe um princípio do mal, que é a lei do nosso mundo. Essa filosofiadualista provém de Platão e a encontraremos em todos os sistemas denominados "gnósticos" . A idéiaessencial (já presente em Platão e Plutarco) é a de que somos formados de uma alma, divina poressência, envolvida por uma potência malfazeja num corpo radicalmente vicioso (a encarnação é umaencarceração) e de que a salvação provém do verdadeiro conhecimento (gnosis em grego), isto é, doconhecimento dos dois princípios rivais, das causas que fizeram triunfar o princípio do mal, dos meiosque permitiriam a vitória do princípio do bem.Plutarco encontra simbolização de sua doutrina nos mitos da salvação comuns em sua época. Ísissimboliza a matéria e Osíris o Logos. A união dos dois explica a criação no que ela tem de bom. Mas

Tifon, o princípio do mal, introduz a desordem e a perturbação: dispersa os membros divinos de Osírisque Ísis tenta reunir.Plutarco aceita tornar-se sacerdote de Apolo Pítico em Delfos; trabalha da melhor maneira possível para orenascimento do culto délfico. Leva a sério as profecias de Pítia, cuja exegese ele propõe: á Apolo que,diretamente, ilumina o espírito de Pítia, mas esta exprime a Revelação segundo sua mentalidade e suacultura, com os seus hábitos de linguagem... Dezoito séculos antes do Pe. Lagrange, temos um primeiroesboço da teoria dos gêneros literários e das mentalidades! É com relação à inspiração sagrada da Pítiaque Plutarco formulará sua célebre expressão: "O corpo é o instrumento da alma e a alma o instrumento de Deus, psyche organon theou!"  

Plotino

Plotino nasceu em Licópolis, no Alto Egito, e, aos 28 anos, dirigiu-se para Alexandria onde seguiu as

lições do platônico Amônio Sacas, que o "converteu" à filosofia (pois, na escola neoplatônica, assim comoentre os estóicos, a filosofia não era simples disciplina teórica, mas escola de vida espiritual, destinada atransformar inteiramente a alma, e purificá-la, a voltá-la para as realidades sublimes). Em 243, a fim deconhecer a filosofia dos persas, Plotino engajou-se no exército do imperador Giordano; sobrevivendo aosseus desastres, estabeleceu-se definitivamente em Roma, onde abriu uma escola. Aí, uniu às práticasascéticas ("Tinha vergonha de estar num corpo", dirá seu discípulo Porfírio a seu respeito) um ensinomuito brilhante. Porfírio anotou e publicou seus cursos. O conjunto compreende cinqüenta e quatrotratados agrupados em seis Enéadas (isto é, grupos de nove).

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 A doutrina fundamental de Plotino é a das três hipóstases , isto é, das três substâncias, das trêsrealidades eternas - embora elas derivem, em termos plotinianos, embora elas  procedam  uma dasoutras.

 A. - A realidade suprema, o Deus de Plotino, é o Uno , o qual não é o conhecimento (uma vez que estesupõe a dualidade do sujeito cognoscente e do objeto cognoscível - nem o Ser, mas antes a fonte

inefável de todo ser e de todo pensamento. Ele é todas as coisas e nenhuma delas. É aquilo de quepromana toda existência, toda vida e todo valor, mas ele próprio é de tal ordem que nada podemosafirmar a seu respeito, nem a vida, nem a essência; é superior a tudo e fonte absoluta de tudo.B. - Por que existem outras hipóstases ? Por que esse Deus plotiniano, por que o Uno não é único, porque se degrada na multiplicidade? É certo que não está submetido a qualquer necessidade, não podedesejar coisa alguma - pois, desejar é sentir falta de algo, e ele é plenitude. Mas o Uno é riqueza infinita,generosidade sublime. A perfeição suprema se difunde em si mesma, tende a engendrar outros seres quese lhe assemelham, ainda que menores. Assim como de um fogo ardente as chamas se irradiam, assimocorre com os seres emanados do Uno. O primogênito de Deus é o Logos, a Inteligência. EssaInteligência é o princípio de toda justiça, de toda virtude e, o que é capital para Plotino, de toda beleza. AInteligência é que faz a realidade ter uma forma, na medida em que ela é coerente e harmoniosa, namedida em que ela é Beleza (nesta segunda hipóstase  encontramos algo das Idéias de Platão e dopensamento que se pensa de Aristóteles).C. - Da Inteligência procede a Alma, terceira hipóstase (que evoca o tema platônico da alma do mundo,assim como o deus cósmico dos estóicos). A Alma é a mediação entre a Inteligência, da qual ela procede,e o mundo sensível, cuja ordem é constituída por ela. As almas individuais emanam dessa alma universal. A alam humana também é uma parcela do próprio Deus presente em nós. Abaixo das três hipóstases, o mundo material representa o último estágio dessa "difusão" divina, o pontoextremo onde morre a luz; é aqui que encontramos a opacidade da carne, o peso da matéria, as trevasdo mal. Todavia, enquanto o Uno dispersou-se, obscureceu-se, abismou-se no múltiplo, este últimoaspira à reconquista da unidade, à luz e ao repouso na fonte sublime. Ao movimento de procedênciacorresponde o impulso de conversão pelo qual a alma, caída no corpo, obscurecida no mal, se assume etenta se elevar até o Princípio original.Reservemo-nos, todavia, de ver no plotinismo um dualismo gnóstico. O próprio Plotino escreveu umatratado contra as seitas gnósticas. Para ele, não existe um mundo do mal, rival do mundo do bem. O

mal, para Plotino, nada tem de uma substância positiva: "O mal não é senão o apequenamento dasabedoria e uma diminuição progressiva e contínua do bem". A alma que dizem prisioneira do mal éapenas uma alma que se ignora, é, como diz Plotino, uma luz mergulhada na bruma. O mal não é umasubstância original, é só o procurado pelo reflexo do bem que fracamente ainda brilha nele. Nessesentido, livrar-se do mal, para Plotino, não é, como para os gnósticos, destruir um universo para darnascimento a outro, mas antes encontrar a si mesmo em sua verdade. Não esqueçamos que é a leiturade Plotino que, um dia, arrancará o jovem Agostinho de suas crenças dualistas abeberadas nomaniqueísmo.Essa filosofia, no entanto, não é absolutamente nova. Já no Timeu de Platão está colocada a questão deuma gênese do mundo; por outro lado, a conversão plotiniana lembra a dialética ascendente de Platão.Em ambos os métodos de purificação, a idéia do Belo desempenha importante papel. Todavia, a obra dePlotino possui uma tônica de misticismo que é nova; sente-se aí, como até então não se sentira ainda, odesejo e o esforço de uma alma que quer se encontrar e ao mesmo tempo se perder no Uno universal e

inefável. Esse arrebatamento da alma, esse êxtase foi que impressionou Bergson ao ler as Enéadas, oque explica o fato de o autor das Duas Fontes Ter colocado Plotino acima de todos os filósofos.

 A Gnosiologia

 A gnosiologia de Plotino é semelhante à de Platão, pela desvalorização da sensibilidade como aparência,opinião, com respeito ao pensamento. A sensação representa o primeiro grau de conhecimento humano,manifestando-se nela obscuros vestígios da verdade. Segue-se, superior à sensibilidade, a razão :conhecimento mediato, discursivo, dialético, demonstrativo, que atinge as idéias, as essências das coisas.

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 A razão é a atividade do espírito, que conhece enquanto vem iluminado pelo pensamentopropriamente dito, o qual é superior ao espírito. À razão segue-se o  pensamento imediato, que é autocontemplação do espírito pensante. Nesse grau deconhecimento o espírito compreende, ao mesmo tempo, a si e as coisas. É conhecimento intuitivo,imediato, não discursivo e sucessivo. Também o pensamento - o intelecto - representa uma atividade do

espírito humano participada do pensamento absoluto, isto é, da Inteligência - noûs . O pensamentoabsoluto, a inteligência, o noûs , em si mesmo, está sempre em ato de conhecer, e nunca erra; mas, noespírito humano, o pensamento vem a ser intermitente e sujeito ao erro, precisamente pelo fato de ser,nele, o conhecimento participado. O conhecimento humano, finalmente, se completa e atinge a suaperfeição no êxtase , que é identificação do espírito humano com o espírito absoluto, o Uno , Deus , emque o espírito humano se torna passivo, inconsciente.

 A Metafísica

Como os graus de conhecimento são quatro - sensibilidade, razão, intelecto, êxtase - assim quatro são osgraus do ser : matéria, alma, noûs , Uno. O Uno , Deus - segundo Plotino - é a raiz de todo ser e de todoconhecer, tudo depende dele. No entanto, transcende toda essência e todo o conhecimento, de sorte queé inteiramente indeterminado e inefável, e em torno dele pode-se dizer apenas o que não é - teologianegativa. O universo deriva de Deus, não por criação consciente e livre, mas por emanação inconscientee necessária, que procede de Deus degradando-se até à matéria. Deus certamente transcende o mundo,mas o mundo é da sua mesma natureza. A primeira emanação é representada pelo noûs , inteligênciasubsistente, intuitiva e imutável, que se conhece a si mesma e em si as coisas. A segunda emanação doUno é a alma ; ela procede do pensamento, como este procede do Uno. A alma contempla as idéias - queestão no noûs - e enforma a matéria, segundo o modelo delas. A alma universal, a alma do mundo, porsua vez se multiplica e especifica nas várias almas individuais, que estão em escala decrescente do céuaté os homens. Também Plotino sustenta que as almas humanas caíram de uma vida pré-mundana parao cárcere corpóreo; também ensina a metempsicose e a conversão. Com a alma termina o mundointeligível, divino, e começa o mundo sensível, material. A matéria  plotiniana, pois, não é apenaspotencialidade, indeterminação, mas também mal, irracionalidade.

 A MoralDepois da descida - a emanação das coisas do Uno - há a subida, a conversão do mundo para Deus.Efetua-se ela através do homem, microcosmo, compêndio do universo. Nisto consiste a moral plotiniana,radicalmente ascética: libertação, purificação da matéria, do corpo, do sentido. Os graus dessa libertaçãosão representados, em linha ascendente, pelas virtudes éticas, dianoéticas - arte e filosofia  - ,culminando no êxtase.

 A Religião

O neoplatonismo afirma certa transcendência de Deus, em que este é imaginado como o suprainteligível.Por isso, é inefável e pode ser atingido na sua plenitude unicamente mediante o êxtase, que é umafulguração divina, superior à filosofia. Com esta doutrina do êxtase, em que é afirmada uma relação

específica com a Divindade, parece abrir-se o caminho para uma nova filosofia religiosa , para avalorização da religião positiva. E outro caminho parece abrir-se na doutrina dos intermediários , queestão entre Deus e o homem, e por Plotino distintos em deuses invisíveis e visíveis, a que são assimiladasas divindades das religiões tradicionais.

O Cristianismo 

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 As Características Filosóficas do Cristianismo

Não há propriamente uma história da filosofia cristã, assim como há uma história da filosofia grega ou dafilosofia moderna, pois no pensamento cristão, o máximo valor, o interesse central, não é a filosofia, esim a religião. Entretanto, se o cristianismo não se apresenta, de fato, como uma filosofia, uma doutrina,

mas como uma religião, uma sabedoria, pressupõe uma específica concepção do mundo e da vida,pressupõe uma precisa solução do problema filosófico. É o teísmo e o cristianismo. O cristianismo forneceainda uma   imprescindível   integração à filosofia, no tocante à solução do problema do mal, mediante osdogmas do pecado original e da redenção pela cruz. E, enfim, além de uma justificação histórica edoutrinal da revelação judaico-cristã em geral, o cristianismo implica uma determinação, elucidação,sistematização racional do próprio conteúdo sobrenatural da Revelação, mediante uma disciplinaespecífica, que será a teologia dogmática.Pelo que diz respeito ao teísmo , salientamos que o cristianismo o deve, historicamente, a Israel. Masentre os hebreus o teísmo não tem uma justificação, uma demonstração racional, como, por exemplo,em Aristóteles, de sorte que, em definitivo, o pensamento cristão tomará na grande tradição especulativagrega esta justificação e a filosofia em geral. Isto se realizará graças especialmente à Escolástica e,sobretudo, a Tomás de Aquino. Pelo que diz respeito à solução do problema do mal, solução queconstitui a integração filosófica proporcionada pelo cristianismo ao pensamento antigo   que sentiuprofundamente, dramaticamente, este problema sem o poder solucionar   frisamos que essa representa agrande originalidade teórica e prática, filosófica e moral, do cristianismo. Soluciona este o problema domal precisamente mediante os dogmas fundamentais do pecado original e da redenção da cruz.Finalmente, a justificação da Revelação em geral, e a determinação, dilucidação, sistematização racionaldo conteúdo da mesma, têm uma importância indireta com respeito à filosofia, porquanto implicamsempre numa intervenção da razão. Foi esta, especialmente, a obra da Patrística e, sobretudo, de Agostinho.Esta parte, dedicada à história do pensamento cristão, será, portanto, dividida do seguinte modo: oCristianismo, isto é, o pensamento do Novo Testamento, enquanto soluciona o problema filosófico domal; a Patrística, a saber, o pensamento cristão desde o II ao VIII século, a que é devida particularmentea construção da teologia, da dogmática católica; a Escolástica, a saber, o pensamento cristão desde oséculo IX até o século XV, criadora da filosofia cristã verdadeira e própria.

Características Gerais do Pensamento Cristão

Foi conquistada a cidade que conquistou o universo. Assim definiu São Jerônimo o momento quemarcaria a virada de uma época. Era a invasão de Roma pelos germanos e a queda do Império Romano. A avalancha dos bárbaros arrasou também grande parte das conquistas culturais do mundo antigo. A Idade Média inicia-se com a desorganização da vida política, econômica e social do Ocidente, agoratransformado num mosaico de reinos bárbaros. Depois vieram as guerras, a fome e as grandesepidemias. O cristianismo propaga-se por diversos povos. A diminuição da atividade cultural transforma ohomem comum num ser dominado por crenças e superstições.O período medieval não foi, porém, a "Idade das Trevas", como se acreditava. A filosofia clássicasobrevive, confinada nos mosteiros religiosos. O aristotelismo dissemina-se pelo Oriente bizantino,fazendo florescer os estudos filosóficos e as realizações científicas. No Ocidente, fundam-se as primeiras

universidades, ocorre a fusão de elementos culturais greco-romanos, cristãos e germânicos, e as obrasde Aristóteles são traduzidas para o latim.Sob a influência da Igreja, as especulações se concentram em questões filosófico-teológicas, tentandoconciliar a fé e a razão. E é nesse esforço que Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino trazem à luzreflexões fundamentais para a história do pensamento cristão.

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 A Filosofia Medieval e o Cristianismo

 Ao longo do século V d.C., o Império Romano do Ocidente sofreu ataques constantes dos povosbárbaros. Do confronto desses povos invasores com a civilização romana decadente desenvolveu-se umanova estruturação européia de vida social, política e econômica, que corresponde ao período medieval.

Em meio ao esfacelamento do Império Romano, decorrente, em grande parte, das invasões germânicas,a Igreja católica conseguiu manter-se como instituição social mais organizada. Ela consolidou suaestrutura religiosa e difundiu o cristianismo entre os povos bárbaros, preservando muitos elementos dacultura pagã greco-romana. Apoiada em sua crescente influência religiosa, a Igreja passou a exercer importante papel político nasociedade medieval. Desempenhou, por exemplo, a função de órgão supranacional, conciliador das elitesdominantes, contornando os problemas da fragmentação política e das rivalidades internas da nobrezafeudal. Conquistou, também, vasta riqueza material: tornou-se dona de aproximadamente um terço dasáreas cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a principal base de riqueza. Assim,pôde estender seu manto de poder "universalista" sobre diferentes regiões européias.

Conflitos e Conciliação entre a Fé e Saber

No plano cultural, a Igreja exerceu amplo domínio, trançando um quadro intelectual em que a fé cristã  era o pressuposto fundamental de toda sabedoria humana.Em que consistia essa fé?Consistia na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e devidamente interpretadas segundo a autoridadeda Igreja."A Bíblia era tão preciosa que recebia as mais ricas encadernações" .De acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada das verdades reveladas   especialmente aquelas verdades essenciais ao homem e que dizem respeito à sua salvação. Nestesentido, afirmava Santo Ambrósio (340-397, aproximadamente): Toda verdade, dita por quem quer que seja, é do Espírito Santo . Assim, toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum, contrariar as verdades

estabelecidas pela fé católica. Segundo essa orientação, os filósofos não precisavam se dedicar à buscada verdade, pois ela já havia sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonstrarracionalmente as verdades da fé.Não foram poucos, porém, aqueles que dispensaram até mesmo essa comprovação racional da fé. Eramos religiosos que desprezavam a filosofia grega, sobretudo porque viam nessa forma pagã depensamento uma porta aberta para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia (doutrina contrária aoestabelecido pela Igreja, em termos de fé).Por outro lado, surgiram pensadores cristãos que defendiam o conhecimento da filosofia grega, namedida em que sentiam a possibilidade de utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo.Conciliado com a fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os descrentes edemolir os hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer osdescrentes, tento quanto possível, pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistériosdivinos, somente acessíveis à fé.

Entre os grandes nomes da filosofia católica medieval destacam-se Agostinho e Tomás de Aquino. Elesforam os responsáveis pelo resgate cristão das filosofias de Platão e de Aristóteles, respectivamente."Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganadoras especulações da "filosofia", segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo." (São Paulo). 

Patrística

"A fé em busca de argumentos racionais a partir de uma matriz platônica" 

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Desde que surgiu o cristianismo, tornou-se necessário explicar seus ensinamentos às autoridadesromanas e ao povo em geral. Mesmo com o estabelecimento e a consolidação da doutrina cristã, a Igrejacatólica sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela força. Eles tinham de serapresentados de maneira convincente, mediante um trabalho de conquista espiritual.Foi assim que os primeiros Padres da Igreja se empenharam na elaboração de inúmeros textos sobre a fé

e a revelação cristãs. O conjunto desses textos ficou conhecido como  patrística por terem sido escritosprincipalmente pelos grandes Padres da Igreja.Uma das principais correntes da filosofia patrística, inspirada na filosofia greco-romana, tentou munir a féde argumentos racionais. Esse projeto de conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão tevecomo principal expoente o Padre Agostinho."Compreender para crer, crer para compreender". (Santo Agostinho)  

Escolástica

"Os caminhos de inspiração aristotélica levam até Deus".No século VIII, Carlos Magno resolveu organizar o ensino por todo o seu império e fundar escolas ligadasàs instituições católicas. A cultura greco-romana, guardada nos mosteiros até então, voltou a serdivulgada, passando a Ter uma influência mais marcante nas reflexões da época. Era a renascençacarolíngia.Tendo a educação romana como modelo, começaram a ser ensinadas as seguintes matérias: gramática,retórica e dialética (o trivium ) e geometria, aritmética, astronomia e música (o quadrivium ). Todas elasestavam, no entanto, submetidas à teologia. A fundação dessas escolas e das primeiras universidades do século XI fez surgir uma produção filosófico-teológica denominada escolástica (de escola). A partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no pensamento escolástico,marcando-o definitivamente. Isso se deveu à descoberta de muitas obras de Aristóteles, descobertas atéentão, e à tradução para o latim de algumas delas, diretamente do grego. A busca da harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se, no entanto, como problema básico deespeculação filosófica. Nesse sentido, o período escolástico pode ser dividido em três fases:Primeira fase    (do século IX ao fim do século XII): caracterizada pela confiança na perfeita harmonia

entre fé e razão.Segunda fase    (do século XIII ao princípio do século XIV): caracterizada pela elaboração de grandessistemas filosóficos, merecendo destaques nas obras de Tomás de Aquino. Nesta fase, considera-se quea harmonização entre fé e razão pôde ser parcialmente obtida.Terceira fase    (do século XIV até o século XVI): decadência da escolástica, caracterizada pela afirmaçãodas diferenças fundamentais entre fé e razão.

 A Questão dos Universais: O que há entre as palavras e as coisas

O método escolástico de investigação, segundo o historiador francês Jacques Le Goff, privilegiava oestudo da linguagem  (o trivium ) para depois passar para o exame das coisas  (o quadrivium ). Dessemodo surgiu a seguinte pergunta: qual a relação entre as palavras e as coisas?  Rosa, por exemplo, é o nome de uma flor. Quando a flor morre, a palavra rosa continua existindo. Nesse

caso, a palavra fala de uma coisa inexistente, de uma idéia geral. Mas como isso acontece? O grandeinspirador da questão foi o inspirador neoplatônico Porfírio, em sua obra Isagoge:  "Não tentarei enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na pura inteligência, nem, no caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos" . Esse problema filosófico gerou muitas disputas. Era a grande discussão sobre a existência ou não dasidéias gerais , isto é, os chamados universais de Aristóteles.

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Os Precedentes do Cristianismo

Os fatores históricos do cristianismo são: em primeiro lugar, a religião israelita; em segundo lugar, opensamento grego e, enfim, o direito romano. De Israel o cristianismo toma o teísmo. É o teísmo umprivilégio único deste povo pequeno, obscuro e desprezado; os outros povos e civilizações, ainda que

poderosos e ilustres, são, religiosamente, politeístas, ou, no máximo dualistas ou panteístas. De Israeltoma o cristianismo, também, o conceito de uma revelação e assistência especial de Deus. Daí a idéia deuma história, que é desenvolvimento providencial da humanidade, idéia peculiar ao cristianismo edesconhecida pelo mundo antigo, especialmente pelo mundo grego.Na revelação cristã é filosoficamente fundamental, básico, o conceito de uma queda original do homemno começo da sua história, e também o conceito de um Messias, um reparador, um redentor. Conceitosindispensáveis para explicar o problema do mal, racionalmente premente e racionalmente insolúvel. Noentanto, o mundano e carnal Israel resistiu tenaz e longamente a esta idéia de uma radical misériahumana -, e, por conseqüência, à idéia de uma moral ascética. Idolatrou a vida longa e próspera, asriquezas da natureza e a prosperidade dos negócios, as satisfações conjugais e domésticas, o estadoautônomo e privilegiado, o poder e a glória - até esquecer-se de Deus. Perseguiu os Profetas, que ochamavam ao temor de Deus e à penitência, e recalcitrou contra os flagelos com que Jeová o castigava,até que Israel, ainda que contra a sua vontade, foi submetido à sujeição e à renúncia, tendo adquirido,através de dolorosas experiências, o triste sentido da vaidade do mundo. A solução integral do problemado mal viria unicamente do mistério da redenção pela cruz - necessário complemento do mistério dopecado original.Quanto ao  pensamento grego , deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador dasverdades reveladas, e como justificador dos pressupostos metafísicos do cristianismo; não, porém, comoelemento constitutivo, essencial e característico, porquanto este é hebraico e cristão. E quanto ao direitoromano, deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador do novo organismo social, aIgreja, e não como constitutivo de seus elementos essenciais e característicos, que são próprios eoriginais do cristianismo.

Jesus Cristo

Entretanto, o verdadeiro criador do cristianismo, em sua novidade e originalidade, é Jesus Cristo . Podeele dar plena solução ao problema do mal - solução que representa o maior valor filosófico nocristianismo - unicamente se é Homem-Deus, o Verbo de Deus encarnado e redentor pela cruz.Diferentemente, a solução - ascética - cristã do problema do mal seria vã, como a estóica e todas asdemais soluções filosóficas de tal problema, que ficaria, portanto, sem solução alguma. E, em geral, apessoa de Cristo tornar-se-ia inteiramente ininteligível, se ele não fosse Homem-Deus.Não é este o momento de fazer um exame crítico, filosófico e histórico, para determinar a personalidadede Cristo. Basta lembrar que, uma vez admitido e firmado o teísmo, logo se segue a possibilidade de umarevelação divina e da divindade de Cristo, para tanto não precisando, propriamente, senão de provashistóricas. Os argumentos em contrário não são positivos, históricos, mas apriorísticos, filosóficos; querdizer, dependem de uma filosofia racionalista e atéia em geral, humanista e imanentista em especial.Eis o esquema lógico da demonstração da divindade de Jesus Cristo. Devem ser examinados à luz dacrítica histórica, antes de tudo, os documentos fundamentais, relativos à revelação cristã - Novo 

Testamento . E achamo-nos diante de uma personalidade extraordinária - Jesus Cristo - , que ensina umagrande doutrina, leva uma vida santa, afirma-se a si mesma como divina e comprova explicitamente comprodígios e sinais - os milagres e as profecias - esta sua divindade. E como Jesus Cristo se torna garantiade toda uma tradição que o precedeu - o Velho Testamento - , também se responsabiliza por umainstituição que a ele se segue - a Igreja católica. A esta, portanto, caberá interpretar infalivelmente arevelação judaico-cristã e, evidentemente, também a parte que diz respeito à queda original e à relativareparação, a qual, por certo, pode dar origem, humanamente, a várias interpretações.

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O Novo Testamento

Como é notório, Cristo não deixou nada escrito, de sorte que o nosso conhecimento mais imediato emtorno da sua personalidade se realiza através dos escritos dos seus discípulos. Temos de Cristotestemunhas também pagãs, além das testemunhas cristãs; estas são extracanônicas e canônicas. Estas

últimas, porém, são fundamentais e mais do que suficientes para o nosso fim. Cronologicamente, sãoelas as seguintes: Paulo de Tarso , os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de São João .Paulo de Tarso, na Cilícia, fôra um inteligente e zeloso israelita. Não conheceu Jesus Cristo durante suavida terrena, mas, convertido ao cristianismo e mudado o nome de Saulo para o de Paulo, tornou-se omaior apóstolo do cristianismo entre os gentios ou pagãos, revelando-lhes em Cristo crucificado o Deuspadecente, vítima e Salvador, que eles procuravam em suas religiões misteriosóficas - e não acharam. Avida de Paulo é caracterizada por muitas e longas viagens, realizadas para finalidades apostólicas. Para omesmo fim escreveu Paulo as famosas cartas às comunidades cristãs dos vários centros da Antigüidade,relacionados com ele. As grandes viagens apostólicas de Paulo são três e têm como ponto de irradiação Antioquia, tocando os centros mais importantes do mundo antigo: Jerusalém, Atenas e Roma. Nestacidade encerra a sua vida mortal com o martírio. Destarte ele se pôs em contato com todas as formas decivilização do Oriente helenista e do mundo greco-romano. Quanto às Epístolas  - escritas em grego -devemos dizer que não são cartas logicamente orgânicas e ordenadas, nem literariamente aprimoradas,tanto assim que podiam desagradar a um helenista refinado como Porfírio; são porém, densas deconteúdo, de forma incisiva e eficaz. O problema que, sobretudo, preocupa Paulo é o do mal, dosofrimento, do pecado, de que acha a solução em Cristo redentor, crucificado e ressuscitado. É este oaspecto do cristianismo que mais o impressionou, de sorte que é ele, por excelência, o teólogo daRedenção. No Velho Testamento Deus tinha dado aos homens a lei que, devido à miséria do homemdecaído, não tirava o pecado, embora fosse uma lei moral; pelo contrário, até o agradava, tornando ohomem consciente de sua falta. No Novo Testamento, Deus, mediante a graça de Cristo, tira o pecado domundo, embora nos deixando na luta e no sofrimento, que Paulo sentia tão profundamente.Os Evangelhos  de Mateus, Marcos e Lucas - chamados evangelhos sinópticos  - formam um grupo àparte, por certa característica histórica e didática, que os torna comuns e os distingue do quartoevangelho, o de João, de caráter mais especulativo e teológico. O primeiro em ordem de tempo é oEvangelho de Mateus , o publicano, tornando em seguida um dos doze apóstolos. Escrito,

originariamente, em aramaico e destinado ao ambiente palestino, foi em seguida traduzido para o grego  e, nesta língua, transmitido. É o mais amplos dos Evangelhos e relata amplamente os ensinamentos deCristo. O segundo é o Evangelho de Marcos , que não foi discípulo direto de Cristo, mas nos transmitiu oensinamento de Pedro. Foi escrito em grego e destinado a um público não palestino. O terceiro dosEvangelhos sinópticos é, enfim, o de Lucas , companheiro de Paulo, que o chamava o caro médico .Também ele não foi discípulo imediato de Cristo, e o seu evangelho foi também escrito em grego.O quarto evangelho, inversamente - como o primeiro - foi escrito por um discípulo direto de Cristo, umdos doze apóstolos: João , o predileto do Mestre, testemunha da sua vida e da sua morte. O quartoEvangelho, juntamente com este valor histórico, tem um especial valor especulativo, teológico. ComoPaulo pode ser considerado o teólogo da Redenção, João pode ser considerado o teólogo da Encarnação;Cristo é o Verbo de Deus encarnado para a redenção do gênero humano. Também o Evangelho de Joãofoi escrito em grego; e, cronologicamente, é o último dos Evangelhos e dos escritos do Novo Testamento,os quais - no seu conjunto - podem se considerar compostos na Segunda metade do primeiro século,

tomada com certa amplidão.

 A Solução do Problema do Mal

Não há dúvida de que o problema do mal foi o escolho contra o qual debalde se bateu a grande filosofiagrega, como qualquer outra filosofia, visto ser o mal um problema racionalmente insolúvel. Que coisa é,pois, precisamente este mal, que tem o poder de tornar teoricamente inexplicável a realidade, epraticamente dolorosa a vida? Não é, por certo, o mal assim chamado metafísico , a saber, a necessárialimitação de todo ser criado: porquanto esta limitação nada tira à perfeição dos vários seres a eles devida

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por natureza, mas apenas aquela plenitude do ser, que pertence unicamente a Deus, rigorosamente,isto é, teisticamente concebido como transcendente e criador, pois esse gênero de mal, no teísmo, éplenamente explicável.Não resta, então, senão o mal, o chamado físico e moral , porquanto é limitação da natureza, verdadeiraimperfeição de um determinado ser. O mal, físico e moral, é um problema, precisamente se se considerar

a natureza específica do homem, a qual é a natureza do animal racional, o que não significa certamentelhe pertença a racionalidade pura, devida ao puro espírito; mas certamente exige a subordinação dosensível ao inteligível, do material ao espiritual. Isto significa exigir que os sentidos sejam instrumentosdo intelecto e o instinto seja instrumento da vontade, naquele característico processo que é oconhecimento e a operação humana; exige que o corpo humano e a natureza em geral sejam submetidosàs imposições do espírito, como deveria ser em uma hierarquia racional dos valores.Ora, se se considerar, sem preconceitos, o indivíduo e a humanidade, a psicologia e a história, as coisasserão bem diferentes. Com efeito, demais vezes o sentido - do qual o conhecimento deve no entantopartir - sobrepuja o intelecto. E bem poucos homens e só com muitas dificuldades e não sem graveserros, chegam ao conhecimento daquelas verdades racionais - Deus, a alma, etc. - que são, entretanto,indispensáveis para uma solução humana do problema da vida. E, mais freqüentemente ainda, o instintoassenhoreia-se da vontade, e a maioria dos homens viveu e vive cegamente, contra as exigências daprópria natureza racional, mesmo quando a verdade é conhecida pelo intelecto.Este é o mal moral, espiritual, que domina o mundo humano. Pelo que diz respeito ao mal físico, a coisaé ainda mais patente: basta lembrar o sofrimento e a morte. Com isto, naturalmente, não se quer dizerque a impassibilidade e a imortalidade sejam uma exigência da natureza humana, como tal, masunicamente se quer frisar que a dor e a morte - bem como a ignorância e a concupiscência - em sua atual intensidade , se evidenciam como um estado inatural com respeito ao nosso ser espiritual e racional.Temos, pois, uma natureza, a natureza humana, que nos parece desordenada. A filosofia conhece aessência metafísica dessa natureza humana, deve reconhecer-lhe também a desordem, mas ignora-lhe acausa. A filosofia é certamente construtiva, metafísica; mas, chegada ao seu vértice, deve tornar-secrítica, isto é, deve reconhecer os próprios limites, porquanto não consegue resolver plenamente o seuproblema, o problema da vida, precisamente por causa do mal. Não pode, todavia, renunciarabsolutamente à solução deste problema, já que, desta maneira, comprometeria também a sua maiorconquista: Deus. É antiga e famosa a objeção: de que modo concordar a absoluta sabedoria e poder de

Deus com todo o mal que há no mundo, por ele criado? Deve-se entender, naturalmente, o mal físico emoral, e este propriamente em relação ao homem.

O Pecado Original

Se a filosofia é impotente para resolver plenamente o seu próprio problema, há, porventura, outro meio aque pode o espírito humano razoavelmente recorrer para a solução de um problema tão premente? Apresenta-se a religião, e especialmente uma religião entre as religiões, a qual nos fala de uma queda dohomem no começo de sua história, e afirma esta verdade - bem como todo o sistema dos seus dogmas -como divinamente revelada.Quanto à possibilidade de uma queda do espírito, em geral, isto é, quanto à possibilidade do mal moral,do pecado, basta lembrar que o ser criado pode, por sua natureza, desviar-se da ordem: porquanto hánele algo de não-ser, de  potência , precisamente pelo fato de ser ele um ser criado. E o livre arbítrio

proporciona-lhe o modo de realizar essa possibilidade, a saber, proporciona-lhe o modo de desviar-seefetivamente do ser, da racionalidade, enveredando pelo não-ser, pela irracionalidade. Quanto àrealidade de uma queda original do homem, remetemos ao fato da Revelação em que é contida.Da Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e sistematizadas pela teologia,evidencia-se, fundamentalmente, como o homem primigênio não só teria possuído aquela harmonianatural , de que agora é privado, mas teria sido outrossim elevado, como que por nova criação, à ordem sobrenatural , com um conveniente conjunto de dons preternaturais . Noutras palavras, o homem teriaparticipado - com uma natureza extraordinariamente dotada - da vida de Deus, teria gozado de umaespécie de deificação, não por direito, mas por graça. E evidencia-se também que - devido a uma culpa

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de orgulho contra Deus, cometida pelo primeiro homem, do qual, pela natureza humana, deviadescender toda a humanidade - teria o homem perdido aquela harmonia e a dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos.Há, portanto, uma enfermidade, uma debilitação espiritual e física na natureza humana, essencial desdeo nosso nascimento, e que deve, por conseguinte, ser herdada. Basta, por exemplo, lembrar como, pela

lei da hereditariedade, se podem transmitir deficiências materiais e, por conseqüência, também morais:deficiências que não dependem dos indivíduos, visto que eles a sofrem. O pecado original, pois - queimporta na privação da ordem sobrenatural, isto é, na privação do único fim humano efetivo, até aosofrimento e à concupiscência, quer dizer, até à vulneração da própria natureza - voluntário e culpadoem Adão, seria culpado em seus descendentes, enquanto não quiserem servir-se das misérias provindasdo pecado original como estímulo para a Redenção, praticando o Cristianismo, ingressando na Igreja.O aspecto da condição primitiva do homem, concernente à elevação sobrenatural, por maissupereminente e central que seja no cristianismo, aqui não interessa. Com efeito, a elevação à ordemsobrenatural sendo, por definição, gratuita , isto é, não devida à natureza humana, bem como a nenhumanatureza criada, a privação da mesma, provinda do pecado, não podia causar vulneração em a naturezahumana, nem a perda dos dons praternaturais. E, logo, não podia suscitar o problema do mal, que temosconsiderado insolúvel pela filosofia.

 A Redenção pela Cruz

Mas, que sentido tem o mal no mundo? Conseguiu o homem, mediante o pecado, frustar o plano divinoda criação? Ou o próprio mal soube Deus tirar, mediante uma divina dialética, o bem e até um bemmaior? É o que explica um segundo dogma da revelação cristã, o dogma da redenção operada por Cristo.Segundo este dogma, Deus, isto é, o Verbo de Deus, a Segunda pessoa da Trindade divina, assumenatureza humana, precisamente para reparar o pecado original e, por conseguinte, suas conseqüênciasnaturais também. Visto a ofensa feita a Deus pelo pecado ser infinita com respeito ao Infinito ofendido,Deus precisava de uma reparação infinita, que unicamente Deus podia dar. Sendo, porém, o homem quedevia pagar, entende-se como o verbo de Deus assuma em Cristo a natureza humana. Para a Redenção,teria sido suficiente o mínimo ato expiatório de Cristo, tendo todo ato seu um valor infinito, devido àdignidade do operante. Ao contrário, ele se sacrifica até à morte de cruz. Fez isto para dar toda a glória

possível à infinita majestade de Deus no reino do mal e da dor proveniente do pecado; é, pois, a glóriade Deus o fim último de toda atividade divina.

O Cristianismo - Conseqüente Praxe Ascética

 Ascetismo e Teísmo 

Das precedentes considerações segue-se que o cristianismo importa sempre e essencialmente numapraxe ascética com respeito ao mundo, e não pelo fato de o sobrenatural oprimir a natureza, mas porcausa da desordem introduzida na ordem da natureza pelo pecado original.Em verdade, a raiz metafísica desta praxe ascética acha-se no próprio teísmo, e, precisamente, noconceito de criação, tomando-se esta palavra "ascética" não no sentido rigoroso de renúncia aos benscriados, mas no sentido de que o homem, sendo criatura e portanto dependendo totalmente de Deus,

deve reconhecer praticamente esta sua dependência absoluta, este seu nada ser por si . A razão humana constata, nem pode deixar de constatar, que o mundo, de que temos imediatamenteexperiência, não se pode explicar por si mesmo, e, logo, exige absolutamente uma explicação.Entretanto, para que o problema do mundo tenha verdadeiramente solução, é preciso chegar até Deus. EDeus, para que seja verdadeiramente a explicação do mundo, não pode certamente ser imanente, masdeve ser transcendente e criador, o que eqüivale dizer, a relação entre Deus e o mundo deve serconcebida segundo o conceito de criação, retamente definido como uma produção das coisas do nadapor parte de Deus.

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Ora, tal definição exclui que Deus organize uma pressuposta matéria qualquer, com respeito à qualDeus seria passivo e, logo, não mais ato-puro, não mais Deus, não mais explicação do mundo.Contrariamente a quanto pensava o dualismo grego, Deus cria toda a realidade. Daí nada se poderlevantar contra ele e proclamar a sua autonomia. Além disso, é excluído que o mundo seja, de qualquermodo, formado pela mesma natureza de Deus, pois, neste caso, haveria a contradição de que Deus seria

da mesma natureza do mundo, que não tem em si a sua explicação e, por isso, a procura em Deus.Contrariamente ao que pensa o panteísmo, Deus, criando, dispõe uma realidade essencialmente distintade si, de modo que nenhum ser criado pode, de modo nenhum, exigir de participar da natureza divina eenaltecer como tal a sua natureza. A este segundo princípio é conexa a absoluta liberdade da criação. Com efeito, se ela fosse necessária,ter-se-ia uma contradição semelhante à precedente, a saber: Deus teria necessidade do mundo que eledeve explicar. Deus, portanto, pode ou não pode criar, pode criar este ou um outro mundo, entreinfinitos mundos possíveis, de modo que Deus, querendo criar o mundo, pode única e absolutamentecriá-lo para a sua glória    embora esta já seja interiormente infinita, sendo Deus a atualidade, a perfeiçãoplena. Se se admitisse para a obra de Deus uma finalidade diversa, extrínseca, seria também precisoadmitir em Deus uma indigência, com todas as conseqüências acima mencionadas. Deus, portanto, cria omundo do nada, e não o tira de sua substância, mas o cria livremente e para a sua glória. E o homem fazparte dessa criação.Compreende-se, então, como a atitude prática, fundamental, da criatura racional deva ser, emconseqüência do conceito de criação, uma atitude de reconhecimento do próprio nada, não só na ordemdo ser, mas também na ordem de operar, porque nada de quanto é real pode escapar à absolutacausalidade de Deus. Aqui falamos, evidentemente, do operar positivo, isto é, do bem, porquanto o mal,sendo negação, privação, não tem causa eficiente, mas deficiente, como diz Agostinho. Não Deus, porconseqüência, mas o homem é o autor do mal. Então, a humildade será a virtude essencial do sábio,como o orgulho será o pecado essencial do estulto; nas relações práticas com Deus   que constituem oobjeto da religião em geral   e também nas relações com a remanente realidade, não em si, masenquanto querida por Deus.

 Ascetismo e Cristianismo 

Deus quis remir o homem, exigindo ao mesmo tempo que a sua justiça fosse dignamente satisfeitamediante uma expiação infinita por parte do Verbo humanado. Esta expiação divina, porém, nãodispensava, mas apenas tornava possível a expiação por parte do homem, precisamente através dossofrimentos provenientes da desordem decorrida do pecado. Unicamente deste modo o homem eraredimido, unicamente através da justiça se manifestava a misericórdia de Deus. Antes, quis Deus quefosse juntamente realizada a sua maior glória e o maior bem do homem, através do sacrifício maiscompleto por parte de Cristo, bem como por parte do homem, dada sempre a desordem das coisas,proveniente do pecado.Esta   tão significativa   praxe ascética tem a sua primeira e perfeita realização em Cristo, redentor pelacruz. Tornando-se ele, deste modo, o modelo e o ideal da vida cristã. Mas, para o mundo, esta praxeascética será loucura  e escândalo . Os Gentios julgavam naturalmente loucura a renúncia cristã. Ospróprios israelitas sonhavam o Redentor cercado de grandeza e poder, e não de humildade e sofrimento.Cristo, ao contrário, menosprezando a prudência e a fortaleza humanas, envereda pelo caminho da cruz,

que repugna à natureza, mas já é a única via de salvação e de santificação. E, assim, Cristo   realizando asua obra   foi julgado justo, mas não lhe foi feita justiça pela majestade do direito; foi condenado pelopovo que ele viera remir; foi abandonado pelos próprios e mais chegados discípulos, um dos quais   o quedevia ser seu vigário   até o renegou, e um outro o traiu de morte. E morreu abandonado sobre a cruz,assistido por algumas pobres mulheres. Humanamente e também racionalmente falando, unicamentedesta maneira se realizava a glória de Deus e a redenção do homem em toda a sua plenitude.Cristo não apenas realizou na sua pessoa o sacrifício redentor, mas também apontou aos homens estecaminho como sendo o caminho único para a salvação e a perfeição, e confirmou a doutrina com oexemplo, propondo-se como modelo de todos os cristãos: Eu sou o caminho, a verdade e a vida . A vida

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cristã será, portanto, a imitação de Cristo  crucificado   diversamente embora, segundo os graus deperfeição cristã e as concretas diferenças individuais. Tal ensinamento ascético de Cristo   que, emconcreto, se acha em toda a sua vida e, em especial, na sua morte   em abstrato se acha em toda a suadoutrina, mas especialmente no sermão da montanha , o sermão das bem-aventuranças , que se podeconsiderar o compêndio do espírito do Cristianismo. Aí são invertidos os valores terrenos, e exaltados não

os ricos, os gozadores, os poderosos, que o mundo inveja, mas os pobres, os sofredores, os mesquinhos,conforme a sabedoria cristã, o que à orgulhosa razão humana parece estultícia. Deste modo Cristo diráque o busquemos   isto é, que procuremos a sua imagem, a sua imitação   não no homem feliz, paragozarmos a vida em sua companhia, mas no homem sofredor, com o qual e para o qual sofremos e,destarte, acharemos alimento ascético.Este ensinamento, Cristo dirige a todos os seus seguidores, como condição necessária para a salvação   se alguém quer vir após mim, renuncia-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me . Entretanto, aos queaspiram à santidade, à plenitude da vida cristã, à perfeita imitação dele, impõe Cristo a renúncia total aosgrandes bens do mundo: renúncia à riqueza, à família, à liberdade, para abraçar a pobreza, a castidade,a obediência. E esta a chamada via dos conselhos evangélicos , em contraposição com a vida comum dos preceitos . E realiza-se na clássica praxe cristã dos votos religiosos, sempre idêntica e imutável nasubstância, embora variável nas aplicações concretas.

 Ascetismo e Caridade 

Esta moral ascética cristã é racionalmente fundada sobre o teísmo e a Revelação. Garante, pois, aohomem, a consecução da felicidade na vida eterna, e de uma felicidade que transcende toda aspiração ecapacidade humana. Na vida temporal esta moral ascética apresenta-se também como a mais sábia,porquanto torna conformada e voluntária a aceitação do sofrimento, já que não se apresenta mais comoinesperado e trágico, pois não fica certamente dispensado da dor quem neste mundo entende de viverapenas moralmente e não heroicamente, e nem sequer quem entende de gozar livremente dos bens daterra. Provê igualmente esta moral ascética o bem dos outros, ou não parece, ao contrário,   por causa darenúncia ao mundo devastado pelo mal   isolar fatalmente os homens dos seus semelhantes? E esteisolamento não é ainda mais acentuado, quando a perfeição se eleva dos preceitos aos conselhos ?Poderia assim parecer, mas assim não é. Antes de tudo, tal egoísmo está em franco contraste com o

conceito de caridade, dominante na moral cristã, em lugar do clássico conceito de justiça. A caridadecristã purificou a civilização antiga da barbárie da exposição das crianças, da escravidão, das lutas dosgladiadores, barbárie que se repete, mais ou menos intensamente, no egoísmo de toda civilizaçãopuramente humana. A caridade cristã favoreceu ainda obras numerosas e fecundas para os infelizes, osvelhos, os pobres, os doentes, mais ou menos desprezados e negligenciados na civilização antiga, bemcomo em toda civilização mundana em geral, apesar das aparências contrárias.Em segundo lugar, a convivência social, moral, racional, não é possível nas atuais condições de egoísmoe malvadez humana, mas faz-se mister a ascética cristã para vencer este egoísmo mediante a paciência,a humildade, a caridade. Considere-se, por exemplo, a questão econômica e o problema da autoridade,que preocupam tão profundamente a sociedade humana. A questão econômica não se pode resolvernaturalmente. Com efeito   prescindindo do fato de que o trabalho, em seus termos atuais, é uma pena,como claramente o prova a dura experiência, e a Revelação disto dá explicação e justificação   nãosomente a justiça não consegue abolir a pobreza, mas nem sequer a caridade, a própria caridade cristã,

consegue tirar a humilhação do receber. Menos ainda conseguem isto a filantropia e os demaisequivalentes humanistas. Resolve isto verdadeiramente só a ascética cristã, valorizando a dor, exaltandoo sofrimento: bem-aventurados os pobres . E também não se pode resolver naturalmente o problemaárduo da sujeição à autoridade, no entanto necessária para que a sociedade possa sustentar-se. O fatode a autoridade ser necessária à existência da sociedade, não é argumento suficiente para que todosobedeçam à autoridade; e isto é evidente se se examinam as paixões humanas, especialmente o orgulho,a violência, a fraude, freqüentemente mais fortes em quem domina. E isto acontece não apenas nasociedade civil, mas também na religiosa, porquanto formada de homens. E, então, não fica senão aobediência no sentido cristão, ascético, como renúncia à própria vontade. Tal renúncia não é imoral,

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porque tem como objeto não a pessoa, mas o ofício, nem pode objetivamente, de modo nenhum,transpor os confins da ética.Finalmente, a renúncia ascética não é estéril egoísmo, mas o contrário. Precisamente pelo fato de que ohomem, renunciando a si mesmo e dando-se em holocausto a Deus, é disposto, até desejoso,imensamente capaz, cheio de boa vontade para sacrificar-se inteiramente para com todos. Não

considera, todavia, a humanidade como fim último, como divina, mas conforme à transcendente vontadede Deus, que criou o homem à sua imagem, e o remiu com a Paixão do seu Verbo encarnado. A éticacristã da renúncia perfeita ao mundo é a mais proveitosa para a sociedade   familiar, nacional, universal.De fato, a prescindir dos demais, mesmo razoáveis, motivos de altruísmo, unicamente quem é indiferenteàs qualidades alheias, até solícito dos mais miseráveis, não encontra limites no altruísmo, no heroísmo,mas uma oportunidade de engrandecimento mediante o sacrifício.Este será o caminho percorrido   embora de modos diferentes   pelos santos, os super-homens docristianismo: o caminho dos conselhos  evangélicos, que é o caminho mais perfeito do que o dos preceitos . E os santos mais facilmente florescem nas Ordens Religiosas, precisamente porque écaracterística das Ordens Religiosas a via dos conselhos, da renúncia ao mundo, cada qual realizandoeste ascetismo cristão com diversa intensidade, de modos muito diferentes, conforme os tempos, oslugares, os temperamentos pessoais e as necessidades sociais. E é mediante e através desta renúnciaascética, que os santos se tornam os grandes benfeitores da humanidade.

 A Patrística Pré-agostiniana 

Características Gerais

Com o nome de  patrística  entende-se o período do pensamento cristão que se seguiu à épocaneotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica: isto é, os séculos II-VIII da era vulgar. Esteperíodo da cultura cristã é designado com o nome de Patrística, porquanto representa o pensamento dosPadres da Igreja, que são os construtores da teologia católica, guias, mestres da doutrina cristã.Portanto, se a Patrística interessa sumamente à história do dogma, interessa assaz menos à história, emque terá importância fundamental a Escolástica. A Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego, o período religioso, com o qual

tem fecundo contato, entretanto dele diferenciado-se profundamente, sobretudo como o teísmo sediferencia do panteísmo. E é também contemporâneo do império romano, com o qual também polemiza,e que terminará por se cristianizar depois de Constantino. Dada a culminante grandeza de Agostinho, aPatrística será dividida em três períodos: antes de Agostinho, período em que, filosoficamente,interessam especialmente os chamados apologistas e os padres alexandrinos ; Agostinho, que merece umdesenvolvimento à parte, visto ser o maior dos Padres; depois de Agostinho vem o período que, logoapós a sistematização, representa a decadência da Patrística.

O II Século: Os Apologistas e os Controvertistas

 A Patrística do II século é caracterizada pela defesa que faz do cristianismo contra o paganismo, ohebraísmo e as heresias. Os padres deste período podem-se dividir em três grupos: os chamados padres apostólicos , os apologistas  e os controversistas . Interessam-nos particularmente os segundos, pela

defesa racional do cristianismo contra o paganismo; ao passo que os primeiros e os últimos têm umaimportância religiosa, dogmática, no âmbito do próprio cristianismo.Chamam-se apostólicos os escritos não canônicos, que nos legaram as duas primeiras gerações cristãs,desde o fim do primeiro século até a metade do segundo. Seus autores, quando conhecidos, recebem oapelido de padres apostólicos, porquanto floresceram no templo dos Apóstolos, ou os conheceramdiretamente, ou foram discípulos imediatos deles.Costuma-se designar como o nome de apologistas os escritores cristãos dos fins do segundo século, queprocuram de um lado demonstrar a inocência dos cristãos para obter em favor deles a tolerância dasautoridades públicas; e provar do outro lado o valor da religião cristã para lhe granjear discípulos. Seus

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escritos, portanto, são, por vezes, apologias propriamente ditas, por vezes, obras de controvérsia, àsvezes, teses. E são dirigidas às vezes contra os pagãos, outras vezes contra os hebreus. Os apologistas,mais cultos do que os padres apostólicos, freqüentemente são filósofos - por exemplo, São Justino Mártir- ainda que não apresentem uma unidade sistemática; continuam filósofos também depois da conversão,e se esforçam por defender a fé mediante a filosofia. Para bem compreendê-lo, é mister lembrar que o

escopo por eles visado era, sobretudo, por em focos os pontos de contato existentes entre o cristianismoe a razão, entre o cristianismo e a filosofia. E apresentavam o cristianismo como uma sabedoria, aliás,como a sabedoria mais perfeita, para levarem, gradualmente, até à conversão os pagãos.O maior dos apologistas é certamente São Justino . Flávio Justino Mártir nasceu em Siquém na Palestinaem princípios do segundo século, e morreu mártir no ano 170. Depois de Ter peregrinado pelas maisdiversas escolas filosóficas – peripatética, estóica, , pitagórica - em busca da verdade para a solução doproblema da vida, abandonando o platonismo, último estádio da sua peregrinação filosófica, entrou nocristianismo, onde encontrou a paz. Ufana-se ele de ser filósofo e cristão; leigo embora, Justino dedicousua vida à difusão e ao ensino do cristianismo. Imitando os filósofos, abriu em Roma uma escola para oensino da doutrina cristã. Suas obras são duas Apologias - contra os pagãos - e um Diálogo com o judeu Trifão - contra os hebreus. Escreveu suas obras nos meados do segundo século.Justino procura a unidade, a conciliação entre paganismo e cristianismo, entre filosofia e revelação. E julga achá-la, primeiro, na crença de que os filósofos clássicos - especialmente Platão - dependem deMoisés e dos profetas, depois da doutrina famosa dos germes do Verbo, encarnado pessoalmente emCristo, mas difundidos mais ou menos em todos os filósofos antigos.

O III Século: Os Alexandrinos e os Africanos

O terceiro século apresenta um interesse particular pelo que diz respeito ao pensamento cristão. Tentou-se um renovamento do paganismo com bases no panteísmo neoplatônico e nos cultos orientais, fundidosnuma característica síntese filosófico-religiosa em oposição ao cristianismo, que já ia afirmando mesmoculturalmente. Os Padres deste período polemizam filosoficamente com os pensadores pagãos, levados aestimarem seus adversários.O cristianismo, sem mudar a sua fisionomia original, está em condições de desenvolver do seu seio umpensamento, uma filosofia, uma teologia, que representarão a sua essência doutrinal. Daí a distinção que

então se afirmou entre os simples fiéis e os gnósticos  - sábios - cristãos. Este gnosticismo cristão seafirmou especialmente em Alexandria do Egito, o grande centro cultural da época, mesmo do ponto devista católico. Naquele famoso didascaléion , naquela celebrizada escola catequética, espécie de faculdadeteológica, foram luminares Clemente e Orígenes.O cristianismo filosófico é próprio e característico dos padres alexandrinos, que vivem na tradição culturalhelenista, enaltecedora e potenciadora dos valores intelectuais, teoréticos, especulativos, metafísicos, dosquais teremos, em tempo oportuno, o primeiro sistema orgânico de teologia cristã, graças a Orígenes. É,entretanto, hostilizado pelos padres chamados africanos, pertencentes não à África oriental, ao Egito,mas África ocidental, latina, que se ressentem, por conseguinte, do espírito prático, pragmatista, jurídico,moralista latino - que produziu os estóicos e os cínicos romanos - em oposição ao gênio grego. Se bemque entres os padres africano-latinos apareçam vulto notáveis, como por exemplo Tertuliano, os padresafricanos - bem como os padres latinos em geral - não apresentam interesse particular para a história dafilosofia.

Clemente Alexandrino  - Tito Flávio Clemente - nasceu no ano 150, provavelmente em Atenas, defamília pagã. Converteu-se ao cristianismo talvez levado por exigências filosóficas; desejoso de umconhecimento mais profundo do cristianismo, empreendeu uma série de viagens em busca de mestrescristãos. Depois de ter visitado a Magna Grécia, a Síria e a Palestina, foi, pelo ano 180, para Alexandriado Egito, onde o seu espírito achou finalmente paz junto do eminente mestre Panteno. Falecido este noano 200, Clemente foi chamado para dirigir a famosa escola catequética, cabendo-lhe a glória de ter ogrande Orígines entre seus discípulos. Devido às perseguições anticristãs do imperador Setímio Severo,que mandou fechar a escola, Clemente teve de suspender o seu ensino alguns anos depois. Retirou-se

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para a Ásia Menor, junto de um seu antigo discípulo, o bispo Alexandre de Capadócia, e morreu nessacidade entre 211 e 216.Embora as preocupações de Clemente sejam sobretudo morais e pedagógicas, e os meios empregados,satisfatoriamente, religiosos e cristãos sobretudo, valoriza ele também, e grandemente, a filosofia, àmaneira de Justino, sendo ademais dotado de uma erudição prodigiosa e de uma cultura incomparável.

 As obras principais de Clemente são: o Protréptico - isto é, o Verbo promotor da vida cristã - pequenaapologia em doze capítulos, perfeitamente acabada na forma e no conteúdo; o Pedagogo , em três livros,apresentado no primeiro o Verbo como educador das almas, e indicando nos demais dois livros os víciosmais graves, que os cristãos devem evitar; os Strômata - tapetes - que é uma coleção de pensamentos,considerações, dissertações filosóficas, morais e religiosas, de interesse especialmente ético.Filosoficamente importante e característica é a distinção que faz Clemente dos cristãos em simples fiéis egnósticos , isto é, sábios, perfeitos. O gnóstico cristão, diversamente do simples fiel ou crente, éconsciente de sua fé, justificando-a e organizando-a racionalmente, filosoficamente. "Querendoharmonizar a doutrina cristã com a filosofia pagã, acentuava demasiadamente a última, negligenciandoum tanto a Sagrada Escritura e a Tradição".Discípulo de Clemente, Orígenes , chamado adamantino  por sua energia incomparável, é o maiorexpoente filosófico da escola alexandrina. Nasceu em Alexandria do Egito, pelo ano 185, de família cristã.O precoce menino recebeu do pai, Leônidas, a primeira formação literária e, sobretudo, religiosa. Durantea perseguição de Septímio Severo, Orígenes, desprezando os mais graves perigos, foi encarregado pelobispo de Alexandria, Demétrio, da direção da famosa escola didascaléion , que o seu mestre Clementeteve que abandonar. Tinha então Orígenes dezoito anos. Aos vinte e cinco, sentindo a necessidade deconhecer profundamente as doutrinas que desejava combater e querendo completar a sua formação,escutou - como Plotino - as lições de Amônio Saca. Empreendeu então longas viagens para se instruir,sobretudo, religiosamente, e para atender aos desejos de grandes personagens que queriam consultá-lo.Ordenado sacerdote no ano 230 pelos bispos de Cesaréia e de Jerusalém, contra a vontade de seu bispo,de volta à pátria, foi proibido por este de ensinar e foi condenado, devido também a algumas opiniõesheterodoxas contidas na sua grande obra Sobre os Princípios , e também por ciúme, talvez, no dizer deSão Jerônimo. Retirou-se então Orígenes para a Palestina, abrindo em Cesaréia uma escola teológica (chamada depois neo-alexandrina - , que superou a de Alexandria pelo seu caráter científico. Aí lecionouainda durante vinte anos, falecendo em Tiro pelo ano 254.

 A atividade literária de Orígenes não conhece igual, atribuindo-se-lhe milhares de obras. Prescindindo dosescritos exegéticos e as céticos, que não nos interessam, mencionamos a obra Sobre os Princípios e osoito livros Contra Celso . Por  princípios Orígenes entende os artigos principais do ensino da Igreja, e asverdades primordiais deduzidas mediante a razão teológica das premissas reveladas, por falta derevelação formal. A obra Sobre os Princípios  nos proporciona a ciência baseada na Revelação, erepresenta uma suma teológica  verdadeira e própria. Representa, talvez, a primeira grande síntesedoutrinal da Igreja, segundo a tendência metafísica dos doutores orientais. Granjeou ao autor grandenomeada e contém o origenismo , que depois suscitou a grande polêmica origenista. A obra Contra Celso  é a mais célebre de Orígenes sob o aspecto apologético. É uma resposta à obra Sermão Verdadeiro deCelso, filósofo pagão. Antes de tudo, declara Orígenes que a melhor apologia do cristianismo éconstituída pela vitalidade divina da Igreja, isto é, pela sua força e virtude para a reforma moral doshomens e pela sua difusão universal, apesar dos ataques dos adversários. A maior parte do escrito é,todavia, dedicada ao exame atento e pormenorizado das profecias, dos milagres e das afirmações

solenes de Cristo, visto que Celso, que tinha estudado as fontes do cristianismo, o ataca em todos ospontos. Nesta obra, Orígenes ostenta uma erudição extraordinária, uma serenidade nobre e inigualável,bem como uma fé inabalável. Orígenes pode ser considerado o verdadeiro fundador da teologia científica,bem como o primeiro sistematizador do pensamento cristão em uma vasta síntese filosófica.

O IV Século: Os Luminares de Capadócia

O século quarto, especialmente a Segunda metade, representa a idade de ouro da Patrística. Bastalembrar, para a igreja oriental, Atanásio, o malho do arianismo, os luminares de Capadócia - Basílio,

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Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa - , e João Crisóstomo, o mais celebrado representante daescola de Antioquia; para a igreja ocidental, Ambrósio de Milão e Jerônimo. Os padres dessa época seexprimem em aprimorada forma clássica e possuem uma profunda cultura filosófica. Os maiores dentreeles são solidamente formados na solidão monástica e ascética e pertencem, geralmente, às altas classessociais. A igreja católica, declarada livre pelo Edito de Milão, protegida por Constantino, torna-se religião

do estado com Teodósio. Estas condições de paz e de privilégio, eram certamente favoráveis à culturacristã.Entretanto, a grandeza da Patrística, no quarto século, não é tanto científica, quanto dogmática,teológica. A teologia, sobretudo graças aos luminares de Capadócia, torna-se uma construção intelectualsistemática, imponente, devido naturalmente à filosofia, à lógica aristotélica, que proporcionam oinstrumento, o método, para a precisão e a organização do dogma. As grandes heresias da épocaobrigaram os padres a defender racionalmente, filosoficamente, a doutrina católica, atacadaespecialmente por Ário (256-336), padre alexandrino oriundo da Líbia, negador da divindade do Verbo. Aheresia ariana - arianismo - foi condenada pelo concílio de Nicéia (325), sendo Atanásio o mais destacadoe forte opositor.São João Crisóstomo , de Antioquia, nasceu de família ilustre, pelo ano 344. Recebeu uma educaçãoclássica aprimorada, estudando retórica, filosofia, direito, que, depois de batizado, valorizou cristãmentena solidão e no ascetismo. Padre em Antioquia, e depois bispo de Constantinopla, faleceu, degredadopela fé, em 407. É significativo neste grande prelado o senso profundo da vaidade do mundo, e a grandeestima do cristianismo, concebido como ascética.Também os grandes representantes da escola neo-alexandrina, os luminares de Capadócia, foramgrandes testemunhas do caráter fundamentalmente ascético do Cristianismo. São Basílio , nascido emCesaréia de Capadócia pelo ano de 330 de família rica e cristã, fez longos e aprofundados estudos,aperfeiçoando-se em Atenas. Recebido o batismo, abandona o mundo e se retira para a vida ascética,organizando a vida solitária dos que o seguiram, e escrevendo uma Grande Regra e uma Pequena Regra ,para a vida monástica, em que a atividade dos monges é distribuída entre o trabalho, o estudo, a oração,pelo que será considerado o legislador do monaquismo oriental. Trata-se, porém, de regras morais, e não jurídicas, destinadas a um monaquismo culto, aristocrático. Grande admirador de Orígenes, insignepromotor da beneficência cristã quando bispo de Cesaréia, e organizador da vida monástica naCapadócia, faleceu em 379. Também São Gregório , chamado Nizianzeno, nasceu pelo ano 330 em

Capadócia, de família cristã, fez estudos aprofundados, que aperfeiçoou em Atenas. Também ele admiroue praticou a vida ascética com o amigo Basílio, compartilhando com ele a admiração para com Orígenes.Bispo de Sásima antes e, em seguida, de Constantinopla, inflamou os fiéis com a sua pregação brilhantee comovedora. Aristocrático e delicado, pouco afeito à vida prática, retirou-se depois para a solidão, emconformidade com o seu ideal ascético e contemplativo, falecendo pelo ano 390.São Gregório de Nissa  foi o maior dos luminares de Capadócia e, talvez, de todos os padres gregossob o aspecto especulativo e filosófico. Irmão de Basílio, nasceu pelo ano 355 em Cesaréia e recebidauma informação cultural aprimorada, foi destinado ao estado eclesiástico; entretanto, deixou-se desviarda sua vocação, foi professor de retórica e casou-se. As exortações do irmão e de Gregório Nazianzenopersuadiram-no da vaidade do mundo, até que afinal, abandonando a cátedra de retórica, retirou-se paraa vida ascética contemplativa. Em seguida, foi feito bispo de Nissa, cidadezinha da Capadócia, primandopela sua cultura teológica e filosófica. Faleceu, provavelmente, em 395. Gregório de Nissa é o maiorfilósofo dos padres gregos. Esforça-se para mostrar que os dados da razão e os ensinamentos da fé não

se hostilizam, mas se harmonizam reciprocamente. Possui, como verdadeiro filósofo, o gosto dasdefinições claras e das classificações metódicas. Como em teologia é origenista, em filosofia éneoplatônico.

Santo Agostinho 

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 A Vida e as Obras

 Aurélio Agostinho destaca-se entre os Padres como Tomás de Aquino se destaca entre os Escolásticos. Ecomo Tomás de Aquino se inspira na filosofia de Aristóteles, e será o maior vulto da filosofia metafísicacristã, Agostinho inspira-se em Platão, ou melhor, no neoplatonismo. Agostinho, pela profundidade do

seu sentir e pelo seu gênio compreensivo, fundiu em si mesmo o caráter especulativo da patrística gregacom o caráter prático da patrística latina, ainda que os problemas que fundamentalmente o preocupamsejam sempre os problemas práticos e morais: o mal, a liberdade, a graça, a predestinação.

 Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família burguesa, a 13 de novembrodo ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica,pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indopara Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu emuma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores conseqüências do pecado original;dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, queatribuía realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu asolução do problema do mal e, por conseqüência, uma justificação da sua vida. Tendo terminado osestudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-sedefinitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razõesde ordem espiritual.Entrementes - depois de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo, abraçando a filosofianeoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte chegara a umaconcepção cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, porrazões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta,no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio;retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho edalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja doutrina e eloqüência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anosde idade.Depois da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para Tagasta. Aí 

vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro numa das suaspropriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a igreja deHipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430.Tinha setenta e cinco anos de idade. Após a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada Escritura, da teologiarevelada, e à redação de suas obras, entre as quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos: Contra os acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma,Sobre o mestre, Sobre a música . Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem .Dada, porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam juntas, compreende-seque interessam à filosofia também as obras teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira .

O Pensamento: A Gnosiologia

 Agostinho considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora do problema da vida,ao qual só o cristianismo pode dar uma solução integral. Todo o seu interesse central está portanto,circunscrito aos problemas de Deus e da alma, visto serem os mais importantes e os mais imediatos paraa solução integral do problema da vida.O problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o resolve, superando o ceticismoacadêmico mediante o iluminismo platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da

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própria existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável, condição e origem de todaverdade particular. Embora desvalorizando, platonicamente, o conhecimento sensível em relação aoconhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são fontes deconhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmomodo, para o conhecimento intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a

 Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as idéias platônicas. No Verbo de Deusexistem as verdades eternas, as idéias, as espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelosdos seres criados; e conhecemos as verdades eternas e as idéias das coisas reais por meio da luzintelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como se vê, é a transformação do inatismo, dareminiscência platônica, em sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica fundamental, quedistingue a gnosiologia platônica da aristotélica e tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica-agostiniana, não bastam, para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças naturais doespírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de Deus.

 A Metafísica

Em relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus  é provada,fundamentalmente, a priori , enquanto no espírito humano haveria uma presença particular de Deus. Aolado desta prova a priori , não nega Agostinho as provas a posteriori da existência de Deus, em especial aque se afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as coisas. Quanto à natureza de Deus, Agostinho possui uma noção exata, ortodoxa, cristã: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável,simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído pelo platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor.Quanto, enfim, às relações com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador. Nopensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no pensamento cristão - agostiniano -temos ainda um dualismo, porém moral, pelo pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamentecontra Deus e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é, metafisicamente,negação, privação; moralmente, porém, tem uma realidade na vontade má, aberrante de Deus. Oproblema que Agostinho tratou, em especial, é o das relações entre Deus e o tempo. Deus não é notempo, o qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da criação não há tempo,dependendo o tempo da existência de coisas que vem-a-ser e são, portanto, criadas.

Também a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão. Por certo, o corpo não émau por natureza, porquanto a matéria não pode ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fezboas todas as coisas. Mas a união do corpo com a alma é, de certo modo, extrínseca, acidental: alma ecorpo não formam aquela unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista, emvirtude da doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo humano e, absolutamente, éuma específica criatura divina, como todas as demais. Entretanto, Agostinho fica indeciso entre ocriacionismo e o traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou provém da alma dospais. Certo é que a alma é imortal, pela sua simplicidade. Agostinho, pois, distingue, platonicamente, aalma em vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas são fundidas em uma substânciahumana. A inteligência é divina em intelecto intuitivo e razão discursiva; e é atribuída a primazia àvontade. No homem a vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores cego apetite.Quanto à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a natureza não entra nosinteresses filosóficos de Agostinho, preso pelos problemas éticos, religiosos, Deus e a alma.

Mencionaremos a sua famosa doutrina dos germes específicos dos seres - rationes seminales . Deus, aprincípio, criou alguns seres já completamente realizados; de outros criou as causas que, mais tarde,desenvolvendo-se, deram origem às existências dos seres específicos. Esta concepção nada tem que vercom o moderno evolucionismo , como alguns erroneamente pensaram, porquanto Agostinho admite aimutabilidade das espécies, negada pelo moderno evolucionismo.

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 A Moral

Evidentemente, a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e ascética. Nota característicada sua moral é o voluntarismo, a saber, a primazia do prático, da ação - própria do pensamento latino - ,contrariamente ao primado do teorético, do conhecimento - próprio do pensamento grego. A vontade

não é determinada pelo intelecto, mas precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudesteoréticas como, por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é possuído por um atode inteligência. A virtude não é uma ordem de razão, hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles,mas uma ordem do amor.Entretanto a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo agirdesordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se considerar não causa eficiente,mas deficiente da sua ação viciosa, porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, temem si mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus,prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua natureza. A fórmula agostiniana em torno daliberdade em Adão - antes do pecado original - é:  poder não pecar ; depois do pecado original é: não  poder não pecar ; nos bem-aventurados será: não poder pecar . A vontade humana, portanto, já éimpotente sem a graça. O problema da graça  - que tanto preocupa Agostinho - tem, além de uminteresse teológico, também um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidadeabsoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido, Agostinho, para salvar o primeiroelemento, tende a descurar o segundo.Quanto à família , Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato superior ao matrimônio; se omundo terminasse por causa do celibato, ele alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para aeternidade. Quanto à  política , ele tem uma concepção negativa da função estatal; se não houvessepecado e os homens fossem todos justos, o Estado seria inútil. Consoante Agostinho, a propriedade seriade direito positivo, e não natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas conseqüência do pecadooriginal, que perturbou a natureza humana, individual e social. Ela não pode ser superada naturalmente,racionalmente, porquanto a natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente,asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a caridade de quem é amo.

O Mal

 Agostinho foi profundamente impressionado pelo problema do mal  - de que dá uma vasta e vivafenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução dualista dos maniqueus, que lhe impediuo conhecimento do justo conceito de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problemapor ele achada foi a sua libertação e a sua grande descoberta filosófico-teológica, e marca uma diferençafundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, nega a realidademetafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Talprivação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicadoo assim chamado mal metafísico , que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o lhes é devidopor natureza. Quanto ao mal físico , que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o contraste dos seres contribuiriapara a harmonia do conjunto. Mas é esta a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal.Quanto ao mal moral , finalmente existe realmente a má vontade que livremente faz o mal; ela, porém,

não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir dohomem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal moral entrouno mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento,físico e moral, além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. Como se vê, o mal físico tem,deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral a redenção de Cristo,Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; masdeixou permanecer o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. E aexplicação última de tudo isso - do mal moral e de suas conseqüências - estaria no fato de que é maisglorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a

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respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem (de ser); este bem pode sernão devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem édevido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal físico, moral(pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico).

 A História

Como é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus , e resolve-o ainda com osconceitos de criação, de pecado original e de Redenção. A Cidade de Deus representa, talvez, o maiormonumento da antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é contida ametafísica original do cristianismo, que é uma visão orgânica e inteligível da história humana. O conceitode criação é indispensável para o conceito de providência, que é o governo divino do mundo; esteconceito de providência é, por sua vez, necessário, a fim de que a história seja suscetível deracionalidade. O conceito de providência era impossível no pensamento clássico, por causa do basilardualismo metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o plano da história, é mister aRedenção, graças aos quais é explicado o enigma da existência do mal no mundo e a sua função. Cristotornara-se o centro sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus , é representada pelo povo deIsrael antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu advento. Contra este cidade se erguea cidade terrena , mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida nos finsdos tempos. Agostinho distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira concerne à história dasduas cidades , após o pecado original, até que ficaram confundidas em um único caos humano, e chegaaté a Abraão, época em que começou a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da cidade de Deus , recolhida e configurada em Israel, de Abraão até Cristo. A terceira retoma, em separado, anarrativa do ponto em que começa a história da Cidade de Deus separada, isto é, desde Abraão, paratratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no império romano. Esta história,pois, fragmentária e dividida, onde parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa, no fundo,uma unidade e um progresso. É o progresso para Cristo, sempre mais claramente, conscientemente edivinamente esperado e profetizado em Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos,que, consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho. Depois de Cristo cessa a

divisão política entre as duas cidades ; elas se confundem como nos primeiros tempos da humanidade,com a diferença, porém, de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da Igreja. Estanão é limitada por nenhuma divisão política, mas supera todas as sociedades políticas na universalunidade dos homens e na unidade dos homens com Deus. A Igreja, pois, é acessível, invisivelmente,também às almas de boa vontade que, exteriormente, dela não podem participar. A Igreja transcende,ainda, os confins do mundo terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto, visto que todos,predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos na Igreja - ainda que só na unidadedialética das duas cidades , para o triunfo da Cidade de Deus - a divisão definitiva, eterna, absoluta, justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal, no paraíso e noinferno. É uma grande visão unitária da história, não é uma visão filosófica, mas teológica: é umateologia, não uma filosofia da história.

