o metodo nas ciencias naturais e sociais

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Para a escola de Edimburgo hiptese e crena so sinnimos

PIONEIRATHOMPSON LEARNING

O Mtodo nas CinciasNaturais e Sociais

Pesquisa Quantitativa e Qualitativa

Alda Judith Alves-MazzottiFernando Gewandsznajder

O Mtodo nas CinciasNaturais e Sociais:

Pesquisa Quantitativa e Qualitativa

Alda Judith Alves-MazzottiFernando Gewandsznajder

2 Edio

THOMPSON

PARTE I

O Mtodo nasCincias Naturais

Fernando Gewandsznajder

CAPTULO 1

Uma Viso Geral do Mtodo nas Cincias Naturais

Em cincia muitas vezes construmos um modelo simplificado do objeto do nosso estudo. Aos poucos, o modelo pode tornar-se mais complexo, passando a levar em conta um nmero maior de variveis. Este captulo apresenta um modelo simplificado do mtodo cientfico. Nos captulos seguintes, tornaremos este modelo mais complexo. Veremos tambm que no h uma concordncia completa entre os filsofos da cincia acerca das caractersticas do mtodo cientfico.Pode-se discutir se h uma unidade de mtodo nas diversas cincias. A matemtica e a lgica possuem certas caractersticas prprias, diferentes das demais cincias. E vrios filsofos discordam da idia de que as cincias humanas ou sociais, como a sociologia ou a psicologia, utilizem o mesmo mtodo que as cincias naturais, como a fsica, a qumica e a biologia.Um mtodo pode ser definido como uma srie de regras para tentar resolver um problema. No caso do mtodo cientfico, estas regras so bem gerais. No so infalveis e no suprem o apelo imaginao e intuio do cientista. Assim, mesmo que no haja um mtodo para conceber idias novas, descobrir problemas ou imaginar hipteses (estas atividades dependem da criatividade do cientista), muitos filsofos concordam que h um mtodo para testar criticamente e selecionar as melhores hipteses e teorias e neste sentido que podemos dizer que h um mtodo cientfico.Uma das caractersticas bsicas do mtodo cientfico a tentativa de resolver problemas por meio de suposies, isto , de hipteses, que possam ser testadas atravs de observaes ou experincias. Uma hiptese contm previses sobre o que dever acontecer em determinadas condies. Se o cientista fizer uma experincia, e obtiver os resultados previstos pela hiptese, esta ser aceita, pelo menos provisoriamente. Se os resultados forem contrrios aos

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previstos, ela ser considerada em princpio falsa, e outra hiptese ter de ser buscada.

1. A atividade cientfica desenvolve-se a partir de problemas

Ainda comum a crena de que a atividade cientfica comea com uma coleta de dados ou observaes puras, sem idias preconcebidas por parte do cientista.Na realidade, qualquer observao pressupe um critrio para escolher, entre as observaes possveis, aquelas que supostamente sejam relevantes para o problema em questo. Isto quer dizer que a observao, a coleta de dados e as experincias so feitas de acordo com determinados interesses e segundo certas expectativas ou idias preconcebidas. Estas idias e interesses correspondem, em cincia, s hipteses e teorias que orientam a observao e os testes a serem realizados. Uma comparao ajuda a compreender melhor este ponto.Quando um mdico examina um paciente, por exemplo, ele realiza certas observaes especficas, guiadas por certos problemas, teorias e hipteses. Sem essas idias, o nmero de observaes possveis seria praticamente infinito: ele poderia observar a cor de cada pea de roupa do paciente, contar o nmero de fios de cabelo, perguntar o nome de todos os seus parentes e assim por diante. Em vez disso, em funo do problema que o paciente apresenta (a garganta di, o paciente escuta zumbido no ouvido, etc.) e de acordo com as teorias da fisiologia e patologia humana, o mdico ir concentrar sua investigao em certas observaes e exames especficos.Ao observar e escutar um paciente, o mdico j est com a expectativa de encontrar um problema. Por isso, tanto na cincia como nas atividades do dia-a-dia, nossa ateno, curiosidade e so estimulados quando algo no ocorre de acordo com as nossas expectativas, quando no sabemos explicar um fenmeno, ou quando as explicaes tradicionais no funcionam ou seja, quando nos defrontamos com um problema.

2. As hipteses cientficas devem ser passveis de teste

Em cincia, temos de admitir, sempre, que podemos estar errados em nossos palpites. Por isso, fundamental que as hipteses cientficas sejam testadas experimentalmente. Hipteses so conjecturas, palpites, solues provisrias, que tentam resolver um problema ou explicar um fato. Entretanto, o mesmo fato pode ser explicado por vrias hipteses ou teorias diferentes. Do mesmo modo como h um sem-nmero de explicaes para uma simples dor de cabea, por exemplo,