 A Escolástica

  Características Gerais

 A Escolástica representa o último período do pensamento cristão, que vai do começo do século IX até ofim do século XVI, isto é, da constituição do sacro romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, quese assinala geralmente com a descoberta da América (1492). Este período do pensamento cristão sedesigna com o nome de escolástica , porquanto era a filosofia ensinada nas escolas da época , pelosmestres, chamados, por isso, escolásticos . As matérias ensinadas nas escolas medievais eramrepresentadas pelas chamadas artes liberais, divididas em trívio - gramática, retórica, dialética - e

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quadrívio - aritmética, geometria, astronomia, música. A escolástica surge, historicamente, do especialdesenvolvimento da dialética. A falta dessa distinção - específica do pensamento agostiniano - manifesta-se não apenas na correntechamada mística , mas também na orientação denominada dialética do pensamento medieval pré-tomista.Misticismo e dialeticismo, todavia, se diferenciam profundamente entre si. O segundo, com efeito,

embora parta da revelação e do sobrenatural, toma-os como dados e pretende penetrá-los mediante afilosofia, até procurar as razões necessárias dos mistérios, finalizando uma espécie de racionalismo(Anselmo de Aosta e Pedro Abelardo). É, porém, um racionalismo inconsciente, proveniente da ignorânciada verdadeira natureza e dos verdadeiros limites da razão. E, mesmo que os resultados lógicos pudessemser os mesmos do racionalismo verdadeiro e próprio, o escopo não era reduzir a religião aos limites darazão humana, mas levantar esta à compreensão do supra-inteligível, a uma espécie de intuição mística. A tendência mística, pelo contrário, (São Pedro Damião e São Bernardo de Claraval) põe, acima e contraa razão e o intelecto, uma outra forma de conhecimento, de experiência do Divino: o sentimento, a fé, avontade, o amor, culminando na união mística, no êxtase.Depois destas premissas, podemos dividir a escolástica em três períodos, colocando o período central daescolástica a figura soberana de Tomás de Aquino. Teremos, assim, um período pré-tomista em quepersiste a tendência teológica-agostiniana. Este primeiro período da escolástica vai do começo do séculoIX (Carlos Magno) até à metade do século XIII (Tomás de Aquino), e pode ser assim dividido: séculos IXe X (Scoto Erígena e a questão dos universais ); séculos XI e XII (místicos e dialéticos); século XIII (otriunfo do aristotelismo).O segundo período da escolástica é dominado pela figura soberana de Tomás de Aquino, o Aristóteles dopensamento filosófico cristão; este período coincide com a Segunda metade do século XIII.Depois de Tomás de Aquino, a escolástica declina como metafísica (séculos XIV e XV), devido a umanacrônico e ilógico retorno ao agostinianismo. Afirmam-se, entretanto, ao mesmo tempo, tendênciasnovas para a experiência e a concretidade, representando como que o prelúdio do pensamento moderno.Tal desenvolvimento da escolástica no sentido da experiência e da concretidade, é devido em especialaos franciscanos ingleses de Osford - Rogério Bacon, Duns Scoto, Guilherme de Occam -, emconformidade com as tendências positivas e práticas do espírito anglo-saxônio.

Educação e Cultura na Idade Média

Carlos Magno pretendia dar uma unidade interior, espiritual, ao seu vasto e vário império e, portanto,educar intelectual, moral e religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Deste modo restaurariaa civilização e a religião, a cultura clássica e o catolicismo e lhes daria incremento. Para tanto, o meionatural eram as escolas, e o clero se apresentava como o mais apto e preparado docente, quer pelo seuimanente caráter de mestre do povo, quer pela cultura de que era dotado. Na intenção de Carlos Magno,complexo devia ser o papel das escolas, que ele ia fundando e desenvolvendo: formar, antes de tudo,mestres adequados para as escolas, isto é, um clero culto; educar, em seguida, a massa popular, seuescopo final; preparar uma classe dirigente em geral e, em especial, os funcionários do império.Havia nos mosteiros beneditinos escolas monásticas, surgidas da própria exigência de uma observânciaadequada da Regra de São Bento. Paulatinamente espalharam-se também as escolas episcopais,imitações atualizadas das escolas catequéticas do cristianismo primitivo. As escolas monásticas  dosmosteiros visavam, antes de tudo, a formação dos monges futuros (escolas internas), e, depois, a

formação dos leigos cultos (escolas externas), proporcionando, ao mesmo tempo, o ensino religioso e osrudimentos das ciências profanas. O programa de ensino era, inicialmente, bastante elementar: leitura,aprender a escrever, canto orfeônico e um tanto de aritmética. As escolas episcopais - que surgem nascidades, ao passo que as escolas monásticas surgem nos mosteiros afastados das cidades - visavam, emespecial, a formação do clero secular e também de leigos instruídos, para a vida civil. Presidia a estasescolas um eclesiástico chamado scholasticus , dependente diretamente do bispo, donde o nome deescolástica à doutrina e, por conseguinte, à filosofia ensinadas. Os docentes eram também eclesiásticos edenominados também scholastici . Carlos Magno dará muito incremento a ambas as escolas e, ademais,fundará junto da corte imperial a assim chamada escola  palatina , que pode ser considerada como a

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primeira universidade medieval. Mencionamos também como, com o correr do tempo, no âmbito dasparóquias, as escolas paroquiais, destinadas a ensinar ao povo os primeiros elementos do saber.Para elaborar o seu vasto plano de política escolar, Carlos Magno chamou à corte  Alcuíno (735-804, maisou menos), que veio da Inglaterra, o viveiro da cultura naquela época. E sob a sua inspiração, a partir doano 787, foram emanados os decretos capitulares  para a organização das escolas, enquanto o douto

inglês ditava-lhes o programa relativo, que se espalhou pelo vasto império e perdurou invariado,podemos dizer, durante toda a Idade Média.O programa de Alcuíno abraçava as sete artes liberais, de que acima falamos, repartidas no trívio e noquadrívio. O trívio abraçava as disciplinas formais: gramática, retórica, dialética, esta últimadesenvolvendo-se, mais tarde, na filosofia; o quadrívio abraçava as disciplinas reais: aritmética,geometria, astronomia, música, e, mais tarde, a medicina.Sob a direção de Alcuíno, foi constituída junto da corte de Carlos Magno a famosa escola palatina . Nelaensinaram os homens mais famosos da época, como, por exemplo, o historiador Paulo Diácono, ogramático Pedro de Pisa, o teólogo Paulino de Aquiléia. Freqüentavam esta escolas o próprio imperador,os príncipes e os jovens da nobreza. Outras escolas surgiram, em seguida, especialmente na França,modeladas na escola palatina. Ao lado desta instrução e educação eclesiásticas, ministradas por eclesiásticos e, sobretudo, aeclesiásticos, temos na Idade Média uma educação militar, ministrada por militares e a militares; a Igreja,bem cedo, imprimiu também a esta educação uma orientação ética, religiosa, católica. Como é sabido, ofeudalismo é uma organização social, política, econômica, militar, inicialmente baseada na força, segundoo espírito dos bárbaros dominadores.

 A Escolástica Pré-Tomista 

Os Séculos IX e X: 

Scoto Erígena e o Problema dos Universais 

 A história da filosofia escolástica começa propriamente com o nome de Scoto Erígena. João Scoto Erígena nasceu na Irlanda, dita Scotia maior , Eriu em língua céltica, donde o nome de Scoto Erígena.

Pelo ano de 874 é chamado à corte culta e brilhante de Carlos o Calvo, para presidir e lecionar na escolapalatina. Parece Ter falecido em França pelo ano 877. A sua obra principal é Da Divisão da Natureza (847), em cinco livros; é um diálogo entre mestre e discípulo e se inspira no neoplatonismo do pseudoDionísio Areopagita, que Erígena traduziu do grego para o latim. Foi condenada pela Igreja (1225), epode-se dizer que representa a falência definitiva das tentativas de síntese entre neoplatonismoemanatista e criacionismo cristão.Erígena parte da revelação divina para, depois, penetrar os mistérios mediante a razão iluminada porDeus. Tal pretensão de penetrar racionalmente os mistérios revelados devia acabar logicamente noracionalismo e, por conseqüência, na supressão do sobrenatural, por mais ortodoxa que fosse a intençãodo autor.Eminentemente neoplatônico é o esquema especulativo de Da Divisão da Natureza : a descida da Unidadeà multiplicidade, e retorno da multiplicidade à Unidade. De Deus desce-se às idéias supremas, aosgêneros, às espécies, aos indivíduos, e vice-versa. Deste modo, a divisão da natureza, da realidade, fica

assim configurada:1°. - A natureza que não é criada e cria (Deus Padre);2°. - A natureza que é criada e cria (o Verbo de Deus, em que são contidas as idéias eternas, exemplarese causas das coisas);3°. - A natureza que é criada e não cria (as coisas, realizadas mediante o Espírito de Deus);4°. - A natureza que não é criada e não cria (isto é, Deus, concebido, porém, como ômega , termo, fimda realidade, e não como alfa , princípio). Como se vê, as fases primeira e Quarta coincidem (Deus = nãocriado), bem como coincidem as fases Segunda e terceira (mundo = criado).

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O problema dos universais , isto é, do valor dos conceitos, das idéias, problema que tão cedo e tãolongamente interessou a escolástica, teve uma solução radical no pensamento escotista. Que valor têmos conceitos, que são universais, em relação e enquanto representativos das coisas, que são, aocontrário, particulares? O problema tem uma importância fundamental filosófica, não apenas lógica edialética, mas também gnosiológica e metafísica.

 As soluções desse problema oferecidas pela escolástica são substancialmente, três: a solução chamadado realismo transcendente (platônica); a solução do realismo moderado, imanente (aristotélica); asolução nominalista.Segundo a solução do realismo transcendente , o universal, a idéia de uma realidade em si, não existeapenas fora da mente, mas também fora do objeto (universal ante rem ): - é a solução platônica,geralmente adotada pela escolástica incipiente. Segundo a solução do realismo moderado , imanente, ouniversal tem em si uma realidade objetiva, fora da mente, mas é imanente nos objetos singulares deque é essência, forma, princípio ativo (universal in re ): - corresponde à posição aristotélica, com adoutrina da forma que determina a matéria. A solução conceptualista-nominalista  sustenta que ouniversal não tem nenhuma existência objetiva, mas apenas mental (universal  post rem ), ou atépuramente nominal (nominalismo) - no mundo clássico esta posição é defendida pelos sofistas, estóicos,epicuristas, céticos, isto é, pelas gnosiologias empirista e sensitista.

Os Séculos XI e XII: 

Místicos e Dialéticos 

Depois da decadência cultural que se seguiu à renascença carolíngia, começa e se manifesta nos séculosXI e XII um renascimento especulativo. E isto não obstante a luta dos teólogos, dos místicos, contra aciência (a filosofia) por eles considerada um resíduo pagão, uma distração mundana, vaidade e orgulho;e, portanto, contra os filósofos, e os dialéticos que a cultivavam. Os maiores representantes da correntemística são: São Pedro Damião no século XI, São Bernardo de Claraval no século XII; da correntedialética os maiores expoentes são: Santo Anselmo de Aosta no século XI e Pedro Abelardo no séculoXII.São Pedro Damião , cardeal e arcebispo ostiense, conselheiro do monge Hildebrando, mais tarde Papa

Gregório VII, escreveu Da Divina Onipotência . Nesta obra enaltece a onipotência de Deus, até colocá-laacima de toda lei racional, inclusive o princípio de contradição; daí a vaidade da ciência, da filosofia paraentender Deus e as suas obras. São Bernardo de Claraval  rejeita, asceticamente, o saber profanocomo um perigo e um luxo. A verdadeira sabedoria consiste no conhecimento da própria miséria, nacompaixão para com a miséria do próximo, na contemplação de Deus, dos divinos mistérios, de Cristocrucificado, e culmina no êxtase. O caminho da sabedoria é a humildade.Santo Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta; foi monge prior e abade do mosteiro beneditino de Becna Normandia e, depois, arcebispo de Canterbury na Inglaterra. As suas obras principais são: O Monologium , onde se propõe demonstrar a existência de Deus com um argumento simples e evidente,capaz de convencer imediatamente o ateu. Anselmo de Aosta é o primeiro grande filósofo medieval, apósScoto Erígena. Também ele é um platônico-agostiniano. O seu lema é: creio para compreender , o quesignifica partir da revelação divina, da fé e não da razão; mas é preciso penetrar depois a fé mediante arazão.

O nome de Anselmo de Aosta é ligado ao famoso argumento ontológico , a priori , para demonstrar aexistência de Deus; este argumento é contido no Proslogium . Pretende ele demonstrar a existência deDeus, partindo do mero conceito de Deus. O conceito que temos de Deus é o de um ser perfeitíssimo e,logo, Deus deve também existir realmente, do contrário não mais seria perfeitíssimo, faltando-lhe aexistência. Em realidade, o argumento ontológico não vale: porquanto não podemos, no nossoconhecimento, passar da ordem lógica para a ordem ontológica, das idéias aos fatos, mas deve-se passardas coisas às idéias, da ordem real à ordem ideal.Pedro Abelardo (1097-1142), natural de Bretanha, estudante e, mais tarde, professor famoso em Paris,centro cultural do mundo católico, tornou-se religioso e foi peregrinando por muitos mosteiros e cátedras,

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após uma aventura amorosa com Heloísa, que lhe acarretou trágicas conseqüências. Acusado deheresia, foi condenado por dois concílios. Abelardo é uma das mais originais figuras do mundo medieval,mesmo faltando-lhe a profundidade e a capacidade sistemática de Santo Anselmo. Em conclusão, Abelardo é, ao mesmo tempo, filósofo e teólogo, grego e cristão, cético e sistemático, com um grandependor para a crítica e a dialética.

Escreveu as obras seguintes: História das Calamidades , conto biográfico da sua aventura com Heloísa;Dialética ; Conhece-te a ti mesmo ; Sic et non . No ensaio ético Conhece-te a ti mesmo valoriza, na vidamoral, o elemento subjetivo, intencional, - elemento descurado na Idade Média - em confronto com oelemento objetivo, legal. Reconhecendo embora que são necessários os dois elementos, a fim de quehaja ação plenamente moral, Abelardo sustenta ser mais moral um ato executado com reta intenção,ainda que objetivamente mau, do que um ato executado conforme a lei, mas com intenção má. Tambéminteressante é a sua posição crítica na pesquisa filosófica: a dúvida nos leva para a investigação, ainvestigação nos leva à ciência. Na obra Sic et non  - coleção de sentenças contrastantes dos padressobre assuntos da Escritura e da teologia - Abelardo se integra nas fileiras dos sentenciários , isto é, dosautores dos libri sententiarum entre os quais o mais famoso é Pedro Lombardo, (século XII), chamadoprecisamente magister sententiarum . Os livros das sentenças eram coleções sistemáticas - mais oumenos críticas - das doutrinas das Padres, ordenadas segundo o esquema: Deus, criação, queda,redenção, meios de salvação. Preparam as grandes sumas medievais, especialmente as tomistas, que sãoconstruções sistemáticas elaboradas criticamente.Encerra-se assim o século XII e está nos albores o século XIII, o século de ouro da escolástica e dopensamento filosófico cristão.

O Século XIII: O Triunfo de Aristóteles

 A atividade filosófica da escolástica pré-tomista foi essencialmente lógico-dialética e, logo, formal. Estaatividade formal, intensa e penetrante, esperava um conteúdo adequado, racional, filosófico. E talconteúdo lhe foi proporcionado pela descoberta do sistema aristotélico integral, que representa o ápicedo pensamento helênico. O mundo latino-cristão, escolástico, depois de conhecido Aristóteles através dacultura árabe, apaixonou-se pela filosofia aristotélica, que estudou intensamente. Este movimentocultural e filosófico se desenvolveu especialmente no âmbito das universidades, então surgidas e

organizadas eficientemente, graças aos pensadores pertencentes às ordens religiosas, os quais a tudorenunciaram, salvo à ciência e à caridade. A atitude do mundo latino-cristão perante Aristóteles foi tríplice: uma decidida aversão à filosofia quequeria constituir-se unicamente com meios racionais, e um retorno ao agostianismo (São Boaventura);um culto idolátrico para com o Estagirita, que foi identificado com a própria razão humana e preferido, nofundo, à revelação cristã, quando não concordava com a razão (averroísmo latino); uma aceitação evalorização do sistema aristotélico, mas crítica e racional, pelo qual se chegou à construção de umafilosofia distinta e autônoma, mas em harmonia hierárquica com a fé (Tomás de Aquino).Como dissemos, foram os árabes  - e secundariamente os hebreus - que levaram ao conhecimento domundo latino-cristão a filosofia de Aristóteles. Os árabes, após terem conquistado o oriente helenista,entraram em contato com a cultura grega, especialmente na Síria. Em seguida, estendendo suasconquistas até o ocidente europeu, trouxeram-lhe a própria cultura impregnada de aristotelismo. Osárabes foram admiradores de Aristóteles e da sua filosofia, que salvaram das invasões bárbaras durante

as trevas medievais do Ocidente latino. E assim, originariamente bárbaros eles mesmos, os árabes, porsua vez, foram civilizados pelo pensamento grego, aristotélico. Os maiores filósofos árabes conhecedoresde Aristóteles e que influíram profundamente sobre o Ocidente latino-cristão, foram Avicena e Averroés. Avicena  tentou harmonizar a filosofia aristotélica com a religião islâmica.  Averroés , - o famosocomentador de Aristóteles - afirmava ao invés a subordinação da religião a filosofia quando asargumentações delas fossem contrastantes, e considerava a religião como uma filosofia simbólica para ovulgo.Era preciso traduzir do árabe para o latim as obras de Aristóteles e os comentários árabes. Foi o que fez,nos meados do século XII, uma sociedade de homens cultos surgida em Toledo, na Espanha. Mais tarde

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sentiu-se a necessidade de traduzir diretamente do grego as obras de Aristóteles, e, por conselho deTomás de Aquino, Guilherme de Maerbeke (falecido em 1286) fez essa tradução, que proporcionou aoslatinos o conhecimento do genuíno pensamento do Estagirita. Ao mesmo tempo se desenvolveram as universidades , as grandes universidades medievais, surgidasgeralmente das escolas episcopais; famosas mais que todas as outras, foram as universidades de Paris e

de Oxford. A universidade de Paris, a mais ilustre universidade da Idade Média, desenvolveuespecialmente a filosofia e a teologia, inspirando-se na mentalidade aristotélica, ao passo que auniversidade de Oxford dedicou-se especialmente às ciências naturais, inspirando-se na mentalidadeagostiniana. O conjunto dos professores e dos alunos da universidade de Paris, em princípios do séculoXII, constituiu um corpo único, uma universitas  única, e obteve das autoridades civis e religiosasreconhecimento jurídico e grandes privilégios. Especialmente os papas protegeram a universidade deParis, devido à importância que tinha naquele estabelecimento do ensino superior universitário a teologia.Desta sorte, tal universidade se tornou como que a cidadela cultural da ortodoxia católica , o semináriodos filósofos e dos teólogos de todo mundo.Nessas universidades recém-organizadas, bem cedo, contra a vontade dos leigos e por desejo dos papas,entraram e tiveram preponderância professores pertencentes as duas ordens religiosas surgidas noséculo XIII: os Dominicanos , fundados por São Domingos de Gusmão, espanhol, e os Franciscanos ,fundados por São Francisco de Assis, italiano. A característica nova e comum destas duas ordensreligiosas foi a pobreza individual e coletiva, donde o nome de mendicantes a elas atribuído, e tambémcerta liberdade a respeito das obrigações conventuais, para melhor facultar o cultivo do estudo e apregação apostólica entre o povo. Os dominicanos dedicaram-se mais ao estudo, à ciência, inspirando-seno pensamento aristotélico, exercendo, destarte, sua maior influência entre as classes sociais elevadas;os franciscanos, ao contrário, propuseram-se como finalidade principal a caridade ativa e tiveram umaenorme influência sobre o povo, inspirando-se na mentalidade agostiniana.

Os Filósofos Franciscanos

Os filósofos franciscanos julgaram fosse mister dar uma forma teórica à atitude prática, afetiva,sentimental do Pobrezinho de Assis que entrevia Deus e Jesus Cristo em todas as coisas. E julgaram osfilósofos franciscanos que, para tanto, se prestasse o agostinianismo, com o seu misticismo e

voluntarismo - julgando inapto para esse fim o racionalismo, o empirismo e o intelectualismoaristotélicos.O maior representante do agostinianismo antiaristotélico foi São Boaventura  (1221-1274); nasceu naItália, estudou em Paris e, mais tarde, foi geral da sua ordem e depois cardeal de Albano. Suas obrasprincipais são: os Comentários a Pedro Lombardo, o Itinerário da Mente para Deus, sobre a Redução das  Artes à Teologia .Segundo São Boaventura, a tarefa da filosofia não é teórica e racional, mas prática e religiosa, isto é, afilosofia deve levar a Deus, que se atinge imediatamente em todas as coisas e se possui pela uniãomística, como ele descreve no Itinerário . A gnosiologia de Boaventura inspira-se no iluminismoagostiniano, que lhe sugeriu a prova intuitiva da existência de Deus, enquanto ele é imediatamentepresente ao espírito humano. A metafísica de Boaventura, pois, afirma três princípios diretamenteopostos ao aristotelismo tomista: a existência de uma matéria geral sem as formas específicas; apluralidade das formas em um mesmo ser, tantas quantas são as suas propriedades essenciais; a

universalidade da matéria fora de Deus, porque todos os seres são compostos de matéria e de forma,inclusive as essências angélicas e as almas humanas. A psicologia de Boaventura, pois, sustenta que aalma humana é uma substância completa independentemente do corpo, composta de forma e matéria,auto-suficiente.Diametralmente oposto a este aristotelismo agostiniano, é o aristotelismo exagerado averroísta, queaceita o sistema aristotélico sem crítica nenhuma, e, por conseqüência, será inteiramente infecundo. Estaorientação filosófica é chamada averroísta, porquanto admite - como admitia Averroés - que haja tesesfilosóficas em contraste com o teísmo da religião, ainda que pareça limitar-se a sustentar a existência deduas verdades paralelas e contrastantes, e não chegar até subordinar a religião à filosofia. O maior

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representante do averroísmo latino é Siger de Brabante  (falecido pelo ano de 1284), professor nauniversidade parisiense, condenado mais tarde pela Igreja. A sua obra principal é Da Alma Intelectiva . Asteses mais notáveis de Siger em contraste com o cristianismo são: a negação da providência divina; aafirmação da eternidade do mundo; a afirmação da unidade do intelecto na espécie humana e aconseqüente negação da imortalidade pessoal do homem. Entre estas duas posições extremadas - de

idolatria ou de irredutível hostilidade - a respeito de Aristóteles, medeia Tomás de Aquino, que realizará a justificação da filosofia e da teologia.

 A Escolástica Pós-Tomista

O tomismo era, talvez, um movimento excessivamente novo e arrojado, para poder súbita edefinitivamente impor-se no âmbito do pensamento cristão medieval. Houve, portanto, no mesmo séculoXIII, logo depois de uma reação violenta contra o tomismo, um retorno especulativo ao agostinianismo,que julgou encobrir o seu anacronismo, tentando uma superação do racionalismo tomista. Entretantoesse movimento terminará nas posições fideístas do pré-tomismo, acentuadas e tornadas piores após apoderosa construção crítica e racional do Aquinate; e terminará, consequentemente, na ruína dametafísica, da filosofia, da ciência. A escolástica pós-tomista, contudo, sentiu profundamente o problemada concretidade e da experiência, indubitavelmente negligenciado pela escolástica clássica, dondesurgirão a história e a ciência modernas - com suas técnicas - que constituem o valor do pensamentomoderno.O centro desta escolástica pós-tomista é a universidade de Oxford, na Inglaterra, cujas característicastendências empiristas, experimentais, positivas, práticas, são conhecidas.

Rogério Bacon

Rogério Bacon  (1210-1294), nascido na Inglaterra, entrou na ordem franciscana e estudou nasuniversidades de Oxford e de Paris. Após Ter lecionado algum tempo em Oxford, foi obrigado a deixar acátedra. Estabeleceu-se então em Paris, onde levou uma vida agitada e foi condenado à prisão pelospróprios superiores da sua ordem. Crítico agressivo das maiores autoridades da sua época, foi umtemperamento genial e original, enciclopédico e místico, cientista e supersticioso. A sua obra mais

importante é a chamada Obra Maior ; publicou ainda a Obra Menor e a Terceira Obra .Segundo Bacon, três são as fontes do saber: a autoridade, a razão, a experiência. A autoridade dá-nos acrença, a fé não porém a ciência, porquanto não nos fornece a compreensão das coisas que formam oobjeto da crença. A razão  proporciona essa compreensão, quer dizer, a ciência; no entanto, nãoconsegue distinguir o sofisma da demonstração verdadeira, se não achar fundamento e confirmação naexperiência. A ciência experimental constitui a fonte mais sólida da certeza. Conforme Bacon, todavia,deve-se entender por experiência não apenas a que se alcança pelos sentidos externos e nos oferece omundo corpóreo, mas também a experiência proporcionada pela iluminação interior de Deus. É, como sevê, um vestígio do agostinianismo tradicional. Do agostinianismo, Bacon aceita também a unidade entrefilosofia e teologia, que Tomás tinha distinguido.

João Duns Scoto

O maior expoente da escolástica pós-tomista é, sem dúvida, João Duns Scoto , o doutor sutil. Tambémele, inglês e franciscano, foi aluno e professor nas universidades de Oxford e de Paris. Faleceu em 1308.Suas obras principais são: a Obra Oxoniense , isto é, o tradicional comentário das sentenças de PedroLombardo; os Teoremas Sutilíssimos , as Questões Várias , a Obra Parisiense . Nestas obras revela-se umcrítico e um pensador de muito superior a São Boaventura.O agostinianismo de Scoto manifesta-se, antes de tudo, no conceito de filosofia, entendida comoinstrumento para entender a fé e não como obra autônoma do espírito, como julga Tomás de Aquino. E,por sua vez, a teologia não é - segundo Scoto - disciplina essencialmente especulativa - como julga Aquinate - mas unicamente prática, em conformidade com o espírito do voluntarismo agostiniano.

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 A gnosiologia iluminista-intuicionista agostiniana firma-se no escotismo não tanto como participaçãoda inteligência humana na luz divina, quanto como sendo a espontaneidade e a independência dointelecto com respeito ao sentido. Em todo caso, está contra o chamado empirismo aristotélico-tomista,conforme o qual o nosso conhecimento começa pela sensibilidade. Scoto concede, em linha de fato, oempirismo do nosso conhecimento; não o admite em linha de direito, como exige o tomismo. E isso seria

devido - segundo o doutor sutil - à escravidão da alma com respeito ao corpo, decorrente do pecado.Pelo contrário, deveria a alma, por sua natureza, conhecer diretamente as essências, não só as materiaismas também as espirituais.Na teodicéia, Scoto (contra a corrente agostiniana e em harmonia com o tomismo) ensina que Deus nãoé conhecido por intuição; a existência de Deus é demonstrável apenas com argumentos a posteriori ,embora procure também combinar esta demonstração com o argumento ontológico, a priori . Quanto ànatureza divina, o atributo essencial de Deus seria a infinidade.Na psicologia escotista aparece ainda uma doutrina inspirada no agostinianismo. É a doutrina doconhecimento intuitivo da essência da alma, princípio de todos os demais conhecimentos. E tambéminspira-se no agostinianismo a doutrina de certa independência da alma com respeito ao corpo; seria aalma, por natureza, uma substância completa.Com efeito, segundo Scoto, todos os seres, mesmos os espirituais, são compostos de matéria e de forma. A matéria não é mera potência, inexistente sem a forma, mas tem uma realidade sua própria; a formanão é única, mas há multiplicidade de formas em cada indivíduo. A individuação não depende da matéria(pelo que o indivíduo fica incognoscível intelectualmente), mas de um elemento formal individual,chamado haecceitas (que se sobrepõe à matéria por si subsistente e à hierarquia das formas); destarte,o indivíduo se tornaria intelectualmente cognoscível.Contra o intelectualismo tomista, Scoto sustenta a primazia da vontade: a vontade não depende dointelecto, mas o intelecto depende da vontade. A tarefa do homem é conhecer para querer e amar; navida eterna, Deus seria atingido, na visão beatífica, pela vontade, pelo amor e não pelo intelecto. Scotopõe também em Deus esse primado de vontade sobre o intelecto. Desse modo, as coisas criadas porDeus não dependem fundamentalmente da razão divina, e sim da vontade divina. E a própria ordem éticanão é intrinsecamente boa por motivo racional, mas unicamente porquanto é querida por Deus, quepoderia impor uma ordem moral oposta, em que, por exemplo, a mentira, o adultério, o furto, ohomicídio, etc., seriam ações morais, e imorais as ações opostas.

Guilherme de Occam

Guilherme de Occam é, ao mesmo tempo, um opositor e um discípulo de Scoto: discípulo, no sentidode que desenvolve o individualismo de haecceitas  escotista no nominalismo, que ele fez reviver noambiente experimental da universidade de Oxford, depois do realismo imanente aristotélico-tomista.Guilherme nasceu em Occam na Inglaterra pouco antes do ano de 1300; fez-se franciscano, estudou elecionou na Universidade de Oxford. Processado por heresia pela Santa Sé, refugiou-se junto doImperador, então em luta contra o Papa, e escreveu várias obras para defender o imperador contra aSanta Sé. Faleceu pelo ano 1350. Suas obras especulativas são, além do Comentário às Sentenças dePedro Lombardo: Sete Várias Questões , Suma de Toda a Lógica , Centilóquio Teológico .Segundo Occam, o conhecimento sensível é superior ao conhecimento intelectual, porquanto o primeiro éintuitivo, ao passo que o segundo é abstrato; o primeiro dá-nos a realidade, concreta e individual, ao

passo que o segundo nos dá apenas as semelhanças entre seres reais (as idéias gerais), e, porconseguinte, um conhecimento vago e confuso deles, que não nos permite distingui-los um do outro. Oconhecimento sensível dá-nos as relações reais entre as coisas reais (o nexo causal, que se conhece sópela experiência), ao passo que o conhecimento intelectual nos proporciona conhecer as relações lógicasentre conceitos abstratos, sem nada nos dizer em torno da realidade das coisas. Em conclusão, asensação é o sinal de um objeto na alma; o conceito é sinal de mais objetos percebidos comosemelhantes. O conceito, pois, é um sinal natural, representado pelo nome que é, porém, um sinalartificial, variável segundo as diversas línguas.

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Estamos na linha do experimentalismo inglês da Universidade de Oxford; desse experimentalismoderiva o empirismo, e deste deriva logicamente a ruína do conceito e, conseqüentemente, da ciência, dafilosofia, da moral, etc. E deriva também a ruína das próprias noções de substância e causa,indispensáveis à própria ciência natural, porquanto essas noções de substância e causa não sãoexperimentáveis. Pelo fato de a alma e Deus não serem sensíveis, segue-se que não são cognoscíveis.

Deus não se pode provar a posteriori  mediante o princípio de causalidade, válido empiricamente; etambém não se pode provar - pela via de causalidade - a alma, de que é impossível demonstrarcientificamente a imortalidade.Dado que em torno de Deus nada conhecemos filosoficamente, e dado outrossim o voluntarismo divinoescotista, a vontade de Deus é absolutamente livre para criar uma moral mesmo oposta à presente, epara estabelecer uma outra ordem sobrenatural (por exemplo, se Deus quisesse, o Verbo poderia Ter-seencarnado num burro). Destarte, a ciência humana reduz-se à física, que nos faz conhecer os seresmateriais, sensíveis, a lógica que nos ilustra as relações entre os conceitos. Portanto, nenhumametafísica: o conhecimento de Deus, da alma, da moral, etc., é abandonado inteiramente à Revelação, àfé (fideísmo). Esta absoluta divisão entre a razão e a fé, coloca o ocamismo em uma posição afim à doaverroísmo da dupla verdade. Com o diminuir da fé medieval e com o firmar-se do humanismo moderno,bem cedo a razão se porá contra a fé e a substituirá. O ocamismo tem um êxito vasto e imediato nosséculos XIV e XV; mas logo declina, degenerando num formalismo lógico. Com ele declina e,historicamente, termina a escolástica medieval.

Tomás de Aquino 

 A Vida e as Obras

 Após uma longa preparação e um desenvolvimento promissor, a escolástica chega ao seu ápice comTomás de Aquino. Adquire plena consciência dos poderes da razão, e proporciona finalmente aopensamento cristão uma filosofia. Assim, converge para Tomás de Aquino não apenas o pensamentoescolástico, mas também o pensamento patrístico, que culminou com Agostinho, rico de elementoshelenistas e neoplatônicos, além do patrimônio de revelação judaico-cristã, bem mais importante.Para Tomás de Aquino, porém, converge diretamente o pensamento helênico, na sistematização

imponente de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles, pois, chega a Tomás de Aquino enriquecido comos comentários pormenorizados, especialmente árabes.Nasceu Tomás  em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campânia, da família feudal dos condes de Aquino. Era unido pelos laços de sangue à família imperial e às famílias reais de França, Sicília e Aragão.Recebeu a primeira educação no grande mosteiro de Montecassino, passando a mocidade em Nápolescomo aluno daquela universidade. Depois de ter estudado as artes liberais, entrou na ordem dominicana,renunciando a tudo, salvo à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação por parte de suafamília; entretanto, Tomás triunfou da oposição e se dedicou ao estudo assíduo da teologia, tendo comomestre Alberto Magno, primeiro na universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colônia.Também  Alberto , filho da nobre família de duques de Bollstädt (1207-1280), abandonou o mundo eentrou na ordem dominicana. Ensinou em Colônia, Friburgo, Estrasburgo, lecionou teologia nauniversidade de Paris, onde teve entre os seus discípulos também Tomás de Aquino, que o acompanhoua Colônia, aonde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua ordem. A atividade científica

de Alberto Magno é vastíssima: trinta e oito volumes tratando dos assuntos mais variados - ciênciasnaturais, filosofia, teologia, exegese, ascética.Em 1252 Tomás voltou para a universidade de Paris, onde ensinou até 1269, quando regressou à Itália,chamado à corte papal. Em 1269 foi de novo à universidade de Paris, onde lutou contra o averroísmo deSiger de Brabante; em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou teologia. Dois anos depois, em 1274,viajando para tomar parte no Concílio de Lião, por ordem de Gregório X, faleceu no mosteiro deFossanova, entre Nápoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade. As obras do Aquinate podem-se dividir em quatro grupos:

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1.  Comentários : à lógica, à física, à metafísica, à ética de Aristóteles; à Sagrada Escritura; aDionísio pseudo-areopagita; aos quatro livros das sentenças de Pedro Lombardo.2. Sumas : Suma Contra os Gentios , baseada substancialmente em demonstrações racionais; Suma Teológica , começada em 1265, ficando inacabada devido à morte prematura do autor.3. Questões : Questões Disputadas (Da verdade , Da alma , Do mal , etc.); Questões várias .

4. Opúsculos : Da Unidade do Intelecto Contra os Averroístas ; Da Eternidade do Mundo , etc.

O Pensamento: A Gnosiologia

Diversamente do agostinianismo, e em harmonia com o pensamento aristotélico, Tomás considera afilosofia como uma disciplina essencialmente teorética, para resolver o problema do mundo. Consideratambém a filosofia como absolutamente distinta da teologia, - não oposta - visto ser o conteúdo dateologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional. A gnosiologia tomista - diversamente da agostiniana e em harmonia com a aristotélica - é empírica eracional, sem inatismos e iluminações divinas. O conhecimento humano tem dois momentos, sensível eintelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós,realiza-se mediante a assim chamada espécie sensível . Esta é a impressão, a imagem, a forma do objetomaterial na alma, isto é, o objeto sem a matéria: como a impressão do sinete na cera, sem amaterialidade do sinete; a cor do ouro percebido pelo olho, sem a materialidade do ouro.O conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas transcende-o. O intelecto vê em anatureza das coisas - intus legit - mais profundamente do que os sentidos, sobre os quais exerce a suaatividade. Na espécie sensível - que representa o objeto material na sua individualidade, temporalidade,espacialidade, etc., mas sem a matéria - o inteligível, o universal, a essência das coisas é contida apenasimplicitamente, potencialmente. Para que tal inteligível se torne explícito, atual, é preciso extraí-lo,abstraí-lo, isto é, desindividualizá-lo das condições materiais. Tem-se, deste modo, a espécie inteligível ,representando precisamente o elemento essencial, a forma universal das coisas.Pelo fato de que o inteligível é contido apenas potencialmente no sensível, é mister um intelecto agente que abstraia, desmaterialize, desindividualize o inteligível do fantasma ou representação sensível. Esteintelecto agente é como que uma luz espiritual da alma, mediante a qual ilumina ela o mundo sensívelpara conhecê-lo; no entanto, é absolutamente desprovido de conteúdo ideal, sem conceitos

diferentemente de quanto pretendia o inatismo agostiniano. E, ademais, é uma faculdade da almaindividual, e não noa advém de fora, como pretendiam ainda i iluminismo agostiniano e o panteísmoaverroísta. O intelecto que propriamente entende o inteligível, a essência, a idéia, feita explícita,desindividualizada pelo intelecto agente, é o intelecto passivo , a que pertencem as operações racionaishumanas: conceber, julgar, raciocinar, elaborar as ciências até à filosofia.Como no conhecimento sensível, a coisa sentida e o sujeito que sente, formam uma unidade mediante aespécie sensível, do mesmo modo e ainda mais perfeitamente, acontece no conhecimento intelectual,mediante a espécie inteligível, entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece. Compreendendo ascoisas, o espírito se torna todas as coisas, possui em si, tem em si mesmo imanentes todas as coisas,compreendendo-lhes as essências, as formas.É preciso claramente salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível não é a coisaentendida, quer dizer, a representação da coisa (id quod intelligitur) , pois, neste caso, conheceríamosnão as coisas, mas os conhecimentos das coisas, acabando, destarte, no fenomenismo. Mas, a espécie

inteligível é o meio pelo qual a mente entende as coisas extramentais (é, logo, id quo intelligitur ). E istocorresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos garante conhecermos coisas e nãoidéias; mas as coisas podem ser conhecidas apenas através das espécies e das imagens, e não podementrar fisicamente no nosso cérebro.O conceito tomista de verdade é perfeitamente harmonizado com esta concepção realista do mundo, e é justificado experimentalmente e racionalmente. A verdade lógica não está nas coisas e nem sequer nomero intelecto, mas na adequação entre a coisa e o intelecto: veritas est adaequatio speculativa mentis et rei . E tal adequação é possível pela semelhança entre o intelecto e as coisas, que contêm um elementointeligível, a essência, a forma, a idéia. O sinal pelo qual a verdade se manifesta à nossa mente, é a

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evidência; e, visto que muitos conhecimentos nossos não são evidentes, intuitivos, tornam-severdadeiros quando levados à evidência mediante a demonstração.Todos os conhecimentos sensíveis são evidentes, intuitivos, e, por conseqüência, todos os conhecimentossensíveis são, por si, verdadeiros. Os chamados erros dos sentidos nada mais são que falsasinterpretações dos dados sensíveis, devidas ao intelecto. Pelo contrário, no campo intelectual, poucos são

os nossos conhecimentos evidentes. São certamente evidentes os princípios primeiros (identidade,contradição, etc.). Os conhecimentos não evidentes são reconduzidos à evidência mediante ademonstração, como já dissemos. É neste processo demonstrativo que se pode insinuar o erro,consistindo em uma falsa passagem na demonstração, e levando, destarte, à discrepância entre ointelecto e as coisas. A demonstração é um processo dedutivo, isto é, uma passagem necessária do universal para o particular.No entanto, os universais, os conceitos, as idéias, não são inatas na mente humana, como pretendia oagostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se tiram fundamentalmente daexperiência, mediante a indução, que colhe a essência das coisas. A ciência tem como objeto estaessência das coisas, universal e necessária.

 A Metafísica

 A metafísica tomista pode-se dividir em geral e especial. A metafísica geral - ou ontologia - tem comoobjeto o ser em geral e as atribuições e leis relativas. A metafísica especial estuda o ser em suas grandesespecificações: Deus, o espírito, o mundo. Daí temos a teologia racional - assim chamada, para distingui-la da teologia revelada; a  psicologia racional  (racional, porquanto é filosofia e se deve distinguir damoderna psicologia empírica, que é ciência experimental); a cosmologia ou filosofia da natureza (queestuda a natureza em suas causas primeiras, ao passo que a ciência experimental estuda a natureza emsuas causas segundas).O princípio básico da ontologia  tomista é a especificação do ser em potência e ato. Ato  significarealidade, perfeição;  potência  quer dizer não-realidade, imperfeição. Não significa, porém, irrealidadeabsoluta, mas imperfeição relativa de mente e capacidade de conseguir uma determinada perfeição,capacidade de concretizar-se. Tal passagem da potência ao ato é o vir-a-ser , que depende do ser que éato puro; este não muda e faz com que tudo exista e venha-a-ser. Opõe-se ao ato puro a potência pura

que, de per si, naturalmente é irreal, é nada, mas pode tornar-se todas as coisas, e chama-se matéria. A Natureza

Uma determinação, especificação do princípio de potência e ato, válida para toda a realidade, é oprincípio da matéria e de forma. Este princípio vale unicamente para a realidade material, para o mundofísico, e interessa portanto especialmente à cosmologia tomista. A matéria não é absoluto, não-ente; é,porém, irreal sem a forma, pela qual é determinada, como a potência é determinada, como a potência édeterminada pelo ato. É necessária para a forma, a fim de que possa existir um ser completo e real(substância ). A forma  é a essência das coisas (água, ouro, vidro) e é universal. A individuação, aconcretização da forma, essência, em vários indivíduos, que só realmente existem (esta água, este ouro,este vidro), depende da matéria, que portanto representa o princípio de individuação no mundo físico.Resume claramente Maritain esta doutrina com as palavras seguintes: "Na filosofia de Aristóteles e 

Tomás de Aquino, toda substância corpórea é um composto de duas partes substanciais complementares, uma passiva e em si mesma absolutamente indeterminada (a matéria), outra ativa e determinante (a forma)" . Além destas duas causas constitutivas (matéria e forma), os seres materiais têm outras duas causas: acausa eficiente e a causa final. A causa eficiente é a que faz surgir um determinado ser na realidade, é aque realiza o sínolo , a saber, a síntese daquela determinada matéria com a forma que a especifica. Acausa final é o fim para que opera a causa eficiente; é esta causa final que determina a ordem observadano universo. Em conclusão: todo ser material existe pelo concurso de quatro causas - material , formal ,

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eficiente , final ; estas causas constituem todo ser na realidade e na ordem com os demais seres douniverso físico.

O Espírito

Quando a forma é princípio da vida, que é uma atividade cuja origem está dentro do ser, chama-se alma .Portanto, têm uma alma as plantas (alma vegetativa: que se alimenta, cresce e se reproduz), e osanimais (alma sensitiva: que, a mais da alma vegetativa, sente e se move). Entretanto, a  psicologia racional , que diz respeito ao homem, interessa apenas a alma racional. Além de desempenhar as funçõesda alma vegetativa e sensitiva, a alma racional entende e quer, pois segundo Tomás de Aquino, existeuma forma só e, por conseguinte, uma alma só em cada indivíduo; e a alma superior cumpre as funçõesda alma inferior, como a mais contém o menos.No homem existe uma alma espiritual - unida com o corpo, mas transcendendo-o - porquanto além dasatividades vegetativa e sensitiva, que são materiais, se manifestam nele também atividades espirituais,como o ato do intelecto e o ato da vontade. A atividade intelectiva é orientada para entidades imateriais,como os conceitos; e, por conseqüência, esta atividade tem que depender de um princípio imaterial,espiritual, que é precisamente a alma racional. Assim, a vontade humana é livre, indeterminada - aopasso que o mundo material é regido por leis necessárias. E, portanto, a vontade não pode ser senão afaculdade de um princípio imaterial, espiritual, ou seja, da alma racional, que pelo fato de ser imaterial,isto é, espiritual, não é composta de partes e, por conseguinte, é imortal.Como a alma espiritual transcende a vida do corpo depois da morte deste, isto é, é imortal, assimtranscende a origem material do corpo e é criada imediatamente por Deus, com relação ao respectivocorpo já formado, que a individualiza. Mas, diversamente do dualismo platônico-agostiniano, Tomássustenta que a alma, espiritual embora, é unida substancialmente ao corpo material, de que é a forma.Desse modo o corpo não pode existir sem a alma, nem viver, e também a alma, por sua vez, ainda queimortal, não tem uma vida plena sem o corpo, que é o seu instrumento indispensável.

Deus

Como a cosmologia e a psicologia tomistas dependem da doutrina fundamental da potência e do ato,

mediante a doutrina da matéria e da forma, assim a teologia racional  tomista depende - e maisintimamente ainda - da doutrina da potência e do ato. Contrariamente à doutrina agostiniana quepretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás sustenta que Deus não é conhecidopor intuição, mas é cognoscível unicamente por demonstração; entretanto esta demonstração é sólida eracional, não recorre a argumentações a priori , mas unicamente a posteriori , partindo da experiência, quesem Deus seria contraditória. As provas tomistas da experiência de Deus são cinco: mas todas têm em comum a característica de sefirmar em evidência (sensível e racional), para proceder à demonstração, como a lógica exige. E aprimeira dessas provas - que é fundamental e como que norma para as outras - baseia-se diretamentena doutrina da potência e do ato. "Cada uma delas se firma em dois elementos, cuja solidez e evidênciasão igualmente incontestáveis: uma experiência sensível, que pode ser a constatação do movimento, dascausas, do contingente, dos graus de perfeição das coisas ou da ordem que entre elas reina; e umaaplicação do princípio de causalidade, que suspende o movimento ao imóvel, as causas segundas à causa

primeira, o contingente ao necessário, o imperfeito ao perfeito, a ordem à inteligência ordenadora".Se conhecermos apenas indiretamente, pelas provas, a existência de Deus, ainda mais limitado é oconhecimento que temos da essência divina, como sendo a que transcende infinitamente o intelectohumano. Segundo o Aquinate, antes de tudo sabemos o que Deus não é (teologia negativa), entretantoconhecemos também algo de positivo em torno da natureza de Deus, graças precisamente à famosadoutrina da analogia . Esta doutrina é solidamente baseada no fato de que o conhecimento certo de Deusse deve realizar partindo das criaturas, porquanto o efeito deve Ter semelhança com a causa. A doutrinada analogia consiste precisamente em atribuir a Deus as perfeições criadas positivas, tirando, porém, as

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imperfeições, isto é, toda limitação e toda potencialidade. O que conhecemos a respeito de Deus é,portanto, um conjunto de negações e de analogias; e não é falso, mas apenas incompleto.Quanto ao problemas das relações entre Deus e o mundo, é resolvido com base no conceito de criação,que consiste numa produção do mundo por parte de Deus, total, livre e do nada.

 A Moral

Também no campo da moral , Tomás se distingue do agostinianismo, pois a moral tomista éessencialmente intelectualista, ao passo que a moral agostiniana é voluntarista, quer dizer, a vontade nãoé condição de conhecimento, mas tem como fim o conhecimento. A ordem moral, pois, não depende davontade arbitrária de Deus, e sim da necessidade racional da divina essência, isto é, a ordem moral éimanente, essencial, inseparável da natureza humana, que é uma determinada imagem da essênciadivina, que Deus quis realizar no mundo. Desta sorte, agir moralmente significa agir racionalmente, emharmonia com a natureza racional do homem.Entretanto, se a vontade não determina a ordem moral, é a vontade todavia que executa livremente estaordem moral. Tomás afirma e demonstra a liberdade da vontade, recorrendo a um argumento metafísicofundamental. A vontade tende necessariamente para o bem em geral. Se o intelecto tivesse a intuição dobem absoluto, isto é, de Deus, a vontade seria determinada por este bem infinito, conhecidointuitivamente pelo intelecto. Ao invés, no mundo a vontade está em relação imediata apenas com serese bens finitos que, portanto, não podem determinar a sua infinita capacidade de bem; logo, é livre. Não émister acrescentar que, para a integridade do ato moral, são necessários dois elementos: o elementoobjetivo, a lei, que se atinge mediante a razão; e o elemento subjetivo, a intenção, que depende davontade. Analisando a natureza humana, resulta que o homem é um animal social (político) e portanto forçado aviver em sociedade com os outros homens. A primeira forma da sociedade humana é a família, de quedepende a conservação do gênero humano; a Segunda forma é o estado, de que depende o bem comumdos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e transcendente, se compreendecomo o indivíduo não é um meio para o estado, mas o estado um meio para o indivíduo. Segundo Tomásde Aquino, o estado não tem apenas função negativa (repressiva) e material (econômica), mas tambémpositiva (organizadora) e espiritual (moral). Embora o estado seja completo em seu gênero, fica, porém,

subordinado, em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à Igreja, que tem como escopo o bemeterno das almas, ao passo que o estado tem apenas como escopo o bem temporal dos indivíduos.

Filosofia e Teologia

Em torno do problema das relações entre filosofia e teologia , ciência e fé, razão e revelação, e maisprecisamente em torno do problema da função da razão no âmbito da fé, Tomás de Aquino dá umasolução precisa e definitiva mediante uma distinção clara entre as duas ordens. Com base no sólidosistema aristotélico, é eliminada a doutrina da iluminação, agostiniana, que levava inevitavelmente a umaconfusão da teologia com a filosofia. Destarte, é finalmente conquistada a consciência do que éconhecimento racional e demonstração racional, ciência e filosofia: é um lógico procedimento deprincípios evidentes para conclusões inteligíveis. E compreende-se, portanto, que não é possíveldemonstração racional em matéria de fé, onde os princípios são, para nós, não evidentes, transcendentes

à razão, mistérios, e igualmente ininteligíveis suas condições lógicas.Em todo caso, segundo o sistema tomista, a razão não é estranha à fé, porquanto procede da mesma Verdade eterna. E, com relação à fé, deve a razão desempenhar os papéis seguintes:1. A demonstração da fé, não com argumentos intrínsecos, de evidência, o que é impossível, mas comargumentos extrínsecos, de credibilidade (profecias, milagres, etc.), que garantem a autenticidade divinada Revelação.2. A demonstração da não irracionalidade do mistério e da sua conveniência, mediante argumentosprováveis.

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3. A determinação, enucleação e sistematização das verdades de fé, pelo que a sacra teologia éciência, e ciência em grau eminente, porquanto essencialmente especulativa, ao passo que, para osagostinianos, é essencialmente prática.Tomás, portanto, não confunde   como faz o agostinianismo - nem opõe   como faz o averroísmo   razão efé, mas distingue-as e as harmoniza. De modo que nasce uma unidade dialética profunda entre a razão e

a fé; tal unidade dialética nasce da determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana;esta determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana tornou possível a averiguação dasreais, efetivas vulnerações da natureza humana; estas vulnerações são filosoficamente, racionalmente,inexplicáveis. E demandam, por conseguinte, a Revelação e, precisamente, os dogmas do pecado originale da redenção pela cruz.

O Tomismo

O tomismo  afirma-se e caracteriza-se como uma crítica que valoriza a orientação do pensamentoplatônico-agostiniano em nome do racionalismo aristotélico, que pareceu um escândalo, no campocatólico, ao misticismo agostiniano. Ademais, o tomismo se afirma e se caracteriza como o início dafilosofia no pensamento cristão e, por conseguinte, como o início do pensamento moderno, enquanto afilosofia é concebida qual construção autônoma e crítica da razão humana.Sabemos que, segundo a concepção platônico-agostiniana, o conhecimento humano depende de umaparticular iluminação divina; segundo esta doutrina, portanto, o espírito humano está em relaçãoimediata com o inteligível, e tem, de certo modo, intuição do inteligível. A esta gnosiologia inatista,Tomás opõe francamente a gnosiologia empírica aristotélica, em virtude da qual o campo doconhecimento humano verdadeiro e próprio é limitado ao mundo sensível. Acima do sentido há, sim, nohomem, um intelecto; este intelecto atinge, sim, um inteligível; mas é um intelecto concebido como umafaculdade vazia, sem idéias inatas   é uma tabula rasa , segundo a famosa expressão   ; e o inteligível nadamais é que a forma imanente às coisas materiais. Essa forma é enucleada, abstraída pelo intelecto dascoisas materiais sensíveis.Essa gnosiologia é naturalmente conexa a uma metafísica e, em especial, a uma antropologia, assimcomo a gnosiologia platônico-agostiniana era conexa a uma correspondente metafísica e antropologia.Por isso a alma era concebida quase como um ser autônomo, uma espécie de natureza angélica, unida

extrinsecamente a um corpo, e a materialidade do corpo era-lhe mais de obstáculo do que instrumento.Por conseguinte, o conhecimento humano se realizava não através dos sentidos, mas ao lado e acimados sentidos, mediante contato direto com o mundo inteligível; precisamente como as inteligênciasangélicas, que conhecem mediante as espécies impressas , idéias inatas. Vice-versa, segundo aantropologia aristotélico-tomista, sobre a base metafísica geral da grande doutrina da forma , a alma éconcebida como a forma substancial do corpo. A alma é, portanto, incompleta sem o corpo, ainda quedestinada a sobreviver-lhe pela sua natureza racional; logo, o corpo é um instrumento indispensável aoconhecimento humano, que, por conseqüência, tem o seu ponto de partida nos sentidos.Terceira característica do agostinianismo é o assim chamado voluntarismo, com todas as conseqüênciasde correntes da primazia da vontade sobre o intelecto. A característica do tomismo, ao contrário, é ointelectualismo, com a primazia do intelecto sobre a vontade, com todas as relativas conseqüências. Oconhecimento, pois, é mais perfeito do que a ação, porquanto o intelecto possui o próprio objeto, aopasso que a vontade o persegue sem conquistá-lo. Esta doutrina é aplicada tanto na ordem natural como

na ordem sobrenatural, de sorte que a bem-aventurança não consiste no gozo afetivo de Deus, mas navisão beatífica da Essência divina.

 A Existência de Deus é Evidente?

Sobre a existência de Deus, três questões se colocam:1. A existência de Deus é uma verdade evidente?2. Ela pode ser demonstrada?3. Deus existe?

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1.   Parece que a existência de Deus é evidente. Com efeito, chamamos verdades evidentes aquelascujo conhecimento está em nós naturalmente, como é o caso dos primeiros princípios. Ora, de acordocom o que diz Damasceno: "O conhecimento da existência de Deus é inato em todos". Por conseguinte, aexistência de Deus é evidente.2.    Por outro lado, são ditas evidentes as verdades que conhecemos desde que compreendamos os

termos que as exprimem. É o que o Filósofo (Últimos Analíticos, I, 3) atribui aos primeiros princípios dademonstração. De fato, quando sabemos o significado de todo o significado da parte, sabemos, deimediato, que o todo é maior que a parte. Ora, desde que tenhamos compreendido o sentido da palavra"Deus", estabelece-se, de imediato, que Deus existe. De fato, essa palavra designa uma coisa de talordem que não podemos conceber algo que lhe seja maior. Ora, o que existe na realidade e nopensamento é maior do que o que existe apenas no pensamento. Daí resulta que o objeto designadopela palavra Deus, que existe no pensamento, desde que se compreenda a palavra, também existe narealidade. Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.3.    Além disso, a existência da verdade é evidente. Pois, aquele que nega a existência da verdade,concorda que a verdade não existe. Mas se a verdade não existe, a não-existência da verdade é umaafirmação verdadeira. E se alguma coisa há de verdadeira, a verdade existe. Ora, Deus é a própriaverdade, segundo o que diz São João, 14, 6: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida". Por conseguinte, aexistência de Deus é evidente.Mas, em compensação, ninguém pode pensar o oposto do que é evidente, conforme nos mostra oFilósofo (Metafísica, 4 e Últimos Analíticos, I, 10), a propósito dos primeiros princípios da demonstração.Ora, o oposto da existência de Deus pode ser pensado, conforme diz o salmo 52, 1: "O insensato diz emseu coração que não há Deus". Logo, a existência de Deus não é evidente.Resposta     Temos duas maneiras para dizer que uma coisa é evidente. Ela o pode ser em si mesma enão por nós; ela o pode ser em si mesma e por nós. De fato, uma proposição é evidente quanto oatributo está incluído no sujeito, por exemplo: o homem é um animal. Animal, de fato, pertence à noçãode homem. Se, portanto, todos sabem o que são o sujeito e o atributo de uma proposição, essaproposição será conhecida de todos. É verdadeiro, pelos princípios das demonstrações, que os termossão coisas gerais que todos conhecem, como o ser e o não-ser, o todo e a parte, etc. Mas, se alguns nãosabem o que são o atributo e o sujeito de uma proposição, é certo que a proposição será evidente em simesma, mas não para aqueles que ignoram o que são sujeito e atributo. É por isso que Boécio diz:

"Certos juízos só são conhecidos pelos sábios, por exemplo, aquele segundo o qual os seres incorpóreosnão estão num mesmo lugar". Por conseguinte, eu afirmo que a proposição "Deus é", considerada em simesma, é evidente por si mesma, uma vez que o atributo é idêntico ao sujeito. Deus, de fato, é seu ser.Mas como não sabemos o que é Deus, ela não é evidente para nós; tem necessidade de ser demonstradapelas coisas que, menos conhecidas na realidade, o são mais para nós, isto é, pelos efeitos. À primeira objeção devemos responder que, em estado vago e confuso, o conhecimento da existência énaturalmente inato em nós, uma vez que Deus é a felicidade do homem. De fato, o homem desejanaturalmente a felicidade e, aquilo que ele deseja naturalmente, ele conhece naturalmente. Mas isto nãoé, propriamente falando, conhecer a existência de Deus; exatamente como se pudéssemos saber quealguém chega, sem conhecer Pedro, quando é o próprio Pedro que chega. Muitos, de fato, colocam osupremo bem do homem nas riquezas, outros o colocam nos prazeres, outros alhures. À segunda, podemos responder que aquele que ouve pronunciar a palavra Deus pode ignorar que essapalavra designa uma coisa tal que não se possa conceber algo que lhe seja maior. Alguns, com efeito,

acreditaram que Deus fosse um corpo. Mesmo que sustentemos que todos entendem a palavra Deusnesse sentido, isto é, no sentido de uma coisa tal que não se possa conceber algo que lhe seja maior,isto não significa que todos representam a existência dessa coisa como real e não como representação dainteligência. E não se pode concluir sua existência real salvo se se admite que essa coisa existerealmente. Ora, isso não é admitido por aqueles que rejeitam a existência de Deus. À terceira, devemos responder que a existência da verdade indeterminada é evidente por si mesma, masque a existência da primeira verdade não é evidente em si mesma para nós.

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 A Vontade Quer Necessariamente Tudo o Que Deseja?

Dificuldades:  Isso parece exato; de fato Dionísio diz que o mal está fora do objeto da vontade. Porconseguinte, ela tende necessariamente para o bem que lhe é proposto.O objeto está para a vontade assim como o motor está para o móvel. Ora, o movimento do móvel segue,

necessariamente, o impulso do motor. Por conseguinte, o objeto da vontade move-a necessariamente. Assim como o que é conhecido pelos sentidos é objeto da afetividade sensível, assim o que é conhecidopela inteligência é objeto do apetite intelectual ou vontade. Mas o objeto dos sentidos move,necessariamente, a afetividade sensível; segundo Santo Agostinho, os animais são arrastados pelo quevêem. Por conseguinte, parece que o objeto conhecido pela inteligência move a vontadenecessariamente.Entretanto: Santo Agostinho diz que a vontade é a faculdade pela qual pecamos ou vivemos segundo a justiça. Desse modo, ela é capaz de desejar coisas contrárias. Por conseguinte, ela não quer, pornecessidade, tudo o que deseja.Conclusão: Eis como podemos prová-lo. Assim como a inteligência adere, necessária e naturalmente,aos primeiros princípios, assim a vontade adere ao fim último. Ora, existem verdades que não possuemrelação necessária com os primeiros princípios; tais são as proposições contingentes cuja negação nãoimplica na negação desses princípios. A inteligência não concede, necessariamente, seu assentimento atais verdades. Mas existem proposições necessárias que possuem esta relação necessária; tais são asconclusões demonstrativas cuja negação significa a negação dos princípios. A estas últimas a inteligênciaconcede seu assentimento necessariamente, na medida em que reconhece a conexão das conclusõescom os princípios por meio de uma demonstração. Faltando isto, o assentimento não é necessário.O mesmo acontece com relação à vontade. Existem bens particulares que não possuem relaçãonecessária com a felicidade, visto que se pode ser feliz sem eles. A tais bens, a vontade não aderenecessariamente. Mas existem outros bens que implicam nessa relação; são aqueles pelos quais ohomem adere a Deus, pois é só nele que se acha a verdadeira felicidade. Todavia, antes que essaconexão seja demonstrada como necessária pela certeza da visão divina, a vontade não aderenecessariamente a Deus nem aos bens que a ele se relacionam. Mas a vontade daquele que vê Deus emsua essência adere necessariamente a Ele, do mesmo modo como agora nós queremos,necessariamente, ser felizes. Por conseguinte, é evidente que a vontade não quer, por necessidade, tudo

o que deseja.Solução: A vontade não pode tender para nenhum objeto, se este não se lhe apresenta como um bem.Mas como existe uma infinidade de bens, ela não é necessariamente determinada por um só. A causa motora produz, necessariamente, o movimento do móvel, no caso em que a força dessa causaultrapassa de tal maneira o móvel que toda capacidade que este tem de agir fica submetida à causa. Masa capacidade da vontade, na medida em que se dirige para o bem universal e perfeito, não pode estarinteiramente subordinada a qualquer bem particular. Desse modo, ela não é, necessariamente, acionadapor ele.

III - Latino

 As Ciências Naturais da Idade Helenista 

Como já salientamos, na idade helenista declina o vigor especulativo filosófico até ao ceticismo, e sedespedaça, tornando-se empírico nas ciências particulares. Concretiza-se nestas ciências o interesseteorético da época, incentivado também pela descoberta de países novos, fenômenos e fatos novos,graças às expedições de Alexandre, que chega até as Índias. As ciências particulares, por sua vez, vãoterminar fatalmente na prática, na técnica, para a satisfação das necessidades imediatas da vidaempírica, porquanto é impossível a consistência teórica dessas ciências sem a filosofia. O centro principaldessa cultura científica é Alexandria - como Atenas foi o grande centro da especulação filosófica. Em Alexandria congregavam-se, e daí partiam cientistas de todo o mundo civilizado, atingindo esta cidadeseu maior esplendor nos séculos III e II a.C. (Euclides, Arquimedes, Hiparco) e no II século d.C.

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(Ptolomeu). Em Alexandria havia o famoso Museu , rico de recursos científicos - bibliotecas,observatórios, gabinetes, jardins botânicos, jardins zoológicos, salas anatômicas, etc. - e que teve umalonga e gloriosa vida desde o III século a.C. até o IV século d.C.No presente parágrafo examinamos brevemente as principais ciências naturais cultivadas nesta época -matemática, física, astronomia, geografia, ciências naturais, medicina - particularmente em relação com o

saber enciclopédico. A contribuição da filosofia clássica; tal contribuição limita-se essencialmente àmatemática, ciência no sentido estrito como a filosofia, e a um certo complexo de observações empíricas,que serão valorizadas e sistematizadas na ciência moderna.Dos dois ramos da matemática floresceu, no mundo antigo, primeiro a geometria - III e II séculos a.C. -e depois a aritmética - séculos II e II d.C. Quanto à física, após um interesse teórico para com estaciência, prevaleceram interesses práticos, técnicos. Lembre-se a escola mecânica de Alexandria, jáfamosa no III século a.C., em que foram inventados relógios de água, máquinas hidráulicas, máquinas deguerra acionadas por ar comprimido, etc. A matemática e a física tiveram grandes cultores em Euclides e Arquimedes.Euclides  viveu em Alexandria no III século a.C., onde passou a vida toda entre o ensino, asistematização das descobertas matemáticas de seus predecessores e as suas pesquisas originais. É oautor dos afamados Elementos de Geometria , onde se trata com grande clareza e rigor científico degeometria plana, aritmética e estereogrande matemático e físico. Natural de Siracusa, estudou em Alexandria, voltando depois à pátria, aí dedicando-se por toda a vida a estudos e pesquisas dematemática, geometria e mecânica. De suas descobertas aproveitou-se também para a construção demáquinas de guerra, em defesa de Siracusa cercada pelos romanos durante a II guerra púnica. Apesarde ter o cônsul Marcelo ordenado aos soldados poupar a vida ao grande sábio, durante o saque dacidade foi morto por um soldado ignorante, repreendido pelo grande sábio porque perturbava seusestudos. "Noli turbare circulos meos ", teriam sido as suas últimas palavras.Quanto à astronomia e à geografia , floresceu antes e mais viçosamente aquela do que esta. A geografiacomeçou a ser cultivada no seu aspecto astronômico-matemático; só com Estrabão afirmou-se o caráterantrópico da geografia. Estrabão - 63 a.C. - 30 d.C., mais ou menos - nascido no Ponto, estudou em Alexandria e em Roma. Escreveu uma grande obra de Geografia , onde descreve sistematicamente, emdezessete livros, as regiões então conhecidas - Europa, Ásia, África - pondo especialmente em foco ainfluência do clima sobre o temperamento e o caráter humanos e sobre a organização social e política.

 A astronomia antiga conheceu a hipótese heliocêntrica, mas aderiu, em geral, ao geocentrismo. Ahipótese heliocêntrica é devida a Aristarco de Samos, pouco posterior a Aristóteles e de pouco anterior a Arquimedes - III século a.C. O geocentrismo foi elaborado por Eudóxio de Cnido (408-355 a.C.) discípulode Platão, e por Aristóteles no sistema das esferas homocêntricas ; o sistema astronômico era compostode cinqüenta e seis esferas concêntricas. A seguir foi desenvolvido e corrigido por  Apolônio de Perga(260-200 a.C.), que ensinou em Alexandria e em Pérgamo e foi um grande geômetra da Antigüidade juntamente com Euclides e Arquimedes; e também, mediante a teoria dos excêntricos, por Hiparco deNicéia do II século a.C., o qual viveu em Alexandria e em Rodes. Esta teoria desloca a terra do centro dasórbitas astrais para a circunferência, para poder explicar melhor e mais simplesmente os movimentoscelestes. Entretanto, o sistematizador definitivo do geocentrismo é Ptolomeu , vivido em Alexandria no IIséculo d.C., autor do assim chamado  Almagesto , mediante o qual a astronomia antiga foi transmitida eseguida até à Renascença. Ptolomeu julgou que devia integrar a astronomia com a astrologia, que seria oestudo dos influxos astrais sobre os fenômenos terrestres e, particularmente, sobre as vicissitudes

humanas. As ciências naturais propriamente ditas, já cultivadas por Aristóteles (zoologia) e Teofrasto (botânica),tiveram incremento na idade helenista. Primeiro, por meio das expedições militares de Alexandre, asquais levaram ao conhecimento da flora e da fauna das regiões novas, depois pelas grandes coleções doMuseu de Alexandria, dotada de jardins botânicos e zoológicos, como acima já dissemos. As ciênciasnaturais progrediram entretanto na idade helenista particularmente como ciências auxiliares da medicina  - anatomia e fisiologia - que, por sua vez, nesta época fez grandes progressos. Ao lado da antiga escola de Hipócrates, a qual explicava o organismo animal mediante a relação dosquatro humores fundamentais e é chamada escola dos dogmáticos , afirmam-se no século III a.C. em

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 Alexandria outras escolas, firmadas em princípios diferentes. Temos, por exemplo, a escola que tentaexplicar os fenômenos da vida pelas quatro forças fundamentais; esta escola fez descobertas importantessobre a circulação do sangue e sobre o sistema nervoso. Mais importante é a escola médica chamadaempírica que, em oposição à orientação teórica e especulativa das escolas precedentes, afirma o valor daexperiência direta, da observação dos sintomas do mal e do efeito dos remédios. Foi, inversamente,

eclético com tendências dogmáticas e hipocráticas Cláudio   Galeno  (131-210 d.C.), o maior médico da Antigüidade. Natural de Pérgamo, viveu longamente em Roma na qualidade de médico imperial e deixounumerosos escritos, que dominaram a cultura médica européia até além da Idade Média. Tenta elesintetizar a doutrina hipocrática dos quatro humores com a física aristotélica dos quatro elementos e dasquatro qualidades fundamentais da matéria - o calor, o frio, a secura, a umidade. Alicerça a medicina nafisiologia e na anatomia; afirma uma fisiologia teleológica, finalista, para explicar a formação e ofuncionamento dos órgãos; reconhece a vis medicatrix como fator essencial da terapia, não podendo omédico fazer outra coisa senão auxiliar esta força medicatrix . Tendo Galeno procurado coligar os fatosparticulares observados no mundo biológico aos princípios da física e da metafísica, segue-se que foitambém um filósofo. A sua filosofia é uma síntese do platonismo, estoicismo e, sobretudo, aristotelismo.

Características Gerais 

Julgamos seja preciso tratar do pensamento romano juntamente com a filosofia grega, porquantotambém o pensamento romano depende - em seus motivos teóricos, especulativos, metafísicos - dafilosofia grega; e precisamente depende da filosofia grega do terceiro período, de caráter pregmatista emoral, que colimava com o temperamento prático dos romanos. Antes, dos dois quesitos fundamentaisda filosofia moral grega - que coisa é o sumo bem, e como se realiza - os romanos se interessarampropriamente apenas pelo segundo.O gênio romano é oposto ao gênio grego, apesar de ambos os povos se originarem do mesmo troncoindo-europeu. O gênio romano cultua a primazia da prática, da atividade, do negotium (nos campos, nosquartéis, no foro), considerando o estudo, a especulação, a contemplação - que, segundo os gregos,representavam a mais alta tarefa da vida - como passatempos, lazeres, otia .E como as obras primas do gênio grego foram a filosofia e a arte, que sobrevivem imperecíveis aoacontecimento empírico da queda política da Grécia, base e germe de toda sólida construção especulativa

e de toda verdadeira obra artística, em oposição a todos os desvios passados e presentes, assim a obra-prima do gênio romano é o  jus , o direito, a idéia imperial, universal, que sobrevivem imperecíveis aoempírico fim político do império romano - do Ocidente e do Oriente -, norma e fundamento de uma vidacivilizada ideal, humana, justa, razoável, de permeio a toda a barbárie antiga e moderna. Após a conquista romana da Macedônia (168 a.C.), a Grécia tornava-se efetivamente parte do impérioromano. Começa, portanto, a influência grega sobre o mundo romano. Com meios coativos, políticos, éimpedida pelos conservadores - estando à frente Catão, o Antigo - os quais justamente percebiam operigo da perversão dos costumes na vida romana, acelerada pelo contato com a refinada civilizaçãohelenista. Um senatus-consulto, em 161 a.C., vedava a morada em Roma aos filósofos; é, porém, aúltima vitória dos conservadores; Roma procede fatalmente para o Império. Entre Roma e a Gréciaestabelecem-se e desenvolvem-se intensas relações culturais, favorecidas pelo partido iluminado chefiadopor Cipião Emiliano, Quíncio Flamínio, Paulo Emílio. Os jovens mais conspícuos das famílias aristocráticasromanas vão à Grécia e à Ásia Menor, Atenas e Rodes, para se aperfeiçoarem nos estudos, começados

geralmente na pátria sob direção de educadores gregos. E fazem isto não por interesses científicos, masporque o helenismo é considerado bom gosto, elegância, moda, elemento indispensável da alta culturaromana. Aliás, também a filosofia grega dirige-se para Roma. Antes de tudo, a famosa embaixada dos filósofosgregos ao senado romano em 155 a.C., composta de Carnéades, acadêmico, juntamente com Critolaus,peripatético e Diógenes, estóico, a qual segundo Plutarco, despertou grande contrariedade no velhoCatão. O epicurismo teve imediata, rápida e grande influência em Roma, o epicurista foi o primeiroromano que nos deixou um escrito filosófico: Lucrécio Caro, autor de De rerum natura . É esta uma dasmaiores obras da literatura latina, e, por conseqüência, testemunho do entusiasmo vivo e sincero com

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que foi aceito em Roma o epicurismo por um determinado grupo cultural - ainda que a obralucreciana seja desprovida de importância especulativa.