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a histria da cincia nos mostra como os fatos foram explicados e problemas foram resolvidos de formas diferentes ao longo do tempo.Uma das primeiras tentativas de explicar a evoluo dos seres vivos, por exemplo, foi a teoria de Lamarck (que supunha haver uma herana das caractersticas adquiridas por um organismo ao longo da vida), substituda depois pela teoria da evoluo por seleo natural, de Darwin (pela qual caractersticas herdadas aleatoriamente so selecionadas pelo ambiente). O movimento dos planetas foi explicado inicialmente pela teoria geocntrica (os planetas e o Sol giravam ao redor de uma Terra imvel), que foi depois substituda pela teoria heliocntrica (a Terra e os planetas girando ao redor do Sol).Estes so apenas dois exemplos, entre muitos, que mostram que uma teoria pode ser substituda por outra que explica melhor os fatos ou resolve melhor determinados problemas.A partir das hipteses, o cientista deduz uma srie de concluses ou previses que sero testadas. Novamente, podemos utilizar a analogia com a prtica mdica: se este paciente est com uma infeco, pensa o mdico, ele estar com febre. Alm disso, exames de laboratrio podem indicar a presena de bactrias. Eis a duas previses, feitas a partir da hiptese inicial, que podem ser testadas. Se os resultados dos testes forem positivos, eles iro fortalecer a hiptese de infeco.No entanto, embora os fatos possam apoiar uma hiptese, torna-se bastante problemtico afirmar de forma conclusiva que ela verdadeira. A qualquer momento podemos descobrir novos fatos que entrem em conflito com a hiptese. Alm disso, mesmo hipteses falsas podem dar origem a previses verdadeiras. A hiptese de infeco, por exemplo, prev febre, que confirmada pela leitura do termmetro. Mas, outras causas tambm podem ter provocado a febre. Por isso, as confirmadas experimentalmente so aceitas sempre com alguma reserva pelos cientistas: futuramente elas podero ser refutadas por novas experincias. Pode-se ento dizer que uma hiptese ser aceita como possvel ou provisoriamente verdadeira, ou ainda, como verdadeira at prova em contrrio.O filsofo Karl Popper (1902-1994) enfatizou sempre que as hipteses de carter geral, como as leis cientficas, jamais podem ser comprovadas ou verificadas. fcil compreender esta posio examinando uma generalizao bem simples, como todos os cisnes so brancos: por maior que seja o nmero de cisnes observados, no podemos demonstrar que o prximo cisne a ser observado ser branco. Nossas observaes nos autorizam a afirmar apenas que todos os cisnes observados at o momento so brancos. Mesmo que acreditemos que todos o so, no conseguiremos prov-lo, e podemos perfeitamente estar enganados, como, alis, o caso alguns cisnes so negros. Para Popper, no entanto, uma nica observao de um cisne negro pode, logicamente, refutar a hiptese de que todos os cisnes so brancos. Assim, embora as generalizaes cientficas no possam ser comprovadas, elas podem

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ser refutadas. Hipteses cientficas seriam, portanto, passveis de serem refutadas, ou seja, seriam potencialmente falseveis ou refutveis.

3. Os testes devem ser os mais severos possveis

Em cincia devemos procurar testar uma hiptese atravs dos testes mais severos possveis. Isto implica em utilizar medidas ou testes estatsticos, se necessrios e procurar, sempre que possvel, controlar os fatores que podem intervir nos resultados atravs de um teste controlado.Se, por exemplo, uma pessoa ingerir determinado produto e se sentir melhor de algum sintoma (dor de cabea, dor de estmago, etc.), ela pode supor que a melhora deve-se substncia ingerida. No entanto, perfeitamente possvel que a melhora tenha ocorrido independentemente do uso do produto, isto , tenha sido uma melhora espontnea, provocada pelas defesas do organismo (em muitas doenas h sempre um certo nmero de pessoas que ficam boas sozinhas). Para eliminar a hiptese de melhora espontnea, preciso que o produto passe por testes controlados. Neste caso, so utilizados dois grupos de doentes voluntrios: um dos dois grupos recebe o medicamento, enquanto o outro recebe uma imitao do remdio, chamada placebo, que uma plula ou preparado semelhante ao remdio, sem conter, no entanto, o medicamento em questo. Os componentes de ambos os grupos no so informados se estavam ou no tomando o remdio verdadeiro, j que o simples fato de uma pessoa achar que est tomando o remdio pode ter um efeito psicolgico e faz-la sentir-se melhor mesmo que o medicamento no seja eficiente ( o chamado efeito placebo). Alm disso, como a pessoa que fornece o remdio poderia, inconscientemente ou no, passar alguma influncia a quem o recebe, ela tambm no informada sobre qual dos dois grupos est tomando o remdio. O mesmo se aplica queles que iro avaliar os efeitos do medicamento no organismo: esta avaliao poder ser tendenciosa se eles souberem quem realmente tomou o remdio. Neste tipo de experimento, chamado duplo cego, os remdios so numerados e somente uma outra equipe de pesquisadores, no envolvida na aplicao do medicamento, pode fazer a identificao.Finalmente, nos dois grupos pode existir pessoas que melhoram da doena, seja por efeito psicolgico, seja pelas prprias defesas do organismo. Mas, se um nmero significativamente maior de indivduos (e aqui entram os testes estatsticos) do grupo que realmente tomou o medicamento ficar curado, podemos considerar refutada a hiptese de que a cura deve-se exclusivamente ao efeito placebo ou a uma melhora espontnea e supor que o medicamento tenha alguma eficcia.A repetio de um teste para checar se o resultado obtido pode ser reproduzido inclusive por outros pesquisadores o que contribui para a maior objetividade do teste, na medida em que permite que se cheque a inter-

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ferncia de interesses pessoais de determinado cientista na avaliao do resultado entre outros fatores.

4. Leis cientficas

De uma forma simplificada, pode-se dizer que as leis so hipteses gerais que foram testadas e receberam o apoio experimental e que pretendem descrever relaes ou regularidades encontradas em certos grupos de fenmenos. O carter geral de uma lei pode ser ilustrado por alguns exemplos. A lei da queda livre de Galileu vale para qualquer corpo caindo nas proximidades da superfcie terrestre e permite prever a velocidade e o espao percorrido por este corpo aps certo tempo. A primeira lei de Mendel (cada carter condicionado por um par de fatores que se separam na formao dos gametas) explica por que duas plantas de ervilhas amarelas, cruzadas entre si, podem produzir plantas de ervilhas verdes. Mas esta lei no vale apenas para a cor da ervilha. Ela funciona para diversas outras caractersticas e para diversos outros seres vivos, permitindo previses inclusive para certas caractersticas humanas. A lei da conservao da matria (numa reao qumica a massa conservada) indica que em qualquer reao qumica a massa dos produtos tem de ser igual massa das substncias que reagiram. A lei da reflexo afirma que sempre que um raio de luz (qualquer um) se refletir numa superfcie plana (qualquer superfcie plana), o ngulo de reflexo ser igual ao de incidncia.As explicaes e as previses cientficas utilizam leis gerais combinadas a condies iniciais, que so as circunstncias particulares que acompanham os fatos a serem explicados. Suponhamos que um peso correspondente massa de dez quilogramas pendurado em um fio de cobre de um milmetro de espessura e o fio se rompe. A explicao para seu rompimento utiliza uma lei que permite calcular a resistncia de qualquer fio em funo do material e da espessura. As condies iniciais so o peso, a espessura do fio e o material de que ele formado.Para outros tipos de fenmenos, como o movimento das molculas de um gs, as propores relativas das caractersticas hereditrias surgidas nos cruzamentos ou a desintegrao radioativa, utilizamos leis probabilsticas. De qualquer modo, h sempre a necessidade de se buscar leis para explicar os fatos. A cincia no consiste em um mero acmulo de dados, mas sim numa busca da ordem presente na natureza.

5. Teorias cientficas

A partir de certo estgio no desenvolvimento de uma cincia, as leis deixam de estar isoladas e passam a fazer parte de teorias. Uma teoria

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formada por uma reunio de leis, hipteses, conceitos e definies interligadas e coerentes. As teorias tm um carter explicativo ainda mais geral que as leis. A teoria da evoluo, por exemplo, explica a adaptao individual, a formao de novas espcies, a seqncia de fsseis, a semelhana entre espcies aparentadas, e vale para todos os seres vivos do planeta. A mecnica newtoniana explica no apenas o movimento dos planetas em torno do Sol, ou de qualquer outra estrela, mas tambm a formao das mars, a queda dos corpos na superfcie da Terra, as rbitas de satlites e foguetes espaciais, etc.O grande poder de previso das teorias cientficas pode ser exemplificado pela histria da descoberta do planeta Netuno. Observou-se que as irregularidades da rbita de Urano no podiam ser explicadas apenas pela atrao exercida pelos outros planetas conhecidos. Levantou-se ento a hiptese de que haveria um outro planeta ainda no observado, responsvel por essas irregularidades. Utilizando a teoria da gravitao de Newton, os matemticos John C. Adams e Urbain Le Verrier calcularam, em 1846, a massa e a posio do suposto planeta. Um ms depois da comunicao de seu trabalho, um planeta com aquelas caractersticas Netuno foi descoberto pelo telescpio a apenas um grau da posio prevista por Le Verrier e Adams. Um processo semelhante aconteceu muitos anos depois, com a descoberta do planeta Pluto.Vemos assim que a cincia no se contenta em formular generalizaes como a lei da queda livre de Galileu, que se limita a descrever um fenmeno, mas procura incorporar estas generalizaes a teorias. Esta incorporao permite que as leis possam ser deduzidas e explicadas a partir da teoria. Assim, as leis de Charles e de Boyle-Mariotte (que relacionam o volume dos gases com a presso e a temperatura) podem ser formuladas com base na teoria cintica dos gases. A partir das teorias possvel inclusive deduzir novas leis a serem testadas. Alm disso, enquanto as leis muitas vezes apenas descrevem uma regularidade, as teorias cientficas procuram explicar estas regularidades, sugerindo um mecanismo oculto por trs dos fenmenos e apelando inclusive para entidades que no podem ser observadas. o caso da teoria cintica dos gases, que prope um modelo para a estrutura do gs (partculas muito pequenas, movendo-se ao acaso, etc.).Apesar de todo o xito que a teoria possa ter em explicar a realidade, importante reconhecer que ela sempre conjectural, sendo passvel de correo e aperfeioamento, podendo ser substituda por outra teoria que explique melhor os fatos. Foi isto que ocorreu com a mecnica de Laplace que procurava explicar os fenmenos fsicos atravs de foras centrais atuando sobre partculas , com a teoria de Lamarck da evoluo, com a teoria do calrico, etc. Mesmo a teoria de Darwin, embora superior de Lamarck, continha srias lacunas e somente a moderna teoria da evoluo o neodarwinismo conseguiu explicar satisfatoriamente (atravs de mutaes) o aparecimento de novidades genticas. Enfim, a histria da cincia contm um grande nmero de exemplos de teorias abandonadas e substitudas por outras.

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As novas teorias devem ser capazes no s de dar conta dos fenmenos explicados pela teoria antiga, como tambm de explicar fatos novos. Assim, a teoria da relatividade capaz de explicar todos os fenmenos explicados pela teoria newtoniana, e ainda fenmenos que a teoria newtoniana revelou-se incapaz de explicar, como as irregularidades do planeta Mercrio e as variaes de massa em partculas que se movem a velocidades prximas da luz. Entretanto, as previses da teoria newtoniana continuam vlidas dentro de certos limites. Quando trabalhamos com velocidades pequenas comparadas com a da luz, por exemplo, a diferena entre os clculos feitos com as duas teorias costuma ser muito pequena, difcil de medir, podendo ser desprezada na prtica. Como os clculos na mecnica newtoniana so mais fceis e rpidos de serem feitos, a teoria continua tendo aplicaes na engenharia civil, no lanamento de foguetes e satlites, etc.Uma teoria cientfica refere-se a objetos e mecanismos ocultos e desconhecidos. Na realidade, no sabemos como realmente um eltron, mas construmos, idealizamos, enfim, modelamos um eltron, sendo o modelo uma representao simplificada e hipottica de algo que supomos real. Uma das contribuies de Galileu ao mtodo cientfico foi justamente ter construdo modelos idealizados e simplificados da realidade, como o caso do conceito de pndulo ideal, no qual as do corpo, a massa do fio e a resistncia do ar so considerados desprezveis. A construo de modelos simplificados e idealizados torna mais fcil a anlise e a aplicao de leis gerais e matemticas, fundamentais nas cincias naturais. J que um modelo permite previses e, supostamente, representa algo real, podemos realizar experimentos para testar sua validade. Deste modo, podemos aos poucos corrigir o modelo e torn-lo mais complexo, de forma a aproxim-lo cada vez mais da realidade. Foi isso que ocorreu, por exemplo, com os diversos modelos de tomo propostos ao longo da histria da cincia.Assim a cincia progride, formulando teorias cada vez mais amplas e profundas, capazes de explicar uma maior variedade de fenmenos. Entretanto, mesmo as teorias mais recentes devem ser encaradas como explicaes apenas parciais e hipotticas da realidade.Finalmente, afirmar que a cincia objetiva no significa dizer que suas teorias so verdadeiras. A objetividade da cincia no repousa na imparcialidade de cada indivduo, mas na disposio de formular e publicar hipteses para serem submetidas a crticas por parte de outros cientistas; na disposio de formul-las de forma que possam ser testadas experimentalmente; na exigncia de que a experincia seja controlada e de que outros cientistas possam repetir os testes, se isto for necessrio. Todos esses procedimentos visam diminuir a influncia de fatores subjetivos na avaliao de hipteses e teorias atravs de um controle intersubjetivo, isto , atravs da replicao do teste por outros pesquisadores e atravs do uso de experimentos controlados.