Ecletismo e Estoicismo

 As duas correntes mais importantes do pensamento romano são o ecletismo e o estoicismo. Amboscorrespondem à índole prática do gênio romano: o primeiro condiz com o pragmatismo positivo, otimista,da idade republicana; o segundo condiz com o pragmatismo negativo, pessimista, da idade imperial.O mais destacado expoente da primeira corrente é Marco Túlio Cícero  (106-43 a.C.), jurista e homempolítico literato e orador famoso. Não é, porém, igualmente ilustre no mundo filosófico. Carece deinteresse especulativo, de crítica e de sistema; o sistema filosófico de Cícero é uma forma depragmatismo eclético, sendo critério de verdade o útil moral. Seu mérito principal está no fato de que elefez ampla e eficazmente conhecer a Roma o pensamento helênico, traduzindo-o para a língua latina,criando um verdadeiro dicionário filosófico latino. Cícero tem mérito também como historiador da filosofiaantiga, de que representa uma fonte essencial, às vezes a única fonte, dada a sua cultura vasta eeclética. Em Atenas e em Rodes, Cícero foi discípulo de Filo, acadêmico, de Possidônio, estóico, e deFedro epicurista. O seu pensamento é, assim, um ecletismo com tendências acadêmicas e parafinalidades morais - conforme a segunda escola estóica grega.O estoicismo romano difere do estoicismo grego, porquanto - segundo a índole prática do gênio romano -limita-se quase exclusivamente aos problemas morais, que constituem o caráter essencial do estoicismo,descuidando quase que completamente dos problemas teoréticos, que no estoicismo são resolvidossegundo uma metafísica elementar e contraditória. Daí uma superioridade do estoicismo romano sobre oestoicismo grego; a profunda praxe ascética do estoicismo recebe, aliás, uma confirmação de alto valor,pela sua aceitação por parte de uma mentalidade positiva, realista, prática, qual era a mentalidaderomana. Os romanos, portanto, podem considerar-se quase naturalmente  estóicos; pelo menos osromanos da idade imperial, que fazem parte da oposição e se apegam à liberdade espiritual dopensamento, aonde não pode chegar o poder exterior, jurídico, político, tendo renunciado a todo o resto.Não é de admirar, por conseguinte, - deixando na sombra as questões teoréticas - terem os estóicosromanos exercido uma função prática, moral, quase religiosa. Procurar-se-á um filósofo, como os cristãosprocurarão um padre; toda grande casa terá um filósofo, como mais tarde terá o seu capelão. Sêneca e

Epicteto pertencem a esta classe de diretores espirituais.Entre os numerosos estóicos da idade imperial, apenas Sêneca, Musônio Rufo, Epicteto e Marco Aurélio -pertencentes ao primeiro e segundo século d.C. -, têm uma personalidade própria. E, entre estes, Sênecaé o maior como pensador, moralista e escritor epigramático.

Direito e Educação

O Direito Romano

 A obra universal e imperecível, que no Oriente foi a religião, na Grécia a filosofia, em Roma foi o direito ,segundo a índole prática do gênio romano. O direito romano não é uma filosofia do direito, mas umasistematização jurídica; não é uma construção teórica, mas a codificação de uma longa e vasta prática.Tal sistematização jurídica, todavia, implica numa concepção filosófica, numa filosofia do direito, num

direito natural, que o pensamento grego pode deduzir da sistematização jurídica romana. O pensamentogrego serviu à codificação do direito romano próprio e verdadeiro, se bem que os grandes jurisconsultosromanos teriam chegado sozinhos a esta codificação, do mesmo modo que Roma sozinha construiu o seuimpério.Certamente, para chegar à construção de um direito universal, natural, racional, humano, Roma teve quesuperar a própria nacionalidade. Instaurado o Império, Roma não desnatura o seu gênio político original,mas realiza-o, desenvolve-o, valoriza-o, pois Roma era naturalmente feita para se tornar a capital domundo, caput mundi . E, paralelamente, o direito romano no corpus juris  justiniano é o lógicodesenvolvimento do original germe jurídico, que, surgindo na família, expande-se através da cidade e do

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estado, e culmina no Império. Do direito civil chega até ao direito das gentes, antes, até aqueledireito natural, a que chega a filosofia pelos caminhos da razão.

 A Educação Romana

O espírito prático romano manifesta-se também na educação, que se inspirou, entre os romanos, nosideais práticos e sociais. Na história da educação romana podem-se distinguir três fases principais:  pré- helenista , helenista-republicana , helenista-imperial . A primeira e fundamental instituição romana deeducação é a família de tipo patriarcal, germe de uma sociedade mais vasta, que vai da cidade aoimpério: os  patres  governam a coisa pública. Educador é o pai, que na sociedade familiar romanadesempenha também as funções de senhor e de sacerdote -  paterfamilias . Nesta obra educativacolaborava também a mãe, especialmente nos primeiros anos e no concernente aos primeiros cuidadosdos filhos, sendo, em Roma, mais considerada a mulher do que na Grécia, dadas as suas predominantesqualidades práticas. O fim da educação é prático-social: a formação do agricultor, do cidadão, doguerreiro - salus reipublicae suprema lex esto . Essencialmente práticos e sociais são os meios: oexemplo, o treinamento ministrado pelo pai que faz o filho participar na sua atividade agrícola,econômica, militar e civil, a tradição doméstica e política - mos maiorum ; e a religião - pietas - entendidacomo prática litúrgica, sendo a religião, em Roma, diversamente do que era na Grécia, sumamente pobrede arte e de pensamento. E tudo isso sob uma disciplina severa. Enfim, prático-social era o próprioconteúdo teorético da educação, a instrução propriamente dita, que se reduzia a uma aprendizagemmnemônica de prescrições jurídicas, concisas e conceituosas - as leis das doze tábuas - que regulavam osdireitos e os deveres recíprocos naquela elementar mas forte sociedade agrícola-político-militar. A educação romana sofreu necessariamente uma profunda modificação, quando o antigo estado-cidade,desenvolvendo-se e expandindo-se para a nova forma do estado imperial - entre o terceiro e o segundoséculo a.C. - veio em contato com a nova civilização helênica, cuja irresistível fascinação também Romasofreu. Sentiu-se então a exigência de um novo sistema educativo, em que a instrução, especialmenteliterária, tivesse o seu lugar. Esta instrução literária partiu precisamente da cultura helênica. Primeiro sãotraduzidas para o latim as obras literárias e poéticas gregas - por exemplo, a Odisséia -, depois estudam-se os autores gregos no texto original, enfim se forma pouco a pouco uma literatura nacional romanasobre o modelo formal da grega. E, deste modo, a princípio é a literatura grega que se difunde em Roma,

depois, mediante a literatura, é o pensamento grego que penetra e se difunde, e afinal, através dopensamento, entra e se espalha a concepção grega da vida - porquanto estava pelo menos naspossibilidades do caráter latino.Evidentemente, a família não estava mais à altura de ministrar esta nova e mais elevada instrução. Asfamílias das mais altas classes sociais hospedam em casa um mestre, geralmente grego -  pedagogus oulitteratus . E, para atender às exigências culturais e pedagógicas das famílias menos abastadas, vão-se,aos poucos, constituindo escolas - ludi - de instituição privada sem ingerência alguma do estado. Essasescolas são de dois graus: elementares - a escola do litterator onde se aprendia a ler, escrever e calcular;médias - a escola do grammaticus - onde se ensinava a língua latina e a grega, se estudavam os autoresdas duas literaturas, através das quais se aprendia a cultura helênica em geral. Um terceiro grau será,enfim, constituído mediante as escolas de retórica , uma espécie de institutos universitários, que surgemcom uma diferenciação e uma especialização superior da escola de gramática. A sua finalidade era formar o orador, porquanto a carreira política representava, para o espírito prático

romano, o ideal supremo. E, portanto, o ensino da eloqüência abrangia toda a cultura, do direito até àfilosofia. O orador romano será o tipo do homem de ação, do político culto, em que a cultura éinstrumento de ação - negotium e, logo, para os romanos, coisa muito séria, em relação com a seriedadeda ação, e não simples distração - otium . Na reação dos conservadores contra a helenização da vidaromana, os censores publicavam um decreto que condenava a escola latina de retórica (92 a.C.), por ser"novidade contrária aos costumes e aos preceitos dos maiores", e é definida até como ludus impudentiae . Acabam, todavia, por triunfar os inovadores, e a cultura helênica e os mestres gregos afluem a Romasempre mais numerosos e bem acolhidos, enquanto a elite dos jovens romanos vai se aperfeiçoar noscentros de cultura helenista, especialmente em Atenas.

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Juntamente com a organização do império organizam-se também as escolas romanas. Por certo,vindo a faltar a liberdade, vem a faltar o interesse político da cultura; as escolas de retórica perdem afunção prática e social, transformando-se em meios de ornamento intelectual entre os lazeres de umaaristocracia cultural, o que, absolutamente falando, representa uma purificação da cultura no sentidoespeculativo, dianoético, grego; mas, relativamente ao espírito prático-social romano, significa uma

decadência para o diletantismo. Seja como for, o estado romano mostra agora apreciar a cultura.Começam os imperadores romanos por conceder imunidade e retribuições aos mestres de retórica aindadocentes em casas particulares; depois o estado passa a favorecer e promover a instituição de escolasmunicipais de gramática e de retórica nas províncias; enfim são fundadas cátedras imperiais,especialmente de direito, nos grandes institutos universitários.Um dos principais motivos de interesse imperial pela cultura e a sua difusão foi o fato de se ver nela umeficaz instrumento de romanização dos povos, um instrumento de penetração e de expansão da língua edos jus romano, um meio, em suma, para o engrandecimento do império. E o resultado foi fecundotambém para a cultura como tal, porquanto foi ela levada, embora modestamente, aqueles povos -Espanha, Gália, Grã-Bretanha, Germânia, províncias danubianas, África setentrional - a que o helenismonão pudera chegar. Tais escolas municipais foram tão vitais nas províncias, que muitas sobreviveram àqueda do império romano ocidental, transformando-se em escolas eclesiásticas graças ao monaquismocristão, e conservaram acesa na noite barbárica a chama da cultura clássica, preparadora dosesplêndidos renascimentos posteriores.O teórico da pedagogia romana pode ser considerado Quintiliano. Nasceu na Espanha no II século d.C.,foi professor de retórica em Roma, o primeiro docente pago pelo estado, quando Vespasiano eraimperador. Na Instituição Oratória , em doze livros, expõe o processo de formação do orador - cuja figuraideal já delineara Cícero no De Oratore . Faz Quintiliano uma exposição completa, propondo programas emétodos que foram em grande parte adotados sucessivamente nas escolas do império. A instituiçãoescolástica compreende os dois graus tradicionais de gramática e retórica. No curso de gramáticaensinam-se a língua latina e a língua grega, a interpretação dos poetas - Vergílio e Homero - e as noçõesnecessárias para este fim. No curso de retórica ensinam-se a interpretação dos historiadores - Lívio - edos oradores - Cícero -, o direito e a filosofia, enquanto fornecem o conteúdo essencial à arte oratória.Um lugar de destaque ocupam as normas e as exercitações de eloqüência, o fim supremo da educaçãoromana, segundo o espírito prático-político romana.

Período Religioso 

Características Gerais

O quarto e último período do pensamento grego denomina-se religioso , porque o espírito humanoprocura a solução integral do problema da vida na religião ou nas religiões. O problema da vida éagudamente sentido, pelo fato de ser profundamente sentido o problema do mal. Deste problema não seacha, racionalmente, uma explicação plena, e, por conseguinte, se recorre à concepção de uma quedaarcana, original, do espírito, de um conseqüente encarceramento do espírito no corpo, e de umapurificação e libertação ascética e mística. A desconfiança do conhecimento racional impede à evasãopara um conhecimento supra-racional, imediato, intuitivo, místico, da realidade absoluta, para arevelação, o êxtase. Assim, o pensamento grego, que partiu de uma religião - positiva -, e a demoliu

paulatina e criticamente nos grandes sistemas clássicos, volta, no seu término, para a religião. Já não setrata, porém, da velha religião grega, olímpica, homérica, absolutamente incapaz, devido aos seus limitesnaturalistas, humanistas, políticos, de resolver os grandes problemas transcendentes - do mal, da dor, damorte, do pecado - que nem sequer se propõe. Trata-se, ao contrário, das religiões orientais, semitas,místicas, misteriosóficas, especialmente propensas a estes problemas e fecundas em soluções do maisvivo interesse.No período religioso permanecem os problemas do período ético, mas singularmente acentuados;procura-se-lhes a solução mediante uma metafísica completada pela religião. Tentar-se-á a síntesefilosófica do dualismo platônico, do racionalismo aristotélico, do monismo estóico, e mais precisamente

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do transcendente divino platônico, do logos racional aristotélico, da alma estóica do mundo, em umaforma de triteísmo, em uma característica espécie de trindade divina. Nesta síntese metafísica prevaleceo platonismo, com a sua radical separação entre o mundo sensível e inteligível, com a sua extrematranscendência da divindade, com a sua doutrina de uma queda original, com a sua religiosidade e o seumisticismo. Mas na metafísica neoplatônica - obra-prima deste período religioso - tal transcendência,

característica do clássico dualismo grego, terminará no monismo emanatista.O último período do pensamento grego abrange os primeiros cinco séculos da era vulgar:substancialmente, a idade do império romano, de que a filosofia religiosa neoplatônica forma como que aestruturação ideal; e também a idade da patrística cristã, com que o neoplatonismo tem contatos,intercâmbio e polêmicas. O centro deste movimento filosófico é Alexandria do Egito, capital comercial,cultural, religiosa do mundo cosmopolita helenista-romano, encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente,sede do famoso Museu.O sistema metafísico predominante no período religioso é o neoplatonismo, e o seu maior expoente éPlotino  (III século d.C.), cuja vida e pensamento nos foram transmitidos pelo discípulo Porfírio. Oneoplatonismo, todavia, tem rumos precursores nos primeiros séculos da era vulgar: I - oriental, em Filo de Alexandria , que tenta a síntese do pensamento grego com a revelação hebraica, interpretada à luz dopensamento grego, mas a este supra-ordenada; II - ocidental, no novo pitagorismo, cujo maiorrepresentante é Apolônio de Tiana, e no  platonismo religioso , cujo maior expoente é Plutarco deQueronéia. E também teve o neoplatonismo desenvolvimento nos últimos séculos do império romano:1°. - na assim chamada escola siríaca , cuja mais notável expressão é Jâmblico, e exerceu também certainfluência política com o imperador Juliano Apóstata; 2°. - na chamada escola ateniense , cuja maisnotável expressão é Proclo, que sistematizou definitivamente e transmitiu aos pósteros o pensamentoneoplatônico. Com a escola ateniense acaba, também historicamente, o pensamento grego, peloencerramento dessa escola ordenado por Justiniano imperador (529 d.C.). Entretanto, o pensamentogrego - o pensamento platônico, pelo menos - já tinha sido assimilado pelo pensamento cristão patrístico,e a sua parte vital tinha sido transfundida e valorizada no cristianismo.

IV - O Pensamento Moderno

Transcendência Cristã e Imanência Moderna

 Achamos a característica específica do pensamento clássico na solução dualista do problema metafísico.Existem o mundo e Deus, mas são separados entre si: Deus não conhece, não cria, não governa omundo. Tal dualismo não será negado, mas desenvolvido no pensamento cristão mediante o conceito decriação, em virtude da qual é ainda afirmada a realidade e a distinção entre o mundo e Deus, mas Deus éfeito criador e regedor do mundo: o mundo não pode ter explicação a não ser em um Deus quetranscende o mundo. O  pensamento moderno , ao contrário, finaliza em uma concepção monista-imanentista do mundo e da vida: não somente Deus e o mundo são a mesma coisa, mas Deus éresolvido num mundo natural e humano. Consequentemente, não se pode mais falar em transcendênciade valores teoréticos e morais, religiosos e políticos, pois "ser" e "dever ser" são a mesma coisa, o "deverser" coincide com o "ser".É evidente que a passagem da concepção dualista (clássica) à concepção teísta (cristã) é umdesenvolvimento lógico, que se manifesta especulativamente no desenvolvimento tomista de Aristóteles.

Pelo contrário, a passagem da concepção tradicional, teísta, à concepção moderna, imanentista,representa teoricamente uma ruptura. O pensamento moderno, todavia, especialmente o pensamento daRenascença, tem seu precedente lógico no panteísmo neoplatônico, que   após ter-se afirmado comoextrema expressão do pensamento clássico   permanece através de todo o pensamento cristão emtentativas mais ou menos ortodoxas de síntese entre cristianismo e neoplatonismo (Pseudo Dionísio,Scoto Erígena, Mestre Eckart, etc.). E, por outra parte, o pensamento tradicional, helênico-escolástico,aristotélico-tomista, encontrará nos grandes valores da civilização moderna (a ciência natural, a técnica, ahistória, a política) sua integração lógica.

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Não se julgue demolir a filosofia medieval, a metafísica tomista, opondo à sua elementar e fantásticaciência da natureza a ciência moderna com suas grandes aplicações técnicas, pois não é a ciência natural

  capaz apenas de resolver os problemas da vida material, mas incapaz de resolver os problemas máximosda vida, espirituais, morais, religiosos   que pode decidir do valor de uma civilização. E a ciência natural daIdade Média não está absolutamente em conexão com o pensamento filosófico medieval; o próprio

Tomás de Aquino julgava logicamente que a filosofia podia ser uma só, em adequação à realidade, aopasso que admitia a possibilidade de uma ciência natural diversa daquela do seu tempo. Além disso, se,de fato, a escolástica pós-tomista, decadente, alimentou suspeitas e combateu longamente contra anascente ciência moderna, a favor da velha ciência natural aristotélica, a nova escolástica, isto é, o novotomismo, não teve dificuldade alguma em aceitar toda a ciência natural moderna, e, como tal, porquantoesta representa uma valor infra-filosófico, e, como tal, indiferente à filosofia, à metafísica.O valor da ciência moderna não é teorético, especulativo, metafísico, mas empírico e técnico. Tal eratambém o pensamento do grande fundador da ciência moderna, Galileu Galilei, que afirmava ser o objetoda ciência não as essências metafísicas das coisas, e sim os fenômenos naturais, experimentalmenteprovados e matematicamente conexos. E destes conhecimentos experimentais e matemáticos defenômenos naturais derivava ele as primeiras grandes aplicações técnicas da ciência moderna. Aplicaçõestécnicas que possuem também um valor espiritual, o do domínio natural do homem sobre a natureza:contanto que o homem reconheça, naturalmente, acima de si e de tudo, Deus.O que dissemos da ciência, podemos dizê-lo analogamente da história . A historiografia medieval é, semdúvida, insuficiente, ingênua, descuidada, pois, era escasso na mentalidade medieval o senso daconcretidade e da individualidade, sem o qual não é possível a história verdadeira e própria. Mas aconcepção medieval da história, que é a cristã e já teve a sua expressão clássica na Cidade de Deus de Agostinho é perfeitamente conciliável com a indagação histórica moderna, devendo esta última fornecerà primeira a sua rica contribuição de fatos, o seu profundo senso histórico, o seu interesse pelaconcretidade.Costuma-se inculpar a civilização medieval por ter aniquilado o estado nacional concreto, orgânico, paraconstruir uma unidade política grandiosa, mas abstrata, uma utopia universalista, como o Sacro Império Romano . No entanto, isto não foi senão uma expressão exterior daquela estrutura profunda que sechama a cristandade : equivalente civil da igreja católica , capaz de abraçar os mais diversos organismospolíticos. Nem se deve esquecer que precisamente na comuna medieval se encontra a primeira origem do

estado moderno , interiormente organizado e politicamente soberano. E é na Idade Média que se formamas grandes nações modernas. Noutras palavras, é na Idade Média que se formou o Estado distinto daIgreja, mas não leigo, imanentista, ateu, bem como o laicado distinto do clero e organizado civilmenteem graus de corporações, mas cristão, católico, romano.Poder-se-ia fazer notar que tal efetiva distinção e relativa autonomia do Estado (e do laicado) comrespeito à Igreja (e ao clero) foram alcançadas através de uma longa luta contra o predomínio e ainvasão destes últimos. Mas cumpre ter presente que, na alta Idade Média, no período bárbaro, nosséculos de ferro, a igreja romana e o clero católico desempenharam funções também leigas e profanas,como, por exemplo, a instrução cultural, a assistência hospitalar, e até a agricultura, a indústria, ocomércio, as comunicações, etc., pelo fato de que ninguém estava em condições de fazê-lo. E é devido aisso que a civilização não pereceu, e foi conservada para a idade moderna. Aliás, a Igreja católica estavaapta e disposta   a prescindir-se das intenções dos homens e de suas fraquezas fatais   a livrar-se dessescuidados estranhos gravosos e perigosos para o seu ministério transcendente e sobrenatural, quando os

homens e os tempos estivessem maduros. Basta lembrar, a este respeito, a atitude da Igreja,praticamente liberal, compreensiva e ativa com respeito ao Estado, desde os comunas medievais até àsgrandes monarquias européias do século XVII e ainda além.

Os Precedentes do Pensamento Moderno

Dada a ruptura lógica entre o pensamento tradicional, teísta, e o pensamento moderno, imanentista, nãose podem achar causas racionais dessa mudança, mas apenas práticas e morais. Em seguida virá a

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 justificação teórica da nova atitude espiritual, que será constituída por todo o pensamento modernoem seu desenvolvimento lógico.O grandioso edifício ideal da Idade Média, em que a religião e civilização, teologia e filosofia, Igreja eEstado, clero e laicado, estavam harmonizados na transcendente unidade cristã, foi, de fato, destruídopelo humanismo imanentista, que constitui o espírito característico do pensamento moderno. Este

pensamento começa com a prevalência dada aos interesses e aos ideais materiais e terrenos, com oconseqüente esquecimento dos interesses e ideais espirituais e religiosos; e torna-se completo com a justificação dos primeiros e a exclusão dos segundos. É precisamente o que acontece com os homensinteiramente entregues aos cuidados mundanos: primeiro se esquecem das coisas transcendentes, e, emseguida, querendo ser coerentes, negam-nas.Entretanto, se não há causas lógicas do pensamento moderno, há, porém, precedentes especulativos,que, valorizados pela nova atitude espiritual, se tornarão fontes especulativas do próprio pensamentomoderno. Tais precedentes especulativos podem ser resumidos desta forma: o panteísmo neoplatônico, oaristotelismo averroísta e o nominalismo ocamista, os quais foram-se afirmando contemporaneamente auma gradual decadência do genuíno pensamento escolástico (racional, teísta, cristão), especialmentetomista, com que se acham em oposição. E tal decadência cultural é acompanhada, por sua vez, peladecadência da Igreja e do Papado   o exílio avinhonês e o cisma do ocidente.O  panteísmo neoplatônico  teve a sua primeira grande manifestação, no âmbito do cristianismo, comScoto Erígena. Tentará afirmar-se de novo na própria época de Tomás de Aquino com Mestre Eckart, oiniciador da mística alemã. E receberá uma nova original elaboração do Humanismo com Nicolau de Cusa,que não pouco deve aos precedentes; e, sobretudo, com Giordano Bruno, o maior pensador daRenascença, o qual depende, por sua vez, de Nicolau de Cusa. O averroísmo latino afirmara na IdadeMédia a sua famosa doutrina das duas verdades : o que não é verdadeiro em filosofia pode ser verdadeiroem religião e vice-versa. Em uma idade cristã, como a Idade Média, a afirmação religiosa podia Ter aprevalência sobre a negação filosófica; obscurecendo-se a fé, como na Renascença, devia prevalecer umaconcepção anti-cristã, aristotélica ou não. O occamismo marca a conclusão lógica da decadente esolásticapós-tomista, apesar de seus partidários se comprazerem em denominá-la via modernorum . E, ao mesmotempo, apresenta um elemento fundamental da filosofia moderna com o seu empirismo e nominalismo.Nicolau de Cusa, Telésio, Bruno, Campanella serão também herdeiros do nominalismo empirista deOccam, que se combina, nos sistemas deles, com uma metafísica aventurosa de cunho particularmente

neoplatônico.Como é sabido, segundo Occam, o conhecimento humano é reduzido ao conhecimento sensível dosingular e, portanto, ao nominalismo. Conseqüência lógica e consciente é a destruição da metafísica, quetranscende o mundo empírico, sensível, bem como da ciência, que é entretecida de conceitos,impossíveis de nominalismo, de sorte que se esvai da teodicéia , porquanto não se pode provarracionalmente a existência de Deus, nem conhecer a sua natureza; e a  psicologia racional, pelo mesmomotivo. E, consequentemente, torna-se impossível a ética  racional, porque   sendo desconhecida aessência de Deus e destruída a do homem   a moral fica reduzida a um conjunto de preceitos arbitráriosde Deus, que o homem tem que observar por fé. Occam procurará salvar-se do ceticismo   conclusão doseu sistema, com todas as conseqüências práticas   mediante a fé. Entretanto é uma posiçãoinsustentável, porquanto a fé   não podendo mais ser um racional obséquio   torna-se uma adesão cega.Em época de religiosidade ainda viva, esse fideísmo ocamista pôde praticamente ficar de pé. Mas ruiráquando a fé vier a faltar, deixando o terreno livre ao empirismo, ao naturalismo, ao nominalismo, ao

ceticismo, imanentes ao ocamismo, e que constituirão tão grande parte do pensamento da Renascença,da Reforma e também do pensamento posterior.

Os Períodos do Pensamento Moderno

Este grande movimento especulativo, que é o pensamento moderno, naturalmente não se manifesta nasua significação imanentista senão na plenitude do seu desenvolvimento. Portanto, manifesta-se atravésde uma série de períodos, que se podem historicamente (e dialeticamente) indicar assim:

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1.    Antes de tudo a Renascença , em que a concepção imanentista, humanista ou naturalista, épotentemente afirmada e vivida. Trata-se, porém, de uma afirmação ainda não plenamente consciente esistemática, em que o novo é misturado com o velho. Este, muitas vezes, prevalece, ao menos naexterioridade da forma lógica e literária. A Renascença é preparada pelo Humanismo, e tem como seuequivalente religioso a reforma protestante.

2.    A este primeiro período do pensamento moderno, que, substancialmente, abrange os séculos XV eXVI, se seguem o racionalismo e o empirismo, que abrangem os séculos XVII e XVIII. Após a revoluçãorenascentista e protestante, sente-se a necessidade de uma séria indagação crítica, não para demoliraquelas intuições revolucionárias, mas, ao contrário, para dar-lhes uma sistematização lógica. É o quefará especialmente o racionalismo  em relação ao conhecimento racional.3.   E outro tanto fará e empirismo em relação ao conhecimento sensível. Empirismo e racionalismo sãotendências especulativas, gnosiológicas, opostas entre si, como a gnosiologia sensista está certamenteem oposição à gnosiologia intelectualista. Entretanto, concordam em um comum fenomenismo, pois, emambos, o sujeito é isolado do ser e fechado no mundo das suas representações. Não se conhecem ascoisas e sim o nosso conhecimento das coisas.4.   Empirismo e racionalismo, após uma lenta, gradual e silenciosa maturação, encontrarão uma saídaprática, social, política, moral, religiosa no iluminismo  e, portanto, na revolução francesa (Segundametade do século XVIII); esta representa a concreta realização do pensamento moderno na civilizaçãomoderna. Esse movimento começa na Inglaterra, triunfa na França e se espalha, em seguida, na Alemanha e na Itália.

Os Pensadores Renascentistas 

Os Pensadores

Do fundo eclético-neoplatônico do pensamento da Renascença se destacavam algumas figuras de maiorvulto, cuja série começa com Nicolau de Cusa e termina com Giordano Bruno. É uma nova concepçãofilosófica do mundo e da vida, ainda não bem claramente esboçada, de que seus próprios autores, àsvezes, não têm clara consciência. É uma época de transição, em que novo e velho se entretecemmutuamente.

Os sistemas filosóficos da época conservam a linguagem (latim) e a estrutura (silogística) da idadeprecedente. As intuições e afirmações naturalistas, humanistas e imanentistas estão ao lado dasprofissões de fé católica, feitas por motivos práticos, éticos e utilitários. Entretanto, debaixo dessasaparências, germina o pensamento moderno. É o crepúsculo que prenuncia a alvorada de um novo dia.

Nicolau de Cusa

Nicolau Krebs nasceu em 1401 em Cusa, de família modesta. Foi educado junto dos Irmãos da vida comum  em Deventer, onde sofreu a influência do misticismo alemão; em seguida estudou naUniversidade de Heidelberg, foco de nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu a matemática, odireito, a astronomia. Ordenado padre, teve parte notável no concílio de Basiléia (1432); foi, a seguir,legado pontifício, cardeal, bispo. Viveu seus últimos anos na Itália, onde faleceu em 1464. As obras fundamentais de Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia , De conjecturis , Apologia doctae 

ignorantiae . As fontes prediletas e principais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e oneoplatonismo cristão (Santo Agostinho, Pseudo Dionísio, Scoto Erígena, São Boaventura), e os autoresde tendência neoplatônica, em geral.Nicolau de Cusa admite, acima dos sentidos, dois graus do saber humano; a ratio e o intellectus . A ratio   ou intelecto discursivo   é a faculdade que abstrai das noções particulares os conceitos universais, eforma, em seguida, os juízos e os raciocínios. O seu objeto próprio é o conhecimento da multíplice e dofinito. No entanto, também a coisas finitas são imperfeitamente representadas pela ratio , cujoconhecimento se realiza mediante conceitos universais, ao passo que a realidade é constituída por seres

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individuais. Deus, uno e infinito, não pode certamente ser conhecido pela ratio , cujo objeto é omultíplice e o finito. Acima da ratio está o intellectus , atividade supra-racional iluminada pela fé ou pela mística, cujo objetopróprio é o Uno e o infinito, Deus. O agnosticismo de Nicolau de Cusa é, portanto, corrigido pelo fideísmoe pelo misticismo. A docta ignorantia consiste precisamente na consciência dos limites e da relatividade

da ratio , cujas deficiências são supridas pelo intellectus . Entretanto, esta iluminação é sobrenatural enada tem que ver com a filosofia, nem é de modo nenhum fundamentada por Cusano. Admitindo, pois,ele, que a razão não nos dá a realidade, segue-se logicamente que a sua filosofia deve finalizar noagnosticismo gnosiológico, e no panteísmo metafísico.Por certo, o piedoso cardeal foi, na intenção, ortodoxo, teísta, católico. Entretanto, o seu sistema encerrafatalmente uma tendência para o panteísmo. De fato, foi ele acusado de panteísmo emanatista, quandoainda vivia.

Bernardino Telésio

Mais claramente manifesta-se o imanentismo da Renascença   em seu aspecto naturalista   emBernardino Telésio . Nasceu em 1509 em Cosenza, estudou especialmente em Pádua e faleceu em1588. A sua obra fundamental é De rerum natura iuxta propria principia . O pensamento de Telésiorepresenta uma sistematização do naturalismo da Renascença: a saber, uma tentativa para explicar anatureza mediante os princípios universais imanentes à mesma natureza.O mundo natural é constituído de matéria e de força. A matéria é homogênea, preenche o espaço (queexiste antes da matéria) e é por si mesma inerte. A força  anima, penetra, move, transformacontinuamente toda a matéria.O intelecto é reduzido aos sentidos, bem como o conceito universal é reduzido à sensação. Como énaturalizado o pensamento, é também naturalizada a vontade, no sentido materialista e hedonista.Entretanto, haveria no homem também uma alma que transcende a natureza e o mundo material, criadae infundida por Deus. Por conseguinte, o homem pode pensar e querer o supra-sensível, o eterno, edominar com a vontade livre as tendências naturais. Desse modo, acima da ciência é posta e justificada afé e a revelação.

Giordano BrunoGiordano Bruno é a maior expressão do imanentismo renascentista. Nasceu em Nola em 1548, entrouna Ordem dos Dominicanos aos 15 anos. Acusado de heresia e afastado de sua ordem, iniciou uma vidagiróvaga através da Europa. De volta a Veneza, foi processado pelo tribunal da Inquisição e reconheceuos seus erros. Entregue à Inquisição romana, foi de novo processado; mas, desta vez, recusou qualquerretratação e foi condenado à morte, que lhe foi infligida em 1600. As obras principais de Bruno são: De la causa principio e uno ; De l'infinito, universo e mondi ; Eroici furori ; De immenso et innumerabilibus . As fontes de Bruno são: o monismo eleático e heraclíteo; oatomismo democríteo; o panteísmo estóico; o emanatismo neoplatônico; o naturalismo telesiano. A metafísica de Bruno é decididamente monista, pampsiquista e pan-materialista. A realidade é una einfinita, constituída por dois princípios fundamentais, ativo um   a alma do mundo      , passivo o outro   a matéria . São dois aspectos da mesma substância. A alma do mundo é concebida como sendo inteligente,

ordenadora do mundo; mas não é transcendente, como o motor primeiro de Aristóteles e o Deus docristianismo, e sim imanente ao mundo, de que é precisamente a alma. O Deus de Bruno é, pois, estaalma do mundo, concebida como imutável e infinita, gerando eternamente o mundo finito e que se achaem perpétuo vir-a-ser. As almas particulares não passam de individuações passageiras dessa almacósmica. Acima desse Deus imanente, também Bruno afirma a existência de um Deus transcendente,apreendido só por fé, trata-se, porém, de uma fé imanente naturalista, bem diversa da fé cristã.Com a metafísica de Bruno estão em conexão a sua gnosiologia e a sua moral. Na sua teoria doconhecimento Bruno distingue   neoplatonicamente   quatro graus, em ordem hierárquica ascendente. Sãoeles:

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os sentidos , cujo objeto é o sensível, e a verdade que manifesta é mera aparência;a razão , mediante a qual a verdade é atingida por processo dialético, discursivo, sucessivo;o intelecto , que tem a intuição imediata da verdade;a mente , que atinge a verdade na sua unidade e simplicidade absoluta.Quanto à moral  deve-se dizer o seguinte: na moral de Bruno aparece de um modo característico o

imanentismo e o humanismo do pensador. Bruno, em oposição à moral ascética e transcendente docristianismo, sustenta que o homem realiza a sua natureza, atinge a sua perfeição no furor heróico , asaber, na sua imanente e jubilosa participação racional na vida do Todo-um. É, pois, natural, que Brunoconsidere toda religião histórica, positiva (inclusive o cristianismo), como um saber infra-racional, mítico,simbólico, útil para dirigir moralmente o vulgo ignorante, e não como uma revelação supra-racional deum Deus transcendente. Pois não é isto possível no seu sistema imanentista.

Tomás Campanella

Tomás Campanella nasceu em Stilo, na Calábria, em 1568, e também ele entrou ainda moço na ordemdos Dominicanos. É o maior continuador de Telésio. Várias vezes processado por heresia, foi, porém,absolvido; entretanto, condenaram-no por motivos políticos e passou no cárcere 27 anos, sendo, enfim,libertado. Suas obras principais são: Civitas solis ; Universalis philosophia seu metaphisicarum rerum iuxta  propria dogmata partes tres ; De sensu rerum et magia libri X . As fontes principais do seu pensamento são: o naturalismo telesiano e o idealismo neoplatônico. Mais doque os pensadores precedentes, Campanella parece oscilar entre imanentismo e catolicismo, devido aofato de que se acha ele já no clima espiritual da contra reforma católica. E como Giordano Brunoprenuncia a Spinoza, assim Campanella prenuncia a Descartes, Malenbranche e Leibniz, marcandodestarte a passagem da Renascença à Idade Moderna.Quanto à gnosiologia , Campanella diz o seguinte: Admite ele um sensus inditus e um sensus additus . Oprimeiro oferece um conhecimento imediato de si mesmo; é um conhecimento fundamental, certíssimo,visto que o objeto coincide com o sujeito. Entretanto, o conhecimento do eu, a consciência, revelaimediatamente as limitações do eu e, logo, a existência as coisas que limitam o eu. Estas coisas sãoconhecidas pela percepção externa, isto é, pelo sensus additus que nos dá um conhecimento mediato dascoisas. Este, porém, não nos revela a natureza das coisas, e sim o sujeito modificado pelas coisas.

 Ainda inferiores ao sensus additus , pela certeza, são o intelecto e a razão, porque ainda mais se afastamdo sensus inditus , da imediata intuição de si mesmo. A razão , a saber, o poder de inferir o semelhante dosemelhante, é um sentido imperfeito; o intelecto , a saber, o conhecimento do universal é um sentidoelanguescido, pois o universal é uma noção genérica e confusa, cujo valor é unicamente prático, cômodopara resumir vários particulares. Campanella, como Telésio, desvaloriza a razão e o intelecto e admite, aolado e acima deles, um princípio divino, uma mente, o pensamento, que desempenha a função degarantir o nosso conhecimento e libertar-nos do ceticismo.Quanto à metafísica , salientamos que Campanella afirma de novo e acentua a animação universal, opampsiquismo telesiano. Propriamente, a metafísica de Campanella é a doutrina dos primeiros princípiosdo ser; são eles o poder , a sabedoria , o amor . Tais princípios são absolutos e puros em Deus, relativos eimperfeitos nas criaturas. Daí as coisas e o espírito serem uma mistura de ser e de não-ser (ser limitado),ao passo que Deus é puro ser (ser infinito).Sobre essa nossa limitação ontológica, Campanella alicerça a religião , que é aspiração do ser limitado

para o ser infinito. Para Campanella, a religião fundamental é a religião natural, racional; as religiõespositivas, históricas, seriam expressões empíricas da religião natural. A característica essencial da própriarevelação cristã e da igreja católica seria a restauração da religião natural, racional, universal,obscurecida pela ignorância e pela concupiscência. Portanto, o cristianismo seria reduzido à religiãonatural, a que a Renascença em geral aspira.Tal concepção filosófico-religiosa de Campanella teve uma expressão prática,  política e pedagógica, naCidade do Sol  (Civitas solis ), em que é exposta a sua utopia teocrático-comunista. Imagina ele umarepública ideal, professando uma religião natural, governada por leis universais, em que, à maneira dePlatão, o sábio é, ao mesmo tempo, monarca e sacerdote. Mais tarde, essa sua utopia teocrático-

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filosófica tomará uma forma teocrático-católica, com o papa à frente. Entretanto, o papa é concebidomais como chefe concreto de uma religião natural, do que como chefe de uma religião positiva esobrenatural, como o cristianismo. Campanella viveu longamente na prisão, afastado da vida real; suasobras, escritas no cárcere, manifestam uma mentalidade fantástica, idealista, utópica, em que falta aexperiência de uma vida social-concreta. "Tumultuária e aventurosa em muitos pontos   escreve Leonel

Franca   a obra de Campanella encerra não poucas idéias aproveitáveis. Cabe-lhe a prioridade de váriasteorias, atribuídas depois a Descartes e Bacon".

Baruch Spinoza 

Considerações Gerais

O pensamento de Descartes exercerá uma influência vasta no mundo cultural francês e europeu,diretamente até Kant e indiretamente até Hegel. E exerceu tal influência não tanto como sistemametafísico, quanto especialmente pelo espírito crítico, pelo método racionalista, implícito nas premissasdo sistema e realizado apenas parcialmente pelo filósofo.O desenvolvimento lógico do cartesianismo é representado por alguns grandes pensadores originais:Spinoza, Malebranche, Leibniz. Spinoza é a mais coerente e extrema expressão do racionalismo modernodepois do fundador e antes de Kant; Malebranche e Leibniz encontram, ao contrário, nas suaspreocupações práticas, religiosas e políticas, limitações ao desenvolvimento lógico e despreocupado doracionalismo.Ladeia estes três pensadores uma turma numerosa de cartesianos mais ou menos ortodoxos,particularmente na França na segunda metade do século XVII. Significativa é a influência que o criticismoe o racionalismo cartesianos exerceram sobre a cultura do século de Luís XIV, o século de ouro dacivilização francesa; sobre a arte de Racine e de La Fontaine, sobre a poética de Boileau, a ética de LaBruyère, o pensamento de Bayle.Descartes teve seguidores também em determinados meios religiosos de orientação platônico-agostiniana, mais ou menos ortodoxos. Os dois centros principais desse sincretismo são representadospelo Jansenismo e pelo Oratório. Brás Pascal, porém (se bem que, em parte, jansenista), grande físico ematemático, mas de um profundo sentimento religioso e cristão, parece ter tido intuição da falha da

filosofia cartesiana. À razão matemática, científica - espírito geométrico - que vale para o mundo naturalmas não chega até Deus, contrapõe a razão integral - esprit de finesse - que leva até o cristianismo.Descartes teve numerosos adversários e críticos no campo filosófico, entre os quais Hobbes. Entretanto,as oposições maiores contra o cartesianismo surgiram evidentemente no ambiente eclesiástico e político,quer católico quer protestante. Nesses ambientes houve a intuição de um perigo revolucionário para areligião e a ordem social, por causa do criticismo, mecanismo e infinidade do universo, próprios daquelafilosofia.E, no entanto, o cartesianismo forjou a mentalidade (racionalista-matemática) dos maiores filósofos atéKant. E também propôs os grandes problemas em torno dos quais girou a especulação desses filósofos, asaber: a relação entre substância finita de um lado, e entre espírito e matéria do outro. Daí surgiram oontologismo e o ocasionalismo de Malebranche, a harmonia preestabelecida de Leibniz e o panteísmopsicofísico de Spinoza.

Baruch Spinoza

O racionalismo cartesiano é levado a uma rápida, lógica, extrema conclusão por Spinoza. O problema dasrelações entre Deus e o mundo é por ele resolvido em sentido monista: de um lado, desenvolvendo oconceito de substância cartesiana, pelo que há uma só verdadeira e própria substância, a divina; de outrolado introduzindo na corrente racionalista-cartesiana uma preformada concepção neoplatônica de Deus, asaber, uma concepção panteísta-emanatista. O problema, pois, das relações entre o espírito e a matériaé resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. Uneos dois na mesma substância segundo um paralelismo psicofísico, uma animação universal, uma forma

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de pampsiquismo. Em geral, pode-se dizer que Descartes fornece a Spinoza o elementoarquitetônico, lógico-geométrico, para a construção do seu sistema, cujo conteúdo monista, em partederiva da tradição neoplatônica, em parte do próprio Descartes.Os demais racionalistas de maior envergadura da corrente cartesiana se seguem, cronologicamente,depois de Spinoza; entretanto, logicamente, estão antes dele, pois não têm a ousadia - em especial

Malebranche - de chegar até às extremas conseqüências e conclusões racionalista-monista, exigidaspelas premissas cartesianas, detidos por motivos práticos-religiosos e morais, que não se encontram emSpinoza. Com isto não se excluem, por parte deles, desenvolvimentos em outro sentido. Por exemplo,não se excluem os desenvolvimentos idealistas do fenomenismo racionalista por parte de Leibniz.

 Vida e Obras

Baruch Spinoza nasceu em Amsterdam em 1632, filho de hebreus portugueses, de modesta condiçãosocial, emigrados para a Holanda. Recebeu uma educação hebraica na academia israelita de Amsterdam,com base especialmente nas Sagradas Escrituras. Demonstrando muita inteligência, foi iniciado nafilosofia hebraica (medieval-neoplatônico-panteísta) e destinado a ser rabino.Mas, depois de se manifestar o seu racionalismo e tendo ele recusado qualquer retratação, foiexcomungado pela Sinagoga em 1656. Também as autoridades protestantes o desterraram comoblasfemador contra a Sagrada Escritura. Spinoza reitrou-se, primeiro, para os arredores de Amsterdam,em seguida para perto de Leida e enfim refugiou-se em Haia. Aos vinte e cinco anos de idade essefilósofo, sem pátria, sem família, sem saúde, sem riqueza, se acha também isolado religiosamente.Os outros acontecimentos mais notáveis na formação espiritual especulativa de Spinoza são: o contactocom Francisco van den Ende, médico e livre pensador; as relações travadas com alguns meios cristão-protestantes. Van den Ende iniciou-o no pensamento cartesiano, nas línguas clássicas, na cultura daRenascença; e nos meios religiosos holandeses aprendeu um cristianismo sem dogmas, de conteúdoessencialmente moralista. Além destes fatos exteriores, nada encontramos de notável exteriormente na breve vida de Spinoza,inteiramente dedicada à meditação filosófica e à redação de suas obras. Provia pois às suas limitadasnecessidades materiais, preparando lentes ópticas para microscópios e telescópios, arte que aprenderadurante a sua formação rabínica; e também aceitando alguma ajuda do pequeno grupo de amigos e

discípulos. Para não comprometer a sua independência especulativa e a sua paz, recusou uma pensãooferecida pelo "grande Condé"  e uma cátedra universitária em Heidelberg, que lhe propusera CarlosLudovico, eleitor palatino.Uma tuberculose enfraquecera seu corpo. Após alguns meses de cama, Spinoza faleceu aos quarenta equatro anos de idade, em 1677, em Haia. Deixou uma notável biblioteca filosófica; mas a sua herançamal chegou para pagar as despesas do funeral e as poucas dívidas contraídas durante a enfermidade.Um traço característico e fundamental do caráter de Spinoza é a sua concepção prática, moral, defilosofia, como solucionadora última do problema da vida. E, ao mesmo tempo, a sua firme convicção deque a solução desse problema não é possível senão teoreticamente, intelectualmente, através doconhecimento e da contemplação filosófica da realidade. As obras filosóficas principais de Spinoza são: a Ethica  (publicada postumamente em Amsterdam em1677), que constitui precisamente o seu sistema filosófico; o Tractatus theologivo-politicus  (publicadoanônimo em Hamburgo em 1670), que contém a sua filosofia religiosa e política.

 A princípio desconhecido e atacado, o pensamento de Spinoza acabou por interessar e influenciarparticularmente a cultura moderna depois de Kant (Lessing, Goethe, Schelling, Hegel, Schleiermacher,etc.), proporcionando ao idealismo o elemento metafísico monista, naturalmente filtrado através dacrítica kantiana.

O Pensamento: Deus

 A teologia de Spinoza é contida, substancialmente, no primeiro livro da Ethica  (De Deo) . Spinoza quereriadeduzir de Deus racionalmente, logicamente, geometricamente toda a realidade, como aparece pela

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própria estrutura exterior da Ethica ordine geometrico demonstrata . Não nos esqueçamos de que oDeus spinoziano é a substância única e a causa única; isto é, estamos em cheio no panteísmo. Asubstância divina é eterna e infinita: quer dizer, está fora do tempo e se desdobra em número infinito deperfeições ou atributos infinitos.Desses atributos, entretanto, o intelecto humano conhece dois apenas: o espírito e a matéria, a cogitatio  

e a extensio . Descartes diminuiu estas substâncias, e no monismo spinoziano descem à condição desimples atributos da substância única. Pensamento e extensão são expressões diversas e irredutíveis dasubstância absoluta, mas nela unificadas e correspondentes, graças à doutrina spinoziana do paralelismopsicofísico. A substância e os atributos constituem a natura naturans . Da natura naturans (Deus) procede o mundodas coisas, isto é, os modos . Eles são modificações dos atributos, e Spinoza chama-os natura naturata (omundo). Os modos distinguem-se em primitivos e derivados. Os modos primitivos  representam asdeterminações mais imediatas e universais dos atributos e são eternos e infinitos: por exemplo, ointellectus infinitus  é um modo primitivo do atributo do pensamento, e o motus infinitus  é um modoprimitivo do atributo extensão. As leis do  paralelismo psicofísico, que governam o mundo dos atributos, regem naturalmente todo omundo dos modos, quer primitivos quer derivados. Cada corpo tem uma alma, como cada alma tem umcorpo; este corpo constituiria o conteúdo fundamental do conhecimento da alma, a saber: a cada modode ser e de operar na extensão corresponde um modo de ser e de operar do pensamento. Nenhumaação é possível entre a alma e o corpo - como dizia também Descartes - e como Spinoza sustenta até ofundo. A lei suprema da realidade única e universal de Spinoza é a necessidade . Como tudo é necessário nanatura naturans , assim tudo também é necessário na natura naturata . E igualmente necessário é o liameque une entre si natura naturans e natura naturata . Deus não somente é racionalmente necessitado nasua vida interior, mas se manifesta necessariamente no mundo, em que, por sua vez, tudo é necessitado,a matéria e o espírito, o intelecto e a vontade.

O Homem

Do primeiro livro da Ethica  - cujo objeto é Deus - Spinoza passa a considerar, no segundo livro (De 

mente) , o espírito humano, ou, melhor, o homem integral, corpo e alma. A cada estado ou mudança daalma, corresponde um estado ou mudança do corpo, mesmo que a alma e o corpo não possam agirmutuamente uma sobre o outro, como já se viu.Não é preciso repetir que, para Spinoza, o homem não é uma substância. A assim chamada alma nadamais é que um conjunto de modos derivados, elementares, do atributo pensamento da substância única.E, igualmente o corpo nada mais é que um complexo de modos derivados, elementares, do atributoextensão da mesma substância. O homem, alma e corpo, é resolvido num complexo de fenômenospsicofísicos.Mesmo negando a alma e as suas faculdades, Spinoza reconhece várias atividades psíquicas: atividade teorética e atividade prática , cada uma tendo um grau sensível e um grau racional. A respeito do conhecimento sensível (imaginatio) , sustenta Spinoza que é ele inteiramente subjetivo: nosentido de que o conhecimento sensível não representa a natureza da coisa conhecida, mas oferece umarepresentação em que são fundidas as qualidades do objeto conhecido e do sujeito que conhece e dispõe

tais representações numa ordem fragmentária, irracional e incompleta.Spinoza distingue, pois, o conhecimento racional em dois graus: conhecimento racional universal  econhecimento racional particular . A ordem oferecida pelo conhecimento racional particular nada mais éque a substância divina; abrange ela, na sua unidade racional, os atributos infinitos e os infinitos modosque a determinam. E desse conhecimento racional intuitivo, místico, derivam necessariamente afelicidade e virtude supremas. Das limitações do conhecimento sensível decorrem o sofrimento e apaixão, dada a universal correspondência spinoziana entre teorético e prático.

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 Visto o paralelismo psicofísico de Spinoza, é claro que o conhecimento, no sistema spinoziano, não éconstituído pela relação de adequação entre a mente e a coisa, mas pela relação de adequação da mens  do sujeito que conhece a mens do objeto conhecido.

 A Moral

Como é sabido, Spinoza dedica ao problema moral e à sua solução os livros III, IV e V da Ethica . No livroIII faz ele uma história natural das paixões, isto é, considera as paixões teoricamente, cientificamente, enão moralisticamente. O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere ; assim se exprime Spinoza energicamente no proêmio ao II livro da Ethica . Tal atituderigidamente científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção universalmente determinista darealidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões podem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas, assuperfícies, as figuras geométricas.Depois de nos ter oferecido um sistema do mecanismo das paixões no IV livro da Ethica , Spinozaesclarece precisamente e particularmente a escravidão do homem sujeito às paixões. Essa escravidãodepende do erro do conhecimento sensível, pelo que o homem considera as coisas finitas como absolutase, logo, em choque entre si e com ele. Então a libertação das paixões dependerá do conhecimentoracional, verdadeiro; este conhecimento racional não depende, entretanto, do nosso livre-arbítrio, e simda natureza particular de que somos dotados.No V e último livro da Ethica , Spinoza esclarece, em especial, a condição do sábio, libertado daescravidão das paixões e da ignorância. O sábio realiza a felicidade e a virtude simultânea e juntamentecom o conhecimento racional. Visto que a felicidade depende da ciência, do conhecimento racionalintuitivo - que é, em definitivo, o conhecimento das coisas em Deus - o sábio, aí chegado, amaránecessariamente a Deus, causa da sua felicidade e poder. Tal amor intelectual de Deus é precisamente o júbilo unido com a causa racional que o produz, Deus. Este amor do homem para com Deus, é retribuídopor Deus ao homem; entretanto, não é um amor como o que existe entre duas pessoas, pois apersonalidade é excluída da metafísica spinoziana, mas no sentido de que o homem é idênticopanteisticamente a Deus. E, por conseguinte, o amor dos homens para com Deus é idêntico ao amor deDeus para com os homens, que é, pois, o amor de Deus para consigo mesmo (por causa precisamente

do panteísmo).Chegado ao conhecimento e à vida racionais, o sábio vive já na eternidade, no sentido de que temconhecimento eterno do eterno. A respeito da imortalidade da alma, devemos dizer que é excluídanaturalmente por Spinoza como sobrevivência pessoal porquanto pessoa e memória pertencem à imaginação . A imortalidade, então, não poderá ser entendida senão como a eternidade das idéiasverdadeiras, que pertencem à substância divina. De sorte que imortais, ou eternas, ou pela máxima parteimortais, serão as almas ou os pensamentos dos sábios, ao passo que às almas e aos pensamentos doshomens vulgares, como que limitados ao conhecimento e à vida sensíveis, é destinado o quase totalaniquilamento no sistema racional da substância divina.

 A Política e a Religião

Spinoza tratou particularmente do problema político e religioso no Tractatus theologico-politicus .

Considera ele o estado e a igreja como meios irracionais para o advento da racionalidade. As ações feitas- ou não feitas - em vista das penas ou dos prêmios temporais e eternos, ameaçados ou prometidos peloestado e pela igreja, dependem do temor e da esperança, que, segundo Spinoza, são paixões irracionais.Elas, entretanto, servem para a tranquilidade do sábio e para o treinamento do homem vulgar.No estado de natureza, isto é, antes da organização política , os homens se encontravam em uma guerraperpétua, em uma luta de todos contra todos. É o próprio egoísmo que impede os homens a se unirem, ase acordarem entre si numa espécie de pacto social, pelo qual prometem renunciar a toda violência,auxiliando-se mutuamente. No entanto, não basta o pacto apenas: precisa o homem do arrimo da forçapara sustentar-se. De fato, mesmo depois do pacto social, os homens não cessam de ser, mais ou

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menos, irracionais e, portanto, quando lhes fosse cômodo e tivessem a força, violariam, sem mais, opacto. Nem há quem possa opor-se a eles, a não ser uma força superior, porquanto o direito sem a forçanão tem eficácia. Então os componentes devem confiar a um poder central a força de que dispõem,dando-lhe a incumbência e o modo de proteger os direitos de cada um. Só então o estado everdadeiramente constituído. Entretanto, o estado, o governo, o soberano podem fazer tudo o que

querem: para isso têm o poder e, portanto, o direito, e se acham eles ainda no estado de pura natureza,do qual os súditos saíram.O estado, porém, não é dominador supremo, porquanto não é o fim supremo do homem. Seu fimsupremo é conhecer a Deus por meio da razão e agir de conformidade, de sorte que será a razão anorma suprema da vida humana. O papel do estado é auxiliar na consecução racional de Deus. Portanto,se o estado se mantivesse na violência e irracionalidade primitivas, pondo obstáculos ao desenvolvimentoracional da sociedade, os súditos - quando mais racionais e, logo, mais poderosos do que ele - rebelar-se-ão necessariamente contra ele, e o estado cairá fatalmente. Faltando-lhe a força, faltar-lhe-á tambémo direito. E de suas ruínas deverá surgir um estado mais conforme à razão. E, assim, Spinoza deduz doestado naturalista o estado racional.O outro grande instituto irracional a serviço da racionalidade é, segundo Spinoza, a religião , querepresentaria um sucedâneo da filosofia para o vulgo. O conteúdo da religião positiva, revelada, éracional; mas é a forma que seria absolutamente irracional, pois o conhecimento filosófico de Deusdecairia em uma revelação mítica; a ação racional, que deveria derivar do conhecimento racional com amesma necessidade pela qual a luz emana do sol, decairia no mandamento divino heterônomo, a saber,a religião positiva, revelada, representaria sensivelmente, simbolicamente, de um modo apto para amentalidade popular, as verdades racionais, filosóficas acerca de Deus e do homem; tais verdades podemaproveitar ao bem desse último, quando encarnadas nos dogmas. Por conseguinte, o que vale nosdogmas não seria a sua formulação exterior, e sim o conteúdo moral; nem se deveria procurar nelessentidos metafísicos arcanos, porque o escopo dos dogmas é essencialmente prático a saber: induzir àsubmissão a Deus e ao amor ao próximo, na unificação final de tudo e de todos em Deus.

De Aristóteles à Renascença 

Quando Esparta bloqueou e derrotou Atenas em fins do século V a.C., a supremacia política saiu das

mãos da mãe da filosofia e da arte gregas, e o vigor e a independência da inteligência ateniensedecaíram. Quando, em 399 a.C., Sócrates foi executado, a alma de Atenas morreu com ele, sobrevivendoapenas em seu orgulhoso discípulo, Platão. E quando Felipe da Macedônia derrotou os atenienses emQueronéia em 388 a.C. e Alexandre incendiou a grande cidade de Tebas por completo três anos depois,nem mesmo o fato de a casa de Píndaro ter sido ostensivamente poupada conseguiu encobrir a realidadede que a independência ateniense, no que se referia a governo e pensamento, estava destruída demaneira irrevogável. O domínio da filosofia grega pelo macedônio Aristóteles refletia a sujeição política daGrécia pelos povos viris e mais jovens do norte. A morte de Alexandre (323 a.C.) acelerou esse processo de decadência. O menino-imperador, ainda quecontinuasse bárbaro depois de toda educação recebida de Aristóteles, havia aprendido a reverenciar arica cultura da Grécia e sonhara em divulgar essa cultura pelo Oriente, na onda de seus exércitosvitoriosos. O desenvolvimento do comércio grego e a multiplicação dos postos de comercialização gregospor toda a Ásia Menor haviam proporcionado uma base econômica para a unificação daquela região

como parte de um império helênico; e Alexandre tinha a esperança de que, a partir daquelesmovimentados postos, tanto o pensamento grego como os produtos gregos fossem irradiar-se econquistar o mundo. Mas ele subestimara a inércia e a resistência da mentalidade oriental, e a massa e aprofundidade da cultura oriental. Não passava de um sonho juvenil, afinal, supor que uma civilização tãoimatura e instável quanto a da Grécia pudesse ser imposta a uma civilização incomensuravelmente maisdufundida e enraizada nas mais veneráveis tradições. A quantidade da Ásia mostrou-se demasiada para aqualidade da Grécia. O próprio Alexandre, na hora de seu triunfo, foi conquistado pela alma do Oriente;casou-se (dentre várias damas) com a filha de Dario; adotou o diadema e o manto de gala persas;introduziu na Europa a idéia oriental do divino direito dos reis; e por fim assombrou uma Grécia cética ao

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anunciar, num magnífico estilo oriental, que ele era um deus. A Grécia caiu na gargalhada; e Alexandre bebeu até morrer.Essa sultil infusão de uma alma asiática no corpo fatigado do senhor dos gregos foi seguida rapidamenteda abundante entrada de cultos e fés orientais na Grécia, pelas mesmas linhas de comunicação que o jovem conquistador havia aberto; os diques rompidos deixaram o oceano do pensamento ocidental

inundar as terras baixas da ainda adolescente mente européia. As crenças místicas e supersticiosas quehaviam adquirido raízes entre os povos mais pobres de Hélade foram reforçadas e divulgadas; e oespírito oriental de apatia e resignação encontrou um solo pronto na Grécia decadente e abatida. Aintrodução da filosofia estóica em Atenas, pelo mercador fenício Zenon (cerca de 310 a.C.), foi apenasuma das inúmeras infiltrações orientais. Tanto o estoicismo como o epicurismo - a apática aceitação daderrota e o esforço para esquecer a derrota nos braços do prazer - eram teorias sobre como o indivíduoainda poderia ser feliz, embora subjugado ou escravizado; precisamente como o pessimista estoicismooriental de Schopenhauer e o desalentado epicurismo de Renan foram, no século XIX, os símbolos deuma Revolução despedaçada e uma França quebrada.Não que essas antíteses naturais da teoria ética fossem de todo novas para a Grécia. Nós a encontramosno sombrio Heráclito e no "filósofo que ri", Demócrito; e vemos os discípulos de Sócrates dividindo-se emcínicos e cirenaicos sob a chefia de Antístenes e Aristipo e exaltando, uma escola, a apatia, e a outra, afelicidade. No entanto, mesmo naquela época tratava-se de modos quase exóticos de pensamento: a Atenas imperial não aderiu a eles. Mas quando a Grécia havia visto Queronéia em sangue e Tebas emcinzas, passou a ouvir Diógenes; e quando a glória havia partido de Atenas, ela estava no ponto paraZenon e Epicuro.Zenon ergueu sua filosofia da apatheia sobre um determinismo que um estóico posterior, Crisipo, achoudifícil distinguir do fatalismo oriental. Quando Zenon, que não acreditava na escravidão, estava batendonum escravo seu por causa de algum delito, o escravo alegou como atenuante que, segundo a filosofiade seu senhor, ele tinha sido destinado, por toda a aternidade, a cometer aquela falta; ao que Zenonreplicou, com a calma de um sábio, que, de acordo com a mesma filosofia, ele, Zenon, tinha sidodestinado a bater nele por causa dela. Assim como Schopenhauer achava inútil a vontade individual lutarcontra a vontade universal, os estóicos alegavam que a indiferença filosófica era a única atitude razoávelpara com uma vida na qual a luta pela existência está tão injustamente condenada a uma derrotainevitável. Se a vitória for inteiramente impossível, deve ser desdenhada. O segredo da paz não é tornar

nossas realizações iguais aos nossos desejos, mas baixar nossos desejos ao nível de nossas realizações."Se o que você possui lhe parece insuficiente, então, mesmo que você possua o mundo, ainda irá sentir- se infeliz" , disse o estóico romano Sêneca (m. 65 d.C.).Um princípio desses bradava aos céus pelo seu oposto, e Epicuro, embora tão estóico em vida quantoZenon, forneceu-o. Epicuro, diz Fenelon, "comprou um belo jardim, que ele mesmo cultivava. Foi lá que instalou sua escola, e ali vivia uma vida tranqüila e agradável com seus discípulos, aos quais ensinava enquanto andava e trabalhava.(...) Era delicado e afável para com todos os homens... Afirmava que nada havia de mais nobre do que uma pessoa dedicar-se à filosofia" . Seu ponto de partida é uma convicção deque a apatia é impossível, e que o prazer - embora não necessariamente o prazer sensual - é a únicafinalidade concebível, e perfeitamente legítima, da vida e da atividade. "A natureza faz com que cada organismo prefira o seu próprio bem a qualquer outro" ; até mesmo o estóico sente um prazer sutil narenúncia. "Não devemos evitar os prazeres, mas selecioná-los."  Epicuro, então, não é epicurista; eleexalta os prazeres do intelecto, mais do que os dos sentidos; previne contra os prazeres que excitem e

disturbem a alma, à qual, ao contrário, deveriam acalmar e tranqülizar. No fim, propõe que se procurenão o prazer no seu sentido usual, mas a ataraxia - tranqülidade, equanimidade, a paz do espírito; todosos quais oscilam à beira da "apatia" de Zenon.Os romanos, quando foram saquear Heléia em 146 a.C., encontraram essas escolas rivais dividindo ocampo filosófico; e, sem terem tempo nem sutileza para especulações, levaram de volta para Roma essasfilosofias, juntamente com outros produtos do seu saque. Os grandes organizadores, tanto quanto osescravos inevitáveis, tendem a estados de espírito estóicos: é difícil ser senhor ou servo se a pessoa forsensível. Por isso, a filosofia que Roma adotava era, em sua maioria, da escola de Zenon, seja em Marco Aurélio, o imperador, ou em Epíteto, o escravo; e até Lucrécio difundia estoicamente o epicurismo (como

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o inglês de Heine, divertindo-se melancolicamente), e concluiu sua vigorosa pregação do prazercometendo suicídio. Sua nobre epopéia, Sobre a Natureza das Coisas , acompanha Epicuro em condenar oprazer ao elogiá-lo sem entusiasmo. Quase contemporâneo de César e Pompéia, ele viveu em meio atorverlinhos e alarmes; sua pena nervosa está eternamente compondo orações à tranqülidade e à paz.Nós o imaginamos como uma alma tímida cuja juventude havia sido obscurecida por temores religiosos;

porque ele nunca se cansa de dizer a seus leitores que não existe inferno, exceto aqui, e que não existemdeuses, exceto deuses cavalheirescos, que vivem em um jardim de Epicuro nas nuvens e nunca seintrometem nos negócios dos homens. Ao crescente culto do céu e do inferno entre o povo de Roma, eleopõe um materialismo implacável. Alma e mente desenvolvem-se com o corpo, cresem com o seucrescimento, sofrem com seus sofrimentos, e morrem com a sua morte. Nada existe a não ser átomos,espaço e lei, e a lei das leis é a da evolução e da dissolução em toda parteCoisa alguma perdura, mas todas as coisas fluem. Fragmento se agarra a fragmento; as coisas crescem assim, 

 Até que ficamos conhecendo-as e lhes damos nomes. Aos poucos Elas se dissolvem e já não são mais as coisas que conhecemos.Englobados por átomos, caindo devagar ou depressa, Vejo os sóis, vejo os sistemas erguerem Suas formas; e até os sistemas e seus sóis Irão voltar lentamente à eterna deriva.Tu também, ó Terra - teus impérios, terras e mares - 

 A menor, com tuas estrelas, de todas as galáxias, Englobada da deriva como aquelas, como aquelas também tu Irás. Estás indo, a cada hora, como aquelas.Nada perdura. Teus mares, em suave neblina, Desaparecem; aquelas areias lunares abandonam seu lugar, E onde estão, outros mares irão, por sua vez, Cortar com suas alvas foices outras baías. À evolução e à dissolução astronômicas, acrescentem a origem e a eliminação das espécies.Muitos monstros também a Terra de antigamente tentou produzir, coisas de estranhas caras e membros; (...) alguns sem pés, alguns sem mãos, outros sem bocas, outros mais sem 

olhos. (...) Mais e mais monstros (...) desse tipo a Terra tentou produzir, mas em vão; porque a natureza proibiu o aumento do número deles, eles não podiam alcançar a cobiçada flor da idade, nem procurar comida, nem ser unidos em casamento; (...) e muitas raças de coisas vivas devem ter se extinguido, ficado impossibilitadas de procriar e continuar e continuar a linhagem. Porque no caso de todas as coisas que vós vedes respirando o sopro da vida, a astúcia, a coragem ou a velocidade vêm desde o início protegendo e preservando cada raça.(...) Aqueles aos quais a natureza não concedeu nenhuma dessas qualidades ficavam expostos para servirem de vítima e presa de outros, até que a natureza extinguisse a sua espécia. Também as nações, como os indivíduos, crescem lentamente e, com toda certeza, morrem: "algumas nações prosperam, outras decaem, e em pouco tempo as raças das coisas vivas são alteradas e, como corredores, passam adiante a lâmpada da vida" . Diante da guerra e da morte inevitável, não hásabedoria a não ser a ataraxia  - "encarar todas as coisas com serenidade de espírito" . Aqui,

evidentemente, toda a velha alegria pagã de viver desapareceu, e um espírito quase exótico toca umalira quebrada. A história, que nada é a não ser humorista, nunca foi tão brincalhona como quando deu aesse abstêmio e épico pessimista o nome de epicurista.E se for esse o espírito do adepto de Epicuro, imaginem o inebriante otimismo de estóicos declaradoscomo Aurélio ou Epíteto. Nada, em toda a literatura, é tão deprimente quanto as Dissertações  doescravo, a menos que se trate das Meditações  do imperador. "Não procure fazer com que as coisas aconteçam segundo a sua preferência, mas prefira que elas aconteçam como têm de acontecer, e assim viverá com prosperidade." Não há dúvida de que é possível assim, ditar o futuro e fingir que dominamoso universo. Segundo consta o senhor de Epíteto, que o tratava com uma crueldade inalterável, certo dia

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decidiu torcer-lhe a perna para passar o tempo. "Se continuar" , disse Epíteto com calma, "vai quebrar a minha perna." O senhor continuou, e a perna se quebrou. "Eu não lhe disse" , observou Epítetomansamente, "que o senhor iria quebrar minha perna?"  No entanto, há uma certa nobilidade místicanessa filosofia, como na tranqülia coragem de um pacifista dostoievskiano. "Nunca diga, de qualquer modo, 'perdi isso assim, assim'; e sim, 'eu restituí tal coisa'. Tua filha morreu? Foi restituída. Tua mulher 

morreu? Foi restituída. Perdeste os teus bens? Também não foram restituídos?"  Em trechos assim,sentimos a proximidade do cristianismo e seus intrépidos mártires; de fato, não eram a ética cristã daabnegação, o ideal político cristão de uma fraternidade quase comunista do homem, e a escatologiacristã da conflagração final do mundo inteiro, fragmentos da doutrina estóica flutuando na corrente dopensamento? Em Epíteto, a alma greco-romana perdeu o seu paganismo e está pronta para uma nova fé.Seu livro teve a distinção de ser adotado como manual religioso pela primitiva Igrja Cristã. DessasDissertações e das Meditações de Aurélio há apenas um passo para A Imitação de Cristo .Enquanto isso, o ambiente histórico derretia-se para formar cenas mais novas. Há um notável trecho emLucrécio que descreve a decadência da agricultura no Estado romano e a atribui à exaustão do solo. Sejaqual for a causa, a riqueza de Roma transformou-se em pobreza, a organização em desintegração, opoder e o orgulho em decadência e apatia. Cidades voltaram a fundir-se com o interior sem distinção; asestradas ficaram sem manutenção e já não ecoavam a agitação do comércio; as pequenas famílias dosromanos de instrução eram ultrapassadas, em número, pelos vigorosos alemães sem instrução quecruzavam, ano após ano, a fronteira; a cultura pagã cedeu aos cultos orientais; e, quase queimperceptivelmente, o império se transformou em papado. A Igreja, apoiada nos primeiros séculos pelos imperadores cujos poderes ela absorveu aos poucos, teveum aumento rápido no número de adeptos, na riqueza e no raio de influência. No século XIII, já possuíaum terço do solo da Europa, e seus cofres estavam inchados com donativos de ricos e pobres. Durantemil anos, ela uniu, com a magia de uma crença invariável, a maior parte dos povos de um continente;nunca houve, antes ou depois, uma organização tão difundida e tão pacífica. Mas essa unidade exigia,como pensava a Igreja, uma fé comum exaltada por sanções sobrenaturais acima das mudanças e dascorrosões do tempo; portanto, o dogma, definitivo e definido, foi colocado como uma concha sobre amentalidade adolescente da Europa medieval. Era dentro dessa concha que a filosofia escolástica sedeslocava acanhadamente entre fé e razão e vice-versa, num desconcertante circuito de pressupostosnão criticados e conclusões pré-ordenadas. No século XIII, toda a cristandade ficou assustada e

estimulada por traduções árabes e judaicas de Aristóteles; mas o poder da Igreja ainda era suficientepara garantir, através de Tomás de Aquino e outros, a transformação de Aristóteles em um teólogomedieval. O resultado foi a sutileza, mas não a sabedoria. "A inteligência e a mentalidade do homem" ,como disse Bacon, "se trabalharem com a matéria, trabalham segundo a substância desta e por ela ficarão limitados; mas se trabalharem consigo mesmo, serão intermináveis e produzirão realmente teias de saber, admiráveis pela delicadeza do fio e do trabalho, mas sem substância ou proveito." Mais cedo oumais tarde, o intelecto da Europa iria irromper de dentro dessa concha.Depois de mil anos de cultivo, o solo voltou a florescer; os bens se multiplicaram, criando excedentes quelevaram ao comércio; e o comércio em suas encruzilhadas voltou a construir grandes cidades nas quaisos homens podiam cooperar para estimular a cultura e reconstruir a civilização. As Cruzadas abriram oscaminhos para o Oriente e permitiram a entrada de uma torrente de artigos de luxo e heresias quecondenaram à morte e ascetismo e o dogma. O papel, agora, chegava barato do Egito, substituindo ocaro pergaminho que tornara o saber um monopólio dos sacerdotes; a imprensa, que durante muito

tempo esperava por um meio barato, estourou como um explosivo libertado e espalhou sua influênciadestruidora e esclarecedora por toda parte. Bravos navegantes, armados agora de bússolas,aventuraram-se na imensidão dos mares e conquistaram a ignorância do homem a respeito da Terra;observadores pacientes, armados de telescópios, aventuraram-se para além dos confins do dogma econquistaram a ignorância do homem quanto ao céu. Aqui e ali, em universidades, mosteiros e retirosescondidos, homens deixaram de disputar e começaram a investigar; por via indireta, graças aos esforçosno sentido de transformar metais inferiores em ouro, a alquimia foi transformada em química; daastrologia, os homens foram tateando com tímida ousadia para a astronomia; e das fábulas dos animaisque falavam veio a ciência da zoologia. O despertar começou com Roger Bacon (m. 1294); aumentou

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com o ilimitado Leonardo (1452-1519); alcançou sua plenitude na astronomia de Copérnico (1473-1543) e Galileu (1564-1642), nas pesquisas de Gilbert (1544-1603) sobre magnetismo e eletricidade, de Vesálio (1514-1564) em anatomia, e de Harvey (1578-1657) sobre a circulação do sangue. À medida queaumentava o conhecimento, diminuía o medo; os homens pensavam menos em adorar o desconhecido, emais em dominá-lo. Todo espírito vital foi estimulado por uma nova confiança; barreiras foram

derrubadas; não havia limites, agora, para o que o homem poderia fazer. "O fato de pequenos navios,como os corpos celestes, navegarem à volta do mundo inteiro, é a felicidade da nossa era. Esta época  pode usar, com toda justiça, plus ultra" (mais além) "onde os antigos usavam non plus ultra." Foi umaera de realizações, esperança e vigor; de novos começos e empreendimentos em todos os campos; erauma era que esperava por uma voz, uma alma sintética para resumir o seu espírito e decidir. Foi FrancisBacon, "a mais poderosa inteligência dos tempos modernos, que tocou a sineta que reuniu asinteligências" e anunciou que a Europa havia atingido a maioridade.