CAPTULO 2

Cincia Natural: Os Pressupostos Filosficos

Neste captulo vamos discutir as principais concepes acerca da natureza do mtodo cientfico. Veremos ento que, embora os filsofos discordem acerca de vrios pontos, possvel extrair algumas concluses importantes, que so aceitas por todos os que defendem a busca da objetividade como um ideal do conhecimento cientfico.

1.O positivismo lgico

O termo positivismo vem de Comte, que considerava a cincia como o paradigma de todo o conhecimento. No entanto, mais importante do que Comte para a linha anglo-americana foi a combinao de idias empiristas (Mill, Hume, Mach & Russell) com o uso da lgica moderna (a partir dos trabalhos em matemtica e lgica de Hilbert, Peano, Frege, Russell e das idias do Tractstus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein). Da o movimento ser chamado tambm de positivismo lgico ou empirismo lgico. O movimento foi influenciado ainda pelas novas descobertas em fsica, principalmente a teoria quntica e a teoria da relatividade. (Para uma exposio mais detalhada das idias e do desenvolvimento do positivismo lgico ver Ayer, 1959, 1982; Gillies, 1993; Hanfling, 1981; Oldroyd, 1986; Radnitzky, 1973; Suppe, 1977; Urmson, 1956; Wedberg, 1984.)Embora tenha surgido nos anos 20, na ustria (a partir do movimento conhecido como Crculo de Viena, fundado pelo filsofo Moritz Schlick), Alemanha e Polnia, muitos de seus principais filsofos, como Rudolf Carnap, Hans Reichenbach, Herbet Feigl e Otto Neurath, emigraram para os Estados Unidos ou Inglaterra com o surgimento do nazismo, uma vez que alguns dos

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membros do grupo eram judeus ou tinham idias liberais ou socialistas incompatveis com o nazismo. Para o positivismo, a Lgica e a Matemtica seriam vlidas porque estabelecem as regras da linguagem, constituindo-se em um conhecimento a priori, ou seja, independente da experincia. Em contraste com a Lgica e a Matemtica, porm, o conhecimento factual ou emprico deveria ser obtido a partir da observao, por um mtodo conhecido como induo.A partir da observao de um grande nmero de cisnes brancos, por exemplo, conclumos, por induo, que o prximo cisne a ser observado ser branco. Do mesmo modo, a partir da observao de que alguns metais se dilatam quando aquecidos, conclumos que todos os metais se dilatam quando aquecidos e assim por diante. A induo, portanto, o processo pelo qual podemos obter e confirmar hipteses e enunciados gerais a partir da observao.As leis cientficas, que so enunciados gerais que indicam relaes entre dois ou mais fatores, tambm poderiam ser obtidas por induo. Estudando-se a variao do volume de um gs em funo de sua presso, por exemplo, conclumos que o volume do gs inversamente proporcional presso exercida sobre ele (lei de Boyle). Em termos abstratos, as leis podem ser expressas na forma em todos os casos em que se realizam as condies A, sero realizadas as condies B. A associao das leis com o que chamamos de condies iniciais permite prever e explicar os fenmenos: a lei de Boyle permite prever que se dobrarmos a presso de um gs com volume de um litro, em temperatura constante (condies iniciais), esse volume ser reduzido metade. Embora o termo teoria tenha vrios significados (podendo ser utilizado simplesmente como sinnimo de uma hiptese ou conjectura), em sentido estrito as teorias so formadas por um conjunto de leis e, freqentemente, procuram explicar os fenmenos com auxlio de conceitos abstratos e no diretamente observveis, como tomo, eltron, campo, seleo natural etc. Esses conceitos abstratos ou tericos esto relacionados por regras de correspondncia com enunciados diretamente observveis (o ponteiro do aparelho deslocou-se em 1 centmetro, indicando uma corrente de 1 ampre, por exemplo). As teorias geralmente utilizam modelos simplificados de uma situao mais complexa. A teoria cintica dos gases, por exemplo, supe que um gs seja formado por partculas de tamanho desprezvel (tomos ou molculas), sem fora de atrao ou repulso entre elas e em movimento aleatrio. Com auxlio desse modelo, podemos explicar e deduzir diversas leis inclusive a lei de Boyle, que relaciona a presso com o volume do gs (se o volume do recipiente do gs diminuir, o nmero de choques das molculas com a parede do recipiente aumenta, aumentando a presso do gs sobre a parede).

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Os positivistas exigiam que cada conceito presente em uma teoria tivesse como referncia algo observvel. Isto explica a oposio teoria atmica no incio do sculo: embora esta teoria conseguisse explicar as leis da qumica, as propriedades dos gases e a natureza do calor, Mach e seguidores no a aceitavam, uma vez que os tomos no podiam ser observados com qualquer tcnica imaginvel poca.A aceitao de uma lei ou teoria seria decidida exclusivamente pela observao ou experimento. Uma lei ou teoria poderia ser testada direta ou indiretamente com auxlio de sentenas observacionais que descreveriam o que uma pessoa estaria experimentando em determinado momento (seriam sentenas do tipo um cubo vermelho est sobre a mesa). Estes enunciados forneceriam uma base emprica slida, a partir da qual poderia ser construdo o conhecimento cientfico, garantindo, ainda, a objetividade da cincia.Para o positivismo, as sentenas que no puderem ser verificadas empiricamente estariam fora da fronteira do conhecimento: seriam sentenas sem sentido. A tarefa da filosofia seria apenas a de analisar logicamente os conceitos cientficos. A verificabilidade seria, portanto, o critrio de significao de um enunciado; para todo enunciado com sentido deveria ser possvel decidir se ele falso ou verdadeiro.As leis e teorias poderiam ser formuladas e verificadas pelo mtodo indutivo, um processo pelo qual, a partir de um certo nmero de observaes, recolhidas de um conjunto de objetos, fatos ou acontecimentos (a observao de alguns cisnes brancos), conclumos algo aplicvel a um conjunto mais amplo (todos os cisnes so brancos) ou a casos dos quais no tivemos experincia (o prximo cisne ser branco).Mesmo que no garantisse certeza, o mtodo indutivo poderia conferir probabilidade cada vez maior ao conhecimento cientfico, que se aproximaria cada vez mais da verdade. Haveria um progresso cumulativo em cincia: novas leis e teorias seriam capazes de explicar e prever um nmero cada vez maior de fenmenos.Muitos filsofos positivistas admitiam que algumas hipteses, leis e teorias no podem ser obtidas por induo, mas sim a partir da imaginao e criatividade do cientista. A hiptese de que a molcula de benzeno teria a forma de um anel hexagonal, por exemplo, surgiu na mente do qumico Frederick Kekul quando ele imaginou uma cobra mordendo a prpria cauda. H aqui uma idia importante, antecipada pelo filsofo John Herschel (1830) e depois reafirmada por Popper (1975a) e Reichenbach (1961): a diferena entre o contexto da descoberta e o contexto da justificao. Isto quer dizer que o procedimento para formular ou descobrir uma teoria irrelevante para sua aceitao. No entanto, embora no haja regras para a inveno ou descoberta de novas hipteses, uma vez formuladas, elas teriam de ser testadas experimentalmente.

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Na realidade, os positivistas no estavam interessados exatamente em como o cientista pensava, em suas motivaes ou mesmo em como ele agia na prtica: isto seria uma tarefa para a psicologia e a sociologia. O que interessava eram as relaes lgicas entre enunciados cientficos. A lgica da cincia forneceria um critrio ideal de como o cientista ou a comunidade cientfica deveria agir ou pensar, tendo, portanto, um carter normativo em vez de descritivo. O objetivo central no era, portanto, o de explicar como a cincia funciona, mas justificar ou legitimar o conhecimento cientfico, estabelecendo seus fundamentos lgicos e empricos.

1.1 Crticas ao positivismo

Popper e outros filsofos questionaram o papel atribudo observao no positivismo lgico. A idia que toda a observao cientfica ou no est imersa em teorias (ou expectativas, pontos de vista, etc.). Assim, quando um cientista mede a corrente eltrica ou a resistncia de um circuito ou quando observa uma clula com o microscpio eletrnico, ele se vale de instrumentos construdos com auxlio de complicadas teorias fsicas. A fidedignidade de uma simples medida da temperatura com auxlio de um termmetro, por exemplo, depende da lei da dilatao do mercrio, assim como a observao atravs de um simples microscpio ptico depende das leis da refrao.A tese, hoje amplamente aceita em filosofia da cincia, de que toda observao impregnada de teoria (theory-laden) foi defendida j no incio do sculo pelo filsofo Pierre Duhem. Dizia ele, que um experimento em fsica no simplesmente a observao de um fenmeno; tambm a interpretao terica desse fenmeno (Duhem, 1954, p. 144).Em resumo, do momento em que as observaes incorporam teorias falveis, elas no podem ser consideradas como fontes seguras para se construir o conhecimento e no podem servir como uma base slida para o conhecimento cientfico, como pretendia o positivismo. (Mais detalhes sobre a relao entre observao e conhecimento esto em: Gregory, 1972; Hanson, 1958; Musgrave, 1993; Popper, 1975b; Shapere, 1984; Watkins, 1984.)Outro problema para o positivismo foi a crtica induo.J no sculo dezoito, o filsofo David Hume questionava a validade do raciocnio indutivo, argumentando que a induo no um argumento dedutivo e, portanto, no logicamente vlida (Hume, 1972). Alm disso, ela tambm no pode ser justificada pela observao: o fato de que todos os cisnes observados at agora sejam brancos, no garante que o prximo cisne seja branco nem que todos os cisnes sejam brancos. A induo no pode, portanto, ser justificada nem pela lgica, nem pela experincia.

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Se passarmos de generalizaes superficiais, como a dos cisnes, para as leis e teorias cientficas, o problema se complica mais ainda. A partir da observao de um certo nmero de fatos, podemos extrair diversas leis e teorias cientficas compatveis com os dados recolhidos. Isto quer dizer que a induo, por si s, no suficiente para descobrirmos qual das generalizaes a que melhor explica os dados.Alm disso, mesmo que procedimentos indutivos permitam reunir um conjunto de dados e formar generalizaes superficiais (do tipo todos os metais se dilatam), eles so insuficientes para originar teorias profundas, que apelam para conceitos impossveis de serem percebidos por observao direta, como eltron, quark, seleo natural, etc.Os filsofos positivistas afirmam, no entanto, que o mtodo indutivo pode ser usado para aumentar o grau de confirmao de hipteses e teorias. Com auxlio da teoria da probabilidade, procuram desenvolver uma lgica indutiva para medir a probabilidade de uma hiptese em funo das evidncias a seu favor (calculando, por exemplo, a probabilidade que um paciente tem de ter determinada doena em funo dos sintomas que apresenta).A construo de uma lgica indutiva contou com a colaborao de vrios positivistas lgicos, como Carnap (1950) e Reichenbach (1961) e ainda tem defensores at hoje, que procuram, por exemplo, implementar sistemas indutivos em computadores para gerar e avaliar hipteses (Holland et al., 1986).Outra linha de pesquisa, o bayesianismo, utiliza o teorema de Bayes (em homenagem ao matemtico ingls do sculo XVIII, Thomas Bayes) para atualizar o grau de confirmao de hipteses e teorias a cada nova evidncia, a partir de uma probabilidade inicial e das evidncias a favor da teoria. (Para exposio e defesa do bayesianismo, ver Howson & Urbach, 1989; Jeffrey, 1983; Horwich, 1982.)Os sistemas de lgica indutiva e as tentativas de atribuir probabilidade a hipteses e teorias tm sido bastante criticados e apresentam muitos problemas no resolvidos. Mesmo que se possa atribuir probabilidades a enunciados gerais, parece muito difcil seno impossvel aplicar probabilidades s teorias cientficas profundas, que tratam de conceitos no observveis. (Para crticas lgica indutiva, ao bayesianismo e s de princpios que justifiquem a induo, ver Earman, 1992; Gilles, 1993; Glymour, 1980; Lakatos, 1968; Miller, 1994; Pollock, 1986; Popper, 1972, 1974, 1975a, 1975b,; Watkins, 1984).