René Descartes 

Deus, a Ciência e o Livre-arbítrio

Para Descartes, o Deus criador transcende radicalmente a natureza. Deus Foi "inteiramente indiferenteao criar as coisas que criou". Não se submeteu a nenhuma verdade prévia. Em virtude do poder de seulivre-arbítrio, criou as verdades. Eis por que Deus quer que a soma dos ângulos de um triângulo sejaigual a dois ângulos retos. Acrescentemos que, para Descartes, Deus criou o mundo instante por instante (é a "criação contínua"). Otempo é descontínuo e a natureza não tem nenhum poder próprio. As leis da natureza só são o que são acada momento, em virtude da vontade do criador. É importante compreender que essa transcendênciaradical de Deus possui duas conseqüências fundamentais. O livre-arbítrio humano e a independência daciência.1.°   O homem não é uma parte de Deus. A transcendência do criador afasta qualquer panteísmo. Ohomem, simples criatura ultrapassada por seu criador (concebo Deus porque descubro em mim a marcade sua infinitude, mas não o compreendo), recebo, assim, uma autonomia que será perdida no sistemapanteísta de Spinoza. O homem é livre, pode dizer sim ou não às ordens de Deus. É certo que, na Quarta 

Meditação , Descartes fala da liberdade esclarecida, dessa liberdade que não pode tratar da verdade oudo bem, dessa liberdade que é antes um estado de libertação do que uma decisão pura, situada além detodas as razões. Mas nos Princípios e sobretudo nas cartas ao Pe. Mesland , de 2 de maio de 1644 e 9 defevereiro de 1645, Descartes afirma radicalmente o livre-arbítrio, o poder de recusar a Verdade e o Bematé mesmo na presença da evidência que se manifesta. Esses textos esclarecem a teoria do juízopresente na Quarta meditação. O entendimento concebe a verdade e é a vontade que dá as costas a ouafirma essa verdade. Deus propõe e o homem, por intermédio de seu livre-arbítrio, dispõe. Desse modo,Deus não é o culpado dos meus erros nem dos meus pecados. Sou eu que me engano, sou eu que peco.Meu livre-arbítrio me faz merecedor ou culpado.2.°   Do mesmo modo, a transcendência de Deus vai tornar possível uma ciência puramente racional emecanicista da natureza.a) A natureza, segundo Descartes, já o vimos, não possui dinamismo próprio. Todo dinamismo pertenceao criador. Na medida em que a natureza é despojada de toda profundidade metafísica, Descartes pode

eliminar as noções aristotélicas e medievais de forma, alma, ato e potência. Toda finalidade desaparece ea natureza é reduzida a um mecanicismo inteiramente transparente para a linguagem matemática.  A natureza nada tem de divino, é um objeto criado, situado no mesmo plano da inteligência humana, e, por conseguinte, inteiramente entregue à sua exploração . Isto consiste, ao mesmo tempo, na rejeição detodo naturalismo pagão (a natureza não é uma deusa) e na fundamentação metafísica do racionalismocientífico.b) Nem tudo tem o mesmo valor na obra científica de Descartes. Se sua ótica e suas considerações sobrea expressão algébrica das curvas (ele é, juntamente com Fermat, o inventor da geometria analítica)constituem incontestável contribuição científica, sua física (dada, aliás, mais como uma possibilidade

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racional do que como a verdade certa) não passa de um romance. Mas o espírito dessa física e dafisiologia cartesiana   que não passa de um capítulo da física   nada mais é do que o espírito domecanicismo. Quando Descartes declara que os animais são máquinas, ele coloca, em princípio, que épossível explicar as funções fisiológicas por intermédio de mecanismos semelhantes àqueles que fazemmover os autômatos que vemos "nos jardins de nossos reis". O detalhe das explicações não passa de um

sonho. Mas a direção tomada é a ciência moderna. Para Descartes, o mundo físico não possui mistérios. As coisas se determinam reciprocamente (leis do choque), por contato direto, num espaço em que nãoexiste o vazio.

O Problema do Homem: a Moral

1.°    No Discurso dobre o Método , Descartes adota uma moral provisória   pois a ação não podeesperar que a filosofia cartesiana engendre uma nova moral! Recordemos seus três preceitos:a) Submeter-se aos usos e costumes de seu país.b) Antes mudar os próprios desejos que a ordem do mundo e vencer-se a si próprio do que à fortuna.c) Ser sempre firme e resoluto em suas ações; saber decidir-se mesmo na ausência de toda evidência, àsemelhança do viajante perdido na floresta que, ao invés de ficar fazendo voltas, adota uma direçãoqualquer e nela se mantém! (O cartesianismo, antes de ser uma filosofia da inteligência, é uma filosofiada vontade).2.°    É certo que a moral definitiva de Descartes não apresenta uma unidade perfeita. Influênciasestóicas, epicuristas e cristãs estão presentes nela. Mas, na realidade, essa complexidade reflete aprópria complexidade da condição humana. Na plano das idéias claras e distintas, Descartes separaclaramente as duas substâncias, alma e corpo: a essência da alma é pensar; a do corpo é ser um objetono espaço. E no entanto, o pensamento está preso a esse fragmento de extensão. A alma age sobre ocorpo e este age sobre ela. (Para Descartes, o ponto de aplicação da alma ao corpo é a glândula pineal,isto é, a epífise.) Mas isso não esclarece a união da alma e do corpo, que é um fato de experiência,puramente vivido e ininteligível.Na medida em que Descartes considera o homem no que ele tem de essencial, enquanto espírito, ouquando se ocupa do composto humano, sua moral assume aspectos diferentes:a) Consideremos o homem enquanto espírito, enquanto liberdade: o valor supremo é a generosidade. "A

verdadeira generosidade que faz com que um homem se estime, no ponto máximo em que ele podelegitimamente estimar-se, consiste, em parte, na consciência de que nada lhe pertence verdadeiramente,exceto essa livre disposição de suas vontades... e em parte no sentimento de uma firme e constanteresolução de bem usá-la, isto é, de nunca lhe faltar vontade para empreender e executar todas as coisasque julgar melhores, o que é seguir a virtude perfeitamente".b) Se considerarmos o homem enquanto espírito unido a um corpo, somos obrigados a levar em conta aspaixões, isto é, a afetividade em sentido amplo. Paixão é, para Descartes, tudo o que o corpo determinana alma. E Ele, que nada tem de asceta, acha que devemos antes dominá-las do que desenvolvê-las.Isso porque ele se coloca do ponto de vista da felicidade. O bom funcionamento do corpo, as ligaçõesharmoniosas entre os espíritos animais e os pensamentos humanos são altamente desejáveis. A moralsurge, então, como uma técnica de felicidade e, nessa técnica, a medicina  desempenha importantepapel. A moral surge aqui como uma aplicação direta ao mecanicismo cartesiano.

O Programa Cartesiano 

"De acordo com o prefácio dos Princípios "

Gostaria de explicar aqui a ordem que, parece-me, devemos seguir para que nos instruamos.Primeiramente, o homem que ainda só possui conhecimento vulgar e imperfeito, deve, antes de tudo,encarregar-se de formar uma moral que seja suficiente para ordenar as ações da vida, porque isso nãodeve ser adiado e porque devemos sobretudo procurar viver bem. Após isso, também deve estudarlógica, não a da Escola   pois ela nada mais é do que uma dialética que ensina os meios para fazer

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entender a outrem as coisas que já se sabe ou então de emitir opiniões, sem julgamento, sobre asque não se sabe; desse modo, ela antes corrompe o bom-senso do que o desenvolve   mas aquela queensina a bem conduzir a razão na descoberta de verdades que se ignora. E porque ela depende muito douso, é bom que ele se exercite, por muito tempo, na prática de regras pernitentes a questões fáceis esimples como as da matemática. Depois, quando já tiver adquirido o hábito de encontrar a verdade

nessas questões, ele deve começar a aplicar-se à verdadeira filosofia cuja primeira parte é a metafísica,que contém os princípios do conhecimento, entre as quais está a explicação dos principais atributos deDeus, da imaterialidade de nossas almas e de todas as noções claras e simples que estão em nós. Asegunda é a física, na qual, após ter encontrado os verdadeiros princípios das coisas materiais,examinamos em geral como o universo é composto; depois, em particular, qual a natureza da terra e detodos os corpos que se encontram mais comumente em torno dela como o ar, a água, o fogo, o ímã eoutros minerais. Após o que também é necessário examinar em particular a natureza das plantas, dosanimais e, sobretudo, do homem, a fim de que se seja capaz de, depois, encontrar as outras ciências quelhe são úteis. Desse modo, a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica, o tronco a física eos ramos que daí saem todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber: a medicina, amecânica e a moral; eu acho que a mais elevada e mais perfeita moral, que pressupõe inteiroconhecimento das outras ciências, é o último grau da sabedoria.Ora, assim como não é das raízes nem do tronco que colhemos os frutos, mas da extremidade dosramos, assim a principal utilidade da filosofia depende das utilidades de suas partes, as quais só podemosaprender por último. Mas, embora eu as ignore quase todas, o zelo que sempre tive no sentido deprestar algum serviço ao público levou-me a publicar, há uns dez ou doze anos, alguns ensaios sobre ascoisas que me parecera ter aprendido. A primeira parte desses ensaios foi um discurso sobre o métodode bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências, na qual apresentei sumariamente asprincipais regras da lógica e de uma moral imperfeita que pode ser seguida provisoriamente, enquantoainda não se estabelece algo de melhor. As outras partes foram três tratados: um da Dióptrica , outrodos Meteoros  e o último da Geometria . Pela Dióptrica , pretendi mostrar que se pode avançarbastante em filosofia para se chegar, por seu intermédio, ao conhecimento das artes que são úteis à vidae porque a invenção das lunetas de aproximação, que eu aí explico, é uma das mais difíceis das que jáforam procuradas. Pelos Meteoros , procurei fazer com que se reconhecesse a diferença existente entrea filosofia que eu cultivo e aquela ensinada nas escolas em que se tem o hábito de tratar da mesma

matéria. Finalmente, pela Geometria , pretendi demonstrar que eu descobrira várias coisas ignoradasaté então e, desse modo, fazer acreditar que ainda podemos, nesse campo, descobrir várias outras,incitando, dessa forma, todos os homens a procurarem a verdade. Depois disso, prevendo a dificuldadeque muitos teriam para conceber os fundamentos da metafísica, procurei explicar seus pontos principaisnum livro de Meditações que não é grande, mas cujo volume foi aumentado e cuja matéria foi muitoclarificada pelas objeções que várias pessoas muito doutas me enviaram sobre o assunto e pelasrespostas que lhes dei. Finalmente, quando me pareceu que esses tratados procedentes haviampreparado bem o espírito dos leitores para receber os Princípios da Filosofia , eu os publiquei então;dividi o livro em quatro partes, das quais a primeira contém os princípios do conhecimento e quepodemos denominar filosofia primeira ou metafísica. Eis por que, a fim de bem compreendê-la, é precisoler antes as Meditações que escrevi sobre o mesmo assunto. As outras três partes contêm tudo o que háde mais geral na física, a saber, a explicação das primeiras leis ou princípios da natureza e a maneira pelaqual os céus, as estrelas fixas, os planetas, os cometas e o universo em geral são compostos; depois, em

particular, a natureza desta terra, do ar, da água, do fogo e do ímã   que são os corpos que podemosencontrar mais comumente em torno dela   e de todas as qualidades que observamos nesses corposcomo o são a luz, o calor, o peso e semelhantes; por meio disso, penso ter começado a explicar toda afilosofia ordenadamente, sem ter admitido nenhuma das coisas que devem preceder as últimas sobre asquais escrevi.

O Empirismo - Bacon 

Francis Bacon

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 O iniciador do empirismo é Francis Bacon. Enalteceu ele a experiência e o método dedutivo de tal modo,que o transcendente e a razão acabam por desaparecer na sombra. Falta-lhe, no entanto, a consciênciacrítica do empirismo, que foram aos poucos conquistando os seus sucessores e discípulos até Hume. Ademais, Bacon continua afirmando - mais ou menos logicamente - o mundo transcendente e cristão;

antes, continua a considerar a filosofia como esclarecedora da essência da realidade, das formas ,sustentáculo e causa dos fenômenos sensíveis. É uma posição filosófica que apela para a metafísicatradicional, grega e escolástica, aristotélica e tomista. Entretanto, acontece em Bacon o que aconteceu amuitos pensadores da Renascença, e o que acontecerá a muitos outros pensadores do empirismo e doracionalismo: isto é, a metafísica tradicional persiste neles todos histórica e praticamente ao lado da novafilosofia, tanto mais quanto esta é menos elaborada, acabada e consciente de si mesma.

 Vida e Obras

Francis Bacon nasceu no dia 22 de janeiro de 1561 na York House, Londres, residência de seu pai sir Nicholas Bacon, que nos primeiros vinte anos do reinado de Elizabeth tinha sido o Guardião do Sinete. "Afama do pai", diz Maucaulay, "foi ofuscada pela do filh". Mas sir Nicholas não era um homem comum." Amãe de Bacon foi lady  Anne Cooke, cunhada de sir William Cecil, lorde Burghley, que foi tesoureiro-morde Elizabeth e um dos homens mais poderosos da Inglaterra. O pai dela tinha sido o tutor-chefe do reiEduardo VI; ela mesma era lingüista e teóloga, e não tinha dificuldade em se corresponder em gregocom bispos. Tornou-se instrutora do filho e não poupou esforços para que ele tivesse instrução. Baconfreqüentou a Universidade de Cambridge, e viveu também em Paris. Começou a sua carreira de homempolítico e jurista, antes sob a rainha Isabel, e, depois, sob Jaime I, subindo até aos mais altos cargos:advogado geral em 1613, membro do Conselho particular em 1616, chanceler do reino em 1618. Foiagraciado por Jaime I com os títulos de Barão de Verulamo e Visconde de S. Albano. Entretanto foiacusado de concussão e condenado pelo Parlamento a uma multa avultuada. Perdoado pelo rei, retirou-se para as suas terras, dedicando-se inteiramente aos estudos. Faleceu em 1626. Teve uma inteligênciamuito esclarecida, convencido da sua missão de cientista, segundo o espírito positivo e prático damentalidade anglo-saxônia. A obra principal de Bacon é a Instauratio magna scientiarum , vasta síntese que deveria ter compreendido

seis grandes partes. Mas terminou apenas duas, deixando sobre o resto esboços e fragmentos. As duaspartes acabadas são precisamente: I -  De dignitate et argumentis scientiarum ; II -  Novum organum scientiarum . Como se vê pelos títulos, e mais ainda pelo conteúdo, trata-se de pesquisas gnosiológicas,críticas e metodológicas, para lançar as bases lógicas da nova ciência, da nova filosofia, que deveria darao homem o domínio da realidade.

Os Ensaios

Sua ascensão parecia tornar realidade os sonhos de Platão de um rei-filósofo. Porque, passo a passo coma sua subida para o poder político, Bacon estivera escalando os píncaros da filosofia. É quaseinacreditável que o imenso saber e as realizações literárias desse homem fossem apenas os incidentes eas digressões de uma turbulenta carreira política. Era seu lema que se vivia melhor na vida oculta - bene vixit qui bene latuit . Não conseguia chegar a uma conclusão sobre se gostava mais da vida contemplativa

ou da ativa. Sua esperança era de ser filósofo e estadista, também, como Sêneca; embora desconfiassede que essa dupla direção de sua vida fosse encurtar o seu alcance e reduzir suas realizações. "É difícildizer", escreve ele, e "se a mistura de contemplações com uma vida ativa ou o retiro inteiramentededicado a contemplações é o que mais incapacita ou prejudica a ment." Achava que os estudos nãopodiam ser um fim ou a sabedoria por si sós, e que o conhecimento não aplicado em ação era umapálida vaidade acadêmica. "Dedicar-se em demasia aos estudos é indolência; usá-los em demasia como ornamento é afetação; fazer julgamentos seguindo inteiramente suas regras é o capricho de um scholar.(...) Os homens astutos condenam os estudos, os homens simples os admiram, e os homens sábios se utilizam deles, obtida graças à observação." Eis uma nova nota que marca o fim da escolástica - isto é, o

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divórcio entre o conhecimento e o uso e a observação - e coloca aquela ênfase na experiência e nosresultados que distingue a filosofia inglesa, e culmina no pragmatismo. Não que Bacon tivesse, por uminstante, deixado de amar os livros e a meditação; em palavras que lembram Sócrates, ele escreve: "sem filosofia, não quero viver" , e descreve a si mesmo como, afinal de contas, "um homem naturalmentemais propenso à literatura do que a qualquer outra coisa, e levado por algum destino, contra a inclinação

de seu gênio" (isto é caráter), "a vida ativa". Quase que a sua primeira publicação recebeu o título de O Elogio do Conhecimento (1592); o entusiasmo do trabalho pela filosofia nos obriga a uma citação."Meu elogio será dedicado à própria mente. A mente é o homem, e o conhecimento é a mente; um homem é apenas aquilo que ele sabe. (...) Não são os prazeres das afeições maiores do que os prazeres dos sentidos, e não são os prazeres do intelecto maiores do que os prazeres das afeições? Não se trata,apenas, de um verdadeiro e natural prazer do qual não há saciedade? Não é só esse conhecimento que livra a mente de todas as perturbações? Quantas coisas existem que imaginamos não existirem? Quantas coisas estimamos e valorizamos mais do que são? Essas vãs imaginações, essas avaliações desproporcionadas, são as nuvens do erro que se transformam nas tempestades das perturbações.Existirá, então, felicidade igual à possibilidade da mente do homem elevar-se acima da confusão das coisas de onde ele possa ter uma atenção especial para com a ordem da natureza e o erro dos homens? De contentamento e não de benefício? Será que não devemos perceber tanto a riqueza do armazém da natureza quanto a beleza de sua loja? Será estéril a verdade? Não poderemos, através dela, produzir efeitos dignos e dotar a vida do homem com uma infinidade de coisas úteis?"  Sua mais bela produção literária, os Ensaios (1597-1623), mostram-no ainda indeciso entre dois amores,a política e a filosofia. No Ensaio sobre a Honra e a Reputação , ele dá todos os graus de honra arealizações políticas e militares, nenhum a literárias e filosóficas. Mas no ensaio Da Verdade , ele escreve:"A indagação da verdade, que é namorá-la ou cortejá-la; o conhecimento da verdade, que é o elogio aela; e a crença na verdade, que é gozá-la, são o bem soberano das naturezas humanas." Nos livros,"conversamos com os sábios, como na ação conversamos com tolos" . Isto é, se soubermos escolher osnossos livros. "Certos livros são para serem provados", outros para serem engolidos, e alguns poucos  para serem mastigados e digeridos" ; todos esses grupos formam, sem dúvida, uma porção infinitesimaldos oceanos e cataratas de tinta nos quais o mundo é diariamente banhado, envenenado e afogado.Não há dúvida de que os Ensaios  devem ser incluídos entre os poucos livros que merecem sermastigados e digeridos. Raramente se encontrará uma refeição tão substanciosa, tão admiravelmente

preparada e temperada, em um prato tão pequeno. Bacon abomina os recheios e detesta desperdiçaruma palavra; ele nos oferece uma infinita riqueza numa pequena frase; cada um desses ensaios fornece,em uma ou duas páginas, a destilada sutileza de uma mente de mestre sobre um importante aspecto davida. É difícil dizer o que é mais excelente, se a matéria ou o estilo; porque ali se acha uma linguagem detão alta qualidade na prosa quanto é a de Shakespeare em verso. É um estilo como o do vigoroso Tácito,compacto mas refinado; e na verdade uma parte de sua concisão se deve a uma habilidosa adaptação doidioma e do frasear latinos. Mas a sua riqueza no que se refere a metáforas é caracteristicamenteelizabetana e reflete a exuberância da Renascença; nenhum homem, na literatura inglesa, é tão fértil emcomparações significativas e substanciosas. A excessiva sucessão dessas comparações constitui o únicodefeito do estilo de Bacon: as intermináveis metáforas, alegorias e alusões caem como chicotes sobre osnossos nervos e acabam por nos exaurir. Os Ensaios são como um alimento rico e pesado, que não podeser digerido em grandes quantidades de uma só vez; mas tomados quatro ou cinco de cada vez,constituem o melhor alimento intelectual.

No ensaio "Da Juventude e da Idade"  ele condensa um livro em um parágrafo. "Os jovens são mais aptos para inventar do que para julgar, mais aptos para a execução do que para o assessoramento, e mais aptos para novos projetos do que para atividades já estabelecidas; porque a experiência da idade em coisas que estejam ao alcance dessa idade os dirige; mas em coisas novas, os maltrata. (...) Os  jovens, na conduta e na administração dos atos, abraçam mais do que podem segurar, agitam mais do que podem acalmar; voam para o fim sem consideração para com os meios e os graus; perseguem absurdamente alguns princípios com que toparam por acaso; não se importam em "(isto é, em como)" inovar, o que provoca transtornos desconhecidos. (...) Os homens maduros fazem objeções demais,demoram-se demais em consultas, arriscam-se muito pouco, arrependem-se cedo demais e raramente 

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levam o empreendimento até o fim, mas se contentam com uma mediocridade de sucesso. Não há dúvida de que é bom forçar o emprego de ambos (...), porque as virtudes de qualquer um deles poderão corrigir os defeitos dos dois." Bacon acha, apesar de tudo, que a juventude e a infância podem ter umaliberdade demasiada e, assim, crescer desordenadas e relaxadas. "Que os pais escolhem cedo asvocações e os cursos que pretendem que seus filhos sigam, pois é nessa fase que eles são mais flexíveis;

e que não se concentrem demais no pensor dos filhos, pensando que estes irão dedicar-se melhor àquilopara que estejam mais inclinados. É verdade que se os pendores ou a aptidão dos filhos foremextraordinários, é bom não contrariá-los; mas em geral, é bom o preceito" dos pitagóricos: "Optimum lege, suave et facile illud faciet consuetudo" - escolha o melhor; o hábito irá torná-lo agradável e fácil.Porque "o hábito é o principal magistrado da vida do homem."   A política dos Ensaios prega um conservantismo natural em que aspira ao governo. Bacon quer um fortepoder central. A monarquia é a melhor forma de governo; e em geral, a eficiência de um Estado variacom a concentração do poder. "Deve haver três pontos essenciais nas atividades" do governo: "apreparação; o debate, ou exame; e a conclusão" (ou execução). "Se quiserdes presteza, que só o domeio fique a cargo de muitos, com o primeiro e o último ficando a cargo de uns poucos." Ele é ummilitarista confesso; deplora o crescimento da indústria por considerar que isso deixa os homensdespreparados para a guerra, e lamenta uma paz prolongada, por aplacar o guerreiro que existe nohomem. Apesar disso, reconhece a importância das matérias-primas: "Sólon disse a Creso (quando, porostentação, Creso lhe mostrou o seu ouro): "Senhor, se chegar qualquer outro que tenha melhor ferro doque vós, ele será dono de todo esse ouro."Tal como Aristóteles, Bacon dá alguns conselhos para se evitarem revoluções. "O meio mais seguro deevitar sedições (...) é afastar a causa; porque se o combustível estiver preparado, é difícil dizer de ondevirá a fagulha que irá atear-lhe fogo. (...) Tampouco se segue que a supressão dos rumores" (isto é, dadiscussão) "com demasiada severidade deva ser o remédio para os problemas; porque muitas vezes odesprezo é a melhor forma de contê-los, e as providências para reprimi-los só fazem dar vida longa àespeculação. (...) A substância da sedição é de dois tipos: muita pobreza e muito descontentamento. (...) As causas e motivos das sedições são as inovações na religião; os impostos; as modificações de leis ecostumes; o cancelamento de privilégios; a opressão generalizada; o progresso de pessoas indignas,estranhas, as privações; soldados desmobilizados; facções desesperadas; e tudo aquilo que, ao ofenderum povo, faz com que ele se una em uma casa comum." A sugestão de todos os líderes, claro, é dividir

seus inimigos e unir os amigos. "De modo geral, é dividir e enfraquecer todas as facções (...) contráriasao Estado, e colocá-las longe uma das outras, ou pelo menos semear a desconfiança entre elas, não éum dos piores remédios; porque é desesperador o caso em que aqueles que apóiam o governo estãocheios de discórdia e cisões, e os que estão contra ele estão inteiros e unidos." Uma receita melhor paraevitar as revoluções é uma distribuição eqüitativa da riqueza: "O dinheiro é como o esterco, só é bom se for espalhado."  Mas isso não significa socialismo ou, mesmo, democracia; Bacon não confia nopovo, que na sua época praticamente não tinha acesso à educação; "a mais baixa das lisonjas é a lisonja do homem do povo" , e "Fócion compreendeu bem quando, ao ser aplaudido pela multidão,perguntou o que tinha feito de errado." O que Bacon quer é, primeiro, uma pequena burguesia deproprietários rurais; depois, uma aristocracia para a administração; e acima de todos, um rei-filósofo."Quando não há exemplos de que um governo não tenha prosperado com governos cultos." Ele citaSêneca, Antonio Pio e Aurélio; tinha a esperança de que aos nomes deles a posteridade acrescentasse oseu.

O Pensamento: A "Instauratio Magna"

 A Instauratio magna scientiarum deveria ter precisamente representado a reforma do saber, deveria terconstituído a summa philosophica dos tempos novos, e lançado o fundamento do regnum hominis , tãoaudazmente iniciado pela ciência e pela política da Renascença. Essa obra deveria ter abraçado aenciclopédia das ciências e compreendido também as técnicas, segundo o novo ideal humano e prático eimanentista. Começa-se, portanto, com a classificação geral das disciplinas humanas, baseada norespectivo predomínio das três faculdades que presidem à organização do saber: memória, fantasia,

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razão. Essa classificação é baseada não no objeto do conhecimento, e sim no sujeito que conhece.1) História tanto civil quanto natural, que registra (memória) os dados de fato; 2) Poesia , elaboraçãoimaginativa desses dados; 3) Ciência ou filosofia, isto é, conhecimento racional de Deus, do homem e danatureza. A teologia natural de Bacon não exclui, mas prescinde da revelação cristã e da religião positiva. A ciência 

do homem  divide-se em ciência do homem individual (philosophia humanitatis) , e em ciência dasociedade humana (philosophia civilis) . A primeira diz respeito ao homem todo, espírito e matéria. Asegunda diz respeito à arte de governar e às relações sociais e aos negócios. A filosofia natural ou física ,divide-se em especulativa e operativa . A primeira, por sua vez, se divide em física especial ("que procuraa causa eficiente e material"), e em metafísica ("que procura a causa final e a forma"). Pertencem pois à física operativa as artes mecânicas. Acima das ciências filosóficas particulares, Bacon põe uma ciênciafilosófica comum, denominando-a philosophia prima . Esta não é a ontologia tradicional, a ciência do serem geral, mas a ciência dos princípios comuns às várias ciências.

O "Novum Organum"

Entretanto, o que interessa mais a Bacon não é esta ciência dos princípios comuns, e sim a ciência danatureza, e, portanto, o Novum organum , que deveria conter precisamente as regras para a construçãoda ciência da natureza. Como é sabido, Bacon reivindica, contra Aristóteles e a Escolástica, o métodoindutivo. Aristóteles e Tomás de Aquino afirmaram claramente este método, e até o reconheceram comoúnico procedimento inicial do conhecimento humano; entretanto a eles interessavam muito mais ascausas do que a experiência, o que transcende a experiência do que a experiência; muito mais ametafísica do que a ciência.Segundo Bacon, o verdadeiro método da indução científica compreende uma parte negativa ou crítica, euma parte positiva ou construtiva. A parte negativa consiste, antes de tudo, em alertar a mente contra oserros comuns, quando procura a conquista da ciência verdadeira. Na sua linguagem imaginosa Baconchama as causas destes erros comuns, fantasmas - idola - e os divide em quatro grupos fundamentais.1)  Idola tribus , a saber, os erroa da raça humana "fundamentados em a natureza como tal" (não sesabe, pois, o verdadeiro porquê);2) Idola specus (por alusão à caverna de Platão) determinados pelas disposições subjetivas de cada um;

3) Idola fori , erros da praça, provenientes do comércio social ou da linguagem imperfeita;4) Idola theatri , isto é, os erros provenientes das escolas filosóficas, que substituem o mundo real porum mundo fantástico, por um jogo cênico.Desembaraçado o terreno destes erros, Bacon passa a tratar da natureza positiva , construtiva, dagenuína interpretação da natureza  para dominá-la. Mas, para tanto, é mister conhecer as que Baconchama de formas , isto é, os princípios imanentes, causa e lei da ação e da ordem das naturezas . Asnaturezas são precisamente os fenômenos experimentais, objeto da física especial (luz, calor, pêso, etc.);as formas são leis genéticas e organizadoras das naturezas, as essências ou causas formais, objeto dametafísica de Bacon.Esta pesquisa, esta passagem das naturezas às formas, dos fenômenos às essências - bem conhecidapela filosofia tradicional - é determinada por Bacon, segundo um método preciso, desconhecido dospredecessores, nas famosas tabulae baconianas. Para determinar de um modo certo as causas e as leisdos fenômenos - isto é, as formas das naturezas - Bacon recolhe, antes de tudo, o maior número possível

de exemplos, em que um determinado fenômeno aparece; depois enumera os casos que mais seassemelham às primeiras, em que, porém, o mesmo fenômeno não aparece. Enfim registra o aumentarou o diminuir do fenômeno em questão, quer no mesmo objeto, quer em objetos diferentes. Têm-se,desta maneira, três espécies de registros ou tabelas: 1) tabelas de presença ; 2) tabelas de ausência ; 3) tabelas de gradações . É evidente que nos casos onde uma determinada natureza ou fenômenoaparecem, aí se encontrará também a sua causa e lei; nos casos em que o fenômeno não se manifesta,aí faltará também a sua causa e lei; e nos casos onde o fenômeno aumenta ou diminui, aí aumentará oudiminuirá também a sua causa e lei. A causa (forma) dos fenômenos (naturezas) será procurada,portanto, com base nos fenômenos presentes na primeira tabela; não sendo fácil, a princípio, ter-se

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tabelas completas e isolar as naturezas simples, e desta maneira pôr em evidência a causa, é misterestabelecê-la por hipótese , que será, em seguida, averiguada pelas experimentações.Essa gnosiologia, metodologia (empírica) é baseada em uma metafísica, uma física materialista e, maisprecisamente, atomista, bastante semelhante à de Demócrito. O mundo material é constituído decorpúsculos, qualitativamente idênticos, diversos apenas por grandeza, forma e posição. Estes

corpúsculos são animados por uma força, em virtude da qual se agrupam em determinados complexos,que constituem as formas baconianas.

O Empirismo - Locke 

John Locke

Sobre a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso em confronto com osprecedentes: no sentido de que a sua gnosiologia fenomenista-empirista não é dogmaticamenteacompanhada de uma metafísica mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente,uma teoria do conhecimento, mesmo aceitando a metafísica tradicional, e do senso comum pelo queconcerne a Deus, à alma, à moral e à religião. Com relação à religião natural, não muito diferente dodeísmo abstrato da época; o poder político tem o direito de impor essa religião, porquanto é baseada narazão. Locke professa a tolerância e o respeito às religiões particulares, históricas, positivas.Locke viajou fora da Inglaterra, especialmente em França, onde ampliou o seu horizonte cultural, entrouem contato com movimentos filosóficos diversos, em especial com o racionalismo. Tornou-se maisconsciente do seu empirismo, que procurou completar com elementos racionalistas (o que, entretanto,representa um desvio na linha do desenvolvimento do empirismo, procedente de Bacon até Hume).

 Vida e Obras

João Locke  nasceu em Wrington, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford filosofia, ciênciasnaturais e medicina. Em 1665 foi enviado para Brandenburgo como secretário de legação. Passou, emseguida, ao serviço de Loed Ashley, futuro conde de Shaftesbury, a quem ficou fiel também nasdesgraças políticas. Foi, portanto, para a França, onde conheceu as personalidades mais destacadas da

cultura francesa do "grand siècle" . Em 1683 refugiou-se na Holanda, aí participando no movimentopolítico que levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange. De volta à pátria, recusou o cargo deembaixador e dedicou-se inteiramente aos estudos filosóficos, morais, políticos. Passou seus últimos anosde vida no castelo de Oates (Essex), junto de Sir Francisco Masham. Faleceu em 1704. As suas obras filosóficas mais notáveis são: o Tratado do Governo Civil (1689); o Ensaio sobre o Intelecto Humano  (1690); os Pensamentos sobre a Educação  (1693). As dontes principais do pensamento deLocke são: o nominalismo escolástico, cujo centro famoso era Oxford; o empirismo inglês da época; oracionalismo cartesiano e a filosofia de Malebranche.

O Pensamento: A Gnosiologia

Locke julga, como Bacon, que o fim da filosofia é prático. Entretanto - diversamente de Bacon, que julgava fim da filosofia o conhecimento da natureza para dominá-la (fim econômico) - Locke pensa que o

fim da filosofia é essencialmente moral; quer dizer: a filosofia deve proporcionar uma norma racionalpara a vida do homem. E, como os seus predecessores empiristas, ele sente, antes de mais nada, anecessidade de instituir uma investigação sobre o conhecimento humano, elaborar uma gnosiologia , paraachar um critério de verdade. Podemos dizer que a sua filosofia se limita a este problema gnosiológico,para logo passar a uma filosofia moral (e política, pedagógica, religiosa), sem uma adequada eintermédia metafísica.Locke não parte, realisticamente, do ser, e sim, fenomenisticamente, do pensamento. No nossopensamento acham-se apenas idéias (no sentido genérico das representações ): qual é a sua origem e o

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seu valor? Locke exclui absolutamente as idéias e os princípios que deles se formam, derivam daexperiência; antes da experiência o espírito é como uma folha em branco, uma tabula rasa .No entanto, a experiência é dúplice: externa e interna. A primeira realiza-se através da sensação , e nosproporciona a representação dos objetos (chamados) externos: cores, sons, odores, sabores, extensão,forma, movimento, etc. A segunda realiza-se através da reflexão , que nos proporciona a representação

das próprias operações exercidas pelo espírito sobre os objetos da sensação, como: conhecer, crer,lembrar, duvidar, querer, etc. Nas idéias proporcionadas pela sensibilidade externa, Locke distingue asqualidades primárias , absolutamente objetivas , e as qualidades secundárias , subjetivas (objetivas apenasem sua causa). As idéias ou representações dividem-se em idéias simples e idéias complexas , que são uma combinaçãodas primeiras. Perante as idéias simples - que constituem o material primitivo e fundamental doconhecimento - o espírito é puramente passivo; pelo contrário, é ele ativo na formação das idéiascomplexas. Entre estas últimas, a mais importante é a substância : que nada mais seria que uma coleçãoconstante de idéias simples, referida pelo espírito a um misterioso substrato unificador. O espírito étambém ativo nas sínteses que são as idéias de relação , e nas análises que são as idéias gerais . Às idéiasde ralação pertencem as relações temporais e espaciais e de idéias simples dos complexos a quepertencem e da universalização da idéia assim isolada, obtendo-se, desse modo, a idéia abstrata (porexemplo, a brancura). Locke é, mais ou menos, nominalista: existem, propriamente, só indivíduos comuma essência individual, e as idéias gerais não passam de nomes, que designam caracteres comuns amuitos indivíduos. Entretanto, os nomes que designam uma idéia abstrata, isto é, uma propriedadesemelhante em muitas coisas, têm um valor e um escopo práticos: auxiliar os homens a se conduziremna vida.Dado o nominalismo de Locke, compreende-se como, para ele, é impossível a ciência verdadeira danatureza, considerada como conhecimento das leis universais e necessárias. Locke julga tambéminaplicável à natureza a matemática - reconhecendo-lhe embora o caráter de verdadeira ciência - isto é,não acredita na físico-matemática, à maneira de Galileu. Entretanto, mesmo que a ciência da naturezanão nos desse senão a probabilidade, a opinião, seria útil enquanto prática. Até aqui foram analisados e descritos os conteúdos de consciência. É mister agora propor a questão doseu valor lógico. Costuma-se dizer que as idéias são "verdadeiras ou falsas"; melhor seria chamá-las"justas ou erradas", porque, propriamente, "a verdade e a falsidade pertencem às proposições", em que

se afirma ou se nega uma relação entre duas idéias. E esta relação, afirmada ou negada, pode serprecisamente falsa ou verdadeira. O conhecimento da relação positiva ou negativa entre as idéias é,segundo Locke, de dois tipos: intuitivo e demonstrativo . No primeiro caso a relação é colhida intuitiva,imediata e evidentemente. Por exemplo: 3 = 2 + 1. No segundo caso a relação é colhida mediatamente,recorrendo às idéias intermediárias, ao raciocínio. Por exemplo: a existência de Deus demonstrada pelanossa existência e pelo princípio de causalidade. Naturalmente, a demonstração é inferior à intuição.

Idéias Metafísicas

Estamos, porém, ainda fechados no mundo subjetivo, fenomênico; de fato, tratou-se, até agora, derelações positivas ou negativas, concordes ou desacordes com as idéias. Podemos nós sair desse mundosubjetivo e atingir o mundo objetivo, isto é, podemos conhecê-lo imediatamente ou mediatamente na suaexistência e na sua natureza? Locke afirma-o, sem mostrar, entretanto, como este conhecimento do

mundo externo possa concordar com a sua geral (fenomenista) concepção e definição do conhecimento.É a sólita posição de um fenomenismo ainda não plenamente consciente de si mesmo. Corta as relaçõescom o ser e vai para o fenomenismo absoluto, mas tem ainda saudade desse ser do qual se isolou.Em todo caso, Locke acredita poder atingir, antes de tudo, o nosso ser, depois o de Deus, e, finalmente,o das coisas. O nosso ser seria intuitivamente percebido através da reflexão. A existência de Deus seriaracionalmente demonstrada mediante o princípio de causa , partindo do conhecimento imediato de umaoutra existência (a nossa). A existência das coisas , alfim, seria sentida  invencivelmente, porque nossentimos passivos em nossas sensações, que deveriam ser causadas por seres externos a nós.

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Entretanto, pelo que diz respeito ao nosso ser, é mister ter presente que nós não conhecemosintuitivamente a substância da alma, e sim as suas atividades. Pelo que diz respeito a Deus, a prova dasua existência vale, se vale absolutamente o princípio de causa - o que Locke não demonstrou. Enfim,pelo que diz respeito às coisas externas, mesmo admitida a prova aduzida por Locke - segundo aconfissão do próprio filósofo - tal prova vale apenas pelo que concerne à existência das coisas, e não pelo

que concerne à natureza delas. De fato, segundo a filosofia de Locke, não sabemos se as idéias danatureza das coisas correspondem à realidade das coisas.

Moral e Política

Locke não admite, naturalmente, idéias e princípios inatos nem sequer no campo da moral. A sua moral ,todavia, é muito mais intelectualista do que empirista, pois ele lhe reconhece o caráter de verdadeiraciência, universal e necessária.Entretanto, não basta ter construído uma moral em abstrato, embora racional. É preciso torná-lapraticamente eficaz, isto é, faz-se mister uma obrigação moral, que se imponha à nossa vontade. Ora,visto que é natural, no homem, a tendência para o próprio bem-estar, é natural que ele seja atingidopelas penas, pelas sanções, que precisamente lhe impedem tal realização. Que parte tem a liberdade davontade em tudo isto? Locke nega, propriamente, o livre arbítrio, porquanto nós nos inclinamosnecessariamente para um bem determinado e devemos desejar o bem maior.Quanto à política , Locke deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos oshomens - como seres racionais - são livre iguais, têm direito à vida e à propriedade; e, entretanto na vidapolítica, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à própria dignidade, à natureza humana.Locke admite um originário estado de natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutale egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas em um sentido moral, em virtude do qual cadaum sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.Também Locke admite a passagem do estado de natureza ao estado civilizado, porquanto, no primeiro,falta a certeza e a regularidade da defesa e da punição, que existe no segundo, graças à autoridade dosuperior. Entretanto, estipulando este contrato social, os indivíduos não renunciam a todos os direitos,porquanto os direitos que constituem a natureza humana (vida, liberdade, bens), são inalienáveis; masrenunciam unicamente ao direito de defesa e de fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis

sejam melhor garantidos. Antes, se o estado violasse esses direitos inalienáveis, os indivíduos teriam odireito e o dever de a ele resistir e de se revoltar contra o poder usurpador. A doutrina política de Locke,contida no seu Tratado sobre o Governo Civil , é a expressão teórica do constitucionalismo liberal inglês,em contraste com a doutrina do absolutismo naturalista de Hobbes.

Idéias Pedagógicas

Com respeito à religião, Locke toma uma atitude racionalista moderada. Admite uma religião natural,exigível também politicamente, porquanto fundamentada na razão. E professa a tolerância a respeito dasreligiões particulares, históricas, positivas.Locke interessou-se especialmente pelos  problemas pedagógicos , escrevendo os Pensamentos sobre a Educação . Aí afirma a nossa passividade, pois nascemos todos ignorantes e recebemos tudo daexperiência; mas, ao mesmo tempo, afirma a nossa parte ativa, enquanto o intelecto constrói a

experiência, elaborando as idéias simples. Afirma-se que todos nascemos iguais, dotados de razão; mas, ao mesmo tempo, todos temostemperamentos diferentes, que devem ser desenvolvidos de conformidade com o temperamento de cadaum. Esta educação individual não exclui, mas implica a educação, a formação social, para ampliar,enriquecer a própria personalidade. Tem muita importância a obra do educador, mas é fundamental acolaboração do discípulo, pois trata-se da formação do intelecto, da razão, que é, necessariamente,autônoma. A formação educacional consiste, portanto, fundamentalmente, no desenvolvimento dointelecto mediante a moral, precisamente pelo fato de que se trata de formar seres conscientes, livres,senhores de si mesmos. Por conseguinte, a educação deve ser formativa, desenvolvendo o intelecto, e

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não informativa, erudita, mnemônica. Igualmente Locke é fautor de educação física, mas como omeio para o domínio de si mesmo.

O Empirismo - Berkeley 

Jorge Berkeley

Uma etapa ulterior do fenomenismo empirista é representada por Berkeley. Ele suprime, criticamente, asqualidades primárias, as sensações objetivas de Locke, evidenciando que são semelhantes às secundáriase, logo, também elas subjetivas. E suprime também, definitivamente, o conceito lockiano de substânciamaterial, que deveria ter sido a causa misteriosa de nossas sensações, objetivas, visto que, noempirismo, a substância não passa de um nome. Isto não impede que Berkeley - por motivos práticos,morais e religiosos - incoerentemente, conserve ainda no seu empirismo os conceitos de substância,causa e espírito, isto é, os conceitos de substância e causa espiritual. Este resíduo realista etranscendente será definitivamente eliminado pela crítica radical e coerente de Hume, o último e o maiordos empiristas prá-kantianos.

 Vida e Obras

Jorge Berkeley nasceu em 1685 perto de Dysert Castle, na Irlanda, de uma família de origem inglesa.Estudou no Trinity College em Dublin, formando-se mestre em artes em 1707. Ordenado pela Igrejaanglicana, a princípio ensina grego (sua obra, um dia, assumirá um tom platônico), em seguida hebreu eteologia no Trinity College. Entre 1702 e 1710, podemos seguir, em seu caderno de anotações(Commonplace book), a formação de seu pensamento. Desde 1709 ele escreve sua Nova teoria da Visão .Seu Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano  é publicado em 1710. As intençõesapologéticas de sua obra aparecem claramente nos artigos polêmicos, que escreveu em 1713, no jornalThe Guardian , contra as idéias de um célebre livre-pensador, Arthur Collins. Em 1713, igualmente,aparece os Diálogos entre Hylas e Philonous . Berkeley então viaja pela França e pela Itália; em seguidase decide a propagar o pensamento cristão nas possessões americanas da Inglaterra, partindo para asBermudas, onde sonha fundar um colégio, idéia à qual deve renunciar, posto que o governo inglês não

lhe envia os fundos prometidos. Nessa época, ele lê Plotino sobretudo. Ao retornar, é nomeado bispoanglicano de Cloyne. Publica uma nova obra contra os livres-pensadores, "Alciphrom ou o filosofúsculo"(Alciphrom or the minute philosopher). Em 1740, sobrevém uma epidemia na Irlanda, que o improvisacomo médico; cuida de suas ovelhas com água de alcatrão (receita que conheceu na América), na qualvê um remédio universal, o que o leva a uma cadeia (seiris, em grego) de reflexões muito platônicassobre a natureza, a Providência e Deus, que ele nos oferece em sua última obra, "Síris ou Reflexões e  pesquisas filosóficas concernentes às virtudes da água de alcatrão e diversos outros temas conexos entre si e originados um do outro" (1744). Na Teoria da Visão , Berkeley parte do seguinte problema (colocadopelo físico Molyneux): Como podemos ver a distância de um objeto? O raio luminoso, orientadoperpendicularmente ao olho, só projeta um ponto que invariavelmente é o mesmo, quer a distância sejalonga ou curta. Por conseguinte, falando estritamente, não vemos a distância. Um cego de nascença,afirma Berkeley, ao qual fosse dado ver repentinamente, teria a impressão de que todos os objetostocavam seus olhos (vinte anos após o obra de Berkeley, o cirurgião Cheselden publicará, nas

Philosophical Transactions of the Royal Society , a observação de um menino de quatorze anos, operadode catarata, que parece confirmar o ponto de vista de Berkeley. Voltaire, em sua Filosofia de Newton ,1741, torna conhecida essa experiência que Condillac e Diderot discutirão em sua Carta sobre os cegos  para uso dos que vêem ).Para Berkeley, a distância, portanto, não é percebida, mas julgada a partir de signos tais como agrandeza aparente ou da luminosidade mais ou menos viva dos objetos. Esse homem pequenino e poucovisível está longe de mim, porque a experiência mostra que quando um homem tem essa grandezaaparente, deve andar por alguns momentos a fim de o tocar. Por conseguinte, a experiência me ensina ainterpretar aparências visuais como o sinal da distância maior ou menor dos objetos.

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Dessa análise psicológica, Berkeley tira conclusões importantes:  a) Não existe espaço objetivo, espaço "em-si", para Berkeley. O espaço não é o "sensível-comum",simultaneamente percebido pela visão e pelo tato, como dizia a filosofia escolástica, nem a extensãogeométrica, tão cara aos cartesianos. Existem dois espaços distintos: um visual , relativo ao sentido davisão, e o que possui apenas duas dimensões, e um espaço tátil (a exploração tátil me revela, na origem,

as distâncias dos objetos), o que me ensina a decifrar as correspondências entre esses dois tipos desensações (visuais e táteis).b)  As correspondências existentes entre os dados visuais e a distância dos objetos não podem serprevistas a priori . É a experiência, e só ela, que me faz conhecer a ligação entre uma mudança declaridade e uma mudança de distância, exatamente como a experiência, isto é, a aprendizagem da línguanatal me faz conhecer a ligação convencional entre os objetos e as palavras que os designam.Compreendemos bem que, para Berkeley, o cubo que vejo e aquele em que toco não são um só emesmo objeto!! Não mais existem relações entre um e outro, exceto a que existe entre o cubo em quetoco e a palavra de quatro letras com que o designo. É por preconceito que acredito na existência de"objetos". Tudo o que a experiência me fornece é uma multidão de sensações diversas entre as quaisexistem correspondências. Os dados visuais são o signo dos dados táteis. Ora, toda linguagem é ainstituição de um espírito, por conseguinte, uma linguagem universal da natureza (como aquela que fazdos dados visuais o signo das experiências táteis) só pode ser obra de um Espírito universal. Ascorrespondências entre o atlas tátil e o atlas visual simplesmente manifestam a Providência de Deus.

Nominalismo de Berkeley

a) Ele declara não compreender o que seja uma idéia abstrata. Por isso ele se aproxima de Locke e doponto de vista de todos os outros empiristas ingleses. Por exemplo: que é a idéia abstrata de Homem?Um nome, uma simples palavra (uma imagem concreta, lida ou ouvida), pois, quando representomentalmente um homem, é preciso que essa imagem seja a de um homem particular, grande oupequeno, disforme ou bem proporcionado, etc.b) Todavia, se Berkeley nega a idéia abstrata, ele admite a idéia geral. Por exemplo, essa palavra"homem" que pronuncio não passa, em suma, de uma imagem sonora concreta. Mas essa imagemsonora, eu a faço corresponder a um sem-número de imagens visuais (as de todos os homens que posso

ver). A imagem concreta se torna geral quando se transforma em signo, em substituto de outras imagensconcretas. Uma imagem concreta, uma idéia concreta (para Berkeley, idéia e imagem são a mesmacoisa; a palavra idéia significa representação mental) é o símbolo de outras idéias concretas. No universode Berkeley, os "signos" desempenham um grande papel. Pensar não é, para ele, aprender uma essênciaabstrata, mas passar de uma imagem a outra graças à função simbólica.

O Imaterialismo

É a outra doutrina fundamental de Berkeley que facilmente vemos estar ligada ao seu nominalismo. Paraele, toda abstração é ilegítima. E, por exemplo, não tenho o direito de dizer, como Descartes, que aextensão existe objetivamente, ao passo que a cor é subjetiva, pois todos os objetos me são dadossimultaneamente como extensos e coloridos. De um modo mais geral, nada me autoriza a imaginar, porabstração, a existência de pretensos objetos materiais fora de meus estados de consciência. "Não posso

representar em meus pensamentos uma coisa sensível ou um objeto isolados da sensação que delestenho; o objeto e a sensação são idênticos e não podem ser abstraídos um do outro." Eis uma porta altae sólida, pintada de verde e contra a qual me choco dolorosamente. Não é verdadeiramente uma coisamaterial que existe como tal, fora de minhas sensações! Absolutamente, responde Berkeley. Esta portanada mais é do que uma soma de representações mentais, um conjunto de "idéias". Sua forma e aextensão que ela ocupa são sensações; sua cor verde uma sensação visual, o contato de minha mão comela uma sensação tátil e a própria dor que sinto após o choque é um estado de consciência. Não possuomais o direito de dizer que tenho uma ou várias idéias da porta, posto que ela não passa de um conjuntode idéias. Não tenho a menor razão de abstrair da realidade sensível que é a dos meus estados de

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consciência, pretensas coisas materiais que, misteriosamente, existiriam além de minhas percepções. A única realidade das coisas é serem percebidas, "Esse est percipi" . É certo que o ser não se reduz aoque é passivamente percebido e que eu, que ativamente percebo, também existo. Para Berkeley,portanto, ser é ser percebido ou perceber : "Esse est percipi vel percipere" . Não há no mundosenão idéias e espíritos. É o que, nos célebres diálogos, o imaterialista Philonous (esse nome, em grego,

significa amigo do espírito), porta-voz de Berkeley, demonstra a Hylas (cujo nome, em grego, significamatéria).

Realismo ou Idealismo?

O que Berkeley rejeita é a realidade de uma substância material que seria o suporte misterioso, invisível,impalpável, das qualidades sensíveis. O que ele não admite é a coisa que estaria oculta sob nossasrepresentações, é um além material que transcenderia o percebido. Sua filosofia, segundo a qual arealidade se reduz ao que nos é dado concretamente, quer nos libertar daquilo que Nietzche, mais tarde,chamará de "a ilusão dos além-mundos". Como diz Bergson muito bem: "O que o idealismo de Berkeleysignifica é que a matéria é coextensiva à nossa representação, que ela não tem interior, não tem suporte,que ela nada oculta, nada envolve, que se estende superficialmente e que se coloca inteira a todoinstante no que ela dá". Berkeley não nega, portanto, a existência das coisas sob a condição de que seaceite que existir é "ser percebido"  e nada mais.Dado esse detalhe, Berkeley reclama o bom-sensopopular e se ri de Descartes que duvidava de seus sentidos. Berkeley recusa todo ceticismo e aceita odado tal qual é: "O cavalo está na cocheira e os livros estão na biblioteca como antes"; o chamadoidealismo de Berkeley não passa de um realismo ingênuo. A aparência é que é a verdadeira realidade. Omundo visual tem realmente as cores que aparenta ter, o mundo da audição é verdadeiramente sonoro,etc. Como Philonous declara a Hylas: "Você se engana, não quero transformar as coisas em idéias, queroantes transformar as idéias em coisas, pois os objetos imediatos da percepção que, segundo você, sãoapenas as aparências das coisas, eu os considero coisas reais". A filosofia de Berkeley, portanto, é a filosofia do realismo concreto levada às suas últimas conseqüências:o que existe é o que vemos e tocamos. O que não vemos e não tocamos não existe . Porconseguinte, Berkeley rejeita todas as "abstrações" dos matemáticos e dos físicos. Não aceita a"extensão inteligível" de Malebranche e só admite um espaço sensível. As novas matemáticas do

infinitesimal, portanto, serão falsas a seus olhos. O espaço dado aos sentidos não pode ser divisível aoinfinito, uma vez divisível ao infinito seria admitir que um fragmento de extensão existe sem serpercebido. Do mesmo modo, Berkeley - antes de Bergson - rejeita como ficção o tempo abstrato,homogêneo e mensurável dos físicos. O único tempo real é o tempo concretamente percebido; "maislongo na dor do que no prazer".

Imaterialismo e Teologia

a) Tal como expusemos, o imaterialismo de Berkeley suscita uma dificuldade. Se não há nenhumatranscendência das coisas, se o objeto nada mais é do que a representação que dele tenho, como épossível que vários espectadores vejam juntos, no mesmo lugar, a mesma coisa? Por exemplo, aspessoas que neste momento se encontram em meu escritório podem dizer que aí existe uma poltrona decouro. Se - como pensava Hylas - a poltrona de couro existe materialmente e nossas sensações a

refletem, não há dificuldade. Mas, se como pensa Philonous-Berkeley, nossas sensações não remetem aum objeto exterior, como é que todas as pessoas presentes podem pretender ver a mesma coisa?b) Berkeley responde a isso, fazendo com que Deus intervenha. Deus já estava encarregado de explicaras admiráveis correspondências entre dados táteis e visuais, era ele o autor dessa linguagem universal ebenfazeja da natureza. E agora Berkeley nos diz que Deus é quem nos envia, numa ordem harmoniosa,nossas "idéias", isto é , nossas percepções. A ordem de minhas "idéias", sua admirável concordância comas "idéias", isto é, com as percepções dos outros espíritos, estão erigidas como prova do poder e dabondade do Criador.

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c) Por que dizer, com efeito, que Deus criou a matéria e que o homem a conhece por meio de"idéias"? Não se pode fazer economia dessa entidade misteriosa? Basta pensar que o espetáculo douniverso, longe de ressaltar de maneira ininteligível uma matéria opaca, é diretamente imprimido peloCriador na consciência das criaturas. O mundo é uma mensagem de Deus. É um "discurso que Deus fazaos Homens"; ele me fala diretamente quando decifro o mundo sensível. Quando as metafísicas

materialistas falam de substância, de força, de extensão abstrata, colocam uma tela de pesadas ficçõesentre Deus e essa palavra cotidiana de Deus que é o mundo. Bergson apreende efetivamente o que háde essencial na doutrina de Berkeley quando a comenta nos seguintes termos: "A matéria seria umalíngua em que Deus nos fala. As metafísicas da matéria, tornando espessa cada sílaba, dando-lhe umdestino, erigindo-a em entidade independente, afastariam nossa atenção do sentido do som e nosimpediriam de acompanhar a palavra divina".Em todo caso, vemos, por tudo isso, o alcance apologético que Berkeley pretende dar a seuimaterialismo. Aos materialistas, aos ateus que proclamam: Deus não existe, a alma não existe, Berkeleyresponde: "É a matéria que não existe. Só Deus e os espíritos existem" . 

O Problema da Evolução em Berkeley

a) Em Siris , Berkeley enriquece seu imaterialismo com uma dimensão nova. A Providência - de quem asvirtudes terapêuticas da água de alcatrão lhe recordam a benevolência ativa - surge-lhe, desde então, àmaneira dos neoplatônicos, que lera na América, como um fogo sutil que circula através do Universo,como um fluido vital que o penetra inteiramente.b) Por outro lado, inspirado pelos platônicos que pregam a libertação quanto aos sentidos e insistem noconhecimento das realidades espirituais, Berkeley aprofunda sua reflexão sobre o conhecimento dessasrealidades. Da primeira à segunda edição de seus Princípios do Conhecimento , seguimos facilmente oaprofundamento de seu pensamento. Na primeira edição, Berkeley mostra que as idéias, isto é, asrepresentações mentais, são essencialmente passivas. É Deus quem nos fornece nossas "idéias", masnão temos idéia do próprio Deus, posto que ele é atividade suprema. Como, então, podemos conhecê-lo? A segunda edição traz uma resposta a esse problema e Siris vem explicitar essa resposta: temos umanoção de Deus. Este último que, nas primeiras obras, era um Deus cartesiano, criador das idéias emnossas consciências, torna-se um Deus malebranchiano, não apenas causa das idéias, mas morada das

Idéias. Entre ele e nossas representações sensíveis surgem (como nas filosofias neoplatônicas)intermediários, arquétipos em que Deus se fundamenta para produzir nossas representações.Berkeley então nos propõe uma espécie de síntese muito original entre as filosofias de Locke e deMalebranche, com uma evolução cada vez mais acentuada em sua velhice para o malebranchismo, comosublinhou Gueroult. "Curiosa síntese, diz muito bem F.-J. Thonnard, entre empirismo e espiritualismo,entre gosto pelo sensível e aversão pela matéria." Todavia, Berkeley nunca seguirá Malebranche até ofim. Se, no fundo, aceita a teoria das causas ocasionais na matéria (a idéia visível não é a causa, mas osigno da idéia tangível que Deus produz em mim), se finalmente recai no tema da visão de Deus, sechega mesmo a ir mais além de Malebranche ao negar a existência das coisas materiais (queMalebranche aceita de acordo com o testemunho da Bíblia), Berkeley não aceita que a vontade dascriaturas seja uma simples causa ocasional. Ele atribui à pessoa humana uma verdadeira "eficácia", umaliberdade real, recaindo, assim, no espiritualismo tradicional.

Jean-Jacques Rosseau 

O Iluminismo Francês

 Voltaire traz o iluminismo da Inglaterra para a França, já bem disposta para assimilá-lo e valorizá-lo,escrevendo as famosas Lettres sur les Anglais . E logo se desperta na França uma verdadeira anglomania:pelo constitucionalismo inglês, pelo livre pensamento, pela ciência nova, por Locke e Newton. Assim, se aterra de origem do iluminismo é a Inglaterra, a sua terra clássica é a França. Aí assumirá aquele caráterextremado e difusivo pelo qual o iluminismo ficará definitivamente individuado.

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O traço específico do iluminismo francês é o culto da razão, a deusa razão da revolução francesa. Arazão (humana) deve dominar acima de tudo e acima de todos, déspota absoluta. Daí a guerra aqualquer atividade e instituição que não sejam puramente racionais, à fantasia, ao sentimento, à paixão;às desigualdades sociais, porque a razão é universal; ao estado, quando conculca os direitos naturais doindivíduo; às divisões nacionais e à guerra; à história e à tradição em geral, em que a razão certamente

não domina. No campo social, econômico, político, religioso, tudo isto levará à demolição, à destruição daordem constituída. É o que fez desabusadamente e desapiedadamente a revolução francesa.Se o iluminismo demole toda a história, julga, todavia, realizado o seu ideal racional no começo dahumanidade, no homem primitivo para o qual se deverá, ou mais ou menos, voltar. E se ele demole todareligião positiva, inclusive o cristianismo, e, em definitivo, também a religião natural de um Deustranscendente, substitui, todavia, a esta religião a religião humanista e imanentista da razão, cujo reino,porém, se encontra neste mundo e na vida terrena.

Os Homens e os Problemas

 A obra fundamental do iluminismo francês e europeu, em geral, é a Enciclopédia: Enciclopédie ou dictionaire des sciences, des arts et des métiers . Foi publicada entre 1751 e 1780, em 34 volumes. Foidirigida por João D'Alembert  (1717-1783), autor do famoso Discours préliminaire , e por Denis Diderot (1713-1784) autor também de alguns escritos filosóficos - Pensées sur l'interprétation de la nature  (1754), etc. Entretanto colaboraram na enciclopédia os iluministas mais famosos, chamados por issoenciclopedistas . Entre eles Voltaire e Rosseau. O movimento dos enciclopedistas foi um poderoso meiopara a difusão e vulgarização das idéias iluministas, na França e no estrangeiro. A figura dominante do iluminismo francês é Francisco Maria Arouet, dito Voltaire (1694-1778). Viveu emLondres entre 1726 e 1729, e aí escreveu as famosas Lettres sur les Anglais , trazendo para a França oiluminismo. Caído na desgraça do Rei e da Corte da França, foi acolhido (1750-1753) por Frederico II, em1755, retirou-se para Ferney, perto de Genebra, daí dominando o mundo da cultura européia. Entre assuas obras, as que mais interessam à filosofia, são: Lettres sur les Anglais  (1734); Métaphysique de Newton  (1740); Éléments de la Philosophie de Newton  (1741); Candide ou de L'optimisme  (1756);Dictionnaire Philosophique (1764); Réponse ou Système de la nature (1777).Pelo que diz respeito ao problema filosófico em geral, o iluminismo francês adere ao empirismo de Locke

desenvolvido no sensismo de Condillac, ou até no ceticismo. Pertence a esta última tendência Pedro Bayle  (1647-1706), autor do Dictionnaire Historique et Critique , meio eficaz de difusão do iluminismoantes da grande enciclopédia. Bayle propagou a incredulidade pela Europa toda, sustentando airracionalidade da Revelação: mesmo contra a própria intenção do autor, que pretendia mostrar anecessidade de se apoiar na Fé em face dos máximos problemas, sendo a razão humana impotente parasolucioná-los. Assim, o mecanismo (empirista e racionalista) é levado até o materialismo por La Mettrie e D'Holbach,atacados por Voltaire.Julião Offrai de La Mettrie (1709-1751) é o autor do famoso livro L'homme machine ; o barão Teodorico D'Holbach (1723-1789), um alemão que viveu em Paris, é o autor do não menos famoso Système de la nature , onde o materialismo se manifesta em cheio. Acerca do problema religioso, a atitude iluminista é decididamente hostil à igreja católica e se propõe a simesma esmagá-la (écraser l'infâme) : quer admita uma religião natural, com a crença em Deus, na

imortalidade da alma, nas sanções ultraterrenas, como sendo necessárias para a conservação da ordemmoral e política, segundo o ideal deísta (Voltaire); quer chegue até ao ateísmo e ao hedonismo, como,por exemplo, a corrente iluminista chefiada por Cláudio Helvetius (1715-1771), autor do livro De l'Esprit .Pelo que concerne aos problemas sociais e políticos, enfim, para os quais o iluminismo tinhanaturalmente um interesse especial, manifestam-se também duas atitudes: a do assim chamadodespotismo iluminado, isto é, do absolutismo racional, para o bem dos povos e da humanidade -acredita-se na razão, mas não no povo que se quer elevar. Daí a necessidade da força a serviço da razão. A outra atitude ou tendência é a que deriva do liberalismo constitucional. Esta corrente, pelo contrário,manifesta confiança no povo ou, melhor, na burguesia, desejosa e capaz de liberdade. Característica

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desta concepção política é a divisão absoluta dos poderes supremos: legislativo ,  executivo   e juduciário . O maior expoente dessa corrente é Carlos de Secondat, Barão de Montesquieu (1689-1755).É o autor das Lettres persanes , das Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence, e do Esprit des lois . Nestes escritos se manifesta um racionalismo iluminista temperado,desenvolvido em sentido historicista, concreto, pelo sentido de variedade das leis em relação às

condições dos povos.

Jean-Jacques Rosseau

 A obra de Rosseau (1712-1778) que foi mal compreendida e que ainda o é nos meios do catolicismotradicional, na realidade representa uma reação espiritualista contra a filosofia das luzes e o otimismo dosenciclopedistas, desses filósofos do "conventículo holbáquico" que ele destacava e pelos quais era odiado.Em seu primeiro livro, Discurso sobre as Ciências e as Artes , ele escreve para responder a uma questãoque a Academia de Dijon colocara em concurso: Rosseau declara-se inimigo do progresso. Para ele, oprogresso das ciências e das artes tornou o homem vicioso e mau, corrompendo sua natureza íntima.Freqüentemente se resume a tese de Rosseau aos seguintes termos: o homem é bom por natureza, a sociedade o corrompeu . Não se fará, no Emílio, o campeão de uma pedagogia naturalista que confianas tendências espontâneas da criança, que atende às suas necessidades mais profundas, ao invés desubmetê-la a constrangimentos difíceis? (Nesse sentido, a pedagogia da chamada Escola Nova, fundadanas tendências e nos centros de interesse espontâneos da criança, é uma pedagogia rousseauniana:"Toda lição, dirá Dewey em nossos dias, deve ser uma resposta").Mas seria uma grave erro confundir o "naturalismo" de Rosseau com o dos filósofos das luzes. Narealidade, a moral e a filosofia de Rosseau, tais como se encontram em seu romance  A Nova Heloísa  (1761) e na Profissão de fé do Vigário saboiano , peça mestra do Emílio (1762), recaem nos temas doespiritualismo mais tradicional. É certo que a profissão de fé do Vigário suscitou as iras dos poderespúblicos e das igrejas constituídas. A obra será solenemente queimada, um mês apenas após suapublicação, em Paris e em Genebra. O arcebispo de Paris condena-lo-á em célebre ordenação(perseguido por toda parte, Rosseau só encontra refúgio na Inglaterra, junto a Hume, com quem, aliás,se desentenderá pouco depois). É censurado por escolher a religião natural (aquela que o homemencontra no próprio coração) e rejeitar a religião revelada. Não há dúvida de que ele declara que todas

as religiões são boas e que cada crente pode conseguir a salvação na sua (o que é contrário ao que, naépoca, era pensado nas igrejas católicas e protestantes). Também é certo que ele desconfia dasinterpretações que a Igreja possa dar dos Evangelhos ("quantos homens entre mim e Deus!"). Noentanto, prende-se ao ensinamento de Jesus, cujos atos, diz, são melhores atestados do que os da vidade Sócrates. Rosseau adota o dualismo moral popular. "Somos tentados pelas paixões e detidos 

 pela consciência" , essa consciência moral que, segundo ele, é uma exigência inata em nós e não,como dizia Montaigne, o reflexo do costume. Para Rosseau, os maus triunfam neste mundo, ao passo que o justo é infeliz . Todavia, a justiça divina recompensará os bons ("a vida da alma só começa com a morte do corpo")  e punirá os maus que são culpados de serem assim ("dependia deles não setornarem maus"). A Nova Heloísa apresenta-se como uma apologia da religião e da moral, dessa "leidivina do dever e da virtude" em nome da qual a paixão amorosa se sacrifica heroicamente. A teoria política de Rosseau, exposta no Contrato Social , aproxima-se bastante, aparentemente aomenos, das idéias dos filósofos racionalistas. Nessa obra, Rosseau pesquisa as condições de um Estado

social que fosse legítimo, que não mais corrompesse o homem. O problema que ele coloca recai no deLocke ou de d'Holbach: "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens da cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, porém,senão a si próprio e permaneça tão livre quanto antes; ete, o problema fundamental cuja solução é dada  pelo contrato social" . Todavia, o pacto social não tem por fim conciliar todos os interesses egoístas, masantes depreender (o que é possível com a maioria das vozes, nos debates do povo reunido) uma vontade geral . Esta última faz abstração dos interesses divergentes e das paixões de cada um para só cuidar dobem comum. Entenda-se bem: "cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrária ou dessemelhante da vontade geral que ele tem como cidadão" . Por conseguinte,

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nessa vontade geral descobriremos outra coisa que não o interesse, o desejo de felicidade, etc.Encontraremos aí, no fundo, a regra da consciência, esse juízo inato do bem e do mal que cada umdescobre em si mesmo, quando dissipa seus desejos egoístas "no silêncio das paixões".

 A Consciência segundo Rosseau 

(Profissão de Fé do Vigário Saboiano)

Não tiro dessas regras, os princípios de uma alta filosofia, mas as encontro, no fundo do meu coração,escritas pela natureza em caracteres indeléveis. Basta-me consultar-me sobre o que quero fazer; tudo oque sinto ser bem é bem e tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é aconsciência; e só quando se comercia com ela é que se recorre às sutilezas do raciocínio. O primeiro detodos os cuidados é o consigo mesmo: todavia, quantas vezes a voz interior nos diz que, ao fazer nossobem a expensas de outrem, fazemos o mal! Acreditamos seguir o impulso da natureza e lhe resistimos,escutando o que ela diz dos nossos sentidos, desprezamos o que diz aos nossos corações; o ser ativoobedece e o ser passivo ordena. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo . Éespantoso que muitas vezes essas duas linguagens se contradigam? A qual delas se deve ouvir? A razãofreqüentemente nos engana, não temos senão o direito de recusá-la; mas a consciência nunca engana; éo verdadeiro guia do homem: ela está para a alma assim como o instinto está para o corpo(¹); quem asegue, obedece a natureza e não teme se perder. Este ponto é importante, proseguiu meu benfeitor,vendo que eu ia interrompê-lo: esperai que eu me detenha um pouco mais a esclarecê-lo. A moralidade de nossas ações está no juízo que delas fazemos. Se é verdade que o bem seja bem, ele odeve ser tanto no fundo de nossos corações quanto em nossas obras, e o maior prêmio da justiça ésentir que a praticamos. Se a bondade moral concorda com nossa natureza, o homem não poderia sersão de espírito, nem bem constituído, se não fosse bom. Se não concorda, então o homem énaturalmente mau e não o pode deixar de ser sem se corromper; a bondade não seria senão um víciocontra a natureza. Feito para prejudicar seus semelhantes, assim como o lobo para devorar sua presa, ohomem humano seria um animal tão depravado quanto um lobo desprezível; e a virtude só nos deixariaremorsos.Penetremos em nós mesmos, oh, meu jovem amigo! Examinemos, deixando à parte qualquer interessepessoal, para onde nossas tendências nos conduzem. Qual o espetáculo que mais nos envaidece, o dos

tormentos ou o da felicidade de outrem? Que é que nos é mais doce fazer e que nos deixa agradávelimpressão após o ter feito, um ato benfazejo ou um ato malfazejo? Por quem vos interessais mais emvossos teatros? É com a maldade que vos divertis? É com seus autores punidos que derramais lágrimas?Tudo nos é indiferente, dizem eles, exceto nosso interesse; quando, ao contrário, as doçuras da amizadehumana nos consolam em nossas penas; e mesmo em nossos prazeres, estaríamos demaisados sós eseríamos demasiados miseráveis se não tivéssemos com quem os dividir. Se nada existe de moral nocoração do homem, de onde, então, provêm esses transportes de admiração pelas ações heróicas, essestransportes de amor pelas grandes almas. Esse entusiasmo da virtude, qual a relação que ele tem comnosso interesse privado? Por que eu preferiria ser Catão, que rasga as entranhas, do que Césartriunfante? Tirai de nossos corações esse amor ao belo, que tirareis todo o encanto da vida. Aquele cujaspaixões vis sufocaram esses sentimentos deliciosos em sua alma estreita; aquele que, à força de seconcentrar dentro de si, acaba por amar apenas a si mesmo, não mais tem transportes e seu coraçãocongelado não mais palpita de alegria, assim como uma doce trnura nunca umedece seus olhos; não

goza mais nada; o infeliz não sente mais, não vive mais, já está morto.(¹)  A filosofia moderna, que só admite o que explica, não deixa de admitir essa obscura faculdadechamada instinto que parece guiar os animais, sem qualquer conhecimento adquirido, no sentido dealgum fim. O instinto, segundo um de nossos mais sábios filósofos (Condillac), nada mais é do que umhábito privado de reflexão, mas adquirido por reflexão; a maneira pela qual ele explica esse progressoobriga-nos a concluir que as crianças refletem mais do que os adultos, paradoxo muito estranho paravaler a pena ser examinado. Sem entrar aqui nessa discussão, pergunto que nome devo dar ao ardorcom que meu cão faz guerra às toupeiras que não come, à paciência com que as guarda, jogando-as porterra no momento em que saltam, matando-as em seguida para deixá-las ali, sem que jamais alguém o

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tenha dirigido para essa caça ou lhe ensinado que existem toupeiras. Pergunto ainda, e isso é maisimportante, por que, na primeira vez em que ameacei esse mesmo cão, ele se atirou de costas no chão,as patas dobradas, numa atitude suplicante e mais própria para me comover, postura em que nãopermaneceria se, sem me deixar dobrar, eu lhe batesse. Quê?! meu cão, pequenino, mal acabado denascer, já teria adquirido idéias morais? Sabia o que era clemência e generosidade? Em virtude de que

luzes adquiridas esperava me acalmar, abandonando-se assim à minha discrição? Todos os cães domundo fazem quase o mesmo no mesmo caso, e nada falo aqui que não possa ser verificado por todos.Que os filósofos, que tão desdenhosamente rejeitam o instinto, queiram explicar esse fato apenas pelo jogo das sensações e dos conhecimentos que elas nos fazem adquirir; que o expliquem de maneirasatisfatória para todo homem sensato; então não teria mais nada a dizer e não mais falarei de instinto.(Nota de Rosseau)  Leibniz 

 Vida e Obra

Gottfried Wilhelm Leibniz nasceu em Leipzig, a 1° de julho de 1646, filho de um professor de filosofiamoral. Desde muito cedo, teve contato, na biblioteca paterna, com filósofos e escritores antigos, comoPlatão (428-347 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.) e Virgílio (c. 70-19 a.C.), e com a filosofia e a teologiaescolásticas. Aos quinze anos começou a ler Bacon (1561-1626), Hobbes (1588-1679), Galileu (1564-1642) e Descartes (1596-1650), passando a dedicar-se às matemáticas. Ainda aluno da Universidade deLeipzig, escreveu, em 1663, um trabalho sobre o princípio da individuação; depois foi para Iena, a fim deseguir os cursos do matemático Ehrard Wigel. Desde essa época, Leibniz se preocupou em vincular afilosofia às matemáticas escrevendo uma Dissertação Sobre a Arte Combinatória . Nesse trabalhoprocurou encontrar para a filosofia leis tão certas quanto as matemáticas e esboçou as premissas docálculo diferencial, que inventaria ao mesmo tempo que Newton. Por outro lado, no estudo da lógicaaristotélica, Leibniz encontrou os elementos que o levaram à idéia de uma análise combinatória filosófica,vislumbrando a possibilidade de cria um alfabeto dos pensamentos humanos, com o qual tudo poderiaser descoberto.Nos anos seguintes, doutorou-se em direito na Universidade de Altdorf e, em Nuremberg, filiou-se à

Sociedade Rosa-Cruz. O ingresso nessa Sociedade valeu-lhe uma pensão e, ao que tudo indica, permitiuque ele se iniciasse na vida política. A partir de então, a vida de Leibniz, segundo o historiador Windelband, apresenta muitas semelhançascom a de Bacon: Leibniz sabia mover-se agilmente em meio às intrigas da corte a fim de realizar seusgrandes planos, sendo dotado também daquela "ardente ambição que levara Bacon à ruína".Em 1667, Leibniz dedicou ao príncipe-eleitor de Mogúncia um trabalho no qual mostrava a necessidadede uma filosofia e uma aritmética do direito e uma tabela de correspondência jurídica. Por causa dessetrabalho, foi convidado para fazer a revisão do "corpus juris latini ".Em 1670, foi nomeado conselheiro da Alta Corte de Justiça de Mogúncia. Com esse título, Leibniz foiencarregado de uma missão em Paris, em 1672. Pretendia convencer o rei Luís XIV a conquistar o Egito,aniquilando, assim, a Turquia e protegendo a Europa das invasões "bárbaras". Esperava, desse modo,desviar as atenções do rei e evitar que ele utilizasse sua potência militar contra a Alemanha. Seu projetofoi rejeitado, mas os três anos de estada em Paris não lhe foram inúteis. Entrou em contato com alguns

dos mais conhecidos intelectuais da época: Arnauld (1612-1694), Huygens (1629-1695). Em 1676,Leibniz descobriu o cálculo diferencial, situando-se entre os maiores matemáticos da época.Fora, no entanto, precedido por Newton, que, desde 1665, já inventara, embora sob ponto de vistadiferente, um novo método de cálculo, o método das fluxões. Em Newton, as variações das funções sãocomparadas ao movimento dos corpos, sendo, portanto, a idéia de velocidade que fundamentava seucálculo. Leibniz, ao contrário, parte de uma colocação metafísica, introduzindo a noção de quantidadesinfinitamente pequenas, o que o leva a empregar o algoritmo.Em 1676, Leibniz encontra-se em Amsterdam com Espinosa, com quem discute problemas metafísicos.No mesmo ano torna-se bibliotecário-chefe em Hanôver, cidade na qual passaria ao restantes quarenta

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anos de sua vida. Saiu de Hanôver apenas para percorrer, durante três anos, a Alemanha e a Itália,realizando pesquisas em bibliotecas e arquivos destinadas a fundamentar suas missões diplomáticas.Em 1711, viajou para a Rússia a fim de propor ao czar Pedro, o Grande, um plano de organização civil emoral para o país. Em seguida, esteve em Viena, onde conheceu o príncipe Eugênio de Savóia, ao qualdedicaria a Monadologia. Nessa época, realizou seus principais trabalhos filosóficos.