2. As idias de Popper

A partir das crticas induo, Popper tenta construir uma teoria acerca do mtodo cientfico (e tambm acerca do conhecimento em geral) que no envolva a induo que no seja, portanto, vulnervel aos argumentos de Hume. A questo : como possvel que nosso conhecimento aumente a partir de hip-

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teses, leis e teorias que no podem ser comprovadas? (Mais sobre as idias de Popper em: Anderson, 1994; Gewandsznajder, 1989; Magee, 1989; Miller, 1994; Newton-Smith, 1981; OHear, 1980; Popper, 1972, 1975a, 1975b, 1979, 1982; Schlipp, 1974; Watkins, 1984.)

2.1 O Mtodo das conjecturas e refutaes

Popper aceita a concluso de Hume de que a partir de observaes e da lgica no podemos verificar a verdade (ou aumentar a probabilidade) de enunciados gerais, como as leis e teorias cientficas. No entanto, diz Popper, a observao e a lgicas podem ser usadas para refutar esses enunciados gerais: a observao de um nico cisne negro (se ele de fato for negro) pode, logicamente, refutar a generalizao de que todos os cisnes so brancos. H, portanto, uma assimetria entre a refutao e a verificao.A partir da, Popper constri sua viso do mtodo cientfico o racionalismo crtico e tambm do conhecimento em geral: ambos progridem atravs do que ele chama de conjecturas e refutaes. Isto significa que a busca do conhecimento se inicia com a formulao de hipteses que procuram resolver problemas e continua com tentativas de refutaes dessas hipteses, atravs de testes que envolvem observaes ou experimentos. Se a hiptese no resistir aos testes, formulam-se novas hipteses que, por sua vez, tambm sero testadas. Quando uma hiptese passar pelos testes, ela ser aceita como uma soluo provisria para o problema. Considera-se, ento, que a hiptese foi corroborada ou adquiriu algum grau de corroborao. Este grau funo da severidade dos testes a que foi submetida uma hiptese ou teoria e ao sucesso com que a hiptese ou teoria passou por estes testes. O termo corroborao prefervel confirmao para no dar a idia de que as hipteses, leis ou teorias so verdadeiras ou se tornam cada vez mais provveis medida que passam pelos testes. A corroborao uma medida que avalia apenas o sucesso passado de uma teoria e no diz nada acerca de seu desempenho futuro. A qualquer momento, novos testes podero refutar uma hiptese ou uma teoria que foi bem-sucedida no passado, isto , que passou com sucesso pelos testes (como aconteceu com a hiptese de que todos os cisnes brancos depois da descoberta de cisnes negros na Austrlia).As hipteses, leis e teorias que resistiram aos testes at o momento so importantes porque passam a fazer parte de nosso conhecimento de base: podem ser usadas como verdades provisrias, como um conhecimento no problemtico, que, no momento, no est sendo contestado. Mas a deciso de aceitar qualquer hiptese como parte do conhecimento de base temporria e pode sempre ser revista e revogada a partir de novas evidncias.

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Por vrias vezes, Popper protestou por ter sido confundido por seus crticos (Kuhn e Lakatos, por exemplo) com um falsificacionista ingnuo (Popper, 1982). Para ele, isto acontece porque esses crticos confundem refutao em nvel lgico com refutao em nvel experimental. Em nvel experimental ou emprico nunca podemos comprovar conclusivamente que uma teoria falsa: isso decorre do carter conjectural do conhecimento. Mas a tentativa de refutao conta com o apoio da lgica dedutiva, que est ausente na teoria de confirmao.A deciso de aceitar que uma hiptese foi refutada sempre conjectural: pode ter havido um erro na observao ou no experimento que passou despercebido. No entanto, se a observao ou o experimento forem bem realizados e no houver dvidas quanto a sua correo, podemos considerar que, em princpio, e provisoriamente, a hiptese foi refutada. Quem duvidar do trabalho pode reabrir a questo, mas para isso deve apresentar evidncias de que houve erro no experimento ou na observao. No caso do cisne, isto equivale mostrar que o animal no era um cisne ou que se tratava de um cisne branco pintado de preto, por exemplo. A refutao conta com o apoio lgico presente em argumentos do tipo: Todos os cisnes so brancos; este cisne negro; logo, falso que todos os cisnes sejam brancos. Neste caso, estamos diante de um argumento dedutivamente vlido. Este tipo apoio, porm, no est presente na comprovao indutiva.Popper usa ento a lgica dedutiva no para provar teorias, mas para critic-las. Hipteses e teorias funcionam como premissas de um argumento. A partir dessas premissas deduzimos previses que sero testadas experimentalmente. Se uma previso for falsa, pelo menos uma das hipteses ou teorias utilizadas deve ser falsa. Desse modo, a lgica dedutiva passa a ser um instrumento de crtica.