De volta a Hanôver, Leibniz encontrou diminuído seu prestígio, com a morte de sua protetora, a princesaSofia, apesar de ter sido um dos maiores responsáveis para que Hanôver se transformasse em eleitoradoe para que fosse criada a Academia de Ciências de Berlim. Relativamente esquecido e isolado dosassuntos públicos, Leibniz veio a falecer a 14 de novembro de 1716.

Racionalismo e Finalismo

 Apesar de sua intensa e agitada vida pública, Leibniz deixou uma obra extensa, em que trata de quasetodos os assuntos políticos, científicos e filosóficos de seu tempo. Dentre seus escritos destacam-se:Sobre a Arte Combinatória , Monadologia , Discurso de Metafísica , Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano , Sobre a Origem Radical das Coisas , O que é Idéia , Cálculo Diferencial e Integral , Característica Universal , Correspondência com Arnauld , Correspondência com Clarke , Sobre o Verdadeiro Método em Filosofia e Teologia , Sobre as Noções de Direito e de Justiça , Ensaio de Teodicéia , Considerações Sobre o Princípio da Vida , Sobre a Sabedoria , Sobre a Liberdade e Correspondência com Padre Bosses .Parte considerável da obra de Leibniz e constituída por escritos de circunstância, com os quais – segundomuitos historiadores – tentava apenas obter favores dos governantes, fazendo todas as conciliaçõespossíveis. Dilthey, ao contrário, considera que Leibniz perseguia um sincero ideal de síntese de todos osconhecimentos e das diferentes confissões religiosas de seu tempo. Outra parte (a volumosíssimacorrespondência e os trabalhos publicados somente após sua morte) revela – segundo Russel e outros –um pensador bastante diferente do Leibniz público Acrescentando-se a essa dupla face de seus escritos ofato de que muitos deles sequer foram concluídos, torna-se bastante difícil uma interpretação da filosofialeibniziana que não dê margem a dúvida e não suscite polêmica.De qualquer modo – e embora Leibniz tenha criado um amplo sistema de idéias dotado de "múltiplasentradas" –, pode-se tomar para ponto de partida da compreensão da sua filosofia dois temasprovenientes de fontes distintas: um da filosofia de Descartes, outro de Aristóteles e da escolástica

medieval.Descartes forneceu-lhe o ideal de uma explicação matemática do mundo; a partir dessa idéia, Leibnizpretendia lançar as bases de uma combinatória universal, espécie de cálculo filosófico que lhe permitiriaencontrar o verdadeiro conhecimento e desvendar a natureza das coisas. De Aristóteles e da escolástica,Leibniz conservou a concepção segundo a qual o universo está organizado de maneira teleológica, ouseja, tudo aquilo que acontece, acontece para cumprir determinados fins. As duas doutrinas foram sintetizadas pela filosofia de Leibniz, aparecendo unificadas na concepção deDeus. Para Leibniz, a vontade do Criador (na qual se fundamenta o finalismo) submete-se ao Seuentendimento (racionalismo); Deus não pode romper Sua própria lógica e agir sem razões, pois estasconstituem Sua natureza imutável. Conseqüentemente, o mundo criado por Deus estaria impregnado deracionalidade, cumprindo objetivos propostos pela mente divina.Essa síntese entre o racionalismo cartesiano e o finalismo aristotélico apresenta como núcleo uma sériede princípios de conhecimento, dos quais se poderiam deduzir uma concepção do mundo e uma ética

dotada inclusive de implicações políticas.O primeiro desses princípios é o de razão. O  princípio de razão consiste em submeter toda e qualquerexplicação ou demonstração a duas exigências. A primeira funda-se no caráter não-contraditório daquiloque é explicado ou demonstrado; é a razão necessária ou princípio de não-contradição. A Segundaexigência consiste em que, além de explicado ou demonstrado não ser contraditório (e sendo, portanto,possível sua existência), a coisa em questão também existe realmente; é a razão suficiente . O princípiode razão afirma, portanto, que uma coisa só pode existir necessariamente se, além de não sercontraditória, houver uma causa que a faça existir.

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Para Leibniz, além da causa eficiente que produz as coisas segundo o princípio de razão (não-contadição e suficiência), intervém também nessa produção a causa final. A primeira é de tipomatemático e mecânico, a Segunda é dinâmica e moral. O fim da produção das coisas é a vontade justa,boa e perfeita de Deus, que deseja essa produção. O finalismo é que sustenta o  princípio do melhor :Deus calcula vários mundos possíveis, mas faz existir o melhor desses mundos. O critério do melhor é

sobretudo moral; com ele Leibniz pretende demonstrar que o mal é a simples sombra necessária do bem.O finalismo sustenta, desse modo, o otimismo leibniziano do melhor dos mundos possíveis. Além dos princípios de razão (não-contadição e suficiência) e do princípio do melhor, que dão conta daprodução das coisas, Leibniz faz com que intervenham também os princípios da continuidade e dosindiscerníveis.O princípio da continuidade afirma que a natureza não dá saltos; assim como não há vazios no espaço,assim também não existem descontinuidades na hierarquia dos seres. Leibniz afirma, por exemplo, queas plantas não passam de animais imperfeitos.O princípio dos indiscerníveis daria conta da multiplicidade e individualidade das coisas existentes. Leibnizafirma que não há no universo dois seres idênticos e que sua diferença não é numérica nem espacial outemporal, mas intrínseca, isto é, cada ser é em si diferente de qualquer outro. A diferença é de essênciae manifesta-se no plano visível das próprias coisas.Os princípios do melhor, da não-contradição, da razão suficiente, da continuidade e dos indiscerníveis sãoconsiderados, por Leibniz, constitutivos da própria razão humana e, portanto, inatos, embora apenasvirtualmente. Nos Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano , Leibniz rejeita a teoria empirista deLocke (1632-1704), segundo a qual a origem das idéias encontra-se na experiência, apenas uma "tabularasa", uma folha de papel em branco. Para Leibniz, ao contrário, a experiência só fornece a ocasião parao conhecimento dos princípios inatos ao intelecto: "Não se deve imaginar que se possa ler na alma, sem esforços e sem pesquisa, essas eternas leis da razão, como o édito do pretor é lido em seu caderno; mas é bastante que as descubramos em nós por um esforço de atenção, uma vez que as ocasiões são fornecidas pelos sentidos" . Os empiristas teriam razão ao afirmar que as idéias surgem do contato com omundo sensível, mas errariam ao esquecer o papel do espírito. Por isso, Leibniz completa a fórmula deLocke – "Nada há no intelecto que não tenha passado primeiro pelos sentidos"  – com o adendo "a não ser o próprio intelecto" .

Os Fundamentos da MonadologiaOs princípios do conhecimento formulados por Leibniz levaram-no a uma concepção do mundo oposta àcartesiana. Enquanto Descartes formula uma concepção geométrica e mecânica dos corpos, Leibnizconstrói uma concepção dinâmica. Nesse sentido, explica os seres não como máquinas que se movem,mas como forças vivas: "Os corpos materiais, por sua resistência e impenetrabilidade, revelam-se nãocomo extensão mas como forças; por outro lado, a experiência indica que o que se conserva num ciclode movimento não é – como pensava Descartes – a quantidade do movimento, mas a quantidade deforça viva". A partir da noção de matéria como essencialmente atividade, Leibniz chega à idéia de que ouniverso é composto por unidades de força, as mônadas, noção fundamental de sua metafísica. Essanoção, contudo, não se esgota na adição do atributo força ao conceito da matéria, formulado porDescartes. Leibniz chega também à noção de mônada mediante a experiência interior que cada indivíduotem de si mesmo e que o revela como uma substância ao mesmo tempo una e indivisível.

 As notas que caracterizam as mônadas leibnizianas são a percepção, a apercepção, a apetição e aexpressão. Pela percepção as mônadas representam as coisas do universo; cada uma de per si espelha ouniverso todo. A apercepção é a capacidade que a mônada espiritual tem de auto-representar-se, isto é,de refletir; a mônada é a consciência. A apetição consiste na tendência de cada mônada de fugir da dor edesejar o prazer, passando de uma percepção para outra. Finalmente, as mônadas, não tendo "portassem janelas", não recebem seus conhecimentos de fora, mas têm o poder interno de exprimir o resto douniverso, a partir de si mesmas; a mônada é um ponto de vista.Cada representação por parte das mônadas é um reflexo obscuro, jamais havendo consciência clara detodas as impressões. Isto se deve ao fato de que o universo é múltiplo e infinito, enquanto toda a

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substância, isto é, toda mônada, com exceção de Deus, é necessariamente finita. Portanto, não épossível "que nossa alma (mônada superior) possa atingir tudo em particular". O corpo humano, paraLeibniz, é afetado, de alguma forma, pela mudança de todos os outros; todos os seus movimentoscorrespondem certas "percepções" ou pensamentos mais ou menos confusos da alma. Assim, a almatambém tem algum pensamento de todos os movimentos do universo. "É verdade", diz Leibniz, "que não 

nos apercebemos distintamente de todos os movimentos de nosso corpo, como por exemplo o da linfa (...), mas é preciso que eu tenha alguma percepção do movimento de cada vaga de um rio, a fim de  poder me aperceber daquilo que resulta de seu conjunto, isto é, esse grande ruído que se escuta perto do mar" . A percepção consciente (apercepção) resulta do conjunto das "pequenas percepções", como o ruído dochoque de duas gotas de água, que se deve ouvir mesmo sem ter consciência. Isso explicaria aconservação das lembranças, o trabalho da imaginação nos "bastidores da consciência", assim como arealidade dos sonhos, mesmo quando esquecidos no estado de vigília. Dessa forma, os estadossucessivos da alma estariam ligados uns aos outros e a todo universo.O inconsciente seria inerente a todas as substâncias criadas e seus diferentes graus seriam paralelos aosgraus de perfeição dessas substâncias; a continuidade existente entre os seres não anula a diferença denatureza entre as simples mônadas e os espíritos. Leibniz afirma ainda que existem dois tipos deinconscientes: o inconsciente de percepção , próprio das simples mônadas enquanto são apenas "espelhosdo universo", e o inconsciente da imitação , pertencente apenas aos espíritos enquanto não são apenasespelhos, mas espelhos dotados de reflexão. A razão dessa diferença, encontra-se no fato de que asmônadas não possuem o mesmo grau de perfeição: acima das "mônadas nuas"  (corpos brutos que sótêm percepções inconscientes e apetições cegas) existem "mônadas sensitivas"  (animais dotados deapercepções e desejos) e as "mônadas racionais" , com consciência e vontade.

O Melhor dos Mundos Possíveis

O racionalismo leibniziano tende à constituição de um saber globalizador, de uma mathesis universalis .Do ponto de vista lógico, o sistema de Leibniz estrutura-se como um conjunto de múltiplas séries queconvergem e se entrecruzam; cada ponto de uma das séries é definido, dentro da complexa teia, por seulugar, sua posição; por conseguinte, o conjunto todo organiza-se numa topologia. A noção de ordem, em

Leibniz, assume feição diferente da que possuía em Descartes: desliga-se da de nexo linear e passa a sevincular à noção de "situação" (as situações resultantes das diversas séries que se entrecruzam). Osistema todo, assim estruturado, conduz à possibilidade de tradução de uma ordem em outra. Opluralismo das séries convergentes que constituem o universo pode assim apresentar-se como pluralismoconciliado e harmônico. Em Leibniz, revive o modelo estóico: o universo é concebido à semelhança de umorganismo pleno, cujas partes convivem numa harmonia natural e onde tudo é análogo a tudo.Para Leibniz, os atos de cada mônada foram antecipadamente regulados de modo a estarem adequadosaos atos de todas as outras; isso constituiria a harmonia preestabelecida. A doutrina leibniziana da harmonia preestabelecida sustenta que Deus cria as mônadas como se fossemrelógios, organiza-os com perfeição de maneira a marcarem sempre a mesma hora e dá-lhes corda apartir do mesmo instante, deixando em seguida que seus mecanismos operem sozinhos. Assim, Deusteria colocado em cada mônada, no instante da criação, todas as suas percepções, criando-as de talmodo que cada uma se desenvolve como se estivesse só; seu desenvolvimento, todavia, corresponde, a

cada instante, exatamente ao de todas as outras. Graças a essa harmonia preestabelecida, os pontos devista de cada mônada sobre o universo concordariam entre si. Ao mesmo tempo, Deus escolhe o melhordos mundos dentre todos aqueles que se apresentam como possíveis. Coloca-se então a questão: como explicar a presença do mal no mundo?  Leibniz tentou responder a esse problema, afirmando inicialmente que o mal se manifesta de três modos:metafísico , físico  e moral . O mal metafísico seria a fonte do mal moral, e deste decorreria o mal físico.O mal metafísico é a imperfeição inerente à própria essência da criatura, pois se ela não fosse imperfeita,seria o próprio Deus. A imperfeição metafísica original de definiria, assim, apenas como uma não-

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perfeição, metafísica original se definiria, assim, apenas como uma não-perfeição, um não-ser,retomando Leibniz a concepção neoplatônica e agostiniana.O mal metafísico é a raiz do mal moral, pois aquilo que é perfeito pode contemplar o Bem, sempossibilidade de erro, mas uma substância imperfeita não é capaz de aprender o todo, tem percepçõesinadequadas e se deixa envolver pelo confuso. Não se deveria, contudo, responsabilizar o criador pela

existência do mal, porque Deus proporciona a todos as mesmas graças, mas cada um pode se beneficiardelas de acordo com sua limitação original. Leibniz afirma que, assim como a correnteza é a causa domovimento do barco, mas não de seu atraso, assim também Deus é a causa da perfeição da Natureza,mas não de seus defeitos. Ao produzir o mundo tal como ele é, Deus escolheu o menor dos males, de talforma que o mundo comporta o máximo de bem e o mínimo de mal. Na própria origem das coisas, dizLeibniz, exerce-se uma certa matemática divina, ou mecânica metafísica, responsável pela determinaçãodo máximo de existência, tão rigorosa quanto as dos máximos e mínimos matemáticos ou as leis doequilíbrio.O mal físico é entendido por Leibniz como conseqüência do mal moral, podendo ser considerado, aomesmo tempo, uma conseqüência física da limitação original e uma conseqüência ética, isto é, puniçãodo pecado. Em decorrência da harmonia preestabelecida, a dor física seria expressão da dor metafísica,que a alma experimenta por causa de sua imperfeição. Segundo Leibniz, Deus autoriza o sofrimentoporque este é necessário para a produção de um Bem Superior: "Experimenta-se suficientemente asaúde, sem nunca se ter estado doente? Não é preciso que um pouco de Mal torne o Bem sensível, istoé, Maior?" A teoria do Mal, formulada por Leibniz, concluiria assim sua tentativa de síntese sistemática de umafilosofia que concebe o mundo como rigorosamente racional e como o melhor dos mundos possíveis. Algumas passagens das obras do próprio Leibniz, contudo, deixam uma réstia de dúvida sobre seuotimismo: "Pode-se duvidar se o mundo avança sempre em perfeição ou se avança e recua por períodos.(...) Pode-se pois questionar se todas as criaturas avançam sempre, ao menos no final de seus períodos,ou se existem também aquelas que perdem e recuam sempre, ou, enfim, se existem aquelas que realizam períodos no final dos quais percebem não ter ganho nem perdido; da mesma forma que existem linhas que avançam sempre, como a reta, outras que voltam sem avançar ou recuar, como a circular,outras que voltam e avançam ao mesmo tempo, como a espiral, outras, finalmente, que recuam depois de terem avançado, ou avançam depois de terem recuado, como as ovais" .

 A Renascença 

Características Gerais

 A Renascença é uma poderosa afirmação, particularmente no campo da prática, de humanismo e deimanentismo, o que é manifestado pelo seu individualismo, pelo seu estetismo, pelo seu ardenteinteresse pelo mundo a conquistar, dominar, gozar com meios humanos; pelo seu naturalismo quediviniza o homem material - como já aconteceu no paganismo antigo, para o qual o Humanismo, de fato,apela, e de que parece um retorno. Entretanto, falta ao Humanismo moderno a espontaneidade e aserenidade do paganismo antigo: o Humanismo moderno não descansará em um tranqüilo gozo da vida,mas procurará alimento no ativismo agitado e sem meta, característico da idade moderna.O Humanismo pode, com razão, definir-se pela palavra: o homem potenciado, celebrado, exaltado até à

divindade, livre de si mesmo, dominador da natureza, senhor do mundo. É, logo, um paganismo aindamais radical que o antigo, porquanto espiritual e interior. Dar uma documentação formal desse caráterpagão, imanentista, do Humanismo e da Renascença não é coisa fácil, pois trata-se de um período inicial,em que se entretecem motivos multíplices, e, sobretudo, o velho persiste ao lado do novo, dando origemàquela duplicidade especulativa e prática, tão característica dos homens da época.Mas o início do Humanismo e da Renascença é rico de todos os germes que se desenvolverão nosucessivo período moderno, imanentista, em que se poderá claramente conhecer a árvore pelos frutos. Éuma multiplicidade de motivos indiscutivelmente dominada pelo espírito panteísta do neoplatonismo, queatravessou toda a Idade Média; entretanto, na Idade Média, tal espírito era corrigido, religiosamente,

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pela teologia católica e, racionalmente, pela escolástica tomista. É uma dualidade composta de velhoe de novo, em que não será difícil separar o elemento interior do elemento exterior: se se considerar, emgeral, o ideal da vida daquela época, que chamava virtude a força, e enaltecia não o Pobrezinho de Assise sim o Príncipe Valentino; se se tiver presente Nicolau Machiavelli, que - sem possuir uma metafísicaconsciente - está persuadido de que o Estado, mera obra do homem, é o vértice da humanidade, estando

acima da religião e da moral transcendente, e prefere o paganismo ao cristianismo; se se pensar emGiordano Bruno, o maior filósofo da época, o qual parece reconhecer a obscuridade e a incoerência doseu pensamento, mas tem consciência de que a sua doutrina - racionalista, monista e humanista - é umcrepúsculo preludiando o dia e não a noite.Essa é a alma, o significado, não o valor, do Humanismo e da Renascença: uma alma pagã. Não há, aolado do humanismo pagão, um humanismo cristão, que seria uma contradição em termos. Esseselementos são essencialmente formais e estéticos porque a grande valorização cristã da civilizaçãoclássica - do pensamento grego e do jus romano - era já um fato consumado. E os elementos novos dohumanismo - a ciência, a técnica, a história, a política - não se podem dizer imanentistas antes quecristãos, pois, em si mesmos, são infrafilosóficos, e, portanto, indiferentes a qualquer concepção darealidade.O renascimento cristão, a unidade real e potencial dos grandes valores da civilização no valor sumo dareligião, não é obra dos séculos XV e XVI, mas do século que se abre com Inocêncio III e se encerra comDante, e viu Francisco de Assis e Antonio de Lisboa, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino.

O Renovamento das Antigas Escolas Filosóficas

Uma das manifestações características da Renascença é o renovamento das antigas escolas filosóficas,clássicas, gregas. Na Idade Média o pensamento clássico foi bem conhecido e valorizado. No entanto, talconhecimento e valorização diziam respeito aos maiores filósofos gregos, em especial a Aristóteles.Na Renascença, ao contrário, volta-se à sancta antiquitas , em oposição ao espírito cristão. E valorizam-seas antigas escolas filosóficas, realçando-lhes o conteúdo de humanidade , presente em todas elas, nãoobstante a variedade de suas orientações. Naturalmente não são, nem podiam ser, as escolas filosóficasclássicas em sua espontaneidade original, pois, entre a classicidade e a Renascença, medeiam quinzeséculos, profundamente influenciados pela mensagem cristã. E, após o aparecimento da Cruz, já não é

mais possível o retorno à serenidade clássica de Aristóteles ou ao ascetismo imanentista dos estóicos.Na Renascença são representadas, mais ou menos, todas as escolas filosóficas antigas: o platonismo, oaristotelismo, o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo e o ecletismo. Especialmente as duas primeiras e,entre estas, precipuamente a primeira. O aristotelismo da Renascença exclui, naturalmente, ainterpretação de Aristóteles dada por Tomás de Aquino, e sustenta ou a interpretação naturalista de Alexandre de Afrodísia, ou a panteísta de Averroés. O platonismo é, mais propriamente, neoplatonismo: já porque assim se tinha fixado na antigüidade e neste sentido influenciara toda a Idade Média (pseudoDionísio Areopagita, Scoto Erígena, Mestre Eckart); já porque a sua fundamental concepção panteísta e oseu potenciamento do espírito humano podiam melhor corresponder ao imanentismo e humanismo daRenascença.

O Platonismo

O ídolo da Renascença é Platão: artista e dialético, teórico do amor e da beleza, iniciador da ciênciamatemática da natureza. Em 1404 Leonardo Bruni aretino (1369-1440) publicava a primeira traduçãoparcial de Platão, iniciando, destarte, a renascença platônica. Em 1429 o camaldulense frei AmbrósioTraversari, de volta de Constantinopla, levava para a Itália o conjunto completo dos escritos platônicos.Entretanto foi o Concílio de Florença (1439) que deu um impulso decisivo aos estudos platônicos na Itália¾ bem como aos estudos aristotélicos e dos filósofos clássicos, em geral. Esse Concílio foi convocadopara a união da igreja grega com a igreja latina, e chamou para a Itália vários doutores orientais,conhecedores profundos de Platão. Outros vieram pouco depois, devido à queda de Constantinopla

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(1453) em mãos dos turcos. Famoso é Jorge Gemistos Pleton (1355-1450), autor da obra Sobre a Diferença da Filosofia Platônica e Aristotélica , que, realmente, é uma polêmica antiaristotélica.Esse escrito provocou uma resposta violenta ao aristotélico Jorge de Trebizonda (Comparatio Platonis et  Aristotelis ). Este filósofo - apelando também para Tomás de Aquino - sustenta a superioridade de Aristóteles sobre Platão pelo seu espírito científico, pela sua doutrina em torno de Deus e da alma, e pela

conseqüente possibilidade de concordar a sua filosofia com o cristianismo.Da parte platônica, replicou contra Jorge de Trebizonda o seu concidadão Basílio Bessarione (1403-1472)com o escrito In calumniatorem Platonis . Bessarione, eminente prelado da igreja oriental, veio para aItália com o séqüito do imperador João VII Paleólogo, para tratar da unificação da igreja grega com aigreja latina. Foi feito cardeal pelo Papa Eugênio IV e permaneceu na Itália, cooperando eficazmente parao incremento do ressuscitado helenismo.Depois desse platonismo de importação oriental, na Segunda metade do século XV surge e firma-se umplatonismo italiano. O centro foi precisamente Florença, onde foi celebrado o famoso Concílio. Seuprincipal representante foi Marsílio Ficino, animador da célebre academia platônica  florentina. Estaacademia nasceu graças a um cenáculo de literatos, artistas e pensadores, amigos da casa De Médicis.Fizeram parte deste cenáculo Poliziano , Pulci , João Pico della Mirandola  e o próprio Lourenço , oMagnífico.Marcílio Ficino  nasceu em 1433 em Figline Valdarno. Protegido por Cosme De Médices, que opresenteou com uma Quinta, onde teve sua sede a academia platônica, pode consagrar toda a sua vidaaos prediletos estudos filosóficos. Em 1473 foi ordenado padre e a sua vida foi muito austera no meio deFlorença do século XV. Faleceu em 1499.Sua atividade principal foi traduzir. Traduziu elegantemente, para o latim, Platão (1477) e Plotino (1485),além de outros neoplatônicos. Expôs o seu pensamento em uma grande obra (Theologia platonica de immortalitate animorum - 1491), em que procura concordar o platonismo, de que era entusiasta, com ocristianismo, em que acreditava seriamente. Entretanto não foi um metafísico, mas um eclético e suasfinalidades eram morais. Sua idéia animadora é a exaltação do homem como microcosmo, síntese douniverso: conceito antigo, neoplatônico, mas que teve no humanismo do Renascimento um valor e umsignificado particulares. Outra idéia sua inspiradora é o conceito de uma continuidade dodesenvolvimento religioso, que vai desde os antigos sábios e filósofos - Zoroastro, Orfeu, Pitágoras,Platão - até o cristianismo: expressão do universalismo religioso da Renascença.

Depois de Marsílio Ficino, o mais famoso platônico pode ser considerado João Pico della Mirandolla (1463-1494), autor de De dignitate hominis , que professa verdadeiramente um ecletismo baseado noplatonismo e no cabalismo. Dotado da mais vasta e heterogênea cultura, após várias peregrinações,estabeleceu-se em Florença junto de Lourenço, o Magnífico. Aí entrou em contato com Marsílio Ficino,que influiu no seu temperamento exuberante e passional, equilibrando-o filosófica e religiosamente."Blasonava de poder disputar de omni rescibili  - escreve Franca - e foi tido por seus contemporâneoscomo um prodígio de memória. Aos 18 anos sabia 22 línguas"!

O Aristotelismo

Não é sempre fácil distinguir o aristotelismo do platonismo da Renascença, porquanto, freqüentemente,aparecem confusos no sincretismo neoplatônico, que é a tendência especulativa dominante na época.Também o aristotelismo, como o platonismo, teve impulso, graças aos sábios gregos vindos para a Itália,

tradutores de Aristóteles e dos seus comentadores, entre os quais lembramos, no século XV, Teodoro deGaza e o já mencionado Jorge de Trebizonda.Como já foi dito, o aristotelismo da Renascença se distingue em duas correntes principais: a naturalistainspirando-se em Alexandre Afrodísio, e a panteísta-neoplatônica, inspirando-se em Averroés, ambascontrárias à interpretação tomista-cristã. Prevalece a escola alexandrina, cujo imanentismo naturalista émais conforme ao espírito do Renascimento. A escola averroísta, entretanto, considerando o intelectohumano como sendo a atividade de uma essência transcendente e divina, contrasta o humanismoimanentista da mesma Renascença.

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O mais famoso entre esses novos aristotélicos é Pedro Pomponazzi , alexandrista, nascido emMântua em 1462, professor de filosofia nas universidades de Pádua, Ferrara e Bolonha, onde faleceu em1525. É célebre o seu opúsculo Sobre a Imortalidade da Alma , publicado em Bolonha em 1516. Nesteopúsculo conclui em favor da mortalidade da alma, sustentando que esta realiza o seu fim último na vidaterrena. Para conciliar, pois, esse seu racionalismo com a religião cristã, recorre a certas distinções que

relembram a velha teoria averroísta das duas verdades : a religião é, no fundo, justificada como sendo afilosofia do vulgo, para finalidade prática e pedagógica.Respondiam a Pomponazzi, Nifo (averroísta) e Contarini (tomista) com dois ensaios tendo o mesmo título(Sobre a Imortalidade da Alma ); e Pomponazzi replica como uma Apologia (contra Contarini) e com umDefensorium (contra Nifo). Nem a morte pôs termo àquela polêmica.O aristotelismo teve, na Renascença, uma fortuna especial no campo da estética, da poética, em tornode que se disputou longa e fervidamente, em especial por parte dos literatos. Parte-se da Poética de Aristóteles, cuja primeira tradução remonta ao ano de 1498, por obra de Jorge Valla. Aristótelessustentara ser a arte - bem como a história - uma imitação da realidade. Entretanto, a arte é superior àhistória, porquanto tem como objeto o universal, o necessário, a essência das coisas; ao passo que ahistória tem como objeto o particular, o contingente, o acidental. Em torno deste tema se travam asdisputas mais variadas.

O Estoicismo

O espírito autônomo da Renascença devia provar viva simpatia para o sábio estóico, impassível,Dominador das coisas e dos eventos. O estoicismo não foi apenas objeto de admiração cultural, literária,mas tornou-se ideal de vida moral em lugar do cristianismo, escola de energia e de conforto.O estoicismo da Renascença, porém, é preso pela ação, diversamente do estoicismo clássico, negador daação, considerada causa de perturbação. O estoicismo renascentista enaltece o homem, a vida, o mundo,contra a concepção transcendente e ascética cristã. Seja como for, a moral estóica, mais ou menosajustada ao cristianismo, desfrutou de grande favor junto dos filósofos das mais diferentes tendênciasnos séculos XVI e XVII. O estóico mais notável da Renascença foi o belga Justo Lípsio  (1547-1606),professor em Lovaina, autor de De Constantia , e de Manuductio ad stoicam philosophiam .

O EpicurismoO epicurismo, melhor do que o estoicismo, condizia com o espírito humanista, imanentista e mundano daRenascença, em especial na vida gozadora e requintada, voluptuosa e artística da cortes esplêndidas daépoca, e também na literatura e no pensamento. João Boccaccio , autor do Decamerone , em o séculoXIV, e Lourenço, o Magnífico , no século XV, são duas expressões práticas desse espírito epicurista.O expoente mais notável dessa tendência epicurista é Lourenço Valla  (1407-1459), autor do famosolivro De voluptate ac de vero bono , onde o autor compara a moral estóica e a epicurista, simpatizando,naturalmente, com esta última. Quanto à vida futura, Valla oscila entre a sua negação e umarepresentação no sentido hedonista, e tente, uma certa conciliação entre epicurismo e cristianismo; masfica decididamente hostil ao ascetismo, quer cristão, quer estóico.

O Ceticismo

Também o ceticismo da Renascença foi inspirado pelo ceticismo clássico. E também este novo ceticismorenascentista surgiu mais por fins práticos do que por motivos teoréticos. Os motivos mais específicosque deram origem ao ceticismo da Renascença foram: a sede do individual, da concretidade; a paixãopela observação detalhada própria do pensamento moderno em geral, em oposição ao pensamentoantigo e medieval, voltados para o universo e o abstrato; a variedade e o contraste das diversas escolase tradições (filosóficas e religiosas); a mentalidade literária da época, apaixonada pela estética, e incapazde levantar grandes construções sistemáticas; a religiosidade persistente, que julgava salvar a fédeprimindo a razão, tendo esta atacado, freqüente e violentamente, a religião; o contraste entre a

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exigência religiosa e o paganismo da vida que surgia de novo. O ceticismo da Renascença tem seusmaiores expoentes fora da Itália, e o maior é Montaigne .Miguel de Montaigne  (1533-1592), francês, é o autor dos famosos Essais : "Que sais-je"?  O seuinteresse é voltado para o estudo do eu, não como substância espiritual, e sim como caráter, centrounitário das mais variadas experiências humanas. Tudo o mais lhe parece incerto: os sentidos enganam-

nos, a razão perde-se num labirinto infindo, a moral varia conforme os tempos e os lugares. Daí anecessidade da fé, mas de uma fé em que Deus serve ao homem. Este - como já pensavam os céticosantigos - atinge a paz abandonando-se à diretriz da natureza. O que especialmente emerge emMontaigne é o individualismo da Renascença.

 A Renascença 

 A Política Nova e a Ciência Nova

 A prescindir da arte e da literatura, o grande valor, a maior conquista do pensamento da Renascença,está na história humana, e na ciência natural. Daí derivam, em seguida, a ciência política e a técnicacientífica (ciência aplicada) que tiveram, na Renascença, o seu grande início. É o fruto do vivo interesse eda penetrante observação da experiência e da concretidade, quase que desconhecidos do pensamentoclássico e do pensamento medieval, inteiramente absorvidos pelo universal e pela transcendência.Estas duas grandes conquistas   história e ciência   embora se apresentem em conexão com a filosofiaimanentista, humanista, naturalista da época, de direito são dela independentes, como, aliás, sãoindependentes de qualquer filosofia: porquanto, ficando no âmbito da experiência, história e ciência, nãoresolvem, nem podem resolver o problema filosófico, cuja solução, necessariamente, tem quetranscender o próprio campo da experiência. A expressão clássica da nova ciência política é Nicolau Machiavelli, não filósofo, e sim teórico da técnicapolítica, ainda que o seu pensamento seja alicerçado na metafísica do humanismo e do imanentismorenascentista. E a maior expressão da ciência nova é Galileu Galilei. Ele também não foi filósofo, masteórico e técnico da renovada ciência da natureza, mesmo que tenha veleidades e faça afirmações dealcance metafísico.

Nicolau MachiavelliNicolau Machiavelli nasceu em Florença em 1469. Foi secretário e historiador da república florentina.Destituído e exilado, voltou ainda à pátria, chamado pelos amigos. Faleceu em 1527, obscuro eabandonado. Entre seus escritos têm particular interesse filosófico Il Principe e os Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio .Machiavelli propõe-se o problema: como constituir um estado, partindo do terreno realista da experiênciae prescindindo de qualquer valor espiritual e transcendente, ético e religioso. A experiência histórica lhediz que a natureza do homem é profundamente egoísta e malvada. Ele tem do homem uma concepçãopessimista, semelhante à cristã, mas sem a explicação (o pecado original) e sem o remédio (a redençãopela cruz), que o cristianismo oferece. Então é preciso organizar naturalisticamente e subordinarmecanicamente um complexo de paixões e de egoísmos a um egoísmo maior, o do príncipe e do estado.É preciso constituir uma ciência política sobre a base de um utilitarismo rigoroso.

Daí a máxima famosa: o fim justifica os meios . O fim último é o estado, a que tudo deve sersubordinado, tanto os indivíduos como todos os valores, até os morais e religiosos. Indivíduos e valoresdevem servir unicamente como instrumentos de governo, e podem ser aniquilados pelo estado. A estepropósito é característica e intuitiva a comparação que Machiavelli faz entre o cristianismo católico e opaganismo antigo, concluindo em favor da superioridade (política) do segundo. Precisamente pelo fato deque o paganismo representa uma concepção e uma praxe humanistas, mundanas, em que tudo ésubordinado ao estado, ao passo que o cristianismo é uma concepção e uma praxe transcendentes eascéticas, e não reconhece poder algum humano superior a ele.

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 A política de Machiavelli foi acusada, muitas vezes, de imoralidade, o que é verdade, se se confrontarcom uma concepção transcendente e ascética do mundo e da vida, como é a teísta e a cristã, e simtranscendentes (como todos os valores absolutos), não é o estado e sim Deus; e os meios para atingir ofim último não são substancialmente variáveis conforme as circunstâncias dos tempos e dos lugares,porquanto a moralidade, na sua essência, deriva da natureza racional do homem, essencialmente

imutável. Entretanto, a política de Machiavelli não está em contraste com uma ética humanista eimanentista, que não tem fins transcendentes e leis morais estáveis. A doutrina política de Machiavelli todavia, conserva um grande valor também para a concepçãotranscendente do mundo e da vida, pois o estado, para a concretização dessa concepção transcendenteda vida, é indispensável a fim de que o homem realize a sua natureza racional: é ético o estado, emborareceba de Deus a sua eticidade transcendente, como de Deus, aliás, dependem todos os valores e todo oser. Entretanto, o estado, ainda que deva mirar a um ideal superior e imutável, tem que ter os pés sobrea terra, pisar na realidade concreta, variável, histórica. Deve organizar, disciplinar, valorizar os homensefetivamente egoístas e inclinados ao mal. Por isso, deverá ser leão ou raposa     no dizer de Machiavelli;terá de agir com força decidida e com refinada prudência, com base na profunda experiência humana. E,por vezes, será preciso subordinar um princípio moral a outro princípio superior da moral (como, aliás,acontece também na moral individual no caso do assim chamado conflito dos deveres ).Neste sentido conceberá a política o piemontês João Botero  (1540-1617) na sua obra Della ragione di stato , de conformidade com o espírito católico e concreto da Contra-Reforma. Nesta obra, por exemploaconselha ele ao Príncipe ocultar prudentemente suas fraquezas eventuais, para conservar a reputaçãoreal; aconselha-o a respeitar plenamente a religião (católica), instrumento precioso, indispensável paratornar politicamente dóceis os homens, inclinados profundamente para o mal; bem como o aconselha aencaminhar para a milícia e para a guerra, a instintiva ferocidade humana.

Galileu Galilei

 As ciências físicas e naturais, em geral, têm na Renascença a sua maior expressão em Leonardo da Vincie, sobretudo em Galileu Galilei; pelo que diz respeito em especial à astronomia, em Copérnico e Kepler.Leonardo da Vinci , nascido perto de Florença em 1452, exercitou a sua profissão de artista e técnico emMilão, em Florença, em Roma e na França onde faleceu em 1519. Não nos interessa como artista, mas

como cientista, técnico e teórico da ciência. Leonardo não deixou obras sistemáticas e editadas, e simuma grande quantidade de apontamentos e bosquejos preciosos, publicados mais tarde, em que serevela um gênio soberano e um teórico genial. Aplicou ele imediatamente à técnica, ao domínio danatureza, seus princípios teóricos, em harmonia com os ideais e as conquistas da idade nova.Leonardo fez uma notável quantidade de pesquisas e de invenções preciosas no campo das ciências: emmatemática, física, mecânica, astronomia, geologia, botânica, anatomia, fisiologia, etc. Aplicou amatemática à física, convencido de que era mister partir da experiência, para chegar à razão, isto é, àmatemática, que seria a razão que governa o mundo natural.Entretanto, o grande metodólogo da ciência natural é Galileu Galilei , nascido em Tosacana (Pisa) em1564. Ensinou nas universidades de Pisa e de Pádua; as seguir, em Florença, como matemático efilósofo. Pela sua defesa do sistema astronômico de Copérnico (heliocêntrico) foi para Roma onde foiprocessado pelo Santo Ofício, que condenou aquele sistema (1616). Galileu, tendo defendido compersistência o supradito sistema, foi processado e condenado novamente em 1633. Passou seus últimos

anos de vida na vila de Arcetri, perto de Florença, onde faleceu em 1642. Entre suas obras são famosas:O Saggiatore  (1623), livro polêmico contra os aristotélicos; o Diálogo sopra i due massimi sistemi del mondo (1632), que foi causa do segundo processo; e o Diálogo delle scienze nuove (1638).Como Aristóteles e Tomás de Aquino, Galileu está convencido de que o conhecimento humano devefirmar-se na experiência; mas, diversamente daqueles dois filósofos que partem da experiência paratranscendê-la e construir uma metafísica geral e especial, Galileu fica no âmbito da própria experiência;Galileu estuda o mundo não para conhecê-lo metafisicamente, isto é, para colher as essências imutáveisdas coisas, mas fisicamente, isto é, para colher os fenômenos e suas leis. Tais leis julga Galileu sejam asmatemáticas; pois, o livro da natureza é escrito com caracteres que são "triângulos, quadrados, círculos,

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esferas, cones, pirâmides e outras figuras matemáticas muito aptas para tal leitura". Daí a explicaçãoda matemática à física, resultando assim a físico-matemática: o que constituirá o elementoverdadeiramente racional, universal e necessário da ciência moderna, e será tão fecundo em resultadospráticos, técnicos.Para constituir a ciência, portanto, é mister a experiência e a razão, sentido e discurso , como diz Galileu.

Quanto ao procedimento metódico e particular para construir a ciência, Galileu distingue três momentosprincipais: a) a observação ; b) a hipótese ; c) a experimentação , que é a verificação da hipótese. Esta,quando confirmada experimentalmente, transforma-se em lei. A ciência galileiana é, por conseguinte, quantitativa, a saber, o seu princípio racional é matemático: éfísico-matemática, mecânica. O que é irredutível à quantidade é considerado como subjetivo, escapandoao alcance da físico-matemática. Galileu considera objetivas as propriedades geométrico-mecânicas: afigura, o tamanho, a posição, o movimento, o número - que serão mais tarde chamadas qualidades  primárias ; ao passo que considera subjetivas (transformação das objetivas por obra dos nossos órgãossensoriais) as propriedades qualitativas: a cor, o som, o sabor, o frio, o calor - que serão mais tardechamadas qualidades secundárias .Como é sabido, a doutrina astronômica heliocêntrica chama-se copernicana, sendo seu verdadeirofundador Copérnico. Nicolau Copérnico  nasceu em Thorn, na Polônia, em 1473. Estudou em várioslugares, especialmente na Itália. De volta à pátria, retirou-se para Frauenburg, onde era cônego, ededicou-se às meditações astronômicas, cujo resultado publicou na famosa obra De obrium coelestium revolutionibus , publicada em 1543 e dedicada ao papa. O seu sistema astronômico pode ser assimresumido: o mundo é esférico, finito; todos os corpos celestes são esféricos; o movimento dos corpos celestes é circular e uniforme; o Sol está imóvel no centro do sistema e giram-lhe em volta os planetas e também a Terra que tem duplo movimento: diurno em volta do próprio eixo, anual em volta do Sol . Ele também segue o princípio de que a natureza é governada por leismatemáticas: ubi materia, ibi geometria . Caberá mais tarde a Newton completar o sistema com a grandelei da gravitação universal, que explica o equilíbrio dos corpos celestes.

 A Ciência Nova e a Metafísica Tradicional

O atomismo mecânico, que Galileu pressupôs para a sua gnosiologia empirista-matemática, está

evidentemente em contraste com o seu fenomenismo, porquanto constitui sempre uma filosofia danatureza, contrariamente ao afirmado agnosticismo galileiano sob este aspecto cientificamente fecundo.E tal atomismo mecânico está logicamente em contraste com a convicção religiosa de Galileu, pois oatomismo mecânico implica evidentemente uma concepção materialista da realidade.Com Galileu começa a tendência da filosofia moderna - que se manifestará claramente no racionalismode Descartes, Spinoza, Leibniz, etc. - de reduzir a metafísica à física, pela pretensão de explicar tudomatematicamente e considerar a ordem matemática como a ordem ideal da realidade. Pretensãoevidentemente infundada, porquanto não se podem reduzir à quantidade o espirito, Deus, a alma nemsequer o elemento qualitativo da realidade empírica. Será mister, portanto, que a ciência moderna,mesmo no seu aspecto racional-matemático, adquira consciência da sua limitação, permanecendo entreos limites da experiência, e não pretenda tornar-se metafísica. E destarte será ela inteiramentevalorizável e conciliável com a metafísica tradicional aristotélico-tomista. Esta, por sua parte, terá de selibertar de igualmente infundada pretensão de que também a ciência natural seja filosofia, metafísica.

Deste modo, poderá logicamente separar-se da física aristotélica e da astronomia ptolemaica, com queestava de fato, e se julgava de direito, ligada, liame este que, historicamente, sobremaneira prejudicou àmetafísica tradicional na idade moderna, como ficou evidente também pelo famoso processo de Galileu.Neste processo não há duvidar da boa fé de Galileu, católico convicto, nem da dos seus juizes, entre osquais se destaca São Roberto Belarmino. Em todo caso devemos prescindir de tais questões práticas,pessoais, que não concernem à história da filosofia, cujo objeto próprio são as idéias, os sistemas, e nãoos homens e suas intenções. Temos, de um lado, uma sólida filosofia, que se julgava, sem razão, conexanecessariamente com a ciência da época, cuja ruína, julgava-se erroneamente, acarretaria consigo aruína da filosofia, que constituía a base racional da religião. E temos, do outro lado, uma ciência

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prodigiosa, que, erradamente, se punha em contradição com a filosofia tradicional e em conexãocom a nova filosofia humanista e imanentista. Tenha-se, acima de tudo, presente a tese geral domatematismo universal, com suas inevitáveis conseqüências materialistas, e a outra tese da infinidadedos mundos, que, erradamente, se julgava derivar do sistema copernicano, heliocêntrico. Acrescenta-se atudo isso, por parte da igreja católica, o temor da crítica demolidora, que teve tão grave manifestação no

livre exame protestante - temor confirmado pela veleidade de interpretação da Sagrada Escritura, porparte de Galileu, para ajustá-la à nova astronomia. E se compreenderá então historicamente o processo ea condenação de Galileu. A oposição entre sistema ptoleimaco e sistema copernicano, entre a filosofia tradicional e a ciência nova,cessaria no dia em que se adquirisse consciência da natureza infrafilosófica, afilosófica, indiferente, daciência, se permanecer nos limites da experiência - como deve ser - e se tivesse consciência da suarelatividade. A ciência, portanto, não pode vir a estar em contraste com a filosofia e a teologia, cujoobjeto é metafísico; conseqüentemente pode-se e deve-se compor a filosofia tradicional com a ciêncianova.

O Cartesianismo 

Nicolau Malebranche

Com Spinoza, o racionalismo cartesiano entra em síntese com o panteísmo neoplatônico. ComMalebranche, o cartesianismo entra em síntese com o agostinianismo, sobre a base de um inicialplatonismo comum. Mas, ao mesmo tempo, sofre um regresso sobre a linha do seu lógicodesenvolvimento panteísta e racionalista, devido ao teísmo e ao cristianismo que Malebranche se esforçapor conciliar com o cartesianismo.Dos dois problemas fundamentais deixados em herança por Descartes (relações entre Deus e mundo,entre espírito e matéria), Spinoza resolvera o primeiro mediante o seu rígido monismo da substância; osegundo, mediante o famoso paralelismo dos atributos extensão e pensamento na substância.Malebranche, pelo que diz respeito ao primeiro problema, chega a conceber Deus como causa única,entretanto não ousa afirmá-lo como substância única; pelo que diz respeito ao segundo, nega tambémele - como Descartes e Spinoza - toda interação entre espírito e matéria, e também ele recorre a Deus

para explicar as relações entre o espírito e a matéria. Vida e Obras

Nicolau Malebranche nasceu em Paris em 1638. Estudou filosofia no colégio "De la Marche" e teologiana Sorbona. Entrando jovem na Congregação do Oratório, em 1660, foi ordenado padre em 1664. Foiprofundamente influenciado pelo agostinianismo dominante no Oratório, e pelo cartesianismo. Estas sãoas duas fontes principais do seu pensamento, procurando conciliá-las no seu sistema filosófico. Faleceuem 1715. As obras de Malebranche tiveram grande êxito e levaram-no a várias polêmicas. As principais obras são:Recherche de la vérité (1674-1675); Méditations chrétiennes et métaphysiques (1683); Traité de morale  (1684); Entretiens sur la métaphysique et sur la religion (1688).

O Pensamento: A Gnosiologia

Como Descartes e o conseqüente racionalismo, a gnosiologia de Malebranche desvaloriza o conhecimentosensível, especialmente os sentidos externos e atribui às idéias todo o valor do conhecimento. Pisando aspegadas de Agostinho e de Descartes, declara as idéias eternas e imutáveis, claras e distintas e,portanto, verdadeiras objetivamente. Visto essas idéias serem necessárias e universais, não só nãopodem derivar da sensação, mas nem sequer ser produzidas pelo espírito humano, como a sensação, éparticular e contingente. As idéias, pois, nada mais são que o próprio objeto inteligível presente ao nossopensamento: são idéias ontológicas, exteriores ao sujeito que conhece, a saber, são os arquétipos

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eternos e imutáveis, necessários e universais, das coisas; tais idéias estão na mente de Deus e nelenós temos a intuição delas (ontologismo). Esta visão é possível porque Deus está intimamente presenteao nosso espírito e lhe pode revelar a sua essência porquanto é comunicável. Noutras palavras: nósvemos, não propriamente a Deus, mas apenas o que há nele de imitável.

 A Metafísica

Se bem que malebranche afirme que Deus está intimamente presente ao nosso espírito como reveladordas idéias, sente ele a necessidade de provar a existência de Deus na sua realidade subsistente e dedeterminar-lhe a natureza. Para demonstrar a existência de Deus, Malebranche recorre substancialmenteao sólito argumento ontológico, caro aos platônicos e aos agostinianos. A respeito da natureza de Deus, julga ele que seja essencialmente incognoscível, pois nós não temos uma idéia clara e distinta do infinito. A única idéia clara e distinta que temos é a de extensão inteligível (e de seus modos); isto é, vemos aextensão inteligível em Deus, e tal idéia se torna representativa de Deus pelo seu caráter de infinidade. Arespeito das relações entre Deus e o mundo, Malebranche teística e cristãmente afirma Deus criador dosespíritos e da matéria: quer dizer, admite uma pluralidade de substância. Diversamente afirma a unidadeda causa, porquanto não há causas segundas. Deus opera diretamente em todas as criaturas; ele só écausa e atividade, e as assim chamadas causas segundas não passam de ocasiões para o operar dacausa única divina (ocasionalismo).Como não temos uma idéia clara de Deus, assim não temos uma idéia clara da nossa alma , quer dizer,da sua natureza. Temos uma intuição da sua existência, um sentimento, que - ao contrário das idéias - éracionalmente confuso, mas, em todo caso, ele só atinge a existência contingente, o que as idéias nãopodem fazer. Acontece o contrário a respeito do mundo físico, material. Temos dele uma idéia clara, porque temos aidéia clara de extensão inteligível. Temos, porém, um sentimento confuso da existência atual do mundomaterial; trata-se de uma percepção sensível inferior à da existência do espírito, tanto assim que é mistera revelação cristã, que nos diz ter Deus criado o mundo, para que estejamos propriamente certos da suaexistência. As relações - a interação entre as coisas materiais de um lado e os espíritos humanos do outro, isto é,entre alma e corpo - dependem de Deus e são produzidas diretamente por ele segundo a doutrina do

ocasionalismo . Malebranche baseia esta doutrina em duas teses de origem cartesiana: em física, inércianatural da extensão, único elemento constitutivo das coisas materiais; em psicologia, a impossibilidade deuma interação entre corpo e alma, espírito e matéria. Não há, logo, causalidade ativa nem dos corposentre si, nem da alma sobre o corpo, nem do corpo sobre a alma. Toda energia produtora de ser e deatividade pertence propriamente a Deus.

 A Moral

Malebranche procura conciliar essa atividade universal divina com o live arbítrio humano. O homem élivre não no sentido de que seja capaz de fazer, produzir alguma coisa, mas no sentido de que é capazde suspender a ação divina em si: suspensão (antes de que produção) de efeitos. Dessa maneira, avontade, livre embora, não é causa produtora. Aspecto característico da moral de Malebranche é o apelo para o cristianismo e, precisamente, para o

pecado original, a fim de explicar plena e verdadeiramente o homem na sua realidade atual. A desordemdas paixões, bem como o erro no conhecimento, encontram só no pecado original a causa única que osexplica. Sem o pecado haveria perfeita harmonia entre corpo e espírito, sensibilidade e pensamento,impulso e vontade. Assim, os filósofos "são obrigados à religião (revelada), pois só ela pode tirá-los doembaraço em que se encontram".

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Guilherme Leibniz

Spinoza tentara a síntese do racionalismo cartesiano com o panteísmo neoplatônico; Malebranche tentaraa síntese do racionalismo com o platonismo agostiniano; Leibniz tentará uma síntese mais vasta, a dopensamento aristotélico-tomista com o empirismo moderno. Diversamente de Spinoza e de acordo com

Malebranche, procurará compor a necessidade racionalista-matemática com a contingência e a liberdade.E chegará também à negação da realidade material, da res extensa , resolvendo a realidade material emuma aparência fenomênica do espírito. O resultado é que a necessidade universal permanece, e, logo,também o panteísmo; e que, com a supressão do mundo físico, o racionalismo abre as portas aoidealismo.

 Vida e Obras

Guilherme Leibniz  nasceu em Leipzig, em 1646. Seu pai era um jurista, professor de moral nauniversidade. Foi um autodidata desejoso de tudo conhecer; estudou filosofia e história da filosofia,matemática e jurisprudência, formando-se em direito em Altorf em 1666-1667. O barão de Boinebourg -convertido ao catolicismo - iniciou-o no conhecimento da igreja católica e introduziu-o na Corte eleitoralde Mogúncia.Entre 1672 e 1676, chefiou uma missão diplomática junto de Luís XIV, para induzir o Rei Sol a dirigircontra os turcos a sua atividade de expansão, que constituía um perigo contínuo contra a Alemanha. Amissão fracassou. Entretanto, Leibniz travou relações com os maiores filósofos e cientistas da época.Entre outros, tomou contacto com Malebranche. Durante uma viagem a Londres, conheceu tambémNewton, inventor, como ele, do cálculo infinitesimal.Em 1676 foi convidado por João Frederico de Brunschwig para a corte ducal de Hannover, comoconselheiro áulico e bibliotecário. Indo de Paris para a sua nova sede, parou na Holanda e visitouSpinoza. Ficou até à morte naquele emprego, ocupando-se com escrever a história da casa Brunschwigfoi à Itália, visitando Veneza, Pádua, Florença, Roma e Nápoles. Realizou outras viagens a Viena e Berlim,onde fundou a Sociedade das Ciências , chamada, em seguida, Academia Prussiana . Fez tentativas para aunião das igrejas protestante e católica e para a federalização política das nações cristãs,correspondendo-se com Bossuet para este fim. Faleceu em Hannover em 1716.

 As fontes culturais e filosóficas de Leibniz são muitas e várias, também antigas e medievais, que elefundiu em um ecletismo superior. Entre os filósofos antigos preferiu Platão e Plotino; Aristóteles influiunele sobretudo pelo que diz respeito à lógica. Estudou Suarez e Tomás de Aquino, para os quais teveestima no que concerne ao pensamento, criticando entretanto a forma deles.Conheceu certamente o pensamento da Renascença, em especial o neoplatonismo renascentista.Estudou também o empirismo, escrevendo contra o Ensaio sobre o Intelecto Humano de Locke os seusNovos Ensaios sobre o Intelecto Humano . Entretanto foi o cartesianismo o sistema filosófico que influiumais profundamente sobre Leibniz, devido sobretudo ao racionalismo matemático, que ele procurouconciliar com uma concepção dinâmica da realidade. Também Malebranche influenciou profundamenteLeibniz, tanto assim que do ocasionalismo de Malebranche surgirá a harmonia preestabelecida de Leibniz.Mais profundamente ainda, Spinoza influiu sobre Leibniz, que pode ser considerado spinoziano de fato senão de intenção. Seu sistema é uma afirmação do monismo spinoziano, ainda que sobre um plano maisrico e superior.

 As obras de Leibniz, escritas pela maior parte em francês e em latim, não constituem uma elaboraçãosistemática e completa do seu pensamento. São ensaios ocasionais e esporádicos, mas de grandepenetração e agudeza crítica. Eis as principais: Novos Ensaios sobre o Intelecto Humano  (crítica aoEnsaio de Locke, composta em 1701, mas publicada postumamente em 1765); Teodicéia , escrita pararesolver o problema do mal e publicada em 1710; Monadologia , escrita em francês para o príncipeEugênio de Sabóia em 1714 e publicada postumamente. Deve-se ainda acrescentar uma copiosacorrespondência filosófica.

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O Pensamento: A Gnosiologia

 A gnosiologia de Leibniz é fundamentalmente representada pela ciência geral ou lógica universal ; estadeve proporcionar o método para inventar e demonstrar todas as ciências. A realidade apresenta-seindiscutivelmente sob dois aspectos: um idêntico, universal, necessário, e o outro diverso, particular,

contingente. Leibniz distingue, portanto, as verdades de razão  (juízos necessários de essência), quecolheriam o primeiro aspecto da realidade, e as verdades de fato (juízos da existência contingente), quecolheriam o segundo aspecto. As verdades de razão fundamentam-se sobre o princípio de indentidade, imediatamente evidente, isto é,tais verdades reduzíveis a juízos, em que o predicado tem identidade com o sujeito, se pode ser tiradoanaliticamente dele. As verdades de fato seriam representadas por juízos de experiência, em que opredicado não se pode extrair analiticamente do sujeito; teria, porém, um fundamento, o princípio derazão suficiente na realidade criada.Entretanto, estes juízos escapam às pretensões da necessidade racionalista. Então Leibniz procuraconciliar a necessidade do racionalismo com as exigências da contingência: as verdades de fato seriamcontingentes quoad nos , com respeito a nós, devido à nossa ignorância. Mas, de um ponto de vistaabsoluto, quoad se , seriam necessárias como as outras. Isto quer dizer, também as proposiçõescontingentes verdadeiras seriam racionais e demonstráveis, porque o predicado é contido na noçãoadequada do sujeito. A definição do sujeito, para quem a penetrasse até o fundo, seria verdadeiramenteo antecendente lógico infalível de cada um dos predicados.

 A Metafísica

 A Metafísica de Leibniz é a doutrina das mônadas  (monadologia) . Os elementos primeiros, fundamentais,da realidade, Leibniz chama-os mônadas ; e são concebidos como átomos espirituais dotados deatividade, substâncias-forças. "A substância é um ser capaz de ação" . A natureza das mônadas éespiritual, representativa: cada uma representa, reflete todo o universo de um determinado ponto devista. Não apenas o homem é um microcosmo, mas cada ser é um microcosmo. Conforme o seuconteúdo representativo, mais ou menos elevado, as mônadas são dotadas de propriedade de perceber(pampsiquismo); entretanto, nem todas percebem conscientemente.

 As mônadas são eternas, inúmeras, não há duas mônadas perfeitamente iguais, a sua imensa série sedispõe em escala hierárquica ascendente, contínua, da ínfima mônada até à suprema, Deus. Elas nãotêm relações recíproca: "as mônadas são sem janelas" - diz Leibniz. "Nesta escala, Leibniz distinguequatro grandes ordens: 1.ª) mônadas nuas , que constituem o reino mineral e as plantas, dotadas derepresentação insconsciente (pampsiquismo); 2.ª) mônadas sensitivas , capazes de representaçãoconsciente ou apercepção; constituem as almas dos brutos; 3.ª) mônadas racionais , ou almas humanas,enriquecidas de conhecimento científico e consciência reflexa; 4.ª)  mônada suprema , ou Deus,absolutamente perfeita, causa eficiente de todas as outras". A ordem entre elas é explicada pelaharmonia preestabelecida , que Deus introduziu na criação. Afirma Leibniz, mais ou menos, o conceito tradicional de Deus. Deus seria a mônada suprema, criadora eordenadora de todas as outras. Este Absoluto - realidade única informada por uma alma côsmica -recorda a tão combatida Substância spinoziana, feita por Leibniz dinâmica, ativa, desenvolvendo-se nãoapenas matematicamente, mas também finalisticamente.

O homem , o indivíduo humano, seria um conjunto de mônadas de grau diverso. A uma mônada central,consciente, dotada de percepção, constituindo a alma, unem-se mônadas subconscientes e mônadasinconscientes, que constituem o corpo. Este todo é regulado pela harmonia preestabelecida , em virtudeda qual a uma modificação física corresponde uma modificação psíquica e vice-versa, pois o corpo nãoatua diretamente sobre a alma, nem esta sobre o corpo.Para Leibniz, o mundo  físico, a matéria, não tem existência real. A matéria, a corporeidade, é umfenômeno, uma aparência da psiquicidade . Negada às mônadas a faculdade de agirem transitivamente,uma sobre as outras, como explicar a ordem do universo? Leibniz responde com a célebre teoria daharmonia preestabelecida. Deus, ab aeterno , regularizou todas as ações das mônadas de tal forma que

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se correspondessem como se realmente houvesse entre elas um influxo mútuo de causalidaderecíproca. "Assim, um hábil relojoeiro constrói dois relógios, que, sem se influenciarem mutuamente,marcam ao mesmo tempo as mesmas horas" .

 A Moral

 A moralidade é reconduzida à atividade, que, no homem, é consciente e racional. No campo da moral, Leibniz interessou-se especialmente pelo problema do mal e da liberdade. Afirma ele a liberdade; e, porcerto, no seu sistema subsiste a liberdade metafísica, a espontaneidade racional. Mas vem fenecer o livrearbítrio, a livre escolha, devido à sua tese da ação necessariamente dirigida para o melhor, quer nohomem quer em Deus.Pelo que diz respeito à solução do problema do mal, Leibniz - como é sabido - distingue o mal emmetafísico, moral e físico. O primeiro não é verdadeiro mal, porquanto constitui a limitação necessáriados seres criados; pois a natureza destes seres é necessariamente limitada, enquanto são criados. Semesta limitação não haveria sequer o mundo.O mal moral, ao contrário, é devido à resistência voluntária dos entes criados, humanos, à ação de Deus.Também o mal moral é uma privação de ser, como o mal metafísico: tem uma causa deficiente e nãoeficiente, na resistência humana à ação de Deus.Leibniz explica o mal físico mediante a estética. O mal dos vários seres se torna um bem para o conjunto;as desarmonias particulares realçam a harmonia do todo. Entretanto, esta explicação não serve no casodo homem, pois cada homem não é um meio e sim um fim, sendo um ser racional.

Cristiano Wolff 

O racionalismo moderno toma uma sistematização rígida, formal, com Cristiano Wolff, vulgarizador dopensamento de Leibniz. Em Wolff, o racionalismo moderno manifesta explicitamente o seu caráterfenomenista abstrato. A filosofia, a metafísica deveria ser construída a priori , partindo dedutivamente,analiticamente, da idéia inata de ser.Compreende-se, portanto, a reação kantiana e a acusação de dogmatismo movida contra essa orientaçãofilosófica, que pretendia ser válido para a realidade concreta um sistema construído a priori : um mundo

de idéias para um mundo de coisas, sem uma relação real entre as duas ordens. A reação é facilmentecompreensível, se se considerar que os manuais de Wolff invadiram a cultura alemã da época, e Kantlecionava na universidade servindo-se da Metaphysica de Baumgarten, que tinha condensado e ordenadoem mil parágrafos o prolixo sistema de Wolff.Dado esse caráter apriorístico, racionalista-matemático, do pensamento de Wolff, compreende-se comoele se diferencia profundamente da escolástica clássica, aristotélico-tomista, a qual concebe, sim, aciência como uma dedução necessária de elementos e princípios primeiros, mas estes se baseiam noterreno sólido da experiência. Se é que Wolff teve algum conhecimento particular da escolásticaaristotélico-tomista, certamente não compreendeu o espírito íntimo desse sistema.

 Vida e Obras

Cristiano Wolff nasceu em Breslau em 1679. Dedicou-se aos problemas morais e religiosos, estudando

também matemática. Formou-se em filosofia em Leipzig em 1703. Entrou, desde logo, em relações comLeibniz, graças ao qual teve em 1707 uma cátedra de matemática e filosofia na Universidade de Halle. Oseu ensino claro e metódico, racionalista, sistemático teve um êxito imenso. No entanto, em 1723, foidemitido sob acusação de ateísmo em religião e determinismo em moral. A primeira acusação tem umfundamento na afirmação de Wolff de que a moral estaria de pé igualmente, mesmo prescindindo daexistência de Deus. A segunda explica-se pela sua adesão ao determinismo racionalista de Leibniz, emque a liberdade de Deus e do homem vêm fornecer, porquanto ambos atuam necessariamente, do modomelhor. Wolff retirou-se então para a Universidade de Marburgo, voltando, em seguida, para aUniversidade de Halle, aí ensinando até à morte (1754).

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 As obras filosóficas de Wolff são constituídas por duas séries de manuais, uma em latim, e a outraem alemão. A série dos manuais em latim, compreende precisamente: Philosophia rationalis sive logica ;Philosophia prima seu ontologia ; Cosmologia generalis ; Psychologia empirica ; Psychologia rationalis ;Psychologia practica universalis ; Jus naturae ; Jus gentium ; Philosophia moralis seu ethica ; Oeconomia .Tais manuais tiveram um grande êxito.

O Pensamento

Wolff divide a filosofia em lógica , especulativa e prática . A filosofia especulativa é, fundamentalmente, ametafísica, abrangendo a ontologia , a cosmologia geral, a psicologia , a teologia natural. A filosofia práticaabrange, antes de tudo, a filosofia prática geral e o direito natural e, logo, a ética , a política , a economia .É notável o critério de verdade segundo Wolff: a verdade consiste exclusivamente na coerência entre asidéias. É a revelação completa so fenomenismo racionalista, pelo qual não há relação entre pensamentoe ser. É bem diverso o critério de verdade do sistema aristotélico-tomista, pelo qual a verdade é, aocontrário, a adequação especulativa da mente com a coisa .Quanto à idéia de ética, Wolff diz justamente que a lei moral não pode depender ao arbítrio divino; mas éabsoluta, necessária, primitiva (isto é, diríamos, tomisticamente, derivante da própria natureza de Deus edas coisas por ele criadas). Diversamente, admite a obrigação absoluta da lei moral, mesmo no caso doateísmo (como se a negação de Deus não implicasse necessariamente na negação de todos os valores).Em todo caso, Wolff não nega Deus, nem a religião natural. Separa, porém, a filosofia que conhece areligião natural, da religião positiva, ou revelada. Desta o filósofo prescinde.Wolff é o pai do  Aufklärung , do iluminismo racionalista alemão, que sustenta o divórcio entre a religiãonatural e a religião positiva, e finaliza na negação desta última.

 A Filosofia de Descartes 

Sua Vida

René Descartes, nascido em 1596 em La Haye   não a cidade dos Países-Baixos, mas um povoado daTouraine, numa família nobre   terá o título de senhor de Perron, pequeno domínio do Poitou, daí o

aposto "fidalgo poitevino ".De 1604 a 1614, estuda no colégio jesuíta de La Flèche. Aí gozará de um regime de privilégio, poislevanta-se quando quer, o que o leva a adquirir um hábito que o acompanhará por toda sua vida:meditar no próprio leito. Apesar de apreciado por seus professores, ele se declara, no "Discurso sobre oMétodo", decepcionado com o ensino que lhe foi ministrado: a filosofia escolástica não conduz anenhuma verdade indiscutível, "Não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se dispute". Só asmatemáticas demonstram o que afirmam: "As matemáticas agradavam-me sobretudo por causa dacerteza e da evidência de seus raciocínios". Mas as matemáticas são uma exceção, uma vez que aindanão se tentou aplicar seu rigoroso método a outros domínios. Eis por que o jovem Descartes,decepcionado com a escola, parte à procura de novas fontes de conhecimento, a saber, longe dos livrose dos regentes de colégio, a experiência da vida e a reflexão pessoal: "Assim que a idade me permitiu sair da sujeição a meus preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras; e resolvendo não  procurar outra ciência que aquela que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do 

mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, conviver com  pessoas de diversos temperamentos e condições" . Após alguns meses de elegante lazer com sua família em Rennes, onde se ocupa com equitação eesgrima (chega mesmo a redigir um tratado de esgrima, hoje perdido), vamos encontrá-lo na Holandaengajado no exército do príncipe Maurício de Nassau. Mas é um estranho oficial que recusa qualquersoldo, que mantém seus equipamentos e suas despesas e que se declara menos um "ator" do que um"espectador" : antes ouvinte numa escola de guerra do que verdadeiro militar. Na Holanda, ocupa-sesobretudo com matemática, ao lado de Isaac Beeckman. É dessa época (tem cerca de 23 anos) que data

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sua misteriosa divisa "Larvatus prodeo" . Eu caminho mascarado. Segundo Pierre Frederix, Descartesquer apenas significar que é um jovem sábio disfarçado de soldado.Em 1619, ei-lo a serviço do Duque de Baviera. Em virtude do inverno, aquartela-se às margens doDanúbio. Podemos facilmente imaginá-lo alojado "numa estufa", isto é, num quarto bem aquecido porum desses fogareiros de porcelana cujo uso começa a se difundir, servido por um criado e inteiramente

entregue à meditação. A 10 de novembro de 1619, sonhos maravilhosos advertem que está destinado aunificar todos os conhecimentos humanos por meio de uma "ciência admirável" da qual será o inventor.Mas ele aguardará até 1628 para escrever um pequeno livro em latim, as "Regras para a direção do espírito" (Regulae ad directionem ingenii ). A idéia fundamental que aí se encontra é a de que a unidadedo espírito humano (qualquer que seja a diversidade dos objetos da pesquisa) deve permitir a invençãode um método universal. Em seguida, Descartes prepara uma obra de física, o Tratado do Mundo , a cujapublicação ele renuncia visto que em 1633 toma conhecimento da condenação de Galileu. É certo que elenada tem a temer da Inquisição. Entre 1629 e 1649, ele vive na Holanda, país protestante. MasDescartes, de um lado é católico sincero (embora pouco devoto), de outro, ele antes de tudo quer fugiràs querelas e preservar a própria paz.Finalmente, em 1637, ele se decide a publicar três pequenos resumos de sua obra científica:  A Dióptrica ,Os Meteoros e A Geometria . Esses resumos, que quase não são lidos atualmente, são acompanhados porum prefácio e esse prefácio foi que se tornou famoso: é o Discurso sobre o Método . Ele faz ver que o seumétodo, inspirado nas matemáticas, é capaz de provar rigorosamente a existência de Deus e o primadoda alma sobre o corpo. Desse modo, ele quer preparar os espíritos para, um dia, aceitarem todas asconseqüências do método   inclusive o movimento da Terra em torno do Sol! Isto não quer dizer que ametafísica seja, para Descartes, um simples acessório. Muito pelo contrário! Em 1641, aparecem asMeditações Metafísicas , sua obra-prima, acompanhadas de respostas às objeções. Em 1644, ele publicauma espécie de manual cartesiano. Os Princípios de Filosofia , dedicado à princesa palatina Elisabeth, dequem ele é, em certo sentido, o diretor de consciência e com quem troca importante correspondência.Em 1644, por ocasião da rápida viagem a Paris, Descartes encontra o embaixador da frança junto à cortesueca, Chanut, que o põe em contato com a rainha Cristina.Esta última chama Descartes para junto de si. Após muitas tergiversações, o filósofo, não antes deencarregar seu editor de imprimir, para antes do outono, seu Tratado das Paixões    embarca para Amsterdã e chega a Estocolmo em outubro de 1649. É ao surgir da aurora (5 da manhã!) que ele dá

lições de filosofia cartesiana à sua real discípula. Descartes, que sofre atrozmente com o frio, logo searrepende, ele que "nasceu nos jardins da Touraine", de ter vindo "viver no país dos ursos, entrerochedos e geleiras". Mas é demasiado tarde. Contrai uma pneumonia e se recusa a ingerir as drogas doscharlatões e a sofrer sangrias sistemáticas ("Poupai o sangue francês, senhores") , morrendo a 9 defevereiro de 1650. Seu ataúde, alguns anos mais tarde, será transportado para a França. Luís XIVproibirá os funerais solenes e o elogio público do defunto: desde 1662 a Igreja Católica Romana, à qualele parece Ter-se submetido sempre e com humildade, colocará todas as suas obras no Index.

O Método

Descartes quer estabelecer um método universal, inspirado no rigor matemático e em suas "longascadeias de razão".1.    A primeira regra é a evidência : não admitir "nenhuma coisa como verdadeira se não a reconheço

evidentemente como tal". Em outras palavras, evitar toda "precipitação" e toda "prevenção"(preconceitos) e só ter por verdadeiro o que for claro e distinto, isto é, o que "eu não tenho a menoroportunidade de duvidar". Por conseguinte, a evidência é o que salta aos olhos, é aquilo de que nãoposso duvidar, apesar de todos os meus esforços, é o que resiste a todos os assaltos da dúvida, apesarde todos os resíduos, o produto do espírito crítico. Não, como diz bem Jankélévitch, "uma evidência juvenil, mas quadragenária".2.    A segunda, é a regra da análise : "dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantasforem possíveis".

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3.    A terceira, é a regra da síntese : "concluir por ordem meus pensamentos, começando pelosobjetos mais simples e mais fáceis de conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio dedegraus, aos mais complexos".4.    A última á a dos "desmembramentos tão complexos... a ponto de estar certo de nada ter omitido".Se esse método tornou-se muito célebre, foi porque os séculos posteriores viram nele uma manifestação

do livre exame e do racionalismo.a) Ele não afirma a independência da razão e a rejeição de qualquer autoridade? "Aristóteles disse" nãoé mais um argumento sem réplica! Só contam a clareza e a distinção das idéias. Os filósofos do séculoXVIII estenderão esse método a dois domínios de que Descartes, é importante ressaltar, o excluiuexpressamente: o político e o religioso (Descartes é conservador em política e coloca as "verdades da fé"ao abrigo de seu método).b) O método é racionalista porque a evidência de que Descartes parte não é, de modo algum, aevidência sensível e empírica. Os sentidos nos enganam, suas indicações são confusas e obscuras, só asidéias da razão são claras e distintas. O ato da razão que percebe diretamente os primeiros princípios é aintuição. A dedução limita-se a veicular, ao longo das belas cadeias da razão, a evidência intuitiva das"naturezas simples". A dedução nada mais é do que uma intuição continuada.

 A Metafísica

No Discurso sobre o Método , Descartes pensa sobretudo na ciência. Para bem compreender suametafísica, é necessário ler as Meditações .1.°    Todos sabem que Descartes inicia seu itinerário espiritual com a dúvida. Mas é necessáriocompreender que essa dúvida tem um outro alcance que a dúvida metódica do cientista. Descartesduvida voluntária e sistematicamente de tudo, desde que possa encontrar um argumento, por mais frágilque seja. Por conseguinte, os instrumentos da dúvida nada mais são do que os auxiliares psicológicos, deuma ascese, os instrumentos de um verdadeiro "exército espiritual". Duvidemos dos sentidos, uma vezque eles freqüentemente nos enganam, pois, diz Descartes, nunca tenho certeza de estar sonhando oude estar desperto! (Quantas vezes acreditei-me vestido com o "robe de chambre", ocupado em escreveralgo junto à lareira; na verdade, "estava despido em meu leito").Duvidemos também das próprias evidências científicas e das verdades matemáticas! Mas quê? Não é

verdade quer eu sonhe ou esteja desperto

 que 2 + 2 = 4? Mas se um gênio maligno me enganasse, seDeus fosse mau e me iludisse quanto às minhas evidências matemáticas e físicas? Tanto quanto duvido

do Ser, sempre posso duvidar do objeto (permitam-me retomar os termos do mais lúcido intérprete deDescartes, Ferdinand Alquié).2. °   Existe, porém, uma coisa de que não posso duvidar, mesmo que o demônio queira sempre meenganar. Mesmo que tudo o que penso seja falso, resta a certeza de que eu penso. Nenhum objeto de  pensamento resiste à dúvida, mas o próprio ato de duvidar é indubitável . "Penso, cogito, logo existo, ergo sum" . Não é um raciocínio (apesar do logo, do ergo), mas uma intuição, e mais sólida que a domatemático, pois é uma intuição metafísica, metamatemática. Ela trata não de um objeto, mas de umser. Eu penso, Ego cogito (e o ego, sem aborrecer Brunschvicg, é muito mais que um simples acidentegramatical do verbo cogitare). O cogito de Descartes, portanto, não é, como já se disse, o ato denascimento do que, em filosofia, chamamos de idealismo (o sujeito pensante e suas idéias como ofundamento de todo conhecimento), mas a descoberta do domínio ontológico (estes objetos que são as

evidências matemáticas remetem a este ser que é meu pensamento).3. °   Nesse nível, entretanto, nesse momento de seu itinerário espiritual, Descartes é solipsista. Ele sótem certeza de seu ser, isto é, de seu ser pensante (pois, sempre duvido desse objeto que é meu corpo;a alma, diz Descartes nesse sentido, "é mais fácil de ser conhecida que o corpo").É pelo aprofundamento de sua solidão que Descartes escapará dessa solidão. Dentre as idéias do meucogito existe uma inteiramente extraordinária. É a idéia de perfeição, de infinito. Não posso tê-la tiradode mim mesmo, visto que sou finito e imperfeito. Eu, tão imperfeito, que tenho a idéia de Perfeição , sóposso tê-la recebido de um Ser perfeito que me ultrapassa e que é o autor do meu ser. Por conseguinte,eis demonstrada a existência de Deus. E nota-se que se trata de um Deus perfeito, que, por conseguinte,

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é todo bondade. Eis o fantasma do gênio maligno exorcizado. Se Deus é perfeito, ele não pode terquerido enganar-me e todas as minhas idéias claras e distintas são garantidas pela veracidade divina.Uma vez que Deus existe, eu então posso crer na existência do mundo. O caminho é exatamente oinverso do seguido por São Tomás. Compreenda-se que, para tanto, não tenho o direito de guiar-mepelos sentidos (cujas mensagens permanecem confusas e que só têm um valor de sinal para os instintos

do ser vivo). Só posso crer no que me é claro e distinto (por exemplo: na matéria, o que existeverdadeiramente é o que é claramente pensável, isto é, a extensão e o movimento). Alguns acham queDescartes fazia um circulo vicioso: a evidência me conduz a Deus e Deus me garante a evidência! Masnão se trata da mesma evidência. A evidência ontológica que, pelo cogito, me conduz a Deusfundamenta a evidência dos objetos matemáticos. Por conseguinte, a metafísica tem, para Descartes,uma evidência mais profunda que a ciência. É ela que fundamenta a ciência (um ateu, dirá Descartes,não pode ser geômetra!) .4. °    A Quinta meditação apresenta uma outra maneira de provar a existência de Deus. Não mais se tratade partir de mim, que tenho a idéia de Deus, mas antes da idéia de Deus que há em mim. Apreender aidéia de perfeição e afirmar a existência do ser perfeito é a mesma coisa. Pois uma perfeição não-existente não seria uma perfeição. É o argumento ontológico, o argumento de Santo Anselmo queDescartes (que não leu Santo Anselmo) reencontra: trata-se, ainda aqui, mais de uma intuição, de umaexperiência espiritual (a de um infinito que me ultrapassa) do que de um raciocínio.

René Descartes 

 A Dúvida, Exercício Espiritual

1.ª Meditação Descartes resolve duvidar de todas as suas opiniões: Mas não basta ter feito essas observações, é preciso ainda que eu cuide de não me esquecer delas; poisessas antigas e comuns opiniões freqüentemente revivem em meu pensamento, a longa e familiarconvivência que tiveram comigo, o que lhes dá o direito de ocupar o meu espírito sem que eu o queira ede quase se tornarem senhoras de minha crença. E nunca me desacostumarei a essa aquiescência e aconfiar nelas, enquanto eu as considerar tais como efetivamente são, isto é, de certo modo duvidosas,como acabei de provar, e, no entanto, muito prováveis, de maneira que se tenha mais razão em acreditar

nelas do que em negá-las. Eis por que penso que as utilizarei mais prudentemente se, tomando umpartido contrário, empregar todos os esforços no sentido de enganar-me a mim mesmo, fingindo quetodos esses pensamentos são falsos e imaginários; até que, tendo de tal modo avaliado meuspreconceitos, eles não possam fazer com que minha opinião tenda mais para um lado do que para outro,e meu julgamento não mais seja, daqui por diante, dominado por maus usos e afastado do caminho retoque o pode conduzir ao conhecimento da verdade. Pois estou certo de que, no entanto, não pode haverperigo nem erro nesse caminho e de que eu hoje não poderia conceder muito à minha desconfiança,uma vez que, no momento, não se trata d agir, mas somente de meditar e de conhecer.Suporei, então, que há, não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gêniomaligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda sua indústria emenganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exterioresque vemos não passam de ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade.Considerar-me-ei a mim mesmo como não tendo mãos, nem olhos, nem carne, nem sangue, como não

tendo nenhum dos sentidos, mas acreditando falsamente possuir todas essas coisas. Permanecereiobstinadamente apegado a esse pensamento; e, se por esse medo, não estiver em meu poder atingir oconhecimento, de nenhuma verdade, pelo menos estará em meu poder fazer a suspensão de meu juízo.Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tãobem meu espírito em face de todos os ardis desse grande enganador que, por mais poderoso e astuciosoque seja, nunca poderá impor-me coisa alguma.Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso, e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo deminha vida comum. E, exatamente como o escravo que se comprazia no sonho de uma liberdadeimaginaria e que, quando começa a suspeitar que essa liberdade é apenas um sonho, teme ser

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despertado e conspira com essas agradáveis ilusões para ser mais longamente enganado, assim eu,por mim mesmo, retorno invisivelmente às minhas antigas opiniões e receio despertar dessa sonolência,temendo que as vigílias laboriosas que se sucederiam à tranqüilidade de tal repouso, ao invés depropiciarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade, não fossem suficientes paraaclarar as trevas das dificuldades que acabam de ser tratadas.

Eu Sou Uma Coisa Que Pensa 2.ª Meditação

Eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritosalguns, corpos alguns; também não me persuadi de que eu não existia? É certo que não, eu existia semdúvida, se é que me persuadi ou somente pensei alguma coisa. Mas há um não sei quem, enganadormuito poderoso e astucioso, que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Por conseguinte,não há a menor dúvida de que sou, se ele me engana; e, por mais que ele queira enganar-me, nuncapoderá fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De maneira que, após terpensado bastante nisto e ter cuidadosamente examinado todas as coisas, há que concluir finalmente eter por constante que esta proposição, "Eu sou, eu existo" , é necessariamente verdadeira, todas asvezes em que a enuncio ou em que a concebo em meu espírito.Mas ainda não conheço bastante o que sou, eu, que estou certo de que sou; de maneira que, de agoraem diante, é preciso que eu atente cuidadosamente, para não tomar imprudentemente alguma outracoisa por mim e assim não me equivocar nesse conhecimento que sustento ser mais certo e maisevidente do que todos os que tive até o momento.Eis por que considerarei de novo o que acreditava ser, antes de penetrar nesses últimos pensamentos; ede minhas antigas opiniões abolirei tudo o que pode ser combatido pelas razões que há pouco aleguei,de maneira a só permanecer precisamente o que é inteiramente indubitável. Por conseguinte, que é queeu acreditava ser até aqui? Sem dificuldade, eu pensei que era um homem. Mas que é um homem? Direique é um animal racional? Não, certamente; pois seria necessário que em seguida pesquisasse o que éanimal e o que é racional e assim, de uma só questão, cairíamos insensivelmente numa infinidade deoutras mais difíceis e embaraçosas, e eu não gostaria de abusar do pouco tempo e do lazer que meresta, empregando-o em desvendar semelhantes sutilezas.

Mas, antes, deter-me-ei em considerar aqui os pensamentos que anteriormente nasciam por si mesmosem meu espírito e que eram inspirados apenas por minha natureza quando eu me empenhava naconsideração de meu ser. Considerava-me, primeiramente, como tendo um rosto, mãos, braços e todaessa máquina composta de osso e carne, tal como ela aparece num cadáver e a qual eu designava pelonome de corpo. Por outro lado, considerava que eu me alimentava, que andava, que sentia e quepensava, relacionando todas essas ações à alma; mas não me detinha em pensar o que era essa almaou, então, se aí me demorava, imaginava que ela era algo de extremamente raro e sutil, como um vento,uma chama ou um ar muito tênue, que estava insinuado e disseminado nas minhas partes maisgrosseiras. No que se referia ao corpo, eu não duvidava de modo algum de sua natureza; pois eupensava conhecê-la mui distintamente e, se quisesse explicá-la segundo as noções que tinha dela, tê-la-ia descrito da seguinte maneira: por corpo, entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura; quepode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaço de tal maneira que todo outro corposeja dela excluído; que pode ser sentido pelo tato, ou pela visão, ou pela audição, ou pelo paladar, ou

pelo olfato; que pode ser movido por diversas maneiras, não por si mesmo, mas por algo alheio pelo qualseja tocado e do qual se pudesse atribuir à natureza corpórea vantagens como a de ter o poder demover-se a si própria; ao contrário, espantava-me antes ao ver que semelhantes faculdades seencontravam em certos corpos.Mas eu, que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extremamente poderoso e, se ouso dize-lo, malicioso e astucioso, que emprega todas as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me?Poderei ter a certeza de possuir a menor de todas as coisas que acima atribuí à natureza corpórea?Detenho-me a pensar nisso em meu espírito, e não encontro nenhuma que possa dizer que existe emmim. Não é necessário que me demore a enumerá-las. Por conseguinte, passemos aos atributos da alma

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e vejamos se há alguns que existam em mim. Os primeiros são alimentar-me e andar; mas se éverdade que não tenho corpo algum, também é verdade que não posso andar nem me alimentar. Umoutro é sentir; mas não se pode sentir também sem o corpo; além disso, outrora eu pensei sentir váriascoisas durante o sono e verifiquei, ao despertar, que não as sentira efetivamente. Um outro é pensar; econstato aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de

mim. Eu sou, eu existo; isso é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eupenso; pois poderia ocorrer que, se eu deixasse de pensar, eu deixaria ao mesmo tempo de ser ou deexistir. Agora eu nada admito que não seja necessariamente verdadeiro: portanto, eu não sou,precisamente falando, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão,que são termos cuja significação me era desconhecida anteriormente. Ora, eu sou uma coisa verdadeirae verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa . E que mais? Excitareiainda minha imaginação, para verificar ainda se não sou algo mais. Eu não sou essa reunião de membrosque se chama corpo humano; não sou um ar tênue e penetrante, disseminado por todos esses membros;não sou um vento, um sopro, um vapor nem nada que possa fingir e imaginar, uma vez que supus quetudo isso não era nada e que, sem modificar tal suposição, constato que não deixo de estar certo de quesou alguma coisa.

O Pedaço De Cera 3.ª Meditação

Comecemos pelas considerações das coisas mais comuns e que julgamos compreender maisdistintamente, e saber, os corpos que tocamos e que vemos. Não pretendo falar dos corpos em geral,uma vez que essas noções gerais comumente são mais confusas, mas de qualquer corpo em particular.Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia: ele ainda não perdeu adoçura do mel que continha, ainda retém algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figurae sua grandeza são evidentes: ele é duro e frio quando o tocamos e, se nele batermos, produzirá algumsom. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo, encontram-se neste.Mas eis que, enquanto falo, alguém o aproxima do fogo: o que nele restava de sabor, exala-se, o odor sedesvanece, sua cor se modifica, sua figura se perde, sua grandeza aumenta, ele se torna líquido,esquenta-se, mal podemos tocá-lo, e, ainda que batamos nele, não produzirá som algum. A mesma cera

permanece após essa transformação? Cumpre confessar que sim; e ninguém o pode negar. Que é,então, que conhecíamos nesse pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada doque observei nela por intermédio dos sentidos, uma vez que todas as coisas que se apresentavam aopaladar, ou ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição se encontram modificadas e, no entanto, amesma cera permanece. Talvez fosse o que penso a atualmente, a saber, que a cera não era essa doçurado mel, nem esse agradável perfume das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som,mas apenas um corpo que, pouco antes, se apresentava sob essas formas e que agora se faz notar soboutras. Mas o que será, precisamente falando, que eu imagino quando a concebo dessa maneira?Consideremo-la atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o queresta. É certo que não permanece senão algo de extenso, de flexível e mutável. Ora, que é isso: flexível emutável? Não estarei imaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tornar quadrada e depassar do quadrado para uma figura triangular? É certo que não, não é isso, uma vez que a concebocapaz de receber uma infinidade de transformações semelhantes e, no entanto, eu não poderia percorrer

essa infinidade com minha imaginação e, consequentemente, essa concepção que tenho da cera não serealiza pela faculdade de imaginar.E, agora, que é essa extensão? Não será também desconhecida, visto que na cera que se funde elaaumenta e fica ainda maior quando aquela está inteiramente fundida e muito mais ainda quando o caloraumenta mais? E eu não conceberia claramente, e segundo a verdade, o que é a cera; se não pensasseque é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que nunca imaginei. Por conseguinte, épreciso que eu concorde que não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera, e que sómeu entendimento é quem o concebe.

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 A Liberdade 4.ª Meditação

O que existe unicamente é a vontade que sinto ser tão grande em mim, que não concebo de modoalgum a idéia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de maneira que é ela, principalmente que

me faz conhecer que trago a imagem e a semelhança de Deus. Pois, ainda que ela sejaincomparavelmente maior em Deus do que em mim, seja em virtude do conhecimento e do poder - que,encontrando-se juntos aí, a tornam mais firme e mais eficaz - seja em virtude do objeto, na medida emque ela se dirige e se estende infinitamente a mais coisas; ela não me parece todavia maior se eu aconsidero formal e precisamente em si mesma. Pois ela consiste somente em que podemos fazer umacoisa ou deixar de fazê-la (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir), ou, antes, somente em que, paraafirmar ou negar, perseguir ou fugir as coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal modo quenão sentimos de maneira alguma força exterior que nos obrigue a isso.Pois, para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou outro dos doiscontrários; mas, antes, quanto mais eu tender para um, seja porque eu conheça evidentemente que obem e o verdadeiro aí se encontram, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento,tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei. É certo que a graça divina e o conhecimento natural,bem longe de diminuírem minha vontade, antes a aumentam e a fortalecem. De modo que essaindiferença que sinto, quando não sou de maneira alguma impelido mais para um lado do que para outropelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau de liberdade, e faz antes parecer uma carência deconhecimento do que uma perfeição na vontade; pois, se eu sempre conhecesse claramente o que éverdadeiro e o que é bom, nunca teria dificuldade em deliberar qual juízo e qual escolha deveria fazer; e,assim, eu seria inteiramente livre, sem nunca ser indiferente.

O Argumento Ontológico 5.ª Meditação

Ora, agora, se do simples fato de que posso tirar de meu pensamento a idéia de alguma coisa, segue-seque tudo o que eu reconheço pertencer clara e distintamente a essa coisa, pertence-lhe efetivamente,não posso tirar daí um argumento e uma prova demonstrativa da existência de Deus? É certo que não

encontro menos em mim sua, isto é, a idéia de um ser soberanamente perfeito, do que a idéia dequalquer figura ou de qualquer número que seja. E não conheço menos clara e distintamente que umaatual e eterna existência pertence à sua natureza do que conheço que tudo o que posso demonstrar dequalquer figura ou de qualquer número pertence verdadeiramente à natureza dessa figura ou dessenúmero. E, portanto, ainda o que tudo que concluí nas Meditações precedentes não fosse absolutamenteverdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em meu espírito pelo menos como tão certa quantoconsiderei até aqui todas as verdades da matemática, que só dizem respeito aos números e às figuras: sebem que, na verdade, isso, de início, não pareça inteiramente manifesto, que se afigure com algumaaparência de sofisma. Pois, estando habituado em todas as outras coisas a fazer distinção entreexistência e essência, persuado-me facilmente de que a existência pode ser separada da essência deDeus e que, assim, se possa conceber Deus como não existindo atualmente. Todavia, quando pensonisso com mais atenção, verifico claramente que a existência não pode ser separada da essência de umtriângulo retilíneo não pode ser separada a grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, da idéia

de uma montanha, a idéia de um vale; de maneira que não há menos repugnância em conceber umDeus (isto é, um ser soberanamente perfeito) ao qual falta a existência (isto é, ao qual falta algumaperfeição) do que em conceber uma montanha que não tenha um vale.Mas, ainda que efetivamente eu não possa conceber um Deus sem existência, assim como umamontanha sem vale, todavia, como do simples fato de eu conceber uma montanha com um vale não sesegue que haja qualquer montanha no mundo, do mesmo modo, embora eu conceba Deus comexistência, parece que isso não implica em que haja algum Deus existente; pois, meu pensamento nãoimpõe necessidade alguma às coisas; e como só depende de mim imaginar um cavalo alado, embora nãoexista nenhum dotado de asas, assim eu talvez pudesse atribuir existência a Deus, ainda que Deus

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nenhum existisse. Mas não é assim, pois aqui há um sofisma escondido sob a aparência dessaobjeção; pois, do fato de eu não poder conceber uma montanha sem vale, não se segue que haja nomundo montanha alguma, nem vale algum, mas apenas que a montanha e o vale, quer existam, quernão existam, não podem, de maneira alguma, estar separados um do outro; ao passo que, do simplesfato de eu não poder conceber Deus sem existência, segue-se que a existência lhe é inseparável, e que,

portanto, ele existe verdadeiramente; não que meu pensamento possa fazer com que isso seja assim eque ele imponha alguma necessidade às coisas; mas, ao contrário, porque a própria coisa, a saber, aexistência de Deus, determina meu pensamento a concebê-lo dessa maneira. Pois, não está em minhaliberdade conceber um Deus sem existência (isto é, um ser soberanamente perfeito sem uma soberanaperfeição), como me é dada a liberdade de imaginar um cavalo com ou sem asas.

O Empirismo - Hume 

David Hume

David Hume nasceu na Escócia, em Edimburgo em 1711. Hume pertencia a uma família abastada. Fezbons estudos no colégio de Edimburgo - um dos melhores da Escócia, em seguida transformado emuniversidade -, cujo professor de "filosofia", isto é, de física e ciências naturais, Stewart, era um cientistadiscípulo de Newton. O jovem Hume, que sonha tornar-se homem de letras e filósofo célebre,rapidamente renuncia aos estudos jurídicos e comerciais, passa alguns anos na França, notadamente emLa Flèche, onde compõe, aos vinte e três anos, seu Tratado da Natureza Humana , editado em Londres,em 1739. A obra, diz-nos o autor, "já nasceu morta para a imprensa". Esse fracasso deu a Hume a idéiade escrever livros curtos, brilhantes, acessíveis ao público mundano. Seus Ensaios Morais e Políticos  (1742) conhecem vivo sucesso. Hume se esforça por simplificar e vulgarizar a filosofia de seu tratado epublica então os Ensaios Filosóficos sobre o Entendimento Humano (1748), cujo título definitivo surgiráem edição seguinte (1758): Investigação (Inquiry) sobre o Entendimento Humano . A obra obtémsucesso, mas não deixa de inquietar os cristãos, e Hume vê lhe recusarem uma cadeira de filosofia naUniversidade de Glasgow. Ele acabará por fazer uma bela carreira na diplomacia. De 1763 a 1765 ele ésecretário da Embaixada em Paris e festejado no mundo dos filósofos. Em 1766 ele hospeda Rosseau naInglaterra, indispondo-se com ele em seguida. Em 1768, ele é Secretário de Estado em Londres. Nesse

meio tempo, publicou uma Investigação sobre os Princípios Morais  (1751), uma volumosa História da Inglaterra (1754-1759) e uma História Natural da Religião (1757). Somente após sua morte (1776) é queforam publicados, em 1779, seus Diálogos sobre a Religião Natural .

O Método de Hume

Hume quis ser o Newton da psicologia. O subtítulo de seu Tratado da Natureza Humana é, nesse sentido,bastante esclarecedor: "Uma tentativa de introdução do método de raciocínio experimental nas ciênciasmorais. A análise psicológica do entendimento operada por Hume parece, à primeira vista, muito próximada de Locke. Ele parte do princípio de que todas as nossas "idéias" são ópias das nossas "impressões",isto é, dos dados empíricos: impressões de sensação, mas, também, impressões de reflexão (emoções epaixões). Não é este o ponto de vista tradicional do empirismo que vê na experiência a fonte de todosaber?

Na realidade, o método de Hume pode ser apresentado de maneira mais moderna. Sua filosofia coloca,sob o nome de "impressões", aquilo que Bergson mais tarde denominará os dados imediatos daconsciência e que os fenomenologistas denominarão a intuição originária ou o vivido . Ao falar defenomenologia contemporânea, Gaton Berger escrevia: "É preciso ir dos conceitos vazios, pelos quaisuma idéia é apenas visada, à intuição direta e concreta da idéia, exatamente como Hume nos ensina aretornar das idéias para as impressões". Para Hume, ir da idéia à impressão consiste em apenasperguntar qual é o conteúdo da consciência que se oculta sob as palavras . Fala-se de substância, deprincípios, de causas e efeitos etc. Que existe verdadeiramente no pensamento quando se discorre sobreisso? As quais impressões vividas correspondem todas essas palavras? Aquilo que Hume chama de

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impressão e que ele caracteriza pelos termos "vividness" , "liveliness" é o pensamento atual, vivo,que se precisa redescobrir sob as palavras (no empirismo de Hume, diz Laporte, há que ver "antes o ódioao verbalismo do que o preconceito do sensualismo").

 A Análise da Idéia de Causa

 Aos olhos de Hume, a noção de causalidade é muito enigmática porque, em nome desse princípio decausalidade, a todo momento afirmamos mais do que vemos, não cessamos de ultrapassar a experiênciaimediata. Por exemplo, em nome do princípio de causalidade (as mesmas causas produzem os mesmosefeitos ou o aquecimento da água é causa da ebulição), afirmo que a água que acabo de pôr no fogo vaiferver; prevejo a ebulição dessa água, portanto, tiro "de um objeto uma conclusão que o ultrapassa".Todo raciocínio experimental, pelo qual do presente se conclui o futuro (a água vai ferver, a barra demetal vai se dilatar, amanhã fará dia etc.), repousa nesse princípio de causalidade.De onde me vem esse princípio? A qual impressão corresponde essa idéia? A "investigação" filosófica vaise apresentar aqui como uma pesquisa em todas as direções:"Nós devemos proceder como essas pessoas que, ao procurarem um objeto que lhes está oculto equando não o encontram no lugar que esperavam, vasculham todos os lugares vizinhos sem visão nempropósitos determinados, na esperança de que sua boa sorte irá orientá-las no sentido do objeto de suasbuscas". Vejamos para onde nos conduzirá essa busca filosófica.Hume não encontrará, em nenhum setor da experiência, uma impressão concreta de causalidade quetorne legítima essa idéia de causa que pretendemos ter:a) Consideremos, de início, a experiência externa: vejo que o movimento de uma bola de bilhar éseguido do movimento de outra bola com que a primeira se chocou, assim como vejo que o aquecimentoé seguido da ebulição: vejo, então, que o fenômeno A é seguido do fenômeno B. Mas o que não vejo é oporquê dessa sucessão. É certo que posso repetir a experiência e que, cada vez em que a repito, ofenômeno B se segue ao fenômeno A. Mas isto não esclarece nada. A repetição constante de um enigmanão é o mesmo que sua solução. Vejo bem que, entre os fenômenos  A e B, há uma conjunção constante , mas não vejo conexão necessária . Constato que A se mostra e que, depois, B aparece. Masnão constato que B aparece porque A se mostra. A experiência externa apenas me fornece o e depois ,não me dá a origem do porquê .

b) Examinemos agora essa experiência, simultaneamente interna e externa, que faço a todo momentoem que sinto o poder da minha consciência sobre meu corpo. Não terei aqui a chave do princípio decausalidade. Se quero levantar o braço, levanto-o. Não é evidente que minha vontade é a causa domovimento de meu corpo? Mas, se refletirmos bem, essa experiência não é menos clara do que aprecedente. Constato duas coisas: inicialmente, que quero levantar o braço, em seguida, que ele selevanta. Não sei absolutamente por meio de que engrenagem neuromuscular complexa se opera omovimento de meu braço. Um paralítico, como eu, quer levantar o braço e, para surpresa sua, constataque nenhum movimento se segue ao seu desejo.E eu, cuja língua ou cujos dedos se movem segundo minha vontade, não tenho o menor poder sobremeu coração ou sobre meu fígado. Lembramo-nos como a sucessão de meu querer e de meusmovimentos espantava Malebranche a tal ponto que ele via em minha vontade apenas uma ocasião apartir da qual Deus produzia o movimento de meu corpo. Aos olhos de Hume, filósofo do século XVIII,essa hipótese é extravagante, mas ele retém a análise psicológica do grande filósofo francês. Ainda aqui,

constato com surpresa que quero efetuar certos movimentos e depois  que esses movimentos serealizam . Mas não constato o  porquê , não tenho experiência de uma conexão necessária . Permaneceenigmática a ação da alma sobre o corpo: "Se tivéssemos o poder de afastar as montanhas ou controlar os planetas, esse poder não seria mais extraordinário" .c) Quer dizer enfim da esperiência puramente interior da sucessão de minhas próprias idéias? Deveadmitir que minha reflexão atenta é causa das idéias que me ocorrem? Mas, de saída, segundo os casosou os momentos, as idéias ocorrem ou não. Pela manhã, elas ocorrem melhor do que à tarde (emalguns) e melhor antes da refeição do que após. Ainda aqui constato a existência de uma sucessão entremeu esforço de atenção e minhas idéias, mas não vejo conexão necessária entre os dois fatos.

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Por conseguinte, a conclusão se impõe. Não existe nenhuma impressão autêntica da causalidade. Oque acontece é que eu acredito na causalidade e Hume explica essa crença , partindo do hábito e daassociação das idéias. Por que será que espero ver a água ferver quando a aqueço? É porque, respondeHume, aquecimento e ebulição sempre estiveram associados em minha experiência e essa associaçãodeterminou um hábito em mim. Coloco a água no fogo e afirmo, em virtude de poderoso hábito: vai

ferver. Se estabeleço "uma conclusão que projeta no futuro os casos passados de que tive experiência", éporque a imaginação, irresistivelmente arrastada pelo peso do costume, resvala de um evento dadoàquele que comumente o acompanha. Aparento antecipar a experiência quando, na verdade, cedo a umatendência criada pelo hábito. Por conseguinte, a necessidade causal não existe realmente nas coisas. "A necessidade é algo que existe no espírito, não nos objetos."  

O Ceticismo de Hume

O empirismo de Hume surge então como um ceticismo; explicar psicologicamente a crença no princípiode causalidade é recusar todo valor a esse princípio. De fato, não existe, na idéia de causalidade, senão o  peso do meu hábito e da minha expectativa . Espero invencivelmente a ebulição da água que coloquei nofogo. Mas essa expectativa não tem fundamento racional. Em suma, poderia ocorrer - sem contradição -que essa água aquecida se transformasse em gelo! "Qualquer coisa, diz Hume, pode produzir qualquer coisa."  No domínio das proposições lógicas,  A não pode ser não-A. Mas nas "matters of fact" , tudo pode acontecer. Aquele rei de Sião, que condenara à morte o embaixador norueguês em suacorte (porque este último zombara dele ao afirmar que em seu país, no inverno, os rios se tornavam tãoduros que se podia fazer deslizar trenós sobre os mesmos!!), errara muito ao negar um fato contrário àsua experiência. O princípio de causalidade, inteiramente explicado por uma ilusão psicológica, não tem omenor valor de verdade. Pascal, que já esboçara essa análise psicológica da indução, dizia em fórmulasurpreendente: "Quem reduz o costume a seu princípio, anula-o" .O ceticismo de Hume, portanto, surge-nos, dirá Hegel mais tarde, como um ceticismo absoluto. ParaHegel, ao ceticismo antigo, que duvida sobretudo dos sentidos para preparar a conversão do espírito aomundo das verdades eternas, opõe-se um ceticismo moderno - de que Hume seria o corifeu - que negaapenas as afirmações da metafísica e fundamenta, solidamente, as verdades da ciência experimental. Narealidade, o ceticismo de Hume, ao abolir o princípio de causalidade, lança a suspeita em toda ciência 

experimental . Em todos os princípios do conhecimento ele descobre as ilusões da imaginação e dohábito. Até a unidade do eu - que se nos apresenta ingenuamente como uma evidência - é ilusória paraele. Segundo Hume, é também a imaginação que identifica o eu com o que ele possui ou, como dizemos,o ser e o ter. Em última instância, eu tenho reputação e mesmo lembranças, idéias e sonhos do mesmomodo que tenho esta roupa ou esta casa. É simplesmente a imaginação, hábil em mascarar adescontinuidade de todas as coisas, que facilmente desliza de um estado psíquico a outro e constrói omito da personalidade, coleção de haveres heteróclitos que é dado como um ser. Pois, ou eu sou meus"estados" e minhas "qualidades" e não sou eu mesmo, ou então sou eu mesmo e nada mais.Só que Hume é o primeiro a reconhecer que seu ceticismo, por mais absoluto que seja, é artificial. Hume,como todo mundo, quando coloca a água no fogo, está persuadido de que ela vai ferver. Quando refletecomo filósofo, em seu gabinete, ele é cético. Quando mergulha na vida corrente, suas "conclusõesfilosóficas parecem desvanecer-se como os fantasmas da noite ao nascer do dia". Se, diz elecuriosamente, "após três ou quatro horas de diversão, eu quisesse retornar às minhas especulações,

estas me pareceriam tão frias, tão forçadas e ridículas que não poderia encontrar coragem e retomá-laspor pouco que fosse". A crença no princípio de causalidade, absurda no plano da reflexão, é natural,instintiva. A teoria de Hume, por conseguinte, é simultaneamente um dogmatismo instintivo e umceticismo reflexivo. Ceticismo e dogmatismo não se apresentam nele segundo os domínios do saber, massegundo os níveis do pensamento. Ninguém mais do que ele separou filosofia e vida. Ele filosofaceticamente segundo uma reflexão rigorosa e dissolvente. Podemos então qualificar, de certo modo,como "humorístico" o ceticismo desse filósofo inglês que, por outro lado, ousou dizer que convinha a umcavalheiro pensar como os whigs ... e votar como os tories .

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Hume e o Problema da Religião

Essa complexidade da filosofia de Hume torna mais difícil a elucidação de sua filosofia religiosa.Consideremos, por exemplo, o célebre Ensaio Sobre os Milagres . Ele parece ter sido escrito sob a ótica dafilosofia das luzes: o milagre é impossível porque contraria a experiência, as leis da natureza. Em

compensação, a crença popular nos milagres - perfeitamente explicável pelas leis que governam aimaginação crédula dos homens - é muito natural!"A velhacaria e a idiotice humanas são fenômenos tão correntes, que eu antes acreditaria que osacontecimentos mais extraordinários nascem do seu concurso, ao invés de admitir uma inverossímilviolação das leis da natureza". Em suma, Hume se apóia no determinismo físico para rejeitar a realidadedo milagre e no determinismo psicológico para explicar sua ilusão tenaz. Mas como Hume pode apoiar-se no determinismo, uma vez que sua crítica da causalidade fez desse próprio determinismo uma ilusão  psicológica?  Pascal, fundamentava-se precisamente numa crítica análoga à de Hume para afirmar apossibilidade do milagre. Ressuscitar, dizia, não é mais misterioso do que nascer. "O costume torna umfácil, sua falta torna o outro impossível: popular maneira de julgar" Quando Hume rejeita o milagre, nãoestará pensando ao nível da imaginação e do costume, não estará julgando "popularmente"? Seucombate pelas luzes situar-se-ia então no plano da reflexão filosófica que justamente anula o prestígio docostume e do bom-senso indutivo.Os Diálogos sobre a Religião Natural são difíceis de interpretar porque se trata de verdadeiros diálogos,em que cada personagem sustenta seu ponto de vista com argumentos sérios; o próprio Hume afirma ter"querido evitar esse erro vulgar que consiste em só colocar absurdos na boca dos adversários". Os trêspersonagens são: um deísta racionalista, Cleanto, que demonstra a existência de Deus partindo dasmaravilhas do universo; Demea, místico anti-racionalista, e o cético Filon. Ao fim da obra, Hume afirmaque está mais próximo de Cleanto. Mas, numa carta de 1751 a Gilbert Elliot of Minto, ele declara que, nomomento da redação de seus Diálogos, o papel de Filon e Demea estão sempre de acordo quando setrata de demolir o racionalismo, o antropomorfismo e o otimismo de Cleanto. Enquanto muitos filósofosdo século das luzes reservam sua ironia crítica para a religião revelada e encontram na ordem do mundo,na finalidade, argumentos para a religião natural, tem-se a impressão de que Hume multiplica suascríticas "céticas" à religião natural. A noção de um Deus-Providência parece-lhe pouco compatível com ossofrimentos e os males de que os homens são vítimas neste mundo. Por outro lado, observa Hume

sutilmente, se a verdade do sofrimento humano é, para o filósofo, um argumento decisivo contra aProvidência, é precisamente esse sofrimento que conduz o povo a buscar as consolações da religião. O mesmo fato, que para o filósofo é uma objeção maior à religião, surge, no povo, como a forca essencial da crença! Finalmente, a crítica da razão teológica tem, portanto, em Hume, o mesmo sentido que acrítica da razão experimental. Em ambos os casos, ele substitui a pesquisa de um fundamento lógico -que se apresenta impossível - pela pesquisa de origem psicológica da crença. O ceticismo de Hume é umpsicologismo.

Textos de Hume 

O Problema da Causalidade (Segundo a Investigação sobre o Entendimento)

Não temos necessidade de temer que esta filosofia, na medida em que tenta limitar nossas pesquisas àvida corrente, nunca destrua os raciocínios de vida corrente e leve suas dúvidas tão longe a ponto dedestruir toda ação como toda especulação. A natureza sempre manterá seus direitos e, no fim,prevalecerá sobre os raciocínios abstratos. Mesmo que concluamos, por exemplo, que em todos osraciocínios tirados da experiência o espírito dá um passo que não é sustentado por nenhum progresso doentendimento, não há nenhum perigo que esses raciocínios, dos quais depende quase todoconhecimento, sejam afetados por tal descoberta. Se o espírito não está obrigado a dar esse passo pormeio de um argumento, ele deve ser conduzido por outro princípio igual em peso e em autoridade; tal

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princípio conservará sua influência por tanto tempo que a natureza humana permanecerá a mesma. A natureza desse princípio bem merece que nos entrguemos ao esforço de investigar sobre ela.Suponha-se que um homem, dotado das mais poderosas faculdades de razão e de reflexão, sejasubitamente transportado por este mundo; certamente ele observaria de imediato uma contínuasucessão de objetos, um acontecimento seguir-se a outro; mas seria incapaz de descobrir outra coisa. De

saída, ele seria incapaz, por meio de algum raciocínio, de atingir a idéia de causa e efeito, pois ospoderes particulares que concretizam todas as operações naturais nunca se apresentam aos sentidos; enão é razoável concluir, unicamente porque um acontecimento precede outro em um único caso, que umseja a causa e o outro o efeito. Sua formação pode ser arbitrária e acidental. Não existe razão para seinferir a existência de um pela aparição do outro. Numa palavra, aquele homem, sem mais experiência,nunca faria conjecturas ou raciocínios sobre qualquer questão de fato; só estaria certo do que estáimediatamente presente em sua memória e em seus sentidos.Suponha-se ainda que este homem tenha adquirido mais experiência e que tenha vivido por muito tempono mundo para que tenha observado a conjugação constante de objetos e de acontecimentos familiares;que resulta dessa experiência? Ele imediatamente infere a existência de um dos objetos pela aparição dooutro. Todavia, ele não adquiriu, com toda sua experiência, nenhuma idéia, nenhum conhecimento dopoder oculto pelo qual um dos objetos produz o outro; e não é por nenhum progresso de raciocínio queele é obrigado a chegar a esta conclusão. Mas ele sempre se acha determinado a tirá-la; e, mesmo que oconvencêssemos que seu entendimento de modo algum participa na operação, ele continuaria a ter omesmo pensamento. Existe um outro princípio que o determina a estabelecer tal conclusão.Esse princípio é o costume, o hábito. Pois, todas a vezes que a repetição de uma operação ou de um atoparticular produz uma tendência no sentido de renovar o mesmo ato ou a mesma operação sem oimpulso de qualquer raciocínio ou progresso do entendimento, dizemos sempre que essa tendência é oefeito do costume. Ao empregar esta palavra não pretendemos ter dado a razão última de tal tendência. Apenas designamos um princípio de natureza humana, universalmente reconhecido e bem conhecido porseus efeitos.

O Problema do Mal (Discurso de Filon nos Diálogos sobre a Religião Natural, capítulo XI)

Se todas as criaturas vivas fossem incapazes de sofrer ou se o mundo fosse administrado por voliçõesparticulares, o mal nunca teria acesso ao universo; e se os animais fossem dotados de uma amplaprovisão de forças e de faculdades. se as diversas forças e princípios do universo fossem exatamenteconstruídos para sempre conservar o temperamento justo e o justo meio, necessariamente teria havidomuito pouco mal em comparação ao de que nos ressentimos efetivamente. Que diremos então nestaocasião? Diremos que tais circunstâncias não são necessárias e que facilmente poderiam ter sidomudadas no arranjo do universo? Tal decisão parece demasiado presunçosa para criaturas tão cegas eignorantes como nós. Sejamos mais modestos em nossas conclusões. Convenhamos que, se a bondadedivina - entendo uma bondade tal qual a do homem - pudesse ser estabelecida por razões a priori  admissíveis, esses fenômenos, por mais deploráveis que fossem, não bastariam para perturbar o ditoprincípio, mas poderiam facilmente, de algum modo desconhecido, se conciliar com ele. Todavia,afirmamos que, como essa bondade não é previamente estabelecida, mas deve ser inferida segundo osfenômenos, não pode haver nenhum motivo em favor de tal inferência, quando existem tantos males no

universo, e que teria sido tão fácil remediar isto para tanto que o entendimento humano possa seradmitido a julgar em tal assunto. Sou suficientemente cético para convir que as más aparências, nãoobstante todos os meus raciocínios, podem ser compatíveis com tais atributos. Tal conclusão não poderiaresultar do ceticismo: é preciso que ela provenha dos fenômenos e de nossa confiança nos raciocíniosque deles deduzimos. Vejam este universo em torno de vocês. Que imensa profusão de seres animados e organizados,sensíveis e agentes! Vocês admiram esta variedade e esta fecundidade prodigiosa. Mas examinem umpouco mais de perto essas existências vivas, as únicas que vale a pena considerar. Como são hostis edestruidoras umas para as outras! Como são insuficientes, tanto quanto são, para sua própria felicidade!

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Quão desprezíveis ou odiosas para o espectador! O todo só suscita a idéia de uma natureza cega,impregnada por um princípio vivificante e que deixa cair de seu regaço, sem discernimento nem cuidadosmaternos, seus filhos estropiados e abortados! Aqui o sistema maniqueu se apresenta como uma hipótese adequada para resolver a dificuldade; e, semdúvida, num certo sentido, ele é mais especioso e apresenta mais probabilidades do que a hipótese

comum, na medida em que dá uma explicação plausível da estranha mistura de bem e de mal que surgena vida. Mas, por outro lado, se considerarmos a uniformidade e a concordância perfeitas das partes douniverso, não descobriremos aí qualquer marca do combate de um ser malfazejo contra um serbenfazejo. É certo que existe uma oposição entre dores e prazeres nas afecções das criaturas sensíveis;mas todas as operações da natureza não se realizam por uma oposição de princípios como quente e frio,úmido e seco, leve e pesado! A verdadeira conclusão é que a fonte original de todas as coisas éinteiramente indiferente a todos esses princípios e prefere tanto o bem ao mal quanto o quente ao frio, oseco ao úmido ou o leve ao pesado.Existem quatro hipóteses possíveis no que se refere às primeiras causas do universo: que são dotadas deperfeita bondade, que possuem perfeita maldade, que são opostas e ao mesmo tempo possuem bondadee maldade e que não possuem bondade nem maldade. Fenômenos mistos nunca poderiam provar os doisprimeiros princípios, que são isentos de mistura. A uniformidade e a firmeza das leis gerais parecem seopor ao terceiro. Por conseguinte, o quarto parece muito mais provável.

O Empirismo - Hobbes Tomás Hobbes

Tomás Hobbes nasceu em Westport, em 1588. Filho de clérigo, Hobbes, em 1608, sai da Universidade deOxford e se torna preceptor do filho de Lord Cavendish. Durante toda sua vida, ele será o amigodevotado dos Stuarts. Antes mesmo da revolução de 1648, que vai suprimir o poder real, ele foge daInglaterra, onde se sente ameaçado por causa de suas convicções monarquistas. Viajará por diversospaíses da Europa, notadamente pela Itália (encontrará Galileu em Florença) e sobretudo pela França(encontrará o padre Mersenne em Paris). Retornará à Inglaterra por ocasião da restauração de Carlos IIem 1660.Em 1642, ele publica em Paris o De Cive  e, em 1651, faz publicar em Londres o Leviatã  ou matéria,

forma e autoridade de uma comunidade eclesiástica e civil . O Leviatã será traduzido para o latim em1688, em Amsterdam, mas nunca foi integralmente traduzido para o francês.Hobbes é um empirista inglês e nele encontramos os temas fundamentais que serão sempre os daescola.  A origem de todo conhecimento é a sensação , princípio original do conhecimento dos própriosprincípios: a imaginação é um agrupamento inédito de fragmentos de sensação e a memória nada mais édo que o reflexo de antigas sensações.Todavia, Hobbes crê na possibilidade de uma lógica pura, de um raciocínio demonstrativo muito rigoroso. Ao lado de uma indução empírica aproximativa, que da experiência passada conclui, sem prova decisiva,o que se passará amanhã (e que não tem outro fundamento além da associação de idéias, the trayan of imagination ), Hobbes admite a existência de uma lógica pura, perfeitamente racional. Mas a essa lógicasó concernem símbolos, palavras (Hobbes é nominalista). Se definirmos rigorosamente as palavras e asregras do emprego dos signos, podemos chegar a conclusões rigorosas, isto é, idênticas aos princípios deque partimos. Mas trata-se de um jogo do pensamento, estranho às realidades concretas.

 A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista. Assim como a percepção é explicada mecanicamente apartir das excitações transmitidas pelo cérebro, assim a moral se reduz ao interesse e à paixão. Na fontede todos os nossos valores, há o que Hobbes denomina endeavour , em inglês, e conatus , em latim, istoé, o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforçopróprio a todos os seres para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada (esse tema doconatus será reencontrado no spinozismo).É partindo de tais fundamentos psicológicos que Hobbes elabora sua justificação do despotismo. Oabsolutismo da época de Hobbes geralmente se apóia na teologia (Deus teria investido os reis de seupoder absoluto). Hobbes, ao justificar o poder absoluto do soberano, descobre-lhe uma origem natural .

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Para ele, o direito, em todos os casos, reduz-se à força; mas distingue dois momentos na história dahumanidade: o estado natural e o estado político . No estado natural, o poder de cada um é medido porseu poder real; cada um tem exatamente tanto de direito quanto de força e todos só pensam na própriaconservação e nos interesses pessoais. Para Hobbes, o homem se distingue dos insetos sociais, como asabelhas e as formigas; por isso, o homem não possui instinto social . Ele não é sociável por natureza e só

o será por acidente.Para compreender como o homem se resolve a criar a instituição artificial do governo, basta descrever oque se passa no estado natural; o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes:ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade(pride) . O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas - observaHobbes, antecipando aqui os temas hegelianos - comumente não deseja a morte de seu adversário edeseja seu cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de suaprópria superioridade.É claro que esse estado, em que cada um procura senão a morte, ao menos a sujeição do outro, é umestado extremamente infeliz. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini lupus" , o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes" , é a guerra de todos contra todos.Não pensemos que mesmo os homens mais robustos desfrutem tranqüilamente as vitórias que sua forçalhe assegura. Aquele que possui grande força muscular não está ao abrigo da astúcia do mais fraco. Esteúltimo - por maquinação secreta ou a partir de hábeis alianças - sempre é o suficientemente forte paravencer o mais forte. Por conseguinte, ao invés de uma desigualdade, é uma espécie de igualdade dos homens no estado natural que faz sua infelicidade . Pois, em definitivo, ninguém está protegido; o estadonatural é, para todos, um estado de insegurança e de angústia. Assim sendo, o homem sempre tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instânciamais poderoso do que o orgulho , é a paixão que vai dar a palavra à razão. (Essa psicologia da vaidade edo medo é, em Hobbes, uma espécie de laicização da oposição teológica entre o orgulho espiritual e otemor a Deus ou humildade.) É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estadosocial e a autoridade política.Os homens, portanto, vão se encarregar de estabelecer a paz e a segurança. Só haverá paz concretizávelse cada um renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas. Isto só será possível se cada umabdicar de seus direitos absolutos em favor de um soberano que, ao herdar os direitos de todos, terá um

poder absoluto. Não existe aí a intervenção de uma exigência moral. Simplesmente o medo é maior doque a vaidade e os homens concordam em transmitir todos os seus poderes a um soberano. Quanto aeste último, notemo-lo bem, ele é o senhor absoluto desde então, mas não possui o menor compromissoem relação a seus súditos.Seu direito não tem outro limite que seu poder e sua vontade. No estado de sociedade, como no denatureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence aosoberano. Houve, da parte de cada indivíduo, uma atemorizada renúncia do seu próprio poder. Mas nãohouve pacto nem contrato, o que houve, como diz Halbwachs, foi "uma alienação e não uma delegaçãode poderes". O efeito comum do poder consistirá, para todos, na segurança, uma vez que o soberanoterá, de fato, o maior interesse em fazer reinar a ordem se quiser permanecer no poder. Apesar de tudo,esse poder absoluto permanece um poder de fato que encontrará seus limites no dia em que os súditospreferirem morrer do que obedecer. Em todo caso, esta á a origem psicológica que Hobbes atribui aopoder despótico. Ele chama de Leviatã ao seu estado totalitário em lembrança de uma passagem da

Bíblia (Jó XLI) em que tal palavra designa um animal monstruoso, cruel e invencível que é o rei dosorgulhosos.Finalmente, o totalitarismo de Hobbes submete - apesar de prudentes reservas - o poder religioso aopoder político. Assim é que ele exclui o "papismo" e o "presbiterianismo" por causa "dessa autoridadeque alguns concedem ao papa em reinos que não lhe pertencem ou que alguns bispos, em suasdioceses, querem usurpar".

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O Estado Natural e o Pacto Social Leviatã, 1.ª parte: Do Homem 

Cap. XIII  

... O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por conseqüência o fato de nada serinjusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não háPoder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais naguerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois,nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontececom seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homensem sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de guerra não implica na existência dapropriedade... nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que a cada um pertenceaquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o homem écolocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado,se apóia na Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são otemor à morte violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável... E a Razão sugereartigos de paz convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar.

Cap. XIV  

... O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cadaum de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é,sua própria vida. E porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um...daí resulta que, nessa situação, cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dosoutros... Enquanto dura esse direito natural de cada um sobre tudo e todos, não pode existir paranenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor segurança...

Cap. XV  

... Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor;inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que obenefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do queadquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existetal poder constrangedor antes da instituição de um Estado. É o que também resulta da definição que asEscolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhecabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; eonde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado, não háPropriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado,nada há que seja Injusto.

O Iluminismo Francês

O Iluminismo Francês

Entre os grandes sistemas do século XVII, como os de Spinoza, Malebranche, Leibnitz, e os do século XIX- doutrinas de Hegel ou de Augusto Comte - a filosofia do século XVIII ocupa um lugar original; elaignora as grandes sínteses, as grandes "visões do mundo", possantes e originais, e marca o triunfo dainteligência crítica. A substância doutrinal de quase todos os filósofos desse século provém de sistemas anteriores; segundod'Alembert, por exemplo, "Newton criou a física e Locke a metafísica".

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a) Já na metade do século, a física de Newton destrona a de Descartes. Newton não faz o romanceda matéria, mas exprime os fatos realmente dados na linguagem rigorosa da matemática; ele explica omovimento dos planetas, a gravidade, as marés. A matemática do infinitesimal descreve adequadamenteas variações contínuas dos fenômenos. Podemos dizer que a física de Newton contribuiu largamente paraa formação do espírito moderno, simultaneamente racionalista e experimental, ao relatar os fatos reais

em linguagem matemática, ao descrever o "como" dos fenômenos, renunciando a imaginar o longínquo"por que" metafísico. "Hypotheses non fingo" , não forjo imagens metafísicas, dizia Newton.b) Locke passa por ser o criador da "metafísica", isto é, da ciência do espírito humano. O século XVIIIcaracteriza-se por uma tendência empírica e analítica: procura-se explicar as idéias complexas a partirdas simples e as idéias a partir dos fatos.c) Sem dúvida, há que acrescentar a influência capital de Spinoza. De sua doutrina evidenciar-se-ásobretudo o naturalismo , a idéia de que o motor de todos os sêres é o desejo, "o esforço de perseverarem seu ser", a idéia de que o homem não é "um império num império", mas que é regido pelas leis detodo o universo. Deus é identificado com a natureza - Deus sive natura  - e as leis ditas eventossobrenaturais, milagres, prodígios, profecias, encontram, na trapaça de uns e na credulidade de outros,explicação suficiente e perfeitamente natural. Com as idéias de Newton, de Locke, de Spinoza, e tambémde Descartes (cuja "visão"metafísica é rejeitada, mas cujo método racionalista é bem acolhido), ospensadores do século XVIII farão suas armas: eles são, dir-se-ia hoje, filósofos engajados. Consideram-se os artífices da felicidade humana e se empenham na destruição dos preconceitos e na difusão das"luzes". (É o século das luzes, Aufklärung , isto é, do racionalismo.) Daí o tom particular desses filósofosque fazem panfletos contra o poder, contra a Igreja, e que querem criar movimentos de opinião: a ironiae a clareza do estilo adquirem eficácia particular para tais empreendimentos.

Condillac (1715-1780)

O filósofo mais notável do iluminismo francês é Estevão Bannot de Condillac  (1715-1780). Eledesenvolveu o empirismo de Locke num sentido francamente sensista, derivando da mera sensação -sem reflexão - toda a experiência. Condillac exerceu uma influência particular sobre a cultura italiana,orientando-a paa o sensismo, devido ao fato de ter ele sido, durante um decênio (1758-1767), preceptor,na corte de Parma, de Fernando de Bourbon, herdeiro daquele trono. A obra filosófica mais importante

de Condillac é o Traité des sensations , em que desenvolve a sua concepção sensista.Condillac imagina o homem como uma estátua, privada de toda sensação (tabula rasa) e que, em dadomomento, começa a ter uma sensação de olfato. A sensação odorosa (de uma rosa) torna-se memória ,quando, afastada a primeira sensação e sobrevindo outra, a primeira permanece com uma intensidadeatenuada. Uma lembrança vivaz torna-se imaginação . Tem-se, deste modo, uma série de três graus deatenção , de atividade do espírito, constituindo a sensação o primeiro grau, a memória o segundo, aimaginação o terceiro. Comparando a sensação atual com a sensação lembrada, nasce a distinção entre presente e passado ; a distinção entre atividade (na memória) e passividade (na sensação); a consciência ,o eu, que é uma coleção de sensações atuais e lembradas; o  juízo , que é comparação entre sensaçõespresentes e passadas; a reflexão , isto é, a direção voluntária de atenção sobre uma determinadasensação - idéia ou relação, juízo - em uma série de idéias e juízos; a abstração , isto é, a separação deuma idéia de outra; e a generalização , isto é, a capacidade de noções gerais. Paralelamente aodesenvolvimento teórico do espírito procede o desenvolvimento prático. Da sensação (agradável ou

dolorosa) nasce o sentimento  (de prazer ou de dor). A lembrança de sensações agradáveis e acomparação com as presentes, tornam-se desejo ; o desejo preponderante torna-se  paixão ; o desejoestável torna-se vontade .O espírito adquire, assim, mediante um só sentido, o olfato, que é o mais pobre dos sentidos, o exercíciode todas as suas faculdades. O espírito, contudo, mediante o tato, adquire consciência do mundo físico,do próprio corpo e dos demais corpos, pela resistência que o nosso esforço encontra no mundo externo.Isto não prova, entretanto, a existência, a realidade, do mundo externo, porquanto se trata sempre desensações; o mundo externo é afirmado dogmaticamente, de sorte que, filosoficamente, estamos peranteum ceticismo metafísico.

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 Montesquieu (1689-1755)

 A política de Montesquieu , exposta no Espírito das Leis (1748), surge como essencialmente racionalista.Ela se caracteriza pela busca de um justo equilíbrio entre a autoridade do poder e a liberdade do cidadão.

Para que ninguém possa abusar da autoridade, "é preciso que, pela disposição das coisas, o poderdetenha o poder". Daí a separação entre poder legislativo, poder executivo e poder judiciário.Montesquieu, porém, possui sobretudo concepção racionalista das leis que não resultam dos caprichosarbitrários do soberano, mas são "relações necessárias que derivam da natureza das coisas". Assim é quecada forma de governo determina, necessariamente, este ou aquele tipo de lei, esta ou aquela psicologiapara com os cidadãos: a democracia da cidade antiga só é viável em função da "virtude", isto é, peloespírito cívico da população. A monarquia tradicional repousa num sistema hierárquico de suseranos evassalos que só funciona a partir de uma moral da honra , ao passo que o despotismo só subsiste com amanutenção, em toda parte, da força do medo. Não vemos como na Inglaterra a liberdade políticaconduz à existência de leis particulares que não encontramos em outros regimes? As leis obedecem a umdeterminismo racional. Como diz muito bem Brehier, "a variável aqui é a forma de governo de que aslegislações políticas, civil e outras são as funções". Todavia, as "relações necessárias", de que falaMontesquieu, são muito menos a expressão de um determinismo sociológico de tipo materialista do quea afirmação de uma ligação ideal, harmônica, entre certos tipos de governo e certas leis possíveis, sendoque as melhores pertencem a este ou aquele governo, cabendo ao legislador descobri-las e aplicá-las.Montesquieu, por exemplo, nunca afirmou que o clima determina, necessariamente, estas ou aquelasinstituições. Só os maus legisladores favorecem os vícios do clima. É preciso encontrar em cada clima, emcada forma de governo, em cada circunstância em que se está colocado, quais as leis melhor adaptadas,quais aquelas que, na situação considerada, realizarão o conjunto mais justo, mais harmonioso. O "direitonatural", a justiça ideal preexistem às leis escritas, uma vez que lhes servem de guia. "A verdadeira lei da humanidade é a razão humana enquanto governa todos os povos da terra; dizer que só o que as leis positivas ordenam ou proíbem é que constitui o que há de justo e injusto, significa dizer que, antes que se tivesse traçado os círculos, todos os raios eram desiguais" .

 Voltaire (1694-1778)

 Voltaire, de certo modo, é o tipo acabado do "filósofo" do século XVIII. As idéias filosóficas de Voltaire, tirada de Locke e de Newton, não são originais. O próprio espíritovoltairiano teve seus precursores. Fontenelle (1657-1757) mostrou, antes de Voltaire, que a história seexplica mais pelo jogo das paixões humanas do que pelo decreto da Providência. E Fontenelle já colocara(Conversações sobre a pluralidade dos mundos)  a nova astronomia ao alcance dos marqueses. PierreBayle (1647-1707), protestante francês exilado em Roterdam, possuía a arte de, antes de Voltaire, oporos sistemas metafísicos entre si, a fim de ressaltar de suas contradições a necessidade da tolerância (oDicionário histórico e crítico de Bayle, 1697, é uma prodigiosa colocação de teses que testemunha suaincomparável erudição e que será possuído por todos os intelectuais do século XVIII). Em seus  Pensamentos sobre o cometa , Bayle já apresenta ardis tipicamente voltairianos para comprometer, emsua crítica aos prodígios e superstições populares, a fé nos milagres do cristianismo. Voltaire, inimigo encarniçado do cristianismo, é um deísta convicto: a organização do mundo, sua

finalidade interna, só se explicam pela existência de um Criador inteligente ("Este mundo me espanta e não posso imaginar / Que este relógio exista e não tenha relojoeiro") . Criticou Leibnitz e seu "melhor dosmundos possíveis" que, após o terremoto de Lisboa, permanece otimista; contra Pascal, "misantroposublime", ele acha que o homem, reduzido apenas aos seus recursos, pode estabelecer uma certa justiçasobre a terra e alcançar uma certa felicidade. Apesar de negar o pecado original, Voltaire, no entanto,mantém o princípio de um Deus justiceiro. É certo que esse Deus policial é sobretudo requisitado paramanter a ordem social e as vantagens econômicas aproveitadas por Voltaire e os outros grandesburgueses. O célebre verso de Voltaire "Se Deus não existisse precisaria ser inventado"  deve, paraser bem compreendido, ser citado com seu comentário: "e teu novo arrendatário / Por não crer em Deus,

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 pagar-te-á melhor?" É certo, no entanto, que Voltaire crê na ordem do mundo, numa finalidadeprovidencial. Para ele, a estrutura geográfica da terra, as espécies vivas são fixas; em nome dessefinalismo estático, ele rejeita as idéias evolucionistas que começam a se difundir. Recusa-se a crer nosfósseis de animais marinhos descobertos nas montanhas por aquela época. Admitir que as montanhasoutrora estiveram submersas, seria negar a estabilidade e a finalidade da ordem atual do mundo. (Ele

também teme que esses fósseis marinhos nas montanhas só sirvam para os cristãos provarem a históriado dilúvio!).

Blaise Pascal 

 Vida e Obras

Nascido em Clermont-Ferrand, a 19 de junho de 1623, Blaise Pascal era filho de Étienne Pascal,presidente da Corte de Apelação, e de Antoinette Bégon. Segundo sua irmã e biógrafa, Gilberte Périer,Pascal revelou desde cedo um espírito extraordinário, não só pelas respostas que dava a certas questões,mas sobretudo pelas questões que ele próprio levantava a respeito da natureza das coisas. Perdeu a mãeaos três anos de idade; era o único filho do sexo masculino. Assim, o pai apegou-se muito a ele eencarregou-se de sua instrução, nunca o enviando a colégios. Mesmo quando, em 1631, a família Pascalmudou-se para Paris, a educação de Blaise permaneceu ao encargo do pai. A irmã Gilberte escreverámais tarde: "A máxima dessa educação consistia em manter a criança acima das tarefas que lhe eramimpostas; por esse motivo só deixou que aprendesse latim aos doze anos, para que aprendesse commaior facilidade. Durante esse intervalo não o deixou ocioso, pois o ocupava com todas as coisas de queo julgava capaz. Mostrava-lhe de um modo geral o que eram as línguas; ensinou-lhe como haviam sidoreduzidas as gramáticas sob certas regras, que tais regras tinham exceções assinaladas com cuidade, eque por esses meios todas as línguas haviam podido ser comunicadas de um país para outro. Essa idéiageral esclarecia-lhe o espírito e fazia-o compreender o motivo das regras da gramática, de sorte quequando veio a aprendê-las sabia o que fazia e dedicava-se aos aspectos que lhe exigiam maiordedicação". Além das línguas, Étienne Pascal ensinava outras coisas ao filho: dava-lhe rudimentos sobre as leis danatureza e sobre as técnicas humanas. Tudo isso aguçava ainda mais a curiosidade do menino, que

queria saber a razão de todas as coisas e não se satisfazia diante de explicações incompletas ousuperficiais. Diante de uma explicação insuficiente, passava a pesquisar por conta própria até encontraruma resposta satisfatória e, quando se defrontava com um problema, não o largava até resolvê-loplenamente. Aos onze anos, suas experiências sobre os sons levaram-no a escrever um pequeno tratado,considerado muito bom para sua idade.Étienne Pascal era matemático e sua casa era muito freqüentada por geômetras. Como queria que Blaiseestudasse línguas e, sabendo como a matemática é apaixonante e absorvente, evitou por muito tempoque o filho a conhecesse, prometendo-lhe que a ensinaria quando ele já soubesse grego e latim. Essaprecaução serviu apenas para aumentar a curiosidade de Blaise, que passou a se divertir com as figurasgeométricas que o pai lhe havia mostrado. Procurava tracá-las corretamente; depois passou a buscar asproporções entre elas e, afinal, depois de propor axiomas relativos às figuras, dedicou-se a fazerdemonstrações exatas. Com isso chegou até a 32ª proposição do livro I de Euclides. Estarrecido, o paiverificou que o filho descobrira sozinho a matemática. A partir de então, Blaise recebeu os livros dos

Elementos de Euclides e pôde dedicar-se à vontade ao estudo da geometria. Os avanços foram rápidos:aos dezesseis anos escreveu Tratado Sobre as Cônicas , que, no entanto, por sua própria vontade, nãofoi impresso na época.

Entre a Ciência e a Religião

Não apenas na matemática revelou-se o gênio precoce de Pascal. Nas demais ciências realizousurpreendentes progressos e aos dezenove anos inventou a máquina aritmética, que permitia que sefizesse nenenhuma operação sem lápis nem papel, sem que se soubesse qualquer regra de aritmética,

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mas com segurança infalível. O invento de Pascal foi considerado uma verdadeira revolução, poistransformava uma máquina em ciência, ciência que reside inteiramente no espírito. A construção damáquina, foi, todavia, muito complicada e Pascal levou dois anos trabalhando com os artesãos. Essafadiga comprometeu definitivamente sua saúde, que se tornou muito frágil daí por diante. Aos 23 anos, tomou conhecimento da experiência de Torricelli (1608-1647) referente à pressão

atmostérica e realizou uma outra, denominada "a experiência do vácuo", provando que os efeitoscomumente atribuídos ao vácuo eram, na verdade, resultantes do peso do ar. Mais tarde - a partir de1652 -, passou a sse interessaar pelos problemas matemáticos relacionados aos jogos de dados. Aspesquisas que fez a esse respeito conduziram-no à formulação do cálculo das probabilidades, que eledenominou Aleae Geometria (Geometria do Acaso). O chamado Triângulo de Pascal foi um dos resultadosdessas pesquisas sobre jogos de azar: trata-se de uma tabela numérica que, entre outras propriedades,permite calcular as combinações possíveis de m objetos agrupados n a n .Um dos últimos trabalhos científicos de Pascal nesse período é o Tratado Sobre as Potências Numéricas , em que aborda a questão dos "infinitamente pequenos". A essa questão voltará mais umavez em 1658, num derradeiro estudo científico sobre a área de ciclóide, curva descrita por um ponto dacircunferência que rola sem deslizar sobre uma reta. O método aplicado por Pascal para estabelecer essaárea abriu caminho à descoberta, do cálculo integral, realizada por Leibniz (1646-1716) e Newton (1642-1727).Em Ruão, para onde se havia mudado a família Pascal, Blaise conheceu Jacques Forton, senhor de Saint- Ange-Montcard, com quem teve as primeiras discussões a respeito da Bíblia, dos dogmas e da Igrejacatólica e da teologia em geral. Blaise e outros jovens, seus amigos, logo consideraram Saint-Ange-Montcard um herético pernicioso. Começa então a fase apologética da obra de Pascal, quando ele se uneaos jansenistas do Port-Royal, sob a influência de sua irmã, Jacqueline Pascal, que havia entrado para oconvento. Segundo o relato de Gilberte, Jacqueline conseguiu persuaadir o irmão de que "a salvaçãodevia ser preferível a todas as coisas e que era um erro atentar para um bem passageiro do corpoquando se tratava do bem eterno da alma". Pascal tinha então trinta anos, quando "resolveu desistir doscompromissos sociais. Começou mudando de bairro e, para melhor romper com seus hábitos, foi morarno campo, onde tanto fez para abandonar o mundo que o mundo afinal o abandonou". Assim, depois do período em que procurou a verdade científica e a glória humana no domínio danatureza e da razão, Pascal dirigiu seu interesse para as questões da Igreja e da Revelação, acalentando

o projeto de reunir a sociedade laica e a cristã e de combater a corrupção que teria sido causada pelaevolução dos últimos séculos. Nesse período escreve o Memorial , obra mística, e os trabalhos de cunhoapologético Colóquios com o Senhor de Saci Sobre Epicteto e Montaigne e as Províncias .Na verdade, Pascal foi decisivamente marcado por um acontecimento, que determinou a mudança de suatrajetória espiritual: o "milagre do Santo Espinho". O fato é narrado pela irmã de Pascal, Gilberte Périer:"Foi por esse tempo que aprouve a Deus curar minha filha de uma fístula lacrimal que a afligia havia trêsanos e meio. Essa fístula era maligna e os maiores cirurgiões de Paris consideravam incurável; e enfimDeus permitiu que ela se curasse tocando o Santo Espinho que existe em Port-Royal, e esse milagre foiatestado por vários cirurgiões e médicos, e reconhecido pelo juízo solene da Igreja". A cura de suasobrinha e afilhada repercuriu profundamente em Pascal: "... ele ficou emocionado com o milagre porquenele Deus era gloorificado e porque ocorria num tempo em que a fé da maioria era medíocre. A alegriaque experimentou foi tão grande que se sentiu completamente penetrado por ela, e, como seu espíritoocupava-se de tudo com muita reflexão, esse milagre foi a ocasião para que nele se produzissem muitos

pensamentos importantes sobre milagres em geral". As análises sobre o milagre são fundamentais no pensamento de Pascal, pois determinam o centro detodas as suas reflexões religiosas e filosóficas: a figura de Cristo, mediador entre o finito (as criaturas) eo infinito (Deus criador). Em função de Cristo, Pascal estabelece a verdadeira relação entre os dois Testamentos: o Antigo revelaria a justiça de Deus, perante a qual todos os homens seriam culpados pela transmissão do pecado original; o Novo revelaria a misericórdia de Deus, que o leva a descer entre os homens por intermédio de seu Filho, cujo sacrifício infunde a graça santificante no coração dos homens e os redime. A idéia central de Pascal 

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sobre o problema religioso é, portanto, a de que sem Cristo o homem está no vício e na miséria; com Cristo, está na felicidade, na virtude e na luz . A figura de Cristo permite ainda a Pascal distinguir os pagãos, os judeus e os cristãos: os pagãos (isto é,os filósofos) seriam aqueles que acreditam num Deus que é si mplesmente o autor das verdadegeométricas e da ordem dos elementos; os judeus seriam os que acreditam num Deus que exerce sua

providência sobre a vida e os bens dos homens a fim de dar-lhes um seqüência de anos felizes; já oscristãos seriam os que crêem num Deus de amor e de consolação, que faz com que eles sintaminteriormente a miséria em que vivem e a infinita misericórdia de quem os criou. Somente aquele quechega ao fundo da miséria e da indignidade e que sabe do mediador (Cristo), chegando por intermédiodele a conhecer o verdadeiro Deus, pois só o mediador poderia reparar a miséria do homem.

Jansenismo e Monarquia Absoluta

Com o intuito de reformular globalmente a vida cristã, o holandês Cornélio Jansênio (1585-1638) deuinício a um movimento que abalou a Igreja caatólica durante os séculos XVII e XVIII. Descontente com oexagerado raacionalismo dos teólogos escolásticos, Jansênio - doutor em teologia pela universidade deLouvain e bispo de Ypres - uniu-se a Jean Duvergier de Hauranne, futuro abade de Saint-Cyran, quetambém pretendia o retorno so catolicismo à disciplina e à moral religiosa dos primórdios do cristianismo.Os jansenistas dedicaram-se particularmente à discussão do problema da graça, buscando nas obras deSanto Agostinho (354-430) elementos que permitissem conciliar as teses dos partidários da Reforma coma doutrina católica.Jansênio, na obra  Augustinus , declarava que a razão filosófica era "a mãe de todas as heresias".Baseando em Santo Agostinho sua doutrina do dúplice amor, sustentava que Adão, antes de pecar, eralivre; pelo pecado perdeu a liberdade e tornou-se escravo da concupiscência, que o arrastou para o mal.Em conseqüência disso, o homem não pode deixar de pecar, a não ser que intervenha a caridade (amorceleste), que o orienta infalivelmente para o bem. Submetidos à lei férrea desse dúplice amor, os sereshumanos tornaram-se escravos da Terra ou do Céu, arrastados para a condenação ou para a salvação.Desse modo, independentemente das ações que comete, o homem estaria predestinado para o céu oupara o inferno.O jansenismo expandiu-se principalmente na França, graças à atuação do abade de Saint-Cyran e de

 Antoine Arnauld (1612-1694), que, juntamente com outros intelectuais, instalaram-se em Port-Royal. Alio jansenismo assumiu forma ascética e polêmica, apresentando-se como um verdadeiro cisma, que logofoi atingido pelos anátemas do papa.Era uma época de profundas transformações políticas na França. A monarquia, em sua evolução, passavade monarquia temperada do Antigo Regime (caracterizada pela primazia da realeza sobre os senhores,graças ao apoio do Terceiro Estado, do corpo de legistas, de adminstradores e de oficiais) à monarquiaabsoluta, na qual as atribuições dos oficiais e das cortes são transferidas para o corpo de comissários dorei. Os indicadores do movimento jansenista na França - Saint-Cyran, Arnauld d'Andilly, Antoine Le Maître- pertenciam à nobreza togada e em especial a um grupo desses nobres que esperavam passar àcondição de comissários do rei. E a ideologia que vai diversificar o interior desse grupo apresenta comonúcleo a afirmação da impossibilidade radical de se realizar uma vida válida neste mundo; isso levahomens e mulheres não apenas a abandonar a vida mundana, no sentido corrente do termo, mas aabandonar toda e qualquer função social.