2.2 A importncia da refutabilidade

Para que o conhecimento progrida atravs de refutaes, necessrio que as leis e as teorias estejam abertas refutao, ou sejam, que sejam potencialmente refutveis. S assim, elas podem ser testadas: a lei da reflexo da luz, por exemplo, que diz que o ngulo do raio incidente deve ser igual ao ngulo do raio refletido em um espelho, seria refutada se observarmos ngulos de reflexo diferentes dos ngulos de incidncia. As leis e teorias devem, portanto, proibir a ocorrncia de determinados eventos.Os enunciados que relatam eventos que contradizem uma lei ou teoria (que relatam acontecimentos proibidos) so chamados de falseadores potenciais da lei ou teoria.

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O conjunto emprico de falseadores potenciais nos d uma medida do contedo emprico da teoria: quanto mais a teoria probe, mais ela nos diz acerca do mundo. Para compreender melhor essa colocao, observe-se o caso oposto: o de enunciados do tipo vai chover ou no vai chover amanh. Enunciados deste tipo no possuem falseadores potenciais e, portanto, no tm contedo emprico ou informativo, no so testveis ou refutveis e nada dizem acerca do mundo nem contribuem para o progresso do conhecimento.Por outro lado, quanto mais geral for um enunciado ou lei, maior seu contedo emprico ou informativo (a generalizao todos os metais se dilatam quando aquecidos nos diz mais do que o chumbo se dilata quando aquecido) e maior sua refutabilidade (a primeira afirmao pode ser refutada caso algum metal inclusive o chumbo no se dilate, enquanto a segunda s refutada caso o chumbo no se dilate). Conclumos ento que para acelerar o progresso do conhecimento devemos buscar leis cada vez mais gerais, uma vez que o risco de refutao e o contedo informativo aumentam com a amplitude da lei, aumentando assim a chance de aprendermos algo novo.Um raciocnio semelhante pode ser feito com a busca de leis mais precisas. Essas leis tm contedo maior e arriscam-se mais refutao; exemplo: a dilatao dos metais diretamente proporcional ao aumento da temperatura tem maior refutabilidade do que os metais se dilatam quando aquecidos, uma vez que este ltimo enunciado somente ser refutado se o metal no se dilatar, enquanto o primeiro enunciado ser refutado caso o metal no se dilate ou quando a dilatao se desviar significativamente dos valores previstos.A refutabilidade tambm se aplica busca de leis mais simples. Se medirmos a simplicidade de uma lei em funo do nmero de parmetros (o critrio de Popper), veremos que leis mais simples so tambm mais refutveis (a hiptese de que os planetas tm rbitas circulares mais simples do que a hiptese de que os planetas tm rbitas elpticas j que o crculo um tipo de elipse).Portanto, de acordo com Popper, a cincia deve buscar leis e teorias cada vez mais amplas, precisas e simples, j que, desse modo, maior ser a refutabilidade e, conseqentemente, maior a chance de aprendermos com nossos erros.No entanto, no se deve confundir refutabilidade com refutao: a lei mais precisa, simples ou geral pode no ser bem-sucedida no teste e terminar substituda por uma lei menos geral (ou menos simples ou precisa). A avaliao das teorias s estar completa aps os resultados dos testes. Na realidade, o que definir o destino de uma teoria ser o seu grau de corroborao. importante compreender, porm, que h uma ligao entre a refutabilidade e a corroborao: quanto maior a refutabilidade de uma teoria, maior o nmero de acontecimentos que ela probe e maior a variedade e severidade dos testes a que ela pode ser submetida. Conseqentemente, maior o grau de corroborao adquirido se a teoria passar pelos testes.

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A concluso que teorias mais refutveis possuem maior potencial de corroborao embora uma teoria s alcance de fato um alto grau de corroborao se, alm de altamente refutvel, ela tambm passar com sucesso por testes severos.A refutabilidade nos d, ento, um critrio a priori para a avaliao de teorias: se quisermos o progresso do conhecimento, devemos buscar teorias cada vez mais refutveis (gerais, precisas e simples). A seguir, devemos submet-las aos testes mais rigorosos possveis. Temos assim um critrio de progresso: teorias mais refutveis representam um avano sobre teorias menos refutveis desde que as primeiras sejam corroboradas e no refutadas.Popper est, na realidade, propondo um objetivo para a cincia: a busca de teorias de maior refutabilidade e, conseqentemente, de maior contedo emprico, mais informativas e mais testveis. Estas so, tambm, as teorias mais gerais, simples, precisas, com maior poder explicativo e preditivo e, ainda, com maior potencial de corroborao. atravs dessa busca que iremos aumentar a chance de aprendermos com nossos erros.Finalmente, o conceito de refutabilidade pode ser usado tambm para resolver o problema da demarcao, isto , o problema de como podemos distinguir hipteses cientficas de hipteses no cientficas.Para o positivismo, uma hiptese seria cientfica se ela pudesse ser verificada experimentalmente. No entanto, as crticas induo mostram que essa comprovao problemtica. Popper sugere ento que uma hiptese ou teoria seja considerada cientfica quando puder ser refutada. Teorias que podem explicar e prever eventos observveis so refutveis: se o evento no ocorrer, a teoria falsa. J teorias irrefutveis (do tipo vai chover ou no amanh) no tm qualquer carter cientfico, uma vez que no fazem previses, no tm poder explanatrio, nem podem ser testadas experimentalmente.