 Antes do início dpo movimento, os mais destacados integrantes do grupo de Port-Royal eram amigos ecompanheiros do cardeal Richelieu, embora dele discordassem quanto a alguns pontos importantes:preconizavam uma aliança com a Espanha católica e luta mortal contra os huguenotes, que estivessemdentro ou fora do país. Até 1637, a oposição entre o grupo e Richilieu não consistia em indagar se a vida cristã era ou nãocompatível com a política, mas sim qual era a política cristã. A vitória de Richilieu desencadeou a rupturacom o grupo e um de seus membros (Saint-Cyran) permaneceu, durante dez anos, na prisão do castelode Vincennes. A partir de então é que nasce o jansenismo propriamente dito: afirmação de que é impossível para o verdadeiro cristão e para o verdadeiro eclesiástico participar da vida 

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 política e social . A vanguarda jansenista era constituída por advogados e suas famílias, que seincompatibilizaram com a política de Richilieu; os simpatizantes do movimento eram, em geral, oficiais,advogados e membros das cortes supremas, desgostosos com o poder dos comissários do rei, quepassaram a exercer as antigas funções dos oficiais e das cortes. Deve-se notar que o pai de Pascal eramembro da Corte Suprema de Clermont-Ferrand.

 A oposição dos jansenistas constituía apenas uma das modalidades de oposição que se fazia, na época, àmonarquia e que contará com maior número de adeptos depois da Fronda (sublevação contra o primeiro-ministro Mazarin, que se estendeu de Paris às províncias, de 1648 a 1652). Mas jansenismo aapresentouduas vertentes: uma preconizava o retiro completo, a segunda optava pela militância religiosa. Estaúltima é que terá maior sucesso depois da Fronda e é ela que prossegue, no século XVIII, a luta contra amonarquia absoluta. Pascal participa de ambas as correntes, em momentos diversos de sua vida.

Da Militância ao Recolhimento

O jansenismo podia propor uma atitude abstencionista em relação à política porque estava constituídopor pessoas que pertenciam a um grupo social cuja base econômica dependia diretamente do Estado.Enquanto nobreza togada, os oficiais, os membros das Cortes, dependiam economicamente do Estado,embora, ideologicamente, dele se afastassem e a ele se opusessem. A situação dos jansenistas é, assim,paradoxal: exprime o descontentamento em face da monarquia absoluta, sem, contudo, poder desejarsua destruição ou sua transformação radical. Os jansenistas são trágicos porque vivem uma situaçãotrágica - e por isso afirmam tragicamente a vaidade essencial do mundo e a salvação pelo retiro e pelasolidão.O centro da trajetória espiritual de Pascal reside no seu encontro com o jansenismo, que lhe permitiuexprimir melhor sua sede de absoluto e de transcendência. A vocação religiosa de Pascal encontra no jansenismo o solo favorável para sua expansão. O "milagre do Santo Espinho" reforçou-lhe a tendênciamística e a certeza de que "há alguma coisa acima daquilo que chamamos natureza" - como escreve suairmã Gilberte. Até o encontro com o jansenismo havia na vida de Pascal uma contradição entre aprimazia atribuída, em princípio, à religião, e a realidade prática de uma vida consagrada ao mundo. Esseencontro permite a Pascal estabelecer o acordo entre a consciência e a vida, através da militânciareligiosa que procura o triunfo da verdade (ciência) na Igreja e o triunfo da fé (religião na sociedade

laica. Esse acordo, porém, não se manterá. Todavia, será ainda entre os jansenistas que Pascal chegaráà conclusão de que é importante retirar-se definitivamente do mundo e até mesmo da militânciareligiosa. Pascal transita, assim, entre as duas atitudes que já existiam entre os próprios jansenistas damilitância (Arnauld, Nicole) passa ao retiro (Barcos, Jacqueline Pascal). À fase apologética daasProncinciais segue-se então a fase dos Pensamentos .Essa mudança é determinada pela condenação do jansenismo pelo papa Alexandre VI. Pascal acabasubmetendo-se ao poder papal - e isso significa que a militância religiosa não mais pode ser efetuada.Nessa terceira fase de sua vida, Pascal volta a dedicar-se à ciência (estudos sobre a ciclóide e sobre aroleta, seguidos de discussões com vários sábios da época), mas seus escritos religiosos perdem o tomapologético para se tornar trágicos. Os Pensamentos revelam ser os escritos de um homem a quem "osilêncio eterno dos espaços infinitos apavora".Na fase final de sua vida e de sua obra, Pascal exprime uma só certeza: a de que a única verdadeira grandeza do homem reside na consciência de seus limites e de suas fraquezas . " Pascal 

descobre a tragédia", escreve Lucien Goldmann, "a incerteza radical e certa, o paradoxo, a recusa intramundana do mundo e o apelo de Deus. E é estendendo o paradoxo até o próprio Deus - que para o homem é certo e incerto, presente e ausente, esperança e risco - que Pascal pôde escrever os Pensamentos e abrir um capítulo novo na história do pensamento filosófico" .Pascal morreu em 29 de agosto de 1662, à uma hora da madrugada. Tinha 39 anos de idade.

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 V - Contemporâneo

Emmanuel Kant

   Vida e Obras

Kant nasceu, estudou, lecionou e morreu em Koenigsberg. Jamais deixou essa grande cidade da PrússiaOriental, cidade universitária e também centro comercial muito ativo para onde afluíam homens denacionalidade diversa: poloneses, ingleses, holandeses. A vida de Kant foi austera (e regular como umrelógio). Levantava-se às 5 horas da manhã, fosse inverno ou verão, deitava-se todas as noites às dezhoras e seguia o mesmo itinerário para ir de sua casa à Universidade. Duas circunstâncias fizeram-noperder a hora: a publicação do Contrato Social de Rosseau, em 1762, e a notícia da vitória francesa em Valmy, em 1792. Segundo Fichte, Kant foi "a razão pura encarnada" .Kant sofreu duas influências contraditórias: a influência do pietismo , protestantismo luterano detendência mística e pessimista (que põe em relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração),que foi a religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, e a influência do racionalismo : o deLeibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da Aufklärung (a Universidade de Koenigsberg mantinharelações com a Academia Real de Berlim, tomada pelas novas idéias). Acrescentemos a literatura deHume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a literatura de Russeau, que o sensibilizou emrelação do poder interior da consciência moral. A primeira obra importante de Kant - assim como uma das últimas, o Ensaio sobre o mal radical  -consagra-o ao problema do mal: o Ensaio para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa(1763) opõe-se ao otimismo de Leibnitz, herdeiro do otimismo dos escoláticos, assim como do da Aufklärung. O mal não é a simples "privatio bone", mas o objeto muito positivo de uma liberdademalfazeja. Após uma obra em que Kant critica as ilusões de "visionário" de Swedenborg (que pretendetudo saber sobre o além), segue-se a Dissertação de 1770, que vale a seu autor a nomeação para ocargo de professor titular (professor "ordinário", como se diz nas universidades alemãs).Nela, Kant distingue o conhecimento sensível (que abrange as instituições sensíveis) e o conhecimento

inteligível (que trata das idéias metafísicas). Em seguida, surgem as grandes obras da maturidade, ondeo criticismo kantiano é exposto. Em 1781, temos a Crítica da Razão Pura , cuja segunda edição, em 1787,explicará suas intenções "críticas" (um estudo sobre os limites do conhecimento). Os prolegômenos a toda metafísica futura  (1783) estão para a Crítica da Razão Pura assim como a Investigação sobre oentendimento de Hume está para o Tratado da Natureza Humana: uma simplificação brilhante para o usode um público mais amplo. A Crítica da Razão Pura explica essencialmente porque as metafísicas sãovoltadas ao fracasso e porque a razão humana é impotente para conhecer o fundo das coisas. A moral deKant é exposta nas obras que se seguem: o Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788). Finalmente, a Crítica do Juízo (1790) trata das noções de beleza (e da arte) ede finalidade, buscando, desse modo, uma passagem que una o mundo da natureza, submetido ànecessidade, ao mundo moral onde reina a liberdade.Kant encontrara proteção e admiração em Frederico II. Seu sucessor, Frederico-Guilherme II, menosindependente dos meios devotos, inquietou-se com a obra publicada por Kant em 1793 e que, apesar do

título, era profundamente espiritualista e anti-Aufklärung: A religião nos limites da simples razão . Ele fezcom que Kant se obrigasse a nunca mais escrever sobre religião, "como súdito fiel de Sua Majestade".Kant, por mais inimigo que fosse da restrição mental, achou que essa promessa só o obrigaria durante oreinado desse príncipe! E, após o advento de Frederico-Guilherme III, não hesitou em tratar, no Conflito das Faculdades (1798), do problema das relações entre a religião natural e a religião revelada! Dentresuas últimas obras citamos A doutrina do direito , A doutrina da virtude e seu Ensaio filosófico sobre a paz  perpétua (1795).

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 A Ciência e a Metafísica

O método de Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva. Consiste em remontar do conhecimento àscondições que o tornam eventualmente legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da físicade Newton, assim como do valor das regras morais que sua mãe e seus mestres lhe haviam ensinado.

Não estão, todos os bons espíritos, de acordo quanto à verdade das leis de Newton? Do mesmo modotodos concordam que é preciso ser justo, que a coragem vale mais do que do que a covardia, que não sedeve mentir, etc... As verdades da ciência newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias(não podem não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos). Mas, sobre quese fundam tais verdades? Em que condições são elas racionalmente justificadas? Em compensação, asverdades da metafísica são objeto de incessantes discussões. Os maiores pensadores estão emdesacordo quanto às proposições da metafísica. Por que esse fracasso?Os juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são a priori , isto é independentesdos azares da experiência, sempre particular e contigente. À primeira vista, parece evidente que esses juízos a priori são  juízos analíticos . Juízo analítico é aquele cujo predicado está contido no sujeito. Umtriângulo é uma figura de três ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo.Em compensação, os juízos sintéticos , aqueles cujo atributo enriquece o sujeito (por exemplo: esta réguaé verde), são naturalmente a posteriori ; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimentosintético a posteirori que nada tem de necessário (pois sei que a régua poderia não ser verde) nem deuniversal (pois todas as réguas não são verdes).Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que são, ao mesmotempo, sintéticos e a priori ! Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois retos. Eisum juízo sintético (o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à idéia de triângulo) que, no entanto,é a priori . De fato eu não tenho necessidade de uma constatação experimental para conhecer essapropriedade. Tomo conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um transferidor.Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também em física, eu digo que o aquecimento daágua é a causa necessária de sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, comoacreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria anulada). Como seexplica que tais juízos sintéticos e a priori sejam possíveis?Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma construção no espaço. Mas por que

a demonstração se opera tão bem em minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no soloem que Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço, assim como o tempo,é um quadro que faz parte da própria estrutura de meu espírito. O espaço e o tempo são quadros a  priori , necessários e universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da Crítica da Razão Pura , denominada Estética transcendental . Estética significa teoria da percepção, enquantotranscendental significa a priori , isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição daexperiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da experiência. São quadros a priori demeu espírito, nos quais a experiência vem se depositar. Eis por que as construções espaciais dogeômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori , necessárias e universais . Mas o caso da física émais complexo. Aqui, eu falo não só do quadro a priori  da experiência, mas, ainda, dos própriosfenômenos que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como,então, os juízos do físico podem ser a priori , necessários e universais ?É porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos os fenômenos esparsos na

experiência, são exigências a priori  do nosso espírito. Os fenômenos, eles próprios, são dados a  posteriori , mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de unificação dosfenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio de causas e efeitos. Essas categorias sãonecessárias e universais. O próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença nacausalidade, não emprega necessariamente a categoria a priori  de causa na crítica que nos oferece?"Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais adiversidade da intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim sendo, a experiência nos fornece amatéria de nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seuquadro espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental ) e, por outro, imprime-lhe

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ordem e coerência por intermédio de suas categorias (o que Kant mostra na Analítica transcendental ). Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole,receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas estruturas a priori , constrói a ordem douniverso. Tudo o que nos aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito humano. Éa isto que Kant chama de sua revolução copernicana . Não é o Sol, dissera Copérnico, que gira em torno

da Terra, mas é esta que gira em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objetoexterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objeto doseu saber.Na terceira parte de sua Crítica da Razão Pura , na dialética transcendental , Kant se interroga sobre ovalor do conhecimento metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento,limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se limita a por em ordem,graças às categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.No entanto, diz Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das coisas. Só conhecemos o mundorefratado através dos quadros subjetivos do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não ascoisas em si ou noumenos . As únicas intuições de que dispomos são as intuições sensíveis. Sem ascategorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuiçõessensíveis concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para unificar. Pretender comoPlatão, Descartes ou Spinoza que a razão humana tem intuições fora e acima do mundo sensível, épassar por "visionário" e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende os ares decuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão seaventurou nas asas das idéias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar de todosos seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não tinha ponto de apoio em que pudesseaplicar suas forças".Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação própria é buscarunificar incessantemente, mesmo além de toda experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância" porque supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e o mito deum Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a unificação total do que se passaneste mundo... Mas privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-senas antinomias , demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese quanto a antítese (por exemplo:o universo tem um começo? Sim pois o infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de

partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do começo do universo?). Enquanto ocientista faz um uso legítimo da causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados naexperiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade na medida em que se afastadeliberadamente da experiência concreta (quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-meda experiência, pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da causalidade, convite àdescoberta, não deve servir de permissão para inventar.

Emmanuel Kant 

O Alcance da Crítica Kantiana(Prefácio da 2.ª edição da Crítica da Razão Pura)

Um rápido olhar lançado nesta obra levará a pensar, de início, que sua utilidade é inteiramente negativa

ou que ela só serve para nos impedir de conduzir a razão especulativa além dos limites da experiência, eé isso que lhe dá sua primeira utilidade. Mas logo se perceberá também que sua utilidade é positiva, pelofato mesmo de os princípios sobre os quais se apóia a razão especulativa, para se aventurar fora de seuslimites, na realidade terem por conseqüência inevitável não a extensão, mas, olhando mais de perto, arestrição do uso de nossa razão. É que, com efeito, esses princípios ameaçam de tudo enfeixar noslimites da sensibilidade, da qual propriamente dependem, e assim reduzir a nada o uso puro (prático) darazão. Ora, uma crítica que limita a razão em seu uso especulativo é, por esse lado, bem negativa; mas,ao suprimir com um mesmo golpe o obstáculo que restringe seu uso prático ou que até ameaça anulá-la,essa crítica, de fato, tem uma utilidade positiva da mais alta importância. É o que se reconhecerá logo

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que se esteja convencido de que a razão pura tem um uso prático absolutamente necessário (querosignificar o uso moral), no qual ela se estende inevitavelmente além dos limites da sensibilidade e noqual, sem para isso ter necessidade do auxílio da razão especulativa, a razão prática, porém, quer estarassegurada contra toda oposição de sua parte, a fim de não cair em contradição consigo mesma. Negarque a crítica, ao prestar-nos esse serviço, tenha uma utilidade positiva, porque sua função consiste

unicamente em fechar as portas à violência que os cidadãos poderiam temer uns aos outros, a fim deque cada um possa realizar seus negócios tranqüilamente e em segurança. Que o espaço e o tempo sósejam formas da intuição sensível e, conseqüentemente, das condições da existência das coisas comofenômenos; que, além disso, não tenhamos conceitos do entendimento e, portanto, quaisquer elementospara o conhecimento das coisas, sem que uma intuição correspondente nos seja dada, e que, porconseguinte, não possamos conhecer nenhum objeto como coisa em si, mas apenas como objeto daintuição sensível, isto é, como fenômeno, é o que será provado na parte analítica e daí resultará que todoconhecimento especulativo possível da razão se reduz unicamente aos objetos da experiência. Mas, o queé preciso marcar bem, surge aí uma reserva: é que, se não podemos conhecer esses objetos como coisasem si, podemos ao menos pensá-los como tais.Se assim não fora, chegaríamos à absurda proposição de que existem fenômenos ou aparências sem quehaja nada que apareça. Quando se supõe que nossa crítica não tenha feito a distinção que ela estabelecenecessariamente entre as coisas como objetos de experiência e essas coisas como objetos em si, serápreciso então que se estenda a todas as coisas em geral, consideradas como causas eficientes, oprincípio da causalidade e, conseqüentemente, o mecanismo natural que ele determina. Por conseguinte,eu não poderia dizer do próprio ser, por exemplo, da alma humana, que sua vontade é livre e que,entretanto, está submetida à necessidade física, isto é, que não é livre, sem cair em evidentecontradição, É que, nas duas proposições, tomei a alma no mesmo sentido, isto é, como uma coisa emgeral (como objeto em si) e, sem as advertências da crítica, não poderia encará-la de outro modo.Mas se a crítica não se enganou ao ensinar-nos a considerar o objeto em dois sentidos diferentes, comofenômeno e como coisa em si; se a dedução dos conceitos do entendimento é exata e se,conseqüentemente, o princípio da causalidade só se aplica às coisas no primeiro sentido, ao passo que nosegundo sentido essas mesmas coisas não mais lhe estejam submetidas, a mesma vontade pode serconcebida, sem contradição, de um lado, como estando necessariamente submetida, do ponto de vistafenomenal (em seus atos visíveis), à lei física, conseqüentemente, como não sendo livre e, de outro,

enquanto faz parte das coisas em si, como escapando a essa lei, por conseguinte, como livre. Ora,embora sob esse último ponto de vista eu não possa conhecer minha alma por intermédio da razãoespeculativa (e ainda menos pela observação empírica) e, conseqüentemente, eu também possaconhecer a liberdade como a propriedade de um ser ao qual atribuo efeitos no mundo sensível - postoque seria necessário que eu a conhecesse de uma maneira determinada em sua existência, mas não notempo (o que é impossível, pois aqui nenhuma intuição pode ser submetida ao meu conceito) - eu posso,no entanto, pensar a liberdade, isto é, que sua idéia não contém a menor contradição, desde que admitanossa distinção crítica dos dois modos de representação (o modo sensível e o intelectual), assim como arestrição que daí deriva relativamente aos conceitos puros do entendimento e, por conseguinte, aosprincípios decorrentes desses conceitos. Admitamos agora que a moral supõe necessariamente aliberdade (no sentido mais estrito) como uma propriedade de nossa vontade, colocando a priori comodados da razão princípios práticos que dela se originam e que, sem essa suposição, seriamabsolutamente impossíveis; mas admitamos também que a razão especulativa tenha provado que a

liberdade não fosse de modo algum concebida; será preciso então que necessariamente a suposiçãomoral dê lugar àquela cujo contrário implica em evidente contradição, isto é, que a liberdade, e com ela amoralidade (cujo contrário não implica em contradição, quando não se supõe a liberdade previamente),desaparecem no mecanismo da natureza. Todavia, como é suficiente que, do ponto de vista da moral, aliberdade não seja contraditória e que, conseqüentemente, ela possa ser concebida, e como, desde quenão se coloque como obstáculo ao mecanismo natural da própria ação (tomados num outro sentido), nãohá necessidade de se lhe ter um conhecimento mais amplo, a moral pode manter sua posição enquanto afísica conserva a sua. Ora, é o que não teríamos descoberto se a crítica não nos houvesse previamenteinstruído sobre nossa inevitável ignorância relativamente às coisas em si e se ela não houvesse limitado

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aos simples fenômenos todo nosso conhecimento teórico. Desse modo, pode-se mostrar essa mesmautilidade dos princípios críticos da razão pura relativamente à idéia de Deus, a liberdade e a imoratalidadesegundo a necessidade que minha razão tem em seu uso prático necessário, sem rechaçar ao mesmotempo as pretensões da razão especulativa em suas visões transcendentes; pois, para chegar aí, lhe énecessário empregar princípios que na realidade só se aplicam a objetos da experiência sensível e que

sempre transformam em fenômenos aquilo a que se aplicam, mesmo que esse algo não possa ser umobjeto de experiência, e desse modo declaram impossível toda extensão prática da razão pura. Tiveentão que suprimir o saber para substituí-lo pela crença.

Crítica ao Argumento Ontológico (Crítica da Razão Pura, Dialética Transcendental)

Cem táleres reais não contêm mais do que cem táleres possíveis. Pois, como os táleres possíveisexprimem o conceito e os reais o objeto e sua posição em si mesma, meu conceito não exprimiria oobjeto inteiramente e conseqüentemente não estaria de acordo com ele, caso o objeto contivesse maisdo que o conceito. Mas sou mais rico com cem táleres reais do que com sua idéia (isto é, se eles sãosimplesmente possíveis). De fato, o objeto na realidade não está simplesmente contido de uma maneiraanalítica em meu conceito, mas ele enriqueceu sinteticamente meu conceito (que é uma determinação domeu estado), sem que os cem táleres concebidos sejam aumentados por este ser que está situado forado meu conceito.Quando, então, eu concebo uma coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam ospredicados por meio dos quais eu a concebo (mesmo que a determine completamente), e só por isso euacrescente que essa coisa existe, eu não estarei acrescentando absolutamente nada à coisa. Se assimfora, não existiria mais a mesma coisa, mas algo além do que pensei no conceito; e eu não mais poderiadizer que é exatamente o objeto do meu conceito que existe. Se numa coisa eu concebo toda realidade,exceto uma, e pelo fato de dizer que essa coisa defeituosa existe, a realidade que lhe falta não lhe seráacrescentada por isto; mas ela existe precisamente tão defeituosa quanto a concebo, pois, de outromodo, existiria outra coisa diferente do que concebi. Se, por conseguinte, eu concebo um ser como asuprema realidade (sem falhas), sempre resta saber se esse ser existe ou não. De fato, embora em meuconceito não falte nada do conteúdo real possível de uma coisa em geral, ainda falta, porém, alguma

coisa com relação a todo meu estado intelectual, a saber, que o conhecimento de um objeto seja possívela posteriori . E aqui se mostra a causa da dificuldade que reina nesse ponto. Se se tratasse de um objetodos sentidos, eu não poderia confundir a existência da coisa com seu simples conceito. De fato, oconceito só me faz conceber o objeto como concordante com as condições universais de umconhecimento empírico possível em geral, enquanto a existência me faz concebê-lo como compreendidono contexto de toda experiência; e, se o conceito do objeto não é de modo algum aumentado para sualigação com o conteúdo de toda experiência, nosso pensamento dele recebe em acréscimo maispercepção possível. Se, ao contrário, quisermos pensar a existência unicamente por intermédio da puracategoria, não será de espantar que não possamos indicar nenhum critério que sirva para distingui-la dasimples possibilidade.Qualquer que seja a natureza e a extensão do conteúdo de nosso conceito de um objeto, somosobrigados a sair desse conceito para lhe atribuir a existência. Com relação a objetos sensíveis, apassagem se faz por meio do encadeamento que liga o conceito a alguma de minhas percepções,

segundo as leis empíricas; mas, para os objetos do pensamento puro, não existe nenhum meio dereconhecer sua existência, já que seria preciso reconhecê-la inteiramente a priori ; nossa consciência detoda existência (quer ela resulte imediatamente da percepção, quer resulte de raciocínios que unemalguma coisa à percepção) pertence inteiramente à unidade da experiência, e se uma existência foradesse campo não deve ser tida por absolutamente impossível, ela também não deixa de ser umasuposição que nada pode justificar.O conceito de um ser supremo é uma idéia muito útil com relação a muitas coisas, mas, precisamenteporque é apenas uma idéia, ele é inteiramente incapaz de estender a si só nosso conhecimento comrelação ao que existe. Nem pode mesmo nos instruir o suficiente com relação à possibilidade. É certo que

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o caráter analítico da possibilidade - que consiste no fato de que simples posições (realidades) nãoengendram contradição - não lhe pode ser contestado; mas, como a ligação de todas as propriedadesreais numa coisa é uma síntese cuja possibilidade não podemos julgar a priori , posto que as realidadesnão nos são dadas especificamente, e, mesmo que isso acontecesse, que não resultaria daí nenhum juízo, o caráter da possibilidade dos conhecimentos sintéticos que deve ser sempre buscado na

experiência, à qual o objeto de uma idéia não pode pertencer, faz-se muito necessário que o ilustreLeibnitz tenha feito aquilo de que se orgulhava, isto é, chegar a conhecer a priori a possibilidade de umser ideal tão elevado.Essa prova ontológica (cartesiana) tão glorificada, que pretende demonstrar por meio de conceitos aexistência de um ser supremo, perde, então, todo seu valor e não nos tornaremos mais ricos emconhecimentos com simples idéias quanto um comerciante não se tornaria em dinheiro se, com opensamento de aumentar sua fortuna, ele acrescentasse alguns zeros em seu livro de caixa.

O Rigorismo de Kant (Fundamento da Metafísica dos Costumes)

Conservar a própria vida é um dever e, além disso, é uma coisa para a qual todos possuem umainclinação imediata. Ora, é por isso que a solicitude, freqüentemente inquieta, com que a maior parte doshomens se dedica a isso, não é menos desprovida de todo valor intrínseco e é por isso que sua máximanão possui nenhum valor moral. É certo que eles conservam sua vida de acordo com o dever, mas nãopor dever. Em compensação, quando contrariedades ou uma aflição sem esperança tenha roubado deum homem todo gosto de viver e se o infeliz, com ânimo forte, fica muito mais indignado com sua sortedo que desencorajado ou abatido, se deseja a morte e, no entanto, conserva a vida sem amá-la, não porinclinação ou temor, mas por dever, então sua máxima possui um valor moral.Ser bom, quando se pode, é um dever e, ademais, existem certas almas tão capacitadas para a simpatiaque, mesmo sem qualquer motivo de vaidade ou de interesse, elas experimentam uma satisfação íntimaem irradiar alegria em torno de si e vivem o contentamento de outrem, na medida em que ele é obrasua. Mas eu acho que no caso de uma ação desse tipo, por mais de acordo com o dever e mais amávelque seja, não possui porém verdadeiro valor moral, já que ela se coloca no mesmo plano de outrasinclinações, a ambição, por exemplo, que, quando coincide com o que realmente está de acordo com o

interesse público e o dever, com o que, por conseguinte, é honorável, merece louvor e encorajamento,mas não respeito, pois falta a essa máxima o valor moral, isto é, o fato de que essas ações sejam feitasnão por inclinação, mas por dever. Suponha-se então que a alma daquele filantropo esteja ensombradapor um desses desgostos pessoais que sufocam toda simpatia pela sorte de outrem e que ele sempreainda tenha o poder de fazer bem a outros infelizes, mas que não seja tocado pelo infortúnio dos outros,por estar demasiado absorvido pelo seu próprio, e que nessas condições em que nenhuma inclinação nãomais o leve a isso, ele porém se arranque dessa insensibilidade mortal e aja, livre da influência dequalquer inclinação, unicamente por dever; então, só então sua ação terá verdadeiro valor moral. E digomais: se a natureza tivesse colocado no coração deste ou daquele um pouco de simpatia, se aquelehomem (honesto de resto) fosse frio por temperamento e indiferente aos sofrimentos de outrem, talvezporque, tendo para com seus próprios sofrimentos um dom especial de resistência e de paciente energia,ele suponha que também nos outros, ou deles exija as mesmas qualidades; se a natureza não tivesseformado esse homem particularmente o que na verdade não seria sua obra pior) para fazer dele um

filantropo, não encontraria ele, então, em si próprio o meio de se dar um valor muito superior ao quepossa ter um temperamento naturalmente bonsoso? Certamente! E á aqui precisamente que surge ovalor do caráter, valor moral e incomparavelmente o mais elevado, que provém daquele que faz o bemnão por inclinação, mas por dever. Assegurar a própria felicidade é um dever (indireto, ao menos); pois, o fato de não estar contente com aprópria situação, com o viver pressionado por inúmeros cuidados em meio de necessidades nãosatisfeitas, poderia facilmente tornar-se uma grande tentação de violar seus deveres. Mas, aqui ainda,sem pensar no dever, todos os homens já têm, por eles próprios, a inclinação para a felicidade maisduradoura e mais íntima, pois, precisamente nessa idéia de felicidade, as inclinações se unificam numa

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totalidade. Ocorre apenas que o preceito que ordena o tornar-se feliz muitas vezes assume talcaráter, que traz grande prejuízo a algumas inclinações, e, contudo, o homem não pode fazer umconceito definido e certo dessa soma de satisfações a ser dada a todas a que chama de felicidade; dessemodo, não há por que se surpreender que uma inclinação única, determinada quanto ao que promete equanto à época em que pode ser satisfeita, possa levar vantagem sobre uma idéia flutuante, que, por

exemplo, uma pessoa que sofre de gota possa gostar mais de saborear o que é de seu gosto e sofra emseguida, pois, segundo seu cálculo, ao menos nessa circunstância ela não se privou, por causa da talvezenganosa esperança de uma felicidade a ser encontrada na saúde, do gozo do momento presente. Mas,nesse caso igualmente, se atendência universal não determinasse sua vontade, se a saúde, para ela aomenos, não fosse coisa tão importante de fazer entrar em seus cálculos, o que restaria ainda aqui, comoem todos os outros casos, seria uma lei, uma lei que ordena trabalhar para a própria felicidade não porinclinação, mas por dever, e é por isto somente que sua conduta possui um verdadeiro valor moral. Assim, devem ser certa e igualmente compreendidas as passagens da Escritura em que é ordenado amarao próximo, ainda que inimigo. Pois, o amor como inclinação não pode ser ordenado; mas fazer o bemprecisamente por dever, na medida em que não há inclinação que nos conduza a isso, e mesmo que umaaversão natural e invencível a isto se oponha, eis aí um amor prático e não patológico, que reside navontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios da ação e não numa compaixão debilitante;ora, esse amor é o único que pode ser ordenado.

Hegel

O Idealismo Lógico: Hegel

Com o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo fenomênico kantiano alcança logicamente o seu vérticemetafísico. Hegel fica fiel ao historicismo romântico, concebendo a realidade como vir-a-ser,desenvolvimento. Este vir-a-ser, porém, é racionalizado por Hegel, elevado a processo dialético; e esteprocesso dialético não é um movimento a quo adi quod , e sim um processo circular, emanentista.Jorge Guilherme Frederico Hegel  nasceu em Stutgart, em 1770. Estudou teologia e filosofia.Interessou-se pelos problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo;em seguida se dedicou ao historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de Schelling,

afastando-se deles em seguida até combatê-los quando professor nas universidades de Jena, Heidelberge Berlim. Nessa última universidade lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo vastainfluência. Faleceu em 1831 vítima de cólera. Renunciara, entrementes, aos ideais revolucionários ecríticos, para favorecer as tendências absolutistas e intransigentes do estado prussiano.Em seus últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo; alguns o ridicularizaram (apelidando-o de Absolutus von Hegelingen); corre o boato de que ele duvida da imortalidade da alma. Na realidade, Hegelera ao mesmo tempo suficientemente prudente e sufucientemente hermético para que se tornasse muitodifícil fazer-lhe acusações precisas dessa ordem! O poeta Heinrich Heine, que seguiu seus cursos de 1821a 1823, conta, no entanto, que ele, um dia, respondeu bruscamente a um estudante que lhe falava doParaíso: "O senhor então precisa de uma gorjeta porque cuidou de sua mãe enferma e porque não envenenou ninguém!" Em todo caso, o futuro mostraria amplamente que a filosofia do pensador oficialda monarquia escondia um grande poder explosivo!Como a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia da inteligibilidade total, da imanência absoluta. A

razão aqui não é apenas, como em Kant, o entendimento humano, o conjunto dos princípios e das regrassegundo as quais pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade profunda das coisas, a essência dopróprio Ser. Ela é não só um modo de pensar as coisas, mas o próprio modo de ser das coisas: "O racional é real e o real é racional" . Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo idealista porexcelência, uma vez que, para ele, o fundo do Ser (longe de ser uma coisa em si inacessível) é, emdefinitivo, Idéia, Espírito. Sua filosofia representa, ao mesmo tempo, com relação à crítica kantiana doconhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua totalidade que é significativo e cadaacontecimento particular no mundo só tem sentido finalmente em função do Absoluto do qual não é maisdo que um aspecto ou um momento.

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Hegel porém se distingue de Spinoza e surge para nós como um filósofo essencialmente moderno,pois, para ele, o mundo que manifesta a Idéia não é uma natureza semelhante a si mesma em todos ostempos, que dizia que a leitura dos jornais era "sua prece matinal cotidiana", como todos os seuscontemporâneos, muito meditou sobre a Revolução Francesa, e esta lhe mostra que as estruturas sociais,assim como os pensamentos dos homens, podem ser modificadas, subvertidas no decurso da história. O

que há de original em seu idealismo é que, para Hegel, a idéia se manifesta como processo histórico: "A história universal nada mais é do que a manifestação da razão" . As principais obras de Hegel são:  A Fenomenologia do Espírito ;  A Lógica ;  A Enciclopédia das Ciências Filosóficas ;  A Filosofia do Direito . Foi um gênio poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a suacapacidade sistemática, tanto assim que se pode considerar o Aristóteles e o Tomás de Aquino dopensamento contemporâneo. No entanto, freqüentemente deforma os fatos para enquadrá-los noesquema lógico do seu sistema racionalista-dialético, bem como altera este por interesses práticos epolíticos.É preciso compreender também que a história é um progresso. O vir-a-ser de muitas peripécias não ésenão a história do Espírito universal que se desenvolve e se realiza por etapas sucessivas para atingir,no final, a plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O absoluto, diz Hegel, só no final será o que ele é na realidade" . O panteísmo de Spinoza identificava Deus com a natureza: Deus sive natura . Opanteísmo hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o que é - ao menos só é parcial e muitoprovisoriamente o que atualmente é - Deus é o que se realizará na História. (Neste sentido, ainda há algode hegeliano na filosofia de Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para Hegel, é uma odisséiado Espírito Universal", em suma, se nos permitem o jogo de palavras, uma "teodisséia". Consideremos ahistória da terra. De início só existem minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais. Não temos aimpressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomossurgem no Universo? O Espírito, de início adormecido, dissimulado e como que estranho a si mesmo,"alienado" no universo, surge cada vez mais manifestamente como ordem, como liberdade, logo comoconsciência. Esse progresso do Espírito continua e se concluirá através da história dos homens. Cadapovo cada civilização, de certo modo, tem por missão realizar uma etapa desse progresso do Espírito. OEspírito humano é de início uma consciência confusa, um espírito puramente subjetivo, é a sensaçãoimediata. Depois, ele consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de civilizações, de instituiçõesorganizadas. Tal é o espírito objetivo que se realiza naquilo que Hegel chama de "o mundo da cultura".

Enfim, o Espírito se descobre mais claramente na consciência artística e na consciência religiosa parafinalmente apreender-se na Filosofia (notadamente na filosofia de Hegel, que pretende totalizar sob suaalçada todas as outras filosofias) como Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o saber de todos ossaberes: a sabedoria suprema que, no final, totaliza todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, dizHegel, que o pássaro de Minerva levanta vôo). Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa filosofiapuramente imanentista, Deus só se realiza na história. Em outras palavras, a forma de civilização quetriunfa a cada etapa da história é aquela que, naquele momento, melhor exprime o Espírito. Após tersaudado em Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no estado prussiano de seu tempo aexpressão mais perfeita do Espírito Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles que acham que a forçanão "oprime" o direito (essa fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, nada significa), mas que oexprime, que aquele que é vitorioso na História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e que avirtude, como ele diz, "exprime o curso do mundo".Segundo as normas da lógica clássica, essa identificação da Razão com o Devir histórico é absolutamente

paradoxal. De fato, a lógica clássica considera que uma proposição fica demonstrada quando é reduzida,identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai do idêntico ao idêntico. A história, ao contrário, éo domínio do mutável. O acontecimento de hoje é diferente do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a razãoà história, por conseguinte, seria mostrar que a mudança é aparente, que no fundo tudo permaneceidêntico. Aplicar a razão à história seria negar a história, recusar o tempo. Ora, contrariando tudo isso, oracionalismo de Hegel coloca o devir, a história, em primeiro plano. Como isso é possível?É possível porque Hegel concebe um processo racional original - o processo dialético - no qual acontradição não mais é o que deve ser evitado a qualquer preço, mas, ao contrário, se transforma nopróprio motor do pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da história, já que esta última não é

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senão o Pensamento que se realiza. Repudiando o princípio da contradição de Aristóteles e deLeibnitz, em virtude do qual uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe acontradição no próprio núcleo do pensamento e das coisas simultaneamente. O pensamento não é maisestático, ele procede por meio de contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à sintese , como numdiálogo em que a verdade surge a partir da discussão e das contradições. Uma proposição (tese) não

pode se pôr sem se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que nãoela mesma ("alienada"). A primeira proposição encontrar-se-á finalmente transformada e enriquecidanuma nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação" (síntese).

 A Dialética

 A dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao mesmo tempo, repetimo-la, "amarcha e o ritmo das próprias coisas". Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser seenriquece dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais abstrata e a mais real,a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção em que o velho Parmênides se fechava: o ser é, nadamais podemos dizer), transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse conceitoenvolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais pobre. Ser, sem qualquer qualidade oudeterminação - é, em última análise, não ser absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples,equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-a-ser (posto quevir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí sereencontram fundidos, reconciliados. Vejamos um exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de partida da reflexãode Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e oescravo. Dois homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate,mostrando assim que é um homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, évencido. O vencedor não mata o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunhae espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele que, ao pé da letra, foi conservado.a) O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não cultivaseu jardim, não faz cozer seus alimentos, não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhornão conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo.

O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, aopasso que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.b) Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a posição do senhor abriga umacontradição interna: o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhorsó o é porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e também porque vive do trabalhodesse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie de escravo de seu escravo.c) De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o escravo de seu senhor (foi pormedo de morrer que se submeteu), vai encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situaçãoinfeliz em que só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a libertar-sede tudo o que o oprime, desenvolvendo uma consciência pessoal. Mas, sobretudo, o escravoincessantemente ocupado com o trabalho, aprende a vencer a natureza ao utilizar as leis da matéria erecupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza) por intermédio de seu trabalho. Por umaconversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo,

transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu senhor a verdadeira liberdade que éo domínio de si mesmo. Assim, a liberdade estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre odomínio e a servidão.Hegel parte, fundamentalmente, da síntese a priori  de Kant, em que o espírito é constituídosubstancialmente como sendo o construtor da realidade e toda a sua atividade é reduzida ao âmbito daexperiência, porquanto é da íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum, transcendera experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente impelido a um monismo imanentista, que devianecessariamente tornar-se panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na realidade única daexperiência as características divinas do antigo Deus transcendente, destruído por Kant. Hegel devia,

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portanto, chegar ao panteísmo imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismoracionalista e otimista, declarará nada mais ser que ateísmo imanentista.No entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da realidade absoluta, divina, Hegel seachava obrigado a mostrar a racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o mundoda experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado mal metafísico, físico e moral, não

podia, por certo, ser concebida mediante o ser (da filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e excluindoo seu oposto, e onde a limitação, a negação, o mal, não podem, de modo nenhum, gerar naturalmentevalores positivos de bem verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência deviaser concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de Heráclito), onde um elemento gera o seu oposto, e anegação e o mal são condições de positividade e de bem. Apresentava-se, portanto, a necessidade da invenção de uma nova lógica, para poder racionalizar oelemento potencial e negativo da experiência, isto é, tudo que há no mundo de arracional e de irracional.E por isso Hegel inventou a dialética dos opostos , cuja característica fundamental é a negação, em que apositividade se realiza através da negatividade, do ritmo famoso de tese , antítese e síntese . Essa dialéticados opostos resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Isto é, todoelemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo absolutamente (tese) e não esgotando o Absolutode que é um momento, demanda o seu oposto (antítese), que nega e o qual integra, em uma realidademais rica (síntese), para daqui começar de novo o processo dialético. A nova lógica hegeliana difere daantiga, não somente pela negação do princípio de identidade e de contradição - como eram concebidosna lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica é considerada como sendo a própria lei do ser.Quer dizer, coincide com a ontologia, em que o próprio objeto já não é mais o ser, mas o devir absoluto.Dispensa-se acrescentar como, a experiência sendo a realidade absoluta, e sendo também vir-a-ser, ahistória em geral se valoriza na filosofia; igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto ,isto é, o particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito abstrato , que representao elemento universal e comum dos particulares. Estamos, logo, perante um  panlogismo , não estático,como o de Spinoza, e sim dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o monismo, que Hegelconsiderava panteísmo, é levado às suas extremas conseqüências metafísicas imanentistas.Podemos resumir assim:1.° - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui o seu oposto (princípio deidentidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente

mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto;2.° - A lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato , enquanto apreende o ser imutável,realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito éuniversal concreto , isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo éessencialmente conexo com tudo;3.° - A lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, dahistória, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com ahistória, enquanto o ser é vir-a-ser;4.° - A lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser,não o esgota totalmente - como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincidecom a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio "logos" divino, que noespírito humano adquire plena consciência de si mesmo. Visto que a realidade é o vir-a-ser dialético da Idéia, a autoconsciência racional de Deus, Hegel julgou

dever deduzir a priori o desenvolvimento lógico da idéia, e demonstrar a necessidade racional da histórianatural e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e síntese, não só nos aspectos gerais,nos momentos essenciais, mas em toda particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveriatransformar-se rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de pensamento idealista eimanentista.Não é mister dizer que essa história dialética nada mais é que a história empírica, arbitrariamentepotenciada segundo a não menos arbitrária lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devirempírico do desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente, dinamicamente. Tal históriadialética deveria, enfim, terminar com o advento da filosofia hegeliana, em que a Idéia teria acabado a

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sua odisséia, adquirindo consciência de si mesma, isto é, da sua divindade, no espírito humano,como absoluto. Mas, desse modo, viria a ser negada a própria essência da filosofia hegeliana, para a qualo ser, isto é, o pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser dialético.

Textos de Hegel 

Dialética Hegeliana: A Contradição é o Motor do Pensamento

Para o senso comum, a oposição entre verdadeiro e falso é algo de fixo; habitualmente ele espera que seaprove ou se rejeite em bloco um sistema filosófico existente; e, numa explicação sobre tal sistema, elesó admite uma ou outra dessas atitudes. Não concebe a diferença entre os sistemas filosóficos como odesenvolvimento progressivo da verdade; para ele, diversidade significa unicamente contradição. O brotodesaparece na eclosão da flor e poder-se-ia dizer que aquele é refutado por esta; do mesmo modo, ofruto declara que a flor é uma falsa existência da planta e a substitui enquanto verdade da planta.Essas formas não só se distinguem, mas se suplantam como incompatíveis. No entanto, sua naturezacambiante faz delas momentos da unidade orgânica em que não só não estão em conflito mas ondetanto um quanto outro é necessário; e essa igual necessidade faz a vida do conjunto. Mas comumentenão é assim que se compreende a contradição entre sistemas filosóficos; e, ademais, o espírito queapreende a contradição habitualmente não sabe liberá-la ou conservá-la livre de sua unilateralidade, ereconhecer na forma, do que parece se combater e se contradizer, momentos mutuamente necessários.

O Absoluto Por Fim Não é Senão Aquilo Que Ele é na Realidade

 A vida e o reconhecimento divinos podem, então, se se quiser, ser definidos como um jogo de amor paraconsigo mesmo; essa idéia cai no nível da edificação e mesmo da insipidez, se lhe retirarmos a seriedade,a dor, a paciência e o trabalho do negativo. Essa vida, em-si, é a serena igualdade e a unidade consigoque nada têm a fazer com o ser-outro e a alienação, nem com a superação dessa alienação. Mas esseem-si é universalidade abstrata caso negligenciemos sua natureza de ser para-si e, por isso, o movimentoespontâneo da forma. É inexato crer, ao declarar a forma como igual à essência, que o conhecimentopossa se satisfazer com o em-si ou a intuição absoluta da primeira dispensam o acabamento da primeira

e o desenvolvimento da segunda. Precisamente porque a forma é tão essencial à essência quanto aessência a si própria, não se deve apreendê-la ou exprimi-la apenas como essência, isto é, comosubstância imediata ou pura intuição de si do divino, mas também como forma e em toda riqueza daforma desenvolvida. Só então é que ela é concebida e exprimida como atual. A verdade é o todo. Mas otodo não é senão a essência que se conclui por seu desenvolvimento. Há que dizer do absoluto que ele éessencialmente resultado, que ele não é senão por fim o que ele é em verdade, e é nisto precisamenteque consiste sua natureza de ser sujeito atual ou Devir de si.

O Senhor e o Escravo

Buscar a morte do outro implica em arriscar a própria vida. Por conseguinte, a luta entre duasconsciências de si é determinada do seguinte modo: elas se experimentam a elas próprias e entre si pormeio de uma luta de morte. Não podem evitar essa luta, pois são forçadas a elevar ao nível da verdade

sua certeza de si, sua certeza de existir para si; cada uma deve experimentar essa certeza em si mesmae na outra. Só arriscando a própria vida é que se conquista a liberdade. Só assim é que alguém seassegura de que a natureza da consciência de si não é o ser puro, não é a forma imediata de suamanifestação, não é sua imersão no oceano da vida. Essa luta prova que nada existe na consciência quenão seja perecível para ela, prova que ela, portanto, não é senão puro ser para-si. O indivíduo que nãoarriscou sua vida pode certametne ser reconhecido como pessoa, mas não atingiu a verdade dessereconhecimento como consciência de si independente.(¹) O senhor é a consciência que é por si mesma, mas essa consciência, aqui, está além de seu puroconceito: ela é consciência para-si que é mediada consigo mesma por uma outra consciência(²),

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notadamente por uma consciência cuja natureza implica no fato de ela estar unida a um serindependente ou às coisas em geral. O senhor está em relação com esses dois momentos: com a coisaenquanto tal, objeto do apetite, e com a consciência cujo caráter essencial é a coisa externa. Uma vezque o senhor (a), enquanto conceito da consciência de si, é relação imediata do ser para-si, mas (b) ésimultaneamente mediação, em outras palavras, um ser para-si que só o é por meio do outro, ele se

relaciona (a) imediatamente com os dois e (b) imediatamente com cada um por intermédio do outro. Osenhor tem, com o escravo, uma relação mediata em virtude da existência independente, pois éprecisamente a ela que o escravo está preso, ela é sua cadeia e da qual não pode se desprender na luta,o que o levou a mostrar-se dependente, posto que possuía sua independência numa coisa externa.Quanto ao senhor, ele é a potência que domina esse ser externo, pois provou na luta que o consideracomo puramente negativo; uma vez que ele domina esse ser e que esse ser domina o escravo, o senhortambém o domina. Desse modo o senhor se relaciona com a coisa por mediação do escravo; este último,enquanto consciência de si, relaciona-se negativamente com a coisa e a ultrapassa; mas ao mesmotempo a coisa é para ele independente e o escravo não pode, por meio de sua negação, chegar asuprimi-la; ele só faz trabalhar.Em compensação, para o senhor, graças a essa mediação, a relação imediata torna-se a pura negação dacoisa ou o seu gozo; aquilo que o apetite não conseguiu, ele o consegue; domina a coisa e se satisfaz nafruição. O apetite não chega a isso por causa da independência da coisa; mas o senhor, ao colocar oescravo contra ela e si próprio, só entra em contato com o aspecto dependente da coisa, fruindo-apuramente; deixa o aspecto independente da coisa para o escravo que a trabalha.(³) (¹) Este difícil texto de é característico do método hegeliano. Ele inspirou amplamente as análises denossos contemporâneos sobre as relações do eu com o outro. Na luta de duas consciências, Hegelexamina simultaneamente a relação de dois "eu" e a relação de cada eu com sua própria vida. O"senhor", aquele que é vitorioso no combate, aceitou arriscar a vida. Por conseguinte, ele é mais do queela, por sua coragem colocou-se acima dos objetos comuns da necessidade e da existência empírica. Ovencido, aquele que se rendeu, tem medo de perder a vida. Por conseguinte, ele é, de início, escravo davida e de seus objetos empíricos. Torna-se tembém escravo do senhor que o conserva (servus =conservado) a fim de ler em seu olhar temeroso e submisso o reflexo de sua vitória, a fim de se fazerreconhecer como consciência.(²) Hegel quer dizer que o senhor não é senhor "em-si", mas por meio de uma mediação, isto é, uma

relação. O senhor se define por sua relação com o escravo (e por sua relação com os objetos quedepende, ela própria, da relação com o escravo). No ponto de partida, o senhor domina os objetos danecessidade, posto que no campo de batalha ele se mostrou corajoso, superior à sua vida, portanto, aosobjetos das necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo quetrabalha, isto é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e de fruição para o senhor.(³) Graças ao trabalho do escravo, a relação do senhor com a coisa é uma relação de simples gozo queequivale à negação da coisa. Pensamos nos versos de Valéry:Como o fruto se funde em fruiçãoComo em delícias ele muda sua ausênciaNuma boca em que sua forma se extingue.

Concepção Dialética da História da Filosofia

Em suas lições sobre a história da filosofia, Hegel assinalava que a noção de História da Filosofia "envolveuma contradição interna". Com efeito, "a filosofia quer conhecer o imperecível, o eterno, seu fim é averdade. Mas a história conta o que foi numa época e que desapareceu em outra, substituído por outracoisa". Se a verdade é eterna, "ela não penetra na esfera do que passa e não tem história". Entretanto, afilosofia encontra-se toda nos sistemas dos filósofos. A idéia geral de filosofia permanece abstrata se nãose confunde com os diversos sistemas dos filósofos no decurso da história, assim como a noção geral defruto só se explicita quando efetivamente se trata de "cerejas, ameixas ou uvas". Na realidade, cadafilosofia corresponde a um momento da história, a uma etapa na conquista do espírito absoluto. Cadafilosofia é "o espírito da época existente como espírito que se pensa". Ela surge "no devido momento,

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nenhuma ultrapassou seu tempo" (¹). As filosofias sucessivas não se refutam, mas as novasfilosofias mostram as anteriores como verdades parciais passíveis de serem integradas numa síntese maisampla que se elabora com o tempo. A história da filosofia oferece momentos privilegiados ou, como dizHegel, "nós" em que vêm se reconciliar dialeticamente os contraditórios. A filosofia de Platão, porexemplo, é a síntese do imóvel ser parmenídico com a mobilidade heracliteana.

Nesse sentido, citaremos um excerto das lições sobre a História da Filosofia: A razão é una e essa racionalidade una, um sistema e, por isso, a evolução das determinações dopensamento é igualmente racional. Os princípios gerais surgem segundo a necessidade da noçãofundamental. A posição dos precedentes é determinada pelo que se segue. O princípio de uma filosofiapassa, na seguinte, para a categoria de um momento. Não se refuta uma filosofia, apenas sua posição éque é refutada. As folhas, de início, são o modo de existência mais elevado da planta, depois é o botão eo cálice que, em seguida, se transformam em envoltório a serviço do fruto; é assim que o primeiroelemento é colocado numa categoria inferior pelo seguinte. As filosofias são as formas do Uno. Um estudo mais avançado mostrar-nos-á como progridem seusprincípios, de maneira que o seguinte é uma nova determinação do precedente...O estoicismo faz do pensamento um princípio, mas o epicurismo proclama vedadeiro o princípiodiretamente oposto: o sentimento, o prazer para um, portanto, é o geral e para outro o particular, oindividual: para o primeiro, é o homem pensante; para o segundo, o homem sensível. Somente suareunião constitui a totalidade da noção e o homem, aliás, compõe-se dos dois elementos, do geral e doparticular, do pensamento e da sensibilidade. Sua união é a verdade. Mas ambas se manifestam, umaapós outra, opondo-se. O ceticismo é o princípio negativo que se eleva contra os dois precedentes; eleafasta o caráter exclusivo de um e outro, mas engana-se quando acredita os ter eliminado, pois ambossão necessários.Desse modo, a essência da história da filosofia consiste em que princípios exclusivos transformam-se emmomentos, em elementos concretos e se conservam, por assim dizer, num nó; o princípio dasconcepções subseqüentes é superior ou, o que dá no mesmo, mais profundo... A história de Platão não éum ecletismo, mas uma reunião das filosofias precedentes que então formam um todo vivo, uma uniãoem uma viva unidade do pensamento...É importante, antes de tudo, conhecer os princípios dos sistemas filosóficos e em seguida reconhecercada um deles como necessário; sendo necessário, ele se apresenta em sua época como superior. Se se

for mais adiante, a determinação precedente torna-se apenas um ingrediente da nova, ela é assumidasem ser rejeitada. Desse modo, todos os princípios são conservados. Assim, o Uno, a unidade, é ofundamento de tudo; aquilo que se desenvolve na razão progride na unidade dessa razão... Conhecerverdadeiramente um sistema é tê-lo justificado em-si. Limitar-se a refutar uma filosofia é nãocompreendê-la; é preciso ver a verdade que ela contém. Nada mais fácil do que criticar, do que ver emalguma parte o caráter negativo; isto é sobretudo gosto característico dos jovens, mas se só se vê anegação, ignora-se o conteúdo que, ele sim, é afirmativo; supera-se-o sem que se encontre no interior. Adificuldade consiste em ver o que os sistemas filosóficos contêm de verdadeiro; só quando são justificados em si próprios é que se pode falar de seu limites, de suas deficiências.(¹) Encontramos essa idéia em Marx, num contexto materialista: "Os filósofos não brotam da terra comocogumelos, eles são os frutos de seu tempo, de seu povo, cujas forças mais sutis e mais ocultas setraduzem em idéias filosóficas. O mesmo espírito fabrica as teorias filosóficas na mente dos filósofos econstrói as estradas de ferro com as mãos dos operários. A filosofia não é exterior ao mundo".

Nietzsche

 

 Vida e Obra

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken, localidade próxima a Leipzig.Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e seus dois avós eram pastores protestantes; o próprioNietzsche pensou em seguir a mesma carreira.

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Em 1849, seu pai e seu irmão faleceram; por causa disso a mãe mudou-se com a família paraNaumburg, pequena cidade às margens do Saale, onde Nietzsche cresceu, em companhia da mãe, duastias e da avó. Criança feliz, aluno modelo, dócil e leal, seus colegas de escola o chamavam "pequenopastor"; com eles criou uma pequena sociedade artística e literária, para a qual compôs melodias eescreveu seus primeiros versos.

Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola de Pforta, onde haviamestudado o poeta Novalis o filósofo Fichte (1762-1814). Datam dessa época suas leituras de Schiller(1759-1805), Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824); sob essa influência e a de alguns professores,Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo. Excelente aluno em grego e brilhante em estudosbíblicos, alemão e latim, seus autores favoritos, entre os clássicos, foram Platão (428-348 a.C.) e Ésquilo(525-456 a.C.). Durante o último ano em Pforta, escreveu um trabalho sobre o poeta Teógnis (séc. VIa.C.). Partiu em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e filosofia, mas,influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses estudos e passou a residir em Leipzig,dedicando-se à filologia. Ritschl considerava a filologia não apenas história das formas literárias, masestudos das instituições e do pensamento. Nietzsche seguiu-lhe as pegadas e realizou investigaçõesoriginais sobre Diógenes Laércio (séc. III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhosfoi nomeado, em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu por dez anos. A filosofiasomente passou a interessá-lo a partir da leitura de O Mundo como Vontade e Representação , deSchopenhauer (1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, assim como pelaposição essencial que a experiência estética ocupa em sua filosofia, sobretudo pelo significado metafísicoque atribui à música.Em 1867, Nietzsche foi chamado para prestar o serviço militar, mas um acidente em exercício demontaria livrou-o dessa obrigação. Voltou então aos estudos na cidade de Leipzig. Nessa época teveinício sua amizade com Richard Wagner (1813-1883), que tinha quase 55 anos e vivia então com Cosima,filha de Liszt (1811-1886). Nietzsche encantou-se com a música de Wagner e com seu drama musical,principalmente com Tristão e Isolda  e com Os Mestres Cantores . A casa de campo de Tribschen, àsmargens do lago de Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche lugar d "refúgio econsolação". Na mesma época, apaixonou-se por Cosima, que viria a ser, em obra posterior, a "sonhada Ariane". Em cartas ao amigo Erwin Rohde, escrevia: "Minha Itália chama-se Tribschen e sinto-me alicomo em minha própria casa". Na universidade, passou a tratar das relações entre a música e a tragédia

grega, esboçando seu livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música .O Filósofo e o Músico 

Em 1870, a Alemanha entrou em guerra com a França; nessa ocasião, Nietzsche serviu o exército comoenfermeiro, mas por pouco tempo, pois logo adoeceu, contraindo difteria e disenteria. Essa doençaparece ter sido a origem das dores de cabeça e de estômago que acompanharam o filósofo durante todaa vida. Nietzsche restabeleceu-se lentamente e voltou a Basiléia a fim de prosseguir seus cursos.Em 1871, publicou O Nascimento da Tragédia , a respeito da qual se costuma dizer que o verdadeiroNietzsche fala através das figuras de Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra, considera Sócrates (470ou 469 a.C.-399 a.C.) um "sedutor", por ter feito triunfar junto à juventude ateniense o mundo abstratodo pensamento. A tragédia grega, diz Nietzsche, depois de ter atingido sua perfeição pela reconciliaçãoda "embriaguez e da forma", de Dioniso e Apolo, começou a declinar quando, aos poucos, foi invadida

pelo racionalismo, sob a influência "decadente" de Sócrates. Assim, Nietzsche estabeleceu uma distinçãoentre o apolíneo e o dionisíaco : Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem; Dioniso, o deus daexuberância, da desordem e da música. Segundo Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco, complementaresentre si, foram separados pela civilização. Nietzsche trata da Grécia antes da separação entre o trabalhomanual e o intelectual, entre o cidadão e o político, entre o poeta e o filósofo, entre Eros e Logos. Paraele a Grécia socrática, a do Logos e da lógica, a da cidade-Estado, assinalou o fim da Grécia antiga e desua força criadora. Nietzsche pergunta como, num povo amante da beleza, Sócrates pôde atrair os jovens com a dialética, isto é, uma nova forma de disputa (ágon) , coisa tão querida pelos gregos.Nietzsche responde que isso aconteceu porque a existência grega já tinha perdido sua "bela imediatez", e

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tornou-se necessário que a vida ameaçada de dissolução lançasse mão de uma "razão tirânica", afim de dominar os instintos contraditórios.Seu livro foi mal acolhido pela crítica, o que o impeliu a refletir sobre a incompatibilidade entre o"pensador privado" e o "professor público". Ao mesmo tempo, esperava-se com seu estado de saúde:dores de cabeça, perturbações oculares, dificuldades na fala. Interrompeu assim sua carreira universitária

por um ano. Mesmo doente foi até Bayreuth, para assistir à apresentação de O Anel dos Nibelungos , deWagner. Mas o "entusiasmo grosseiro" da multidão e a atitude de Wagner embriagado pelo sucesso oirritaram.Terminada a licença da universidade para que tratasse da saúde, Nietzsche voltou à cátedra. Mas sua vozagora era tão imperceptível que os ouvintes deixaram de freqüentar seus cursos, outrora tão brilhantes.Em 1879, pediu demissão do cargo. Nessa ocasião, iniciou sua grande crítica dos valores, escrevendoHumano, Demasiado Humano ; seus amigos não o compreenderam. Rompeu as relações de amizade queo ligavam a Wagner e, ao mesmo tempo, afastou-se da filosofia de Schopenhauer, recusando sua noçãode "vontade culpada" e substituindo-a pela de "vontade alegre"; isso lhe parecia necessário para destruiros obstáculos da moral e da metafísica. O homem, dizia Nietzsche, é o criador dos valores, mas esquecesua própria criação e vê neles algo de "transcendente", de "eterno" e "verdadeiro", quando os valoresnão são mais do que algo "humano, demasiado humano".Nietzsche, que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento da grande arte daGrécia", mudou de opinião, achando que Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influência deSchopenhauer. Nessa época Wagner voltara-se, ao mesmo tempo, a recusa do cristianismo e deSchopenhauer; para Nietzsche, ambos são parentes porque são a manifestação da decadência, isto é, dafraqueza e da negação. Irritado com o antigo amigo, Nietzsche escreveu: "Não há nada de exausto, nada de caduco, nada de perigoso para a vida, nada que calunie o mundo no reino do espírito, que não tenha encontrado secretamente abrigo em sua arte; ele dissimula o mais negro obscurantismo nos orbes luminosos do ideal. Ele acaricia todo o instinto niilista (budista) e embeleza-o com a música; acaricia toda a forma de cristianismo e toda expressão religiosa de decadência"  .Solidão, Agonia e Morte 

Em 1880, Nietzsche publicou O Andarilho e sua Sombra : um ano depois apareceu Aurora , com a qual seempenhou "numa luta contra a moral da auto-renúncia". Mais uma vez, seu trabalho não foi bem

acolhido por seus amigos; Erwin Rohde nem chegou a agradecer-lhe o recebimento da obra, nemrespondeu à carta que Nietzsche lhe enviara. Em 1882, veio à luz  A Gaia Ciência , depois  Assim falou Zaratustra (1884), Para Além de Bem e Mal  (1886), O Caso Wagner , Crepúsculo dos Ídolos , Nietzsche contra Wagner  (1888). Ecce Homo , Ditirambos Dionisíacos , O Anticristo  e Vontade de Potência  sóapareceram depois de sua morte.Durante o verão de 1881, Nietzsche residiu em Haute-Engandine, na pequena aldeia de Silvaplana, e,durante um passeio, teve a intuição de O Eterno Retorno , redigido logo depois. Nessa obra defendeu atese de que o mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e dosofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietzsche transferiu-se para Gênova, no outono de 1881, edepois para Roma, onde permaneceu por insistência de Fräulein von Meysenburg, que pretendia casá-locom uma jovem finlandesa, Lou Andreas Salomé. Em 1882, Nietzsche propôs-lhe casamento e foirecusado, mas Lou Andreas Salomé desejou continuar sua amiga e discípula. Encontraram-se mais tardena Alemanha; porém, não houve a esperada adesão à filosofia nietzschiana e, assim, acabaram por se

afastar definitivamente.Em seguida, retornou à Itália, passando o inverno de 1882-1883 na baía de Rapallo. Em Rapallo,Nietzsche não se encontrava bem instalado; porém, "foi durante o inverno e no meio desse desconfortoque nasceu o meu nobre Zaratustra ".No outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em Naumburg, em companhia da mãe eda irmã. Apesar da companhia dos familiares, sentia-se cada vez mais só. Além disso, mostrava-se muitocontrariado, pois sua irmã tencionava casar-se com Herr Foster, agitador anti-semita, que pretendiafundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da cristandade teutônica. Nietzsche desprezava oanti-semitismo, e, não conseguindo influenciar a irmã, abandonou Naumburg.

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Em princípio de abril de 1884 chegou a Veneza, partindo depois para a Suíça, onde recebeu a visitado barão Heinrich von Stein, jovem discípulo de Wagner. Von Stein esperava que o filósofo oacompanhasse a Bayreuth para ouvir o Parsifal , talvez pretendendo ser o mediador para que Nietzschenão publicasse seu ataque contra Wagner. Por seu lado, Nietzsche viu no rapaz um discípulo capaz decompreender o seu Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a falecer muito cedo, o que o amargurou

profundamente, sucedendo-se alternâncias entre euforia e depressão. Em 1885, veio a público a Quartaparte de Assim falou Zaratustra ; cada vez mais isolado, o autor só encontrou sete pessoas a quem enviá-la. Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o intelectual alemão Paul Lanzky, que lera  Assim falou Zaratustra  e escrevera um artigo, publicado em um jornal de Leipzig e na Revista Européia  deFlorença. Certa vez, Lanzky se dirigiu a Nietzsche tratando-o de "mestre" e Nietzsche lhe respondeu:"Sois o primeiro que me trata dessa maneira".Depois de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais tarde, em Turim, enfrentouo auge da crise; escrevia cartas ora assinando "Dioniso", ora "o Crucificado" e acabou sendo internadoem Basiléia, onde foi diagnosticada uma "paralisia progressiva". Provavelmente de origem sifilítica, amoléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia. Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de1900.

O Dionisíaco e o Socrático 

Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o poema . Isso trouxecomo conseqüência uma nova concepção da filosofia e do filósofo: não se trata mais de procurar o idealde um conhecimento verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria fixar osentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a avaliação tentaria determinar o valorhierárquico desses sentidos, totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir apluralidade. Assim, o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte de interpretar e a coisa a serinterpretada, e o poema constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria umaespécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala poraforismos; o avaliador seria o artista que considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo asduas capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e médico-legislador, ao mesmo tempo.Para Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos quais existe unidade entre o

pensamento e a vida, esta "estimulando" o pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas odesenvolvimento da filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa característica, e, emlugar de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgara vida", opondo a ela valores pretensamente superiores, mediando-a por eles, impondo-lhes limites,condenando-a. Em lugar do filósofo-legislador, isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criadorde novos, surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, apareceu claramente comSócrates, quando se estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial eaparente, verdadeiro e falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz Nietzsche,fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como oDivino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário esutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se opôs ao sentidomístico de toda a tradição da época da tragédia.Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber místico da unidade da

vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. MasSócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causassem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédiana categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos quese abstivessem dessas emoções "indignas de filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia ohomem do caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão" , formula que, segundoNietzsche, corresponde ao aforismo "só o homem que concebe o bem é virtuoso" . Esse bem idealconcebido por Sócrates existiria em um mundo supra-sensível, no "verdadeiro mundo", inacessível aoconhecimento dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal concepção, criou-se,

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segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição dialética entre Sócrates e Dioniso: "enquanto em todosos homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica enegativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homemteórico", foi o único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma verdadeiramutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou cada vez mais desse conhecimento, na

medida em que abandonou o fenômeno do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche.Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida doespírito, o aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado detudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a própria razão das coisas,distinguindo o verdadeiro do aparente e do erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem.Para Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus limites: "esta sublimeilusão metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto eo conduz incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".Por essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo supra-sensível todo e qualquervalor eficiente, e entendendo as idéias não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". Aúnica existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homem está destinadoà multiplicidade, e a única coisa permitida é sua interpretação.

O Vôo da Águia, a Ascensão da Montanha 

 A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral: o combate à teoria dasidéias socrático-platônicas é, ao mesmo tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo.Segundo Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de lágrimas, em oposição aomundo da felicidade eterna do além. Essa concepção constitui uma metafísica que, à luz das idéias dooutro mundo, autêntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensível, o corpo, como o provisório, oinautêntico e o aparente. Trata-se, portanto, diz Nietzsche, de "um platonismo para o povo", de umavulgarização da metafísica, que é preciso desmistificar. O cristianismo, continua Nietzsche, é a formaacabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo, repousando em dogmas e crenças quepermitem à consciência fraca e escava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e arenúncia como virtudes. São os escravos e os vencidos da vida que inventaram o além para compensar a

miséria; inventaram falsos valores para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dossenhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não possuíam o corpo; criaram aficção do pecado porque não podiam participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintosda vida. "Este ódio de tudo que é humano", diz Nietzsche, "de tudo que é 'animal' e mais ainda de tudoque é 'matéria', este temor dos sentidos... este horror da felicidade e da beleza; este desejo de fugir detudo que é aparência, mudança, dever, morte, esforço, desejo mesmo, tudo isso significa... vontade deaniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida".Nietzsche propôs a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar todos os valores do cristianismo:"munido de uma tocha cuja luz não treme, levo uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal" . Aimagem da tocha simboliza, no pensamento de Nietzsche, o método filológico, por ele concebido comoum método crítico e que se constitui no nível da patologia, pois procura "fazer falar aquilo que gostariade permanecer mudo". Nietzsche traz à tona, por exemplo, um significado esquecido da palavra "bom".Em latim, bonus  significa também o "guerreiro", significado este que foi sepultado pelo cristianismo.

 Assim como esse, outros significados precisariam ser recuperados; com isso se poderia constituir umagenealogia da moral  que explicaria as etapas das noções de "bem" e de "mal". Para Nietzsche essasetapas são o ressentimento ("é tua culpa se sou fraco e infeliz"); a consciência da culpa (momento emque as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas e voltam-se contra si mesmas); e o idealascético (momento de sublimação do sofrimento e de negação da vida). A partir daqui, a vontade depotência torna-se vontade de nada e a vida transforma-se em fraqueza e mutilação, triunfando onegativo e a reação contra a ação. Quando esse niilismo triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potênciadeixa de querer significar "criar" para querer dizer "dominar"; essa é a maneira como o escravo aconcebe. Assim, na fórmula "tu és mau, logo eu sou bom", Nietzsche vê o triunfo da moral dos fracos

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que negam a vida, eu negam a "afirmação"; neles tudo é invertido: os fracos passam a se chamarfortes, a baixeza transforma-se em nobreza. A "profundidade da consciência" que busca o Bem e a Verdade, diz Nietzsche, implica resignação, hipocrisia e máscara, e o intérprete-filólogo, ao percorrer ossignos para denunciá-las, deve ser um escavador dos submundos a fim de mostrar que a "profundidadeda interioridade" é coisa diferente do que ela mesma pretende ser. Do ponto de vista do intérprete que

desça até os bas-fonds da consciência, o Bem é a vontade do mais forte, do "guerreiro", do arauto de umapelo perpétuo à verdadeira ultrapassagem dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida estaexpressão no sentido de um ser humano que transpõe  os limites do humano, é o além-do-homem. Assim, o vôo da águia, a ascensão da montanha e todas as imagens de verticalidade que se encontramem Assim falou Zaratustra representam a inversão da profundidade e a descoberta de que ela não passade um jogo de superfície. A etimologia nietzschiana mostra que não existe um "sentido original", pois as próprias palavras nãopassam de interpretações, antes mesmo de serem signos, e se elas só significam porque são"interpretações essenciais". As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classessuperiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem  uma interpretação. O trabalho doetimologista, portanto, deve centralizar-se no problema de saber o que existe para ser interpretado, namedida em que tudo é máscara, interpretação, avaliação. Fazer isso é "aliviar o que vive, dançar, criar".Zaratustra, o intérprete por excelência, é como Dioniso.

Os Limites do Humano: O Além-do-Homem 

Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, concebendo o primeiro como o triunfo daafirmação da vontade de potência e o segundo como símbolo do mundo como vontade, como um deusartista, totalmente irresponsável, amoral e superior ao lógico. Por outro lado, a arte trágica é concebidapor Nietzsche como oposta à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência, abertapara o futuro, e o "eterno retorno", que faz do futuro numa repetição; esta, no entanto, não significauma volta do mesmo  nem uma volta ao mesmo ; o eterno retorno nietzschiano é essencialmenteseletivo. Em dois momentos de Assim falou Zaratustra (Zaratustra doente e Zaratustra convalescente), oeterno retorno causa ao personagem-título, primeiramente, uma repulsa e um medo intoleráveis quedesaparecem por ocasião de sua cura, pois o que o tornava doente era a idéia de que o eterno retorno

estava ligado, apesar de tudo, a um ciclo, e que ele faria tudo voltar, mesmo o homem, o "homempequeno". O grande desgosto do homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou e que me tinhaentrado na garganta e também o que me tinha profetizado o adivinho: tudo é igual. E o eterno retorno,mesmo do mais pequeno, aí está a causa de meu cansaço e de toda a existência. Dessa forma, seZaratustra se cura é porque compreende que o eterno retorno abrange o desigual e a seleção. ParaDioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta.Por isso, "os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegresconvivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".Para Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dioniso não é mais Sócrates, mas o Crucificado. Emoutros termos, a verdadeira oposição é a que contrapõe, de um lado, o testemunho contra a vida e oempreendimento de vingança que consiste em negar a vida; de outro, a afirmação do devir e do múltiplo,mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dioniso. Com essa concepção, Nietzsche responde aopessimismo de Schopenhauer: em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o

homem descobre no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da criação eda destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. O eterno retorno, e apenas ele, oferece, dizNietzsche, uma "saída fora da mentira de dois mil anos", e a transmutação dos valores traz consigo onovo homem que se situa além do próprio homem.Esse super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade "deseje dominar". Se se interpreta vontadede potência, diz Nietzsche, como desejo de dominar, faz-se dela algo dependente dos valoresestabelecidos. Com isso, desconhece-se a natureza da vontade de potência como princípio plástico detodas as avaliações e como força criadora de novos valores. Vontade de potência, diz Nietzsche, significa"criar", "dar" e "avaliar".

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Nesse sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o situa muito além do bem e domal e o faz desprender-se de todos os produtos de uma cultura decadente. A moral do além-do-homem,que vive esse constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta à doescravo e à do rebanho. Oposta, portanto, à moral da compaixão, da piedade, da doçura feminina ecristã. Assim, para Nietzsche, bondade, objetividade, humildade, piedade, amor ao próximo, constituem

valores inferiores, impondo-se sua substituição pela virtù dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelorisco, pela personalidade criadora, pelo amor ao distante. O forte é aquele em que a transmutação dosvalores faz triunfar o afirmativo na vontade de potência. O negativo subsiste nela apenas comoagressividade própria à afirmação, como a crítica total que acompanha a criação; assim, Zaratustra, oprofeta do além-do-homem, é a pura afirmação, que leva a negação a seu último grau, fazendo dela umaação, uma instância a serviço daquele que cria, que afirma.Compreende-se, assim, porque Nietzsche desacredita das doutrinas igualitárias, que lhe parecem"imorais", pois impossibilitam que se pense a diferença entre os valores dos "senhores e dos escravos".Nietzsche recusa o socialismo, mas em Vontade de Potência  exorta os operários a reagirem "comosoldados".

Uma Filosofia Confiscada 

 Apoiado na crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, em sua teoria da vontade de potência e noseu elogio do super-homem, desenvolveu-se um pensamento nacionalista e racista, de tal forma que sepassou a ver no autor de  Assim Falou Zaratustra um percursor do nazismo. A principal responsável poressa deformação foi sua irmã Elisabeth, que, ao assegurar a difusão de seu pensamento, organizando oNietzsche-Archiv, em Weimar, tentou colocá-lo a serviço do nacional-socialismo. Elisabeth, depois dosuicídio do marido, que fracassara em um projeto colonial no Paraguai, reuniu arbitrariamente notas erascunhos do irmão, fazendo publicar Vontade de Potência como a última e a mais representativa dasobras de Nietzsche, retendo até 1908 Ecce Homo , escrita em 1888. Esta obra constitui umainterpretação, feita por Nietzsche, de sua própria filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e oracismo germânicos. Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua participação na guerra franco-prussiana (1870-1871).Por ocasião desse conflito, Nietzsche alistou-se no exército alemão, mas seu ardor patriótico logo se

dissolveu, pois, para ele, a vitória da Alemanha sobre a França teria como conseqüência "um poderaltamente perigoso para a cultura". Nessa época, aplaudia as palavras de seu colega em Basiléia, JacobBurckhardt (1818-1897), que insistia junto a seus alunos para que não tomassem o triunfo militar e aexpansão de um Estado como indício de verdadeira grandeza.Em Para Além de Bem e Mal , Nietzsche revela o desejo de uma Europa unida para enfrentar onacionalismo ("essa neurose") que ameaçava subverter a cultura européia. Por outro lado, quandoconfiou ao "louro" a tarefa de "virilizar a Europa", Nietzsche levou até a caricatura seu desprezo pelosalemães, homens "que introduziram no lugar da cultura a loucura política e nacional... que só sabemobedecer pesadamente, disciplinados como uma cifre oculta em um número". No mesmo sentido,Nietzsche caracterizou os heróis wagnerianos como germanos que não passam de "obediência e longaspernas". E acabou rompendo definitivamente com Wagner, por causa do nacionalismo e anti-semitismodo autor de Tristão e Isolda: "Wagner condescende a tudo que desprezo, até o anti-semitismo".Para compreender corretamente as idéias políticas de Nietzsche, é necessário, portanto, purificá-lo de

todos os desvios posteriores que foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo umantidemocrático e um antitotalitário. "A democracia é a forma histórica de decadência do Estado",afirmou Nietzsche, entendendo por decadência tudo aquilo que escraviza o pensamento, sobretudo umEstado que pensa em si em lugar de pensar na cultura. Em Considerações Extemporâneas essa tese éreforçada: "estamos sofrendo as conseqüências das doutrinas pregadas ultimamente por todos os lados,segundo as quais o estado é o mais alto fim do homem, e, assim, não há mais elevado fim do que servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso ao paganismo mas um retrocesso à estupidez". Por outro lado,Nietzsche não aceitava as considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a convenção;essas teorias seriam apenas "fantásticas"; para ele, ao contrário, o Estado tem uma origem "terrível",

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sendo criação da violência e da conquista e, como conseqüência, seus alicerces encontram-se namáxima que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo não seja arrogância,usurpação e violência" .O Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de cidadãos obedientes e tem, portanto,tendência a impedir o desenvolvimento da cultura livre, tornando-a estática e estereotipada. Ao contrário

disso, o Estado deveria ser apenas um meio para a realização da cultura e para fazer nascer o além-do-homem.

 Assim Falou Zaratustra 

Em Ecce Homo , Nietzsche intitulou seus capítulos: "Por que sou tão finalista?", "Por que sou tão sábio?","Por que sou tão inteligente?", "Por que escrevo livros tão bons?". Isso levou muitos a considerarem suaobra como anormal e desqualificada pela loucura. Essa opinião, no entanto, revela um superficialentendimento de seu pensamento. Para entendê-lo corretamente, é necessário colocar-se dentro dopróprio núcleo de sua concepção da filosofia: Nietzsche inverteu o sentido tradicional da filosofia, fazendodela um discurso ao nível da patologia e considerando a doença "um ponto de vista" sobre a saúde evice-versa. Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a patologia são uma únicacoisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e falso, doença e saúde são apenas jogos de superfície.Há uma continuidade, diz Nietzsche, entre a doença e a saúde e a diferença entre as duas é apenas degrau, sendo a doença um desvio interior à própria vida; assim, não há fato patológico. A loucura não passa de uma máscara que esconde alguma coisa, esconde um saber fatal e "demasiadocerto". A técnica utilizada pelas classes sacerdotais para a cura da loucura é a "meditação ascética", queconsiste em enfraquecer os instintos e expulsar as paixões; com isso, a vontade de potência, asensualidade e o livre florescimento do eu são considerados "manifestações diabólicas". Mas, paraNietzsche, aniquilar as paixões é uma "triste loucura", cuja decifração cabe à filosofia, pois é a loucuraque torna mais plano o caminho para as idéias novas, rompendo os costumes e as superstiçõesveneradas e constituindo uma verdadeira subversão dos valores. Para Nietzsche, os homens do passadoestiveram mais próximos da idéia de que onde existe loucura há um grão de gênio e de sabedoria,alguma coisa de divino: "Pela loucura os maiores feitos foram espalhados foram espalhados pela Grécia" .Em suma, aos "filósofos além de bem e mal", aos emissários dos novos valores e da nova moral não

resta outro recurso, diz Nietzsche, a não ser o de proclamar as novas leis e quebrar o jugo damoralidade, sob o travestimento da loucura. É dentro dessa perspectiva, portanto, que se devecompreender a presença da loucura na obra de Nietzsche. Sua crise final apenas marcou o momento emque a "doença" saiu de sua obra e interrompeu seu prosseguimento. As últimos cartas de Nietzsche são otestemunho desse momento extremo e, como tal, pertencem ao conjunto de sua obra e de seupensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de deslocar as perspectivas, da saúde à doença, e a loucuradeveria cumprir a tarefa de fazer a crítica escondida da decadência dos valores e aniquilamento: "Na verdade, a doença pode ser útil a um homem ou a uma tarefa, ainda que para outros signifique doença...Não fui um doente nem mesmo por ocasião da maior enfermidade" .

Kierkegaard

Kierkegaard é um dos raros autores cuja vida exerceu profunda influência no desenvolvimento da obra.

 As inquietações e angústias que o acompanharam estão expressas em seus textos, incluindo a relação deangústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo – herança de um pai extremamente religioso,que cultuava a maneira exacerbada os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião deEstado.Sétimo filho de um casamento que já durava muitos anos – nasceu em 1813, quando o pai, ricocomerciante de Copenhague, tinha 56 e a mãe 44 –, chamava a si mesmo de "filho da velhice" e teriaseguido a carreira de pastor caso não houvesse se revelado um estudante indisciplinado e boêmio.Trocou a Universidade de Copenhague, onde entrara em 1830 para estudar filosofia e teologia, peloscafés da cidade, os teatros, a vida social.

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Foi só em 1837, com a morte do pai e o relacionamento com Regina Oslen (de quem se tornarianoivo em 1840), que sua vida mudou. O noivado, em particular, exerceria uma influência decisiva em suaobra. A partir daí seus textos tornaram-se mais profundos e seu pensamento, mais religioso. Também em1840 ele conclui o curso de teologia, e um ano depois apresentava "Sobre o Conceito de Ironia" , sua tesede doutorado.

Esse é o momento da segunda grande mudança em sua vida. Em vez de pastor e pai de família,Kierkegaard escolheu a solidão. Para ele, essa era a única maneira de vivenciar sua fé. Rompido onoivado, viajou, ainda em 1841, para a Alemanha. A crise vivida por um homem que, ao optar pelocompromisso radical com a transcendência, descobre a necessidade da solidão e do distanciamentomundano, está em Diários .Na Alemanha, foi aluno de Schelling e esboça alguns de seus textos mais importantes. Volta aCopenhague em 1842, e em 1843 publica  A Alternativa , Temor e Tremor e A Repetição . Em 1844 saemMigalhas Filosóficas e O Conceito de Angústia . Um ano depois, é editado As Etapas no Caminho da Vida  e, em 1846, o Post-scriptum a Migalhas Filosóficas . A maior parte desses textos constitui uma tentativade explicar a Regina, e a ele mesmo, os paradoxos da existência religiosa. Kierkegaard elabora seupensamento a partir do exame concreto do homem religioso historicamente situado. Assim, a filosofiaassume, a um só tempo, o caráter socrático do autoconhecimento e o esclarecimento reflexivo daposição do indivíduo diante da verdade cristã.Polemista por excelência, Kierkegaard criticou a Igreja oficial da Dinamarca, com a qual travou umdebate acirrado, e foi execrado pelo semanário satírico O Corsário , de Copenhague. Em 1849, publicouDoença Mortal  e, em 1850, Escola do Cristianismo , em que analisa a deterioração do sentimentoreligioso. Morreu em 1855.

Filósofo ou Religioso?

 A posição de Kierkegaard leva algumas pessoas a levantar dúvidas a respeito do caráter filosófico de seupensamento. Pra elas, tratar-se-ia muito mais de um pensador religioso do que de um filósofo. Para alémdas minúcias que essa distinção envolveria, cabe verificar o que ela pode trazer de esclarecedor acercado estilo de pensamento de Kierkegaard. Pode-se perguntar, por exemplo, quais as questõesfundamentais que lhe motivam a reflexão, ou, então, qual a finalidade que ele intencionalmente deu à

sua obra.Estamos habituados a ver, na raiz das tentativas filosóficas que se deram ao longo da história, razões daordem da reforma do conhecimento, da política, da moral. Em Kierkegaard não encontramos,estritamente, nenhuma dessas motivações tradicionais. Isso fica bem evidenciado quando ele reage àsfilosofias de sua época – em especial à de Hegel. Não se trata de questionar as incorreções ou asinconsistências do sistema hegeliano. Trata-se muito mais de rebelar-se contra a própria idéia de sistemae aquilo que ela representa.Para Hegel, o indivíduo é um momento de uma totalidade sistemática que o ultrapassa e na qual, aomesmo tempo, ele encontra sua realização. O individual se explica pelo sistema, o particular pelo geral.Em Kierkegaard há um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua especificidade e docaráter insuperável de sua realidade. Não devemos buscar o sentido do indivíduo numa harmoniaracional que anula as singularidades, mas, sim, na afirmação radical da própria individualidade.De onde provém, no entanto, essa defesa arraigada daquilo que é único? Não de uma contraposição

teórico-filosófica a Hegel, mas de uma concepção muito profunda da situação do homem, enquanto serindividual, no mundo e perante aquilo que o ultrapassa, o infinito, a divindade. A individualidade nãodeve portanto ser entendida primordialmente como um conceito lógico, mas como a solidão característicado homem que se coloca como finito perante o infinito. A individualidade define a existência.Para Kierkegaard, o homem que se reconhece finito enquanto parte e momento da realização de umatotalidade infinita se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de algo maior, cujo sentido éinfinito. Ora, comprazer-se na finitude é admitir a necessidade lógica de nossa condição, é dissolver asingularidade do destino humano num curso histórico guiado por uma finalidade que, a partir de umadimensão sobre-humana, dá coerência ao sistema e aplaca as vicissitudes do tempo.

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Mas o homem que se coloca frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico não se vêdiante de um sistema de idéias mas diante de fatos, mais precisamente de um fato fundamental quenenhuma lógica pode explicar: a fé . Esta não é o sucedâneo afetivo daquilo que não posso compreenderracionalmente; tampouco é um estágio provisório que dure apenas enquanto não se completam efortalecem as luzes da razão. É, definitivamente, um modo de existir. E esse modo me põe

imediatamente em relação com o absurdo e o paradoxo. O paradoxo de Deus feito homem e o absurdodas circunstâncias do advento da Verdade.Cristo, enquanto Deus tornado homem, é o mediador entre o homem e Deus. É por meio de Cristo que ohomem se situa existencialmente perante Deus. Cristo é portanto o fato primordial para a compreensãoque o homem tem de si. Mas o próprio Cristo é incompreensível. Não há portanto uma mediaçãoconceitual, algum tipo de prova racional que me transporte para a compreensão da divindade. Amediação é o Cristo vivo, histórico, dotado, e o fato igualmente incompreensível do sacrifício na cruz. Aqui se situam as circunstâncias que fazem do advento da Verdade um absurdo: a Verdade não nos foirevelada com as pompas do conceito e do sistema. Ela foi encarnada por um homem obscuro que morreuna cruz como um criminoso. O acesso à Verdade suprema depende pois da crença no absurdo, naquiloque São Paulo já havia chamado de "loucura". No entanto, é o absurdo que possibilita a Verdade. Sepermanecesse a distância infinita que separa Deus e o homem, este jamais teria acesso à Verdade. Foi amediação do paradoxo e do absurdo que recolocou o homem em comunicação com Deus. Por issodevemos dizer: creio porque é absurdo . Somente dessa maneira nos colocamos no caminho darecuperação de uma certa afinidade com o absoluto.Não há, portanto, outro caminho para a Verdade a não ser o da interioridade, o aprofundamento dasubjetividade. Isso porque a individualidade autêntica supõe a vivência profunda da culpa: sem essesentimento, jamais nos situaremos verdadeiramente perante o fato da redenção e, conseqüentemente,da mediação do Cristo.

O Sofrimento Necessário

 A subjetividade não significa a fuga da generalidade objetiva: ao contrário, somente aprofundando asubjetividade e a culpa a ela inerente é que nos aproximaremos da compreensão original de nossanatureza: o pecado original. E a compreensão irradia luz sobre a redenção e a graça, igualmente

fundamentais para nos sentirmos verdadeiramente humanos, ou seja, de posse da verdade humana docristianismo. A autêntica subjetividade, insuperável modo de existir, se realiza na vivência dareligiosidade cristã. A subjetividade de Kierkegaard não é tributária apenas da atmosfera romântica que envolvia sua época.Seu profundo significado a-histórico tem a ver, mais do que com essa característica do Romantismo, comuma concepção de existência que torna todos os homens contemporâneos de Cristo. O fato da redenção,embora histórico, possui uma dimensão que o torna referência intemporal para se vivenciar a fé. Ocristão é aquele que se sente continuamente em presença de Deus pela mediação do Cristo. Por isso areligião só tem sentido se for vivida como comunhão com o sofrimento da cruz. Por isso é queKierkegaard critica o cristianismo de sua época, principalmente o protestantismo dinamarquês,penetrado, segundo ele, de conceituação filosófica que esconde a brutalidade do fato religioso, minimizaa distância entre Deus e o homem e sufoca o sentimento de angústia que acompanha a fé.Essa angústia, no entender de Kierkegaard, estaria ilustrada no episódio do sacrifício de Abraão. Esse

relato bíblico indica a solidão e o abandono do indivíduo voltado unicamente para a vivência da fé. O queDeus pede a Abraão – que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé – é absurdo e desumanosegundo a ética dos homens.Não se trata, nesse caso, de optar entre dois códigos de ética, ou entre dois sistemas de valores. Abraãoé colocado diante do incompreensível e diante do infinito. Ele não possui razões para medir ou avaliarqual deve ser sua conduta. Tudo está suspenso, exceto a relação com Deus.

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O Salto da Fé

 Abraão não está na situação do herói trágico que deve escolher entre valores subjetivos (individuais efamiliares) e valores objetivos (a cidade, a comunidade), como no caso da tragédia grega. Nada está em jogo, a não ser ele mesmo e a sua fé. Deus não está testando a sabedoria de Abraão, da mesma forma

como os deuses testavam a sabedoria de Édipo ou de Agamenon. A força de sua fé fez com que Abraãooptasse pelo infinito.Mas, caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão ainda assim não teria como justificá-lo à luz de umaética humana. Continuaria sendo o assassino de seu filho. Poderia permanecer durante toda a vidaindagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvidapermaneceria para sempre. No entanto Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse imediatamenteda razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra nasua radicalidade a situação de homem religioso. A fé representa um salto, a ausência de mediaçãohumana, precisamente porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A crença éinseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.Por tudo o que a existência envolve de afirmação de fé, ela não pode ser elucidada pelo conceito. Este jamais daria conta das tensões e contradições que marcam a vida individual. Existir é existir diante deDeus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de umabismo. Não se pode apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que aexistência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade. A fé reúne areflexão e o êxtase, a procura infindável e a visão instantânea da Verdade; o paradoxo de ser o pecadoao mesmo tempo a condição de salvação, já que foi por causa do pecado original que Cristo veio aomundo. Qualquer filosofia que não leve em conta essas tensões, que afinal são derivadas de estar o finitoe o infinito em presença um do outro, não constituirá fundamento adequado da vida e da ação. Afilosofia deve ser imanente à vida. A especulação desgarrada da realidade concreta não orientará a ação,muito simplesmente porque as decisões humanas não se ordenam por conceitos, mas por alternativas esaltos.

Emmanuel Kant 

 A Moral de KantÉ só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se em toda sua pujança. Arazão teórica tinha necessidade da experiência para não se perder no vácuo da metafísica. A razãoprática, isto é, ética, deve ao contrário, ultrapassar,  para ser ela própria, tudo que seja sensível ou empírico .Toda ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é estranha à moral, mesmoque essa ação seja materialmente boa. Por exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessadoou mesmo por afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meussentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o prazer, afelicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza. Nesse ponto, Kant se opõe não só aonaturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de São Tomás, para quem afelicidade é o fim legítimo de todas as nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará

uma visão oral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é umimperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então, se teus sentimentos espontâneos a ele te conduzem) , mas o imperativo categórico:Cumpre teu dever incondicionalmente .Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a Razão se impõe não podem, em nenhum caso,receber um conteúdo da experiência e que devem exprimir a autonomia da razão pura prática, as regrasmorais só podem consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a máxima de tua ação possa ser erigida em regra universal" (primeira regra). O respeito pela razão estende-se ao sujeitoracional: "Age sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo 

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como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra). Desse modo, o princípio do dever,para ser absolutamente rigoroso, não implica em nenhuma "alienação", como diríamos hoje, emnenhuma "heteronomia", como diz Kant.Para se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer àsexigências de sua própria razão: "Age como se fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república 

das vontades" (terceira regra).O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista é o sentimento dorespeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria lei moral que o produz em mim; ele me engrandece,ele me realiza como ser racional que obedece à lei moral. Vimos que, pelo fato de ser puramente formal,essa moral não me propõe, efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou  proíbe este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não tenho odireito de mentir, mesmo que me diga: e se todos fizessem o mesmo? A mentira de todos para comtodos é contraditória, portanto, proibída. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se comoessencialmente negativa. Como diz Jan Kélévitch, o imperativo categórico é um "proibitivo categórico". A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança com relação à naturezahumana, aos instintos, às tendências de tudo o que é empírico, passivo, passional, ou, como diz Kant,patológico. Tal é o rigoríssimo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever porque é precisoimpor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço, submeter a humanavontade à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal aosinstintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atraçãoinstintiva e irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço quefazemos para submeter nossa natureza às exigências do dever.

Moral e Metafísica

 A moral de Kant é o que chamamos de uma moral independente . Ela não possui outro fundamento alémda consciência humana, essa consciência que é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenhao menor sentido, mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a respeitas asmáximas da razão.Todavia, Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja demonstração era impossível, segunda a

crítica da razão pura. A originalidade de Kant está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de sua moral na metafísica, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na moral, a título de  "postulados da razão prática" . Por exemplo: o dever me prescreve a realização de certa perfeição moralque não consigo atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a determinação dequerer dos móveis sensíveis). Kant então postula a imortalidade da alma.Por outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão juntas, neste mundo em que,de um modo geral, os maus são muito prósperos. Ele então postula que um Deus  justiceiro , porintermédio de um sistema de recompensa e punições, restabelecerá no além a harmonia entre virtude efelicidade.Finalmente, partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a liberdade humana. Comefeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos atos humanos. A obrigação não teria o menor sentidose minha conduta fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas influências quesofri. Ser moralmente obrigado é ter o poder de responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de

escolher entre o bem e o mal. "Tu deves, diz Kant, então podes."  Esta liberdade não poderia ser demonstrada. No plano dos fenômenos, isto é, da experiência, do quehoje denominamos ciência psicológica, eu vejo que meus atos, ao contrário, são determinados uns pelosoutros no tempo. Aquele crime pode ser explicado pelas paixões de seu autor, pela deplorável educaçãoque recebeu, etc... E, no entanto, o homem se sente responsável, por conseguinte, livre. Nãoesqueçamos que o mundo dos fenômenos, isto é, do determinismo, é um mundo de aparências. Por trásdesse determinismo aparente, pelo qual o mundo se me apresenta no conhecimento, esconde-se arealidade numenal de minha liberdade. Por conseguinte, é fora do tempo, é nas profundezas do serinacessível ao saber científico, que o mau escolheu livremente o seu caráter de mau. Em tal sistema,

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portanto, não existe liberdade parcial nem meia-responsabilidade. Totalmente determinados nasaparências fenomenais, seríamos totalmente livres em nossa realidade numenal: daí se segue quenenhum pecado poderia ser escusável.

 A Crítica do Juízo

Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirmasimultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura ) e a exigência de uma liberdadeabsoluta (na Crítica da Razão Prática ).Em sua terceira grande obra,  A Crítica do Juízo , Kant se esforça por mostrar a possibilidade de umareconciliação entre o mundo natural e o da liberdade. A natureza não seja talvez não seja apenas odomínio do determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na organizaçãoharmoniosa dos seres vivos. Todavia, se o princípio de causalidade (determinismo) é constitutivo daexperiência (não posso dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade permanecefacultativo, puramente regulador (posso interpretar o agrupamento de certas condições como amanifestação de um fim). Tudo se passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenasé certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.Os valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem uma espécie de reconciliaçãoentre a razão e a imaginação, já que, na contemplação estética, a bela aparência que admiramos pareceinteiramente penetrada dos valores do espírito. Finalidade sem fim (isto é, harmonia pura, fora de todomóvel exterior à obra de arte), a beleza oferece à nossa imaginação a oportunidade de uma satisfaçãointeiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único de uma satisfação ao mesmotempo sensível e pura de todo egoísmo, o momento privilegiado em que uma emoção, longe demanifestar meu egoísmo dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata".

O Idealismo Pós-Kantiano 

Considerações Gerais

 A maior parte dos filósofos (é sua vocação mais preciosa, a menos que não seja seu pecado original) visa

à inteligibilidade perfeita e à unidade total. Nessas condições, a empresa kantiana só pode deixar osfilósofos insatisfeitos: para Kant, o entendimento não pode conhecer o fundo das coisas e se limita a"soletrar os fenômenos". Como é então que o mundo sensível se deixa organizar, se ordenado pelascategorias do espírito? E por que Kant mantém essa coisa em si que , segundo afirma, não podemosconhecer nem designar?Os sucessores de Kant, por conseguinte, vão propor sistemas em que, de modo diferente, a irredutíveloposição entre a coisa e o espírito será eliminada. Hegel, ao definir em uma palavra os sistemas deFichte, de Schelling, ao mesmo tempo que o seu próprio, caracteriza-os sucessivamente como idealismosubjetivo, idealismo objetivo e idealismo absoluto.Kant representa o centro do pensamento moderno. Para ele convergem e nele se compõem em umfenomenismo absoluto o fenomenismo racionalista e o fenomenismo empírico. Dele depende todopensamento posterior, particularmente o idealismo clássico alemão, que desenvolve o conceito decriatividade do sujeito, de síntese a priori , de autonomia do espírito, para uma forma de monismo

imanentista, em que toda realidade se resolve nos limites da experiência, e esta é totalmente produzidapelo espírito. Além de Kant, a outra fonte essencial do idealismo alemão é Spinoza. Este filósofo é arrancado dodesprezo e do esquecimento em que jazia, e o seu pensamento encaminha decisivamente o idealismopara a trilha do monismo imanentista, para o qual já fora orientado por Kant. Todos os filósofos idealistas(Fichte, Schelling, Schleiermacher, Hegel, Schopenhauer) dependem, mais ou menos, de Spinoza, bemcomo dele dependem artistas, literatos, poetas, com Goethe à frente.Paralelo e correspondente ao movimento filosófico do idealismo pode ser considerado o romantismo,fenômeno artístico e literário, especialmente alemão. Com efeito, também o romantismo é denominado

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pelo conceito de criatividade e liberdade do espírito, como o idealismo; e com o idealismo tem emcomum o historicismo, o conceito de desenvolvimento, e, por conseguinte, a valorização da nacionalidadee da religião, que são produtos históricos.Os maiores românticos alemães são Schlegel e Novalis. A estes podem-se acrescentar Schelling eSchleiermacher; são eles, propriamente, filósofos idealistas, mas pertencem também ao movimento

romântico, pela íntima unidade espiritual do romantismo e do idealismo. Este, pois, propende, em geral,mais para a arte e a poesia, do que para as ciências e a matemática; ao passo que se deu o contráriocom o racionalismo precedente.

O Desenvolvimento do Idealismo

 Apesar do seu conceito de criatividade do espírito, de síntese a priori , Kant deixara ainda uns dados, emface dos quais o espírito é passivo: o mundo dos noumenons, que o espírito não consegue conhecer.Esse mundo de coisa em si, esse mundo de dados, é representado especialmente de um lado por aquelamisteriosa matéria, e de outro lado por aquele mundo inteligível, donde derivaria toda a atividadeorganizadora e criadora do espírito, no mundo empírico.Ora, o idealismo clássico nega todo dado, ou coisa em si, perante o qual o espírito é passivo, e portantonega o transcendente mundo kantiano dos noumenons, e reduz tudo à mais absoluta imanência doespírito. O mundo da matéria, das sensações, da natureza, é uma criação inconsciente do espírito; este étranscendental - e não transcendente - com respeito à multiplicidade e ao vir-a-ser do mundo empírico,no qual unicamente, entretanto, o espírito se realiza, vive, se concretiza a si mesmo indefinita elivremente, e é plenamente cognoscível a si mesmo.

O Idealismo Ético: Fichte

O primeiro e maior discípulo de Kant, que encaminhou decididamente o criticismo pela senda doidealismo imanentista, é Fichte. Resolve ele o mundo kantiano da sensibilidade, perante o qual, no dizerde Kant, o espírito seria passivo, no mundo da natureza, criado pelo espírito para se realizar a si mesmocomo eticidade e liberdade, pois Fichte mantém o conceito kantiano do primado da razão prática,precisamente no conceito do espírito como eticidade.

João Amadeu Fichte nasceu em 1762, em Rommenau. Primeiro estudou teologia na universidade deJena, depois dedicou-se entusiasticamente à filosofia kantiana, e conheceu pessoalmente Kant. Em 1794foi convidado a lecionar na universidade de Jena. Aí teve que enfrentar a oposição das autoridadesreligiosas e políticas, que - protestantes embora - tiveram intuição do seu anticristianismo e ateísmo. Apesar das suas desculpas, enfim teve Fichte que deixar o ensino universitário. Depois de ter peregrinadopor várias universidades, e ter travado relações com um círculo romântico, estabeleceu-sedefinitivamente, em 1810, na universidade de Berlim, onde pronunciou os famosos Discursos à Nação  Alemã , para incitar os seus patrícios contra Napoleão que humilhara e vencera a Alemanha. Faleceu emBerlim, em 1814. Entre as suas obras, a principal é Fundamentos da doutrina da ciência , onde expõesistematicamente o seu pensamento.Sustenta Fichte que o motivo fundamental, pelo qual se decide em favor do idealismo e não em favor dodogmatismo, isto é, do realismo, seria prático, moral, em suma, uma questão de caráter. Dogmatismosignifica passividade, acomodação, fraqueza, debilidade; ao passo que idealismo, isto é, imanentismo,

significaria atividade, independência, liberdade, posse de si mesmo. E, de fato, este motivo prático,moral, ficou sendo a base do idealismo posterior, que, portanto, procurou a sua justificação teorética emuma metafísica monista-imanentista, e não em uma metafísica transcendente e teísta. Assentado isto, Fichte concebe idealisticamente toda a realidade, tanto espiritual quanto material, comouma produção do eu. Trata-se, naturalmente, de um eu universal, absoluto, transcendental, isto é, Eu  puro , de que o eu empírico , os diversos "eus empíricos" seriam concretizações particulares, no tempo eno espaço. Nesses eus empíricos, e unicamente neles, o Eu puro vive, opera, desenvolve-se, em umprocesso infinito, ético, em que está a sua divindade infinita.

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Desenvolvendo a doutrina kantiana do primado da razão prática, Fichte pensa que a natureza íntima,profunda, originária do eu seja atividade, moralidade. Para realizá-la, o eu criaria o mundo da natureza,oporia a si mesmo o não-eu . Este seria precisamente como que o campo da sua atividade, o obstáculo asuperar para realizar a sua eticidade, a antítese que ele põe como tese, a fim de que seja possível asíntese ética. Tal processo ascendente, pois, não tem fim, porque, se terminasse, apagar-se-ia a vida do

espírito, a qual é atividade, eticidade, e a realidade cairia do nada.Naturalmente, tal produção do não-eu por parte do eu, tal produção da natureza por parte do espírito éinconsciente. Mas, destarte, julga Fichte ter justificado, deduzido do eu o mundo da matéria, danatureza; mundo que, para Kant, era um dado e inexplicável. Fica, todavia, racionalmente indeduzível oconteúdo desse mundo da natureza, minerais, vegetais, animais, e cada indivíduo e cada ação sua,porquanto em um sistema de idealismo absoluto deveria ser tudo racionalmente justificado - como maistarde, procurará fazer Hegel.Mas, para que seja superado e vencido esse mundo natural, para que o espírito possa aplicar a ele a suaatividade, é necessário que a natureza seja conhecida pelo espírito. Daí uma terceira duplicação do eu, adualidade do eu teorético  e do eu prático , do eu cognoscitivo e do eu ativo. Temos o eu teorético,quando, na antítese eu não-eu , prevalece o segundo elemento; temos, pelo contrário, o eu práticoquando prevalece o primeiro elemento, isto é, o espírito, que é precisamente eticidade. No conhecimentocomeça a manifestar-se aquela atividade consciente do espírito, do eu (reflexão), que era, ao invés,inconsciente no momento da produção da natureza, do não-eu (imaginação produtora), bem como namultiplicação do "eu puro" nos "eus empíricos".Tal série ideal da atividade do espírito, do eu, consciente e inconsciente, teorética e prática, tem por fima sempre mais perfeita realização do próprio espírito, isto é, a sua liberdade, a consciência da suanatureza absoluta e divina. Consciência e liberdade que encontram um progresso na sociedade humana,em uma sociedade de seres livres, no estado. Fichte tem uma concepção ética do estado, das nações,dos povos, deva ser guiada e ensinada por um povo, uma nação, um estado ideal. Segundo ele, esseestado seria a Alemanha. É um mito romântico da Alemanha, em que o povo alemão é considerado comoo povo puro e originário, encarnando a idéia da humanidade.Daqui se pode compreender a ação política exercida por Fichte na Prússia, em Berlim - durante aocupação, a dominação de Napoleão, causa de humilhação para o povo germânico - com os Discursos à Nação Alemã . Nestes discursos esforça-se Fichte para despertar no povo alemão, despedaçado e

dominado, uma consciência de unidade e autonomia nacionais, que deveriam ter culminado em umestado alemão, superestado em face de outros estados.Essa atividade utópica-política de Fichte tem certa semelhança com a atividade desenvolvida alguns anosdepois na Itália, por Gioberti que escreveu o famoso livro Primato morale e civile degli Italiani . Nesta obraGioberti não somente quer dar à Itália unidade e independência nacional e política, mas também procuraevidenciar o seu primado no mundo; primado moral e civil, isto é, religioso e cultural, queindiscutivelmente ela possui, como herdeira da cultura clássica e sede do cristianismo católico romano.Não é preciso lembrar que o Deus de Fichte não é transcendente, pessoa, criador, como o Deus doteísmo e do cristianismo, isto é, não é Deus no sentido verdadeiro e próprio; mas é imanente, impessoale gerador do mundo, de sorte que o verdadeiro conceito de Deus é logicamente anulado, como justamente observa Schopenhauer. Compreendem-se, assim, as acusações de ateísmo levantadas contraFichte. O Deus de Fichte é apenas ordo ordinans , isto é, deveria ser a ordem moral do mundo.Entretanto, em um sistema imanentista - como é o de Fichte - acaba por coincidir com a ordem real,

natural, do mundo, em que o "deve ser" é reduzido ao "ser" .O próprio Fichte notou essa grave deficiência, essa demolição de Deus. E, em uma segunda fase do seupensamento, volta ele para uma concepção de Deus absoluto e imutável, ideal para o qual tende oafanoso evolucionar humano, que aspira aos valores espirituais e morais.

O Idealismo Estético: Schelling

Embora colega de Fichte e mais velho que Hegel, Schelling está logicamente entre Fichte e Hegel, pelomenos na primeira grande fase da sua especulação filosófica, denominada filosofia da identidade .

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 Ademais, representa ele a filosofia do romantismo, enquanto Schelling assume no seu sistema aconcepção romântica, em virtude da qual toda a natureza é espiritualizada, e o espírito humano atinge aessência metafísica da realidade através de uma intuição estética.Frederico Guilherme Schelling  nasceu em 1775, em Leonberg. Em Tubinga teve Hegel comocondiscípulo, com o qual, em seguida, sustentou pesada polêmica. Passou da teologia à filosofia e

dedicou-se ao estudo de Spinoza, do qual deriva a sua concepção idealista; de Fichte, que constitui opressuposto imediato do seu pensamento, afastando-se entretanto dele em seguida. Em Leipzig integroua sua cultura humanista e literária com estudos científicos. Nele influíram também as turvas fantasias damística alemã. Foi sucessivamente professor nas universidades de Jena, Würzburg, Erlangen, Munique eBerlim, onde dominara o seu adversário Hegel, cujo racionalismo ele demole. Faleceu em Berlim, em1854, quando o idealismo já estava esfacelado.Schelling foi um autor variado e fecundo. As faces do seu pensamento são fundamentalmente duas: operíodo da filosofia da identidade, e o da filosofia da liberdade. As suas obras principais são: o Sistema do idealismo Transcendental ; Representação do meu Sistema  (primeira fase, filosofia da identidade);Filosofia e Religião ; Pesquisas Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana e os Objetos Conexos com Esta (segunda fase, filosofia da liberdade). A filosofia de Schelling é, fundamentalmente, idealista: o espírito, o sujeito, o eu, é princípio de tudo.Como Fichte, admite que a natureza é uma produção necessária do espírito; recusa, porém, o conceitode Fichte de que a natureza tenha uma existência puramente relativa ao espírito. Para ele, a natureza -embora concebida idealisticamente - tem uma realidade autônoma com respeito ao sujeito, àconsciência. A natureza é o espírito na fase de consciência obscura, como o espírito é a natureza na fasede consciência clara.Então o princípio da realidade não é mais o eu de Fichte (o eu absoluto, o sujeito puro); mas deverá serum princípio mais profundo, anterior ao eu e ao não-eu: será precisamente a identidade absoluta do eu edo não-eu, sujeito e objeto, espírito e natureza. Dessa identidade, princípio absoluto da realidade,decorrerá, primeiro, a natureza e o seu desenvolvimento, e depois o espírito com toda a sua história, nãocomo sendo oposição e negação da natureza, mas como seu desenvolvimento e consciência.Que a natureza seja espiritualidade latente e progressiva, Schelling julga demonstrá-lo mediante aracionalidade imanente na própria natureza, e precisamente mediante a sua finalidade. Ao surgir a sensibilidade, nasce no universo a consciência espiritual, começa o desenvolvimento do

espírito humano, que é um progresso, uma continuação com respeito ao desenvolvimento da natureza. A unidade, a identidade profunda entre natureza e espírito deveria, segundo Schelling, ser aprendida pelaintuição estética expressa na obra de arte, que é a obra do gênio. E o gênio se encontra só no campoestético, não no científico. Unicamente o gênio artístico atinge e revela o artista misterioso que atua nouniverso.Logo, a realidade absoluta é identidade entre natureza e espírito, objeto e sujeito: unidade de umamultiplicidade. Mas então surge o problema que assoma em toda concepção monista da realidade: ou arealidade verdadeira cabe ao idêntico, ao indistinto, ao uno imutável; ou o multíplice, o devir do mundotem uma realidade verdadeira. No primeiro caso, a multiplicidade e o devir do mundo, a natureza e oespírito, são meras aparências subjetivas; no segundo, propende para a primeira solução: o idêntico nãoé a causa do universo, mas é o próprio universo.Mas então como se explica a visão, mesmo ilusória, do universo que aparece múltiplo e in fieri? Se arealidade absoluta é una e imutável, e nada existe fora dela, como e donde pode surgir essa visão

destruidora do Absoluto? Schelling procura resolver esse problema, passando da filosofia da identidade àfilosofia da liberdade , de um sistema racional, a um sistema irracional. Tal passagem é representada pelasegunda fase do seu pensamento.Nessa segunda fase, Schelling imagina o ser absoluto, Deus, como indiferença de irracional e racional,possibilidade do irracional e do racional, vontade inconsciente que aspira à racionalidade, à própria auto-revelação. Essa realização de racionalidade, essa revelação de Deus a si mesmo se realizam nadeterminação das idéias eternas em Deus. Schelling concebe as idéias eternas ao mesmo tempo comoverbo de Deus, revelação de Deus a si mesmo, e como exemplares universais e imutáveis das existênciasparticulares e in fieri .

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 A passagem de Deus, do mundo ideal, ao mundo empírico e contingente, não se pode realizarmediante uma dedução lógica, porquanto há essencial heterogeneidade entre o perfeito, o imutável, ouniversal e o imperfeito, o temporal, o particular. Tal passagem se explica então mediante um atoarracional, irracional da vontade, de liberdade. E isto é possível, porque as idéias eternas participam danatureza divina, que é liberdade e vontade. Por conseguinte, elas se podem destacar do Absoluto, decair

no mundo empírico da multiplicidade, da individualidade, do contingente, do devir.E, com efeito, tal queda, tal separação aconteceu e constitui o mundo material e espiritual, natural ehumano, com todo o mal que nele existe. Através, pois, da história da natureza e da humanidade,deveria realizar-se progressivamente a redenção dessa queda original, o retorno das coisas a Deus, damultiplicidade à Unidade, do finito ao Infinito. Essa redenção redimiria não só e não tanto o mundo e ohomem, mas o próprio Deus: porquanto, ele, assim, superaria o seu fundo originário arracional eirracional, revelando-se plenamente a si mesmo, conquistando a sua racionalidade.Compreende-se, portanto, como, para Schelling, é racional o mundo das ciências, das idéias; masirracional o mundo da existência, da realidade. Com relação ao primeiro é possível conhecimentoracional, ciência, filosofia; ao passo que o segundo pode ser unicamente descrito com base naexperiência.O pensamento de Schelling é, pelo que se vê, difícil e proteiforme.

O Idealismo Religioso: Schleiermacher

 A Schelling pode-se ligar Schleiermacher, porquanto ele também é ligado estritamente ao movimentoromântico, e é, portanto, filósofo do Romantismo, embora muito inferior a Schelling como metafísico.Juntamente com o Romantismo, Scheleiermacher procura valorizar, justificar a religião, desprezada eexpulsa da vida do espírito pelo racionalismo iluminista. Scheleiermacher teve uma influência vasta eduradoura sobre o protestantismo liberal alemão, elucidando o princípio da experiência interior , elementogerminal da Reforma luterana. É, porém, uma valorização no sentido imanentista, idealista, de sorte quea religião se torna necessariamente e ainda mais radicalmente demolida.Frederico Scheleiermacher  nasceu em Breslau, em 1768. Foi professor em Halle e Berlim, ondefaleceu em 1831. As suas obras principais, em ordem cronológica, são: Discursos sobre a Religião ;Monólogos ; Crítica das Doutrinas;   A Fé Cristã . Estes críticos têm um interesse religioso, mas implicam

também numa concepção metafísica do mundo e da vida, mediante a qual o autor procura justificar areligião em geral e o cristianismo em especial. A concepção filosófica de Scheleiermacher é, fundamentalmente, a do idealismo romântico, isto é, domonismo imanentista. Embora Scheleiermacher pense que não podemos conhecer nada a respeito deDeus, teoreticamente, repete de muitos modos que a realidade é una , e que o espírito humano na suaplena atualidade é a consciência de Deus imanente.Segundo Scheleiermacher, o Absoluto não é atingível por via prática, moral, como julgava Kant. ParaKant, a atividade que atinge o Absoluto é a vontade moral, a razão prática. Daí o primado da razãoprática; daí ser a metafísica substituída pela moral; daí ser a religião reduzida aos limites da razãoprática, isto é, resolvida na moral. Mas o Absoluto não é atingível sequer por via teorética, racional, como julgava Hegel, dada a sua concepção panlogista-imanentista da realidade (toda a realidade é racional e toda a racionalidade é real) : daí a lógica coincidir com a ontologia, a ética ser resolvida na dialética, e areligião aniquilada na filosofia.

O Absoluto - segundo Scheleiermacher - é atingido pelo sentimento: não pelo simples sentimentoentendido em sentido psicológico, que é uma atividade coordenada ao conhecimento e à vontade, e é,como o conhecimento e a vontade, secundário, dependente e limitado; mas pelo sentimento potenciadoromanticamente em sentido metafísico, sentimento este que seria precisamente a faculdade do Absoluto,do Uno, e a raiz comum das outras atividades psíquicas. Scheleiermacher quer libertar a religião não sóda ciência, mas também da moral, para celebrar uma religiosidade estética. Pensa ele - como Schelling -que o Absoluto é atingido mediante a intuição estética, a que Schleiermacher julga poder dar umespecífico valor religioso.

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Scheleiermacher sustenta que o conhecimento e a vontade - a ciência e a moral - não podem atingiro Absoluto, que é uno, porquanto o conhecimento e a vontade implicam a multiplicidade decorrente darelativa mudança dos estados de consciência e a dualidade de duas atividades, (sujeito e objeto), umaexcluindo a outra. E julga que o privilégio de apreender a unidade metafísica do ser é devido aosentimento, valorizado metafisicamente.

Que relação existe entre sentimento e religião, entre os quais Scheleiermacher institui uma equação? O Absoluto não é atingido pelo conhecimento, pela ciência, e nem sequer pela vontade, pela ética, e simpelo sentimento. E por que esta atividade deve ser considerada religiosa e não, por exemplo, estética?Scheleiermacher parece proceder deste modo. Segundo a experiência religiosa, ele define, nãoarbitrariamente, a religião como sendo a relação do finito com o infinito, porquanto, de fato, a relação dofinito com o infinito não pode ser senão dependência absoluta, do sentimento. Ao sentimento elereconhece o valor particular de imediata autoconsciência e transforma-o metafisicamente. E concluifinalizando na equação sentimento-religião, e, portanto, acaba admitindo o primado da religião.E como se realiza uma relação, isto é, uma multiplicidade, no sentimento, que deveria ser a plenaconsciência do Absoluto? Propriamente pela referência do sujeito empírico - apreendido imediatamentepelo sentimento psicológico, pela consciência imediata do eu - ao Absoluto, ao Uno, ao Eu, o qual deveriaser apreendido pelo sentimento em sentido metafísico, que é abstrata unidade, indiferença absoluta. Essarelação não é, evidentemente, como de criatura a Criador; mas como dualidade na unidade, umaexpressão da distinção geral idealista entre eu empírico e eu transcendental.Mediante a doutrina desses dois sentimentos, (empírico e metafísico), segundo Scheleiermacher, seriaexplicada a relação religiosa; mas não se compreende como no Absoluto, que é uno, e no sentimento,que é a consciência do Absoluto, se determine essa dualidade. É o escolho fatal do monismo, contra oqual Scheleiermacher em vão se bateu.Parece, portanto, poder-se distinguir em Scheleiermacher uma religiosidade em sentido amplo, comosentimento indeterminado da Unidade indeterminada, e uma religiosidade em sentido específico, queseria a referência das várias e mutáveis determinações da autoconsciência ao Absoluto, ao mais alto emais puro Eu, que constitui a nossa essência. Nisto consistiria a religiosidade verdadeira e própria,segundo Scheleiermacher. A prescindir das críticas externas e internas que se podem fazer a essa construção metafísico-imanentista, estético-romântica, é certo que, para Scheleiermacher, a religião ocupa o mais alto grau da

atividade humana, assim como o sentimento ocupa o vértice da vida espiritual. E como na vida espiritualo conhecimento e a vontade seriam secundários e derivados com respeito ao sentimento, assim naatividade religiosa a teoria e a prática, a doutrina e a moral, seriam expressões inadequadas e simbólicasda religiosidade. A filosofia religiosa de Scheleiermacher teve uma grande influência sobre o protestantismo liberal alemãodo século XIX.

Hegel 

 A Idéia, A Natureza, O Espírito

Os três grandes momentos hegelianos no devir dialético da realidade são a idéia, a natureza, o espírito. Aidéia constitui o princípio inteligível da realidade; a natureza é a exteriorização da idéia no espaço e no

tempo; o espírito é o retorno da idéia para si mesma. A primeira grande fase no absoluto devir doespírito é representada pela idéia , que, por sua vez, se desenvolve interiormente em um processodialético, segundo o sólito esquema triádico (tese, antítese, síntese), cujo complexo é obejto da Lógica ; asaber, a idéia é o sistema dos conceitos puros, que representam os esquemas do mundo natural e doespiritual. É, portanto, anterior a estes, mas apenas logicamente.Chegada ao fim de seu desenvolvimento abstrato, a idéia torna-se natureza , passa da fase em si à fase fora de si ; esta fase representa a grande antítese à grande tese, que é precisamente a idéia. Em anatureza a idéia perde como que a sua pureza lógica, mas em compensação adquire uma concretidadeque antes não tinha. A idéia, todavia, também na ordem da natureza, deveria desenvolver-se mais ou

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menos, segundo o processo dialético, das formas ínfimas do mundo físico até às formas maisperfeitas da vida orgânica. Esta hierarquia dinâmica é estudada, no seu complexo, pela Filosofia da natureza .Finalmente, tendo a natureza esgotado a sua fecundidade, a idéia, assim concretizada, volta para si,toma consciência se si no espírito , que é precisamente a idéia por si : a grande síntese dos opostos (idéia

e natureza), a qual é estudada em seus desenvolvimentos pela Filosofia do Espírito . O espíritodesenvolve-se através dos momentos dialéticos de subjetivo (indivíduo), objetivo (sociedade), absoluto(Deus); este último se desenvolve, por sua vez, em arte (expressão do absoluto na intuição estética),religião (expressão do absoluto na representação mítica), filosofia (expressão conceptual, lógica, plena doabsoluto).Com o espírito subjetivo , a individualidade empírica, nasce a consciência do mundo. O espírito subjetivocompreende três graus dialéticos: consciência , autoconsciência e razão ; com esta última é atingida aconsciência da unidade do eu e do não-eu. O espírito subjetivo é estudado, em sentido vasto, pelapsicologia, que se divide em antropologia, fenomenologia do espírito, psicologia propriamente dita. Nãoestando, pois, o espírito individual em condição de alcançar, no seu isolamento, os fins do espírito, derealizar a plena consciência e liberdade do espírito, surge e se afirma a fase do espírito objetivo , isto é, asociedade. No espírito objetivo, nas concretizações da sociedade, Hegel distingue ainda três grausdialéticos: o direito  (que reconhece a personalidade em cada homem, mas pode regular apenas aconduta externa dos homens); a moralidade (que subordina interiormente o espírito humano à lei dodever); a eticidade  ou moralidade social (que atribui uma finalidade concreta à ação moral, e sedetermina hierarquicamente na família , na sociedade civil , no estado). A sociedade do estado transcende a sociedade familiar bem como a sociedade civil, que é um conjuntode interesses econômicos e se diferencia em classes e corporações. O estado transcende estassociedades, não porque seja um instrumento mais perfeito para a realização dos fins materiais eespirituais da pessoa humana (a qual unicamente tem realidade metafísica); mas porque, segundo Hegel,tem ele mesmo uma realidade metafísica, um valor ético superior ao valor particular e privado dassociedades precedentes, devido precisamente à sua maior universalidade e amplitude, isto é, é umasuperior objetivação do espírito, segundo a metafísica monista-imanentista de Hegel, daí derivando umaconcepção ético-humanista do estado, denominada por Hegel espírito vivente , razão encarnada , deus terreno .

Segundo a dialética hegeliana, naturalmente a sucessão e o predomínio dos vários estados na história dahumanidade são necessários, racionais e progressivos; e necessária, racional e progressiva é a luta, aguerra, grças à qual, ao predomínio de um estado se segue o predomínio de um outro, a um  povo eleito  sucede um outro. Este, no fundo, tem razão sobre o vencido unicamente porque é vencedor, e aqueletem culpa unicamente porque é vencido. A história do mundo - com todo o mal, as injustiças, os crimesde que está cheia - seria destarte o tribunal do mundo. (O que se compreende, quando se faz coincidir o"ser" com o "deve ser", como acontece de fato no sistema hegeliano, graças à dialética dos opostos, emque os valores - verdadeiro-falso, bem-mal, etc. - são nivelados, porquanto igualmente necessários paraa realização da idéia).Se bem que no sistema hegeliano a vida do espírito culmine efetivamente no estado, põe dialeticamenteacima do espírito objetivo o espírito absoluto, em que, através de uma última hierarquia ternária de graus(arte, religião, filosofia), o espírito realizaria finalmente a consciência plena da sua infinidade, da suanatureza divina, em uma plena adequação consigo mesmo.

Na arte o espírito tem intuição, em um objeto sensível, da sua essência absoluta; quer dizer, o belo é aidéia concretizada sensivelmente. Portanto, no momento estético, o infinito é visto como finito. Nareligião , pelo contrário, se efetua a unidade do finito e do infinito, imanente no primeiro; mas em formasentimental, imaginativa, mítica. Hegel traça uma classificação das religiões, que não passa de umahistória das mesmas, segundo o seu sólito método dialético. Nessa classificação das religiões ocristianismo é colocado no vértice como religião absoluta, enquanto no ministério da encarnação do Verbo, da humanação de Deus, ele vê, ao contrário, a consciência que o espírito (humano) adquire dasua natureza divina.

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 Acima da religião e do cristianismo está a filosofia , que tem o mesmo conteúdo da religião, mas emforma racional, lógica, conceptual. Na filosofia o espírito se torna inteiramente autotransparente,autoconsciente, conquista a sua absoluta liberdade, infinidade. Como as várias religiões representam umprocesso dialético para a religião absoluta, assim, os diversos sistemas filosóficos, que se encontram nahistória da filosofia, representariam os momentos necessários para o advento da filosofia absoluta, que

seria o idealismo absoluto de Hegel.

O Positivismo - Comte 

Características Gerais do Positivismo

 Ao idealismo da primeira metade do século XIX se segue o positivismo, que ocupa, mais ou menos, asegunda metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo civilizado. O positivismo representa umareação contra o apriorismo, o formalismo, o idealismo, exigindo maior respeito para a experiência e osdados positivos. Entretanto, o positivismo fica no mesmo âmbito imanentista do idealismo e dopensamento moderno em geral, defendendo, mais ou menos, o absoluto do fenômeno. "O fato é divino",dizia Ardigò. A diferença fundamental entre idealismo e positivismo é a seguinte: o primeiro procura umainterpretação, uma unificação da experiência mediante a razão; o segundo, ao contrário, quer limitar-se àexperiência imediata, pura, sensível, como já fizera o empirismo. Daí a sua pobreza filosófica, mastambém o seu maior valor como descrição e análise objetiva da experiência - através da história e daciência - com respeito ao idealismo, que alterava a experiência, a ciência e a história. Dada essaobjetividade da ciência e da história do pensamento positivista, compreende-se porque elas são fecundasno campo prático, técnico, aplicado. Além de ser uma reação contra o idealismo, o positivismo é ainda devido ao grande progresso dasciências naturais, particularmente das biológicas e fisiológicas, do século XIX. Tenta-se aplicar osprincípios e os métodos daquelas ciências à filosofia, como resolvedora do problema do mundo e da vida,com a esperança de conseguir os mesmos fecundos resultados. Enfim, o positivismo teve impulso, graçasao desenvolvimento dos problemas econômico-sociais, que dominaram o mesmo século XIX. Sendograndemente valorizada a atividade econômica, produtora de bens materiais, é natural se procure umabase filosófica positiva, naturalista, materialista, para as ideologias econômico-sociais.

Gnosiologicamente, o positivismo admite, como fonte única de conhecimento e critério de verdade, aexperiência, os fatos positivos, os dados sensíveis. Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação, justificação transcendente ou imanente, da experiência. A filosofia é reduzida à metodologia e àsistematização das ciências. A lei única e suprema, que domina o mundo concebido positivisticamente, éa evolução necessária de uma indefectível energia naturalista, como resulta das ciências naturais.Dessas premissas teoréticas decorrem necessariamente as concepções morais hedonistas e utilitárias,que florescem no seio do positivismo. E delas dependem, mais ou menos, também os sistemas político-econômico-sociais, florescidos igualmente no âmbito natural do positivismo. Na democracia moderna  -que é a concepção política, em que a soberania é atribuída ao povo, à massa - a vontade popular semanifesta através do número, da quantidade, da enumeração material dos votos (sufrágio universal). Oliberalismo , que sustenta a liberdade completa do indivíduo - enquanto não lesar a liberdade alheia -sustenta também a livre concorrência econômica através da lida mecânica, do conflito material das forçaseconômicas. Para o socialismo , enfim, o centro da vida humana está na atividade econômica, produtora

de bens materiais , e a história da humanidade é acionada por interesses materiais , utilitários, econômicos(materialismo histórico), e não por interesses espirituais, morais e religiosos.O positivismo do século XIX pode semelhar ao empirismo, ao sensismo (e ao naturalismo) dos séculosXVII e XVIII, também pelo país clássico de sua floração (a Inglaterra) e porquanto reduz,substancialmente, o conhecimento humano ao conhecimento sensível, a metafísica à ciência, o espírito ànatureza, com as relativas conseqüências práticas. Diferencia-se, porém, desses sistemas por umelemento característico: o conceito de vir-a-ser, de evolução , considerada como lei fundamental dosfenômenos empíricos, isto é, de todos os fatos humanos e naturais. Tal conceito representa umequivalente naturalista do historicismo romântico da primeira metade do século XIX, com esta diferença,

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entretanto, que o idealismo concebia o vir-a-ser como desenvolvimento racional, teológico, ao passoque o positivismo o concebe como evolução, por causas. Através de um conflito mecânico de seres e deforças, mediante a luta pela existência, determina-se uma seleção natural, uma eliminação do organismomais imperfeito, sobrevivendo o mais perfeito. Daí acreditar o positismo firmemente no progresso - comonele já acreditava o idealismo. Trata-se, porém, de um progresso concebido naturalisticamente, quer nos

meios quer no fim, para o bem-estar material.Mas, como no âmbito do idealismo se determinou uma crítica ao idealismo, igualmente, no âmbito dopositivismo, a única realidade existente, o cognoscível, é a realidade física, o que se pode atingircientificamente. Portanto, nada de metafísica e filosofia, nada de espírito e valores espirituais. Noentanto, atinge a ciência fielmente a sua realidade, que é a experiência? E a ciência positivista é puraciência, ou não implica uma metafísica naturalista inconsciente e, involuntariamente, discutível pelomenos tanto quanto a metafísica espiritualista? Nos fins do século passado e nos princípios deste séculose determina uma crise interior da ciência mecaniscista, ideal e ídolo do positivismo, para dar lugar aoutras interpretações do mundo natural no âmbito das próprias ciências positivas. Daí uma revisão e umacrítica da ciência por parte dos mesmos cientistas, que será uma revisão e uma crítica do positivismo.Nessa crítica e vitória sobre o positivsmo, pode-se distinguir duas fases principais: uma negativa, decrítica à ciência e ao positivismo; outra positiva, de reconstrução filosófica, em relação com exigênciasmais ou menos metafísicas ou espiritualistas.

 Augusto Comte - Vida e Obras

Estudante da Politécnica aos 16 anos, Comte é nomeado em 1832 explicador de análise e de mecânicanessa mesma escola e, depois, em 1837, examinador de vestibular. Ver-se-á retirado desta última funçãoem 1844 e de seu posto de explicador em 1851. Apesar de seus reiterados pedidos, não obterá odesejado cargo de professor da Politécnica, nem mesmo a cátedra de história geral das ciências positivasno Collège de France, que quisera criar em benefício próprio. A obra de Comte guarda estreitas relaçõescom os acontecimentos de sua vida. Dois encontros capitais presidem as duas grandes etapas destaobra. Em 1817, ele conhece H. de Saint-Simon: O Organizador , o  Sistema Industrial , e concebe, a partirdaí, a criação de uma ciência social e de uma política científica. Já de posse, desde 1826, das grandeslinhas de seu sistema, Comte abre em sua casa, rua do Faubourg Montmartre, um Curso de filosofia 

 positiva - rapidamente interrompido por uma depressão nervosa - (que lhe vale ser internado durantealgum tempo no serviço de Esquirol). Retoma o ensino em 1829. A publicação do Curso inicia-se em1830 e se distribui em 6 volumes até 1842. Desde 1831 Comte abrirá, numa sala da prefeitura do 3.° distrito, um curso público e gratuito de astronomia elementar destinado aos "operários de Paris", cursoeste que ele levaria avante por sete anos consecutivos. Em 1844 publica o prefácio do curso sob o título:

Discurso dobre o espírito positivo .

É em outubro de 1844 que se situa o segundo encontro capital que vai marcar uma reviravolta nafilosofia de Augusto Comte. Trata-se da irmã de um de seus alunos, Clotilde de Vaux, esposaabandonada de um cobrador de impostos (que fugira para a Bélgica após algumas irregularidadesfinanceiras). Na primavera de 1845, nosso filósofo de 47 anos declara a esta mulher de 30 seu amorfervoroso. "Eu a considero como minha única e verdadeira esposa não apenas futura, mas atual e

eterna". Clotilde oferece-lhe sua amizade. É o "ano sem par" que termina com a morte de Clotilde a 6 deabril de 1846. Comte sente então sua razão vacilar, mas entrega-se corajosamente ao trabalho. Entre1851 e 1854 aparecem os enormes volumes do Sistema de política positiva ou Tratado de sociologia que intitui a religião da humanidade . O último volume sobre o Futuro humano prevê uma reformulação totalda obra sob o título de Síntese Subjetiva . Desde 1847 Comte proclamou-se grande sacerdote da Religiãoda Humanidade. Institui o "Calendário positivista" (cujos santos são os grandes pensadores da história),forja divisas "Ordem e Progresso" , "Viver para o próximo" ; "O amor por princípio, a ordem por base, o  progresso por fim" , funda numerosas igrejas positivistas (ainda existem algumas como exemplo no

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Brasil). Ele morre em 1857 após ter anunciado que "antes do ano de 1860" pregaria "o positivismoem Notre-Dame como a única religião real e completas".Comte partiu de uma crítica científica da teologia para terminar como profeta. Compreende-se que algunstenham contestado a unidade de sua doutrina, notadamente seu discípulo Littré, que em 1851 abandonaa sociedade positivista. Littré - autor do célebre Dicionário, divulgador do positivismo nos artigos do

Nacional - aceita o que ele chama a primeira filosofia de Augusto Comte e vê na segunda uma espécie dedelírio político-religioso, inspirado pelo amor platônico do filósofo por Clotilde.Todavia, mesmo se o encontro com Clotilde deu à obra do filósofo um novo tom, é certo que Comte, jáantes do Curso de filosofia positiva (e principalmente em seu "opúsculo fundamental" de 1822), semprepensou que a filosofia positivista deveria terminar finalmente em aplicações políticas e nas fundação deuma nova religião. Littré podia sem dúvida, em nome de suas próprias concepções, "separar Comte delemesmo". Mas o historiador, que não deve considerar a obra com um julgamento pessoal, podeconsiderar-se autorizado a afirmar a unidade essencial e profunda da doutrina de Comte.(¹) (¹) Comte, afirmando vigorosamente a unidade de seu sistema, reconhece que houve duas carreiras emsua vida. Na primeira, diz ele sem falsa modéstia, ele foi Aristóteles e na segunda será São Paulo.

 A Lei dos Três Estados

 A filosofia da história, tal como a concebe Comte, é de certa forma tão idealista quanto a de Hegel. ParaComte "as idéias conduzem e transformam o mundo" e é a evolução da inteligência humana quecomanda o desenrolar da história. Como Hegel ainda, Comte pensa que nós não podemos conhecer oespírito humano senão através de obras sucessivas - obras de civilização e história dos conhecimentos edas ciências - que a inteligência alternadamente produziu no curso da história. O espírito não poderiaconhecer-se interiormente (Comte rejeita a introspecção, porque o sujeito do conhecimento confunde-secom o objeto estudado e porque pode descobrir-se apenas através das obras da cultura eparticularmente através da história das ciências. A vida espiritual autêntica não é uma vida interior, é aatividade científica que se desenvolve através do tempo. Assim como diz muito bem Gouhier, a filosofiacomtista da história é "uma filosofia da história do espírito através das ciências".O espírito humano, em seu esforço para explicar o universo, passa sucessivamente por três estados:a) O estado teológico ou "fictício" explica os fatos por meio de vontades análogas à nossa (a

tempestade, por exemplo, será explicada por um capricho do deus dos ventos, Eolo). Este estado evoluido fetichismo ao politeísmo e ao monoteísmo.b) O estado metafísico substitui os deuses por princípios abstratos como "o horror ao vazio", por longotempo atribuído à natureza. A tempestade, por exemplo, será explicada pela "virtude dinâmica"do ar (²).Este estado é no fundo tão antropomórfico quanto o primeiro ( a natureza tem "horror" do vazioexatamente como a senhora Baronesa tem horror de chá). O homem projeta espontaneamente suaprópria psicologia sobre a natureza. A explicação dita teológica ou metafísica é uma explicaçãoingenuamente psicológica. A explicação metafísica tem para Comte uma importância sobretudo históricacomo crítica e negação da explicação teológica precedente. Desse modo, os revolucionários de 1789 são"metafísicos" quando evocam os "direitos" do homem - reivindicação crítica contra os deveres teológicosanteriores, mas sem conteúdo real.c) O estado positivo é aquele em que o espírito renuncia a procurar os fins últimos e a responder aosúltimos "por quês". A noção de causa (transposição abusiva de nossa expeirência interior do querer para

a natureza) é por ele substituída pela noção de lei. Contentar-nos-emos em descrever como os fatos sepassam, em descobrir as leis (exprimíveis em linguagem matemática) segundo as quais os fenômenos seencadeiam uns nos outros. Tal concepção do saber desemboca diretamente na técnica: o conhecimentodas leis positivas da natureza nos permite, com efeito, quando um fenômeno é dado,  prever o fenômenoque se seguirá e, eventualmente agindo sobre o primeiro, transformar o segundo. ("Ciência dondeprevisão, previsão donde ação"). Acrescentemos que para Augusto Comte a lei dos três estados não é somente verdadeira para a históriada nossa espécie, ela o é também para o desenvolvimento de cada indivíduo. A criança dá explicações

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teológicas, o adolescente é metafísico, ao passo que o adulto chega a uma concepção "positivista"das coisas.(²) São igualmente metafísicas as tentativas de explicação dos fatos biológicos que partem do "princípiovital", assim como as explicações das condutas humanas que partem da noção de "alma".

 A Classificação das Ciências

 As ciências, no decurso da história, não se tornaram "positivas" na mesma data, mas numa certa ordemde sucessão que corresponde à célebre classificação: matemáticas, astronomia, física, química, biologia,sociologia.Das matemáticas à sociologia a ordem é a do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao maisconcreto e de uma proximidade crescente em relação ao homem.Esta ordem corresponde à ordem histórica da aparição das ciências positivas. As matemáticas (que comos pitagóricos eram ainda, em parte, uma metafísica e uma mística do número), constituem-se,entretanto, desde a antiguidade, numa disciplina positiva (elas são, aliás, para Comte, antes uminstrumento de todas as ciências do que uma ciência particular). A astronomia descobre bem cedo suasprimeiras leis positivas, a física espera o século XVII para, com Galileu e Newton, tornar-se positiva. Aoportunidade da química vem no século XVIII (Lavoisier). A biologia se torna uma disciplina positiva noséculo XIX. O próprio Comte acredita coroar o edifício científico criando a sociologia. As ciências mais complexas e mais concretas dependem das mais abstratas. De saída, os objetos dasciências dependem uns dos outros. Os seres vivos estão submetidos não só às leis particulares da vida,como também às leis mais gerais, físicas e químicas de todos os corpos (vivos ou inertes). Um ser vivoestá submetido, como a matéria inerte, às leis da gravidade. Além disso, os métodos de uma ciênciasupõem que já sejam conhecidos os das ciências que a precederam na classificação. É preciso sermatemático para saber física. Um biólogo deve conhecer matemática, física e química. Entretanto, se asciências mais complexas dependem das mais simples, não poderíamos deduzi-las de, nem reduzi-las aestas últimas. Os fenômenos psicoquímicos condicionam os fenômenos biológicos, mas a biologia não éuma química orgânica. Comte afirma energicamente que cada etapa da classificação introduz um camponovo, irredutível aos precedentes. Ele se opõe ao materialismo que é "a explicação do superior peloinferior".

Nota-se, enfim, que a psicologia não figura nesta classificação. Para Comte o objeto da psicologia podeser repartido sem prejuízo entre a biologia e a sociologia.

 A Humanidade

 A última das ciências que Comte chamara primeiramente física social, e para a qual depois inventou onome de sociologia reveste-se de importância capital. Um dos melhores comentadores de Comte, Levy-Bruhl, tem razão de sublinhar: "A criação da ciência social é o momento decisivo na filosofia de Comte. Dela tudo parte, a ela tudo se reduz" . Nela irão se reunir o positivismo religioso, a históriado conhecimento e a política positiva. É refletindo sobre a sociologia positiva que compreenderemos queas duas doutrinas de Comte são apenas uma. Enfim, e sobretudo, é a criação da sociologia que,permitindo aquilo que Kant denominava uma "totalização da experiência", nos faz compreender o que é,para Comte, fundamentalmente, a própria filosofia.

Comte, ao criar a sociologia, a sexta ciência fundamental, a mais concreta e complexa, cujo objeto é a"humanidade", encerra as conquistas do espírito positivo: como diz excelentemente Gouhier - em suaadmirável introdução ao Textos Escolhidos de Comte, publicados por Aubier - "Quando a última ciênciachega ao último estado, isso não significa apenas o aparecimento de uma nova ciência. O nascimento dasociologia tem uma importância que não podia ter o da biologia ou o da física: ele representa o fato deque não mais existe no universo qualquer refúgio para os deuses e suas imagens metafísicas. Como cadaciência depende da precedente sem a ela se reduzir, o sociólogo deve conhecer o essencial de todas asdisciplinas que precedem a sua. Sua especialização própria se confunde, pois - diferentemente do que sepassa para os outros sábios - com a totalidade do saber. Significa dizer que o sociólogo é idêntico ao

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próprio filósofo, "especialista em generalidades", que envolve com um olhar enciclopédico toda aevolução da inteligência, desde o estado teológico ao estado positivo, em todas as disciplinas doconhecimento. Comte repudia a metafísica, mas não rejeita a filosofia concebida como interpretaçãototalizante da história e, por isto, identificação com a sociologia, a ciência última que supõe todas asoutras, a ciência da humanidade, a ciência, poder-se-ia dizer em termos hegelianos, do "universal

concreto".O objeto próprio da sociologia é a humanidade e é necessário compreender que a humanidade não sereduz a uma espécie biológica: há na humanidade uma dimensão suplementar - a história - o que faz aoriginalidade da civilização (da "cultura" diriam os sociólogos do século XIX). O homem, diz-nos Comte,"é um animal que tem uma história". As abelhas não têm história. Aquelas de que fala Virgílio nasGeórgicas comportavam-se exatamente como as de hoje em dia. A espécie das abelhas é apenas asucessão de gerações que repetem suas condutas instintivas: não há, pois, num sentido estrito,sociedades animais, ou ao menos a essência social dos animais reduz-se à natureza biológica. Somente ohomem tem uma história porque é ao mesmo tempo um inventor e um herdeiro. Ele cria línguas,instrumentos que transmitem este patrimônio pela palavra, e, nos últimos milênios, pela escrita àsgerações seguintes que, por sua vez, exercem suas faculdades de invenção apenas dentro do quadro doque elas receberam.  As duas idéias de tradição e de progresso, longe de se excluírem, se completam .Como diz Comte, Gutemberg ainda imprime todos os livros do mundo, e o inventor do arado trabalha,invisível, ao lado do lavrador. A herança do passado só torna possíveis os progressos do futuro e "ahumanidade compõe-se mais de mortos que de vivos".Comte distingue a sociologia estática da sociologia dinâmica. A primeira estuda as condições gerais detoda a vida social, considerada em si mesma, em qualquer tempo e lugar. Três instituições sempre sãonecessárias para fazer com que o altruísmo predomine sobre o egoísmo (condição de vida social). Apropriedade (que permite ao homem produzir mais do que para as suas necessidades egoístas imediatas,isto é, fazer provisões, acumular um capital que será útil a todos), a família (educadora insubstituívelpara o sentimento de solidariedade e respeito às tradições), a linguagem (que permite a comunicaçãoentre os indivíduos e, sob a forma de escrita, a constituição de um capital intelectual, exatamente como apropriedade cria um capital material). A sociologia dinâmica estuda as condições da evolução da sociedade: do estado teológico ao estadopositivo na ordem intelectual, do estado militar ao industrial na ordem prática - do estado de egoísmo ao

de altruísmo na ordem afetiva. A ciência que prepara a união de todos os espíritos concluirá a obra deunidade (que a Igreja católica havia parcialmente realizado na Idade Média) e tornará o altruísmouniversal, "planetário". A sociedade positiva terá, exatametne como a sociedade cristã da Idade Média,seu poder temporal (os industriais e os banqueiros) e seu pdoer espiritual (³) (os sábios, principalemtneos sociólogos, que terão, à sua testa, o papa positivista, o Grão-Sacerdote da Humanidade, isto é, opróprio Augusto Comte). Vê-se que é sobre a sociologia que vem articular a mudança de perspectiva, a mutação que faz dofilósofo um profeta. A sociologia, cuja aparição dependeu de todas as outras ciências tornadas positivas,transforma-se-á na política que guiará as outras ciências, "regenerando, assim, por sua vez, todos oselementos que concorreram para sua própria formação". Assim é que, em nome da "humanidade", asociologia regerá todas as ciências, proibindo, por exemplo, as pesquisas inúteis. (Para Comte, oastrônomo deve estudar somente o Sol e a Lua, que estão muito próximos de n'so, para ter umainfluência sobre a terra e sobre a humanidade e interditar-se aos estudos politicamente estéreis dos

corpos celestes mais afastados!!) Compreende-se que esta "síntese subjetiva", integrando-seinteiramente no sistema de Comte, tenha desencorajado os racionalistas que de saída viram nopositivismo uma apologia do espírito científico! A religião positiva substitui o Deus das religiões reveladas pela própria humanidade, considerada comoGrande-Ser. Este Ser do qual fazemos parte nos ultrapassa entretanto - pelo gênio de seus grandeshomens, de seus sábios aos quais devemos prestar culto após a morte (esta sobrevivência na veneraçãode nossa memória chama-se "imortalidade subjetiva"). A terra e o ar - meio onde vive a humanidade -podem, por isso mesmo, ser objeto de culto. A terra chamar-se-á o "Grande-Fetiche". A religião dahumanidade, pois, transpõe - ainda mais que não as repudia - as idéias e até a linguagem da crenças

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anteriores. Filósofo do progresso, Comte é também o filósofo da ordem. Herdeiro da Revolução, eleé, ao mesmo tempo, conservador e admirador da bela unidade dos espíritos da Idade Média.Compreende-se que ele tenha encontrado discípulos tanto nos pensadores "de direita" como nos "deesquerda".(³) Comte rejeita como metafísica a doutrina dos direitos do homem e da liberdade. Assim como "não há

liberdade de consciência em astronomia", assim uma política verdadeiramente científica pode impor suasconclusões. Aqueles que não compreenderem terão que se submeter cegamente (esta submissão será oequivalente da fé na religião positivista).

 VI - Referências Bibliográficas

 __ Coleção Os Pensadores, Os Pré-socráticos, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.I, agosto 1973. __ Coleção Os Pensadores, Apologia de Sócrates / Platão, Nova Cultural, São Paulo, março 1999.

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