2.3 Verdade e corroborao

A idia de verdade tem, para Popper, um papel importante em sua metodologia, funcionando como um princpio regulador que guia a pesquisa cientfica, j que a prpria idia de erro (...) implica a idia de uma verdade objetiva que podemos deixar de alcanar (Popper, 1972, p. 252).A definio de verdade usada por Popper a de correspondncia com os fatos. Este seria o sentido de verdade para o senso comum, para a cincia ou para um julgamento em um tribunal: quando uma testemunha jura que fala a verdade ao ter visto o ru cometer o crime, por exemplo, espera-se que ela tenha, de fato, visto o ru cometer o crime.No se deve confundir, porm, a idia ou a definio de verdade com um critrio de verdade. Temos idia do que significa dizer que verdade que a

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sacarina provoca cncer, embora os testes para determinar se isto de fato acontece (os critrios de verdade) no sejam conclusivos. Em certos casos at possvel compreender a idia de verdade sem que seja possvel realizar testes que funcionem como critrios de verdade. Pode-se compreender o enunciado verdade que exatamente oito mil anos atrs chovia sobre o local onde era a cidade do Rio de janeiro, embora no seja possvel imaginar um teste ou observao para descobrir se este enunciado verdadeiro. Isso quer dizer que no dispomos de um critrio para reconhecer a verdade quando a encontramos, embora algumas de nossas teorias possam ser verdadeiras no sentido de correspondncia com os fatos. Portanto, embora uma teoria cientfica possa ter passado por testes severos com sucesso, no podemos descobrir se ela verdadeira e, mesmo que ela o seja, no temos como saber isso com certeza.No entanto, segundo Popper (1972), na histria da cincia h vrias situaes em que uma teoria parece se aproximar mais da verdade de que outra. Isso acontece quando uma teoria faz afirmaes mais precisas (que so corroboradas); quando explica mais fatos; quando explica fatos com mais detalhes; quando resiste a testes que refutaram a outra teoria: quando sugere testes novos, no sugeridos pela outra teoria (e passa com sucesso por estes testes) e quando permite relacionar problemas que antes estavam isolados. Assim, mesmo que consideremos a dinmica de Newton refutada, ela permanece superior s teorias de Kepler e de Galileu, uma vez que a teoria de Newton explica mais fatos que as de Kepler e de Galileu, alm de ter maior preciso e de unir problemas (mecnica celeste e terrestre) que antes eram tratados isoladamente.O mesmo acontece quando comparamos a teoria da relatividade de Einstein com a dinmica de Newton; ou a teoria da combusto de Lavoisier e a do flogisto; ou quando comparamos as diversas teorias atmicas que se sucederam ao longo da histria da cincia ou, ainda, quando comparamos a seqncia de teorias propostas para explicar a evoluo dos seres vivos.Em todos esses casos, o grau de corroborao aumenta quando caminhamos das teorias mais antigas para as mais recentes. Sendo assim, diz Popper, o grau de corroborao poderia indicar que uma teoria se aproxima mais da verdade que outra mesmo que ambas as teorias sejam falsas. Isto acontece quando o contedo-verdade de uma teoria (a classe das conseqncias lgicas e verdadeiras da teoria) for maior que o da outra sem que o mesmo ocorra com o contedo falso (a classe de conseqncias falsas de uma teoria). Isto possvel, porque a partir de uma teoria falsa podemos deduzir tantos enunciados falsos como verdadeiros: o enunciado todos os cisnes so brancos falso, mas a conseqncia lgica todos os cisnes do zoolgico do Rio de Janeiro so brancos pode ser verdadeira. Logo, uma teoria falsa pode conter maior nmero de afirmaes verdadeiras do que outra.

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Se isto for possvel, a corroborao passa a ser um indicador para uma aproximao da verdade, e o objetivo da cincia passa a ser o de buscar teorias cada vez mais prximas verdade ou, como diz Popper, com um grau cada vez maior de verossimilhana ou verossimilitude (verisimilitude ou, thuthlikeness, em ingls).

2.4. Crticas das idias de Popper

Boa parte das crticas das idias de Popper foram feitas pelos representantes do que pode ser chamado de A nova filosofia da cincia: Kuhn, Lakatos e Feyerabend. Para Anderson (1994), estas crticas apiam-se principalmente em dois problemas metodolgicos: o primeiro que os enunciados relatando os resultados dos testes esto impregnados de teorias. O segundo, que usualmente testamos sistemas tericos complexos e no hipteses isoladas, do tipo todos os cisnes so brancos.Suponhamos que queremos testar a teoria de Newton, formada pelas trs leis do movimento e pela lei da gravidade. Para deduzir uma conseqncia observvel da teoria (uma previso), precisamos acrescentar teoria uma srie de hipteses auxiliares, a respeito, por exemplo, da estrutura do sistema solar e de outros corpos celestes. Assim, para fazer a previso a respeito da volta do famoso cometa depois chamado cometa de Halley , Halley no utilizou apenas as leis de Newton, mas tambm a posio e a velocidade do cometa, calculadas quando de sua apario no ano de 1682 (as chamadas condies iniciais). Alm disso, ele desprezou certos dados considerados irrelevantes (a influncia de jpiter foi considerada pequena demais para influenciar de forma sensvel o movimento do cometa). Por isso, se a previso de Halley no tivesse sido cumprida (o cometa voltou no ms e no ano previsto), no se poderia afirmar que a teoria de Newton foi refutada: poderia ter havido um erro nas condies iniciais ou nas chamadas hipteses auxiliares. Isto significa que, quando uma previso feita a partir de uma teoria fracassa, podemos dizer apenas que pelo menos uma das hipteses do conjunto formado pelas leis de Newton, condies iniciais e hipteses auxiliares falsa mas no podemos apontar qual delas foi responsvel pelo fracasso da previso: pode ter havido um erro nas medidas da rbita do cometa ou ento a influncia de Jpiter no poderia ser desprezada.Esta crtica tambm foi formulada pela primeira vez por Pierre Duhem, que diz:

O fsico nunca pode subestimar uma hiptese isolada a um teste experimental, mas somente todo um conjunto de hipteses. Quando o experimento se coloca em desacordo com a predio, o que ele aprende que pelo menos uma das hipteses do grupo inaceitvel e tem que ser modificada; mas o experimento no indica qual delas deve ser mudada (1954, p. 187).

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Duhem resume ento o que hoje designado como tese de Duhem: Um experimento em Fsica no pode nunca condenar uma hiptese isolada mas apenas todo um conjunto terico (1954, p. 183).Na realidade, mais de uma teoria e at todo um sistema de teorias pode estar envolvido no teste de uma previso. Isto porque, teorias cientficas gerais, com grande amplitude, como a teoria de Newton, s podem ser testadas com auxlio de teorias mais especficas, menos gerais. As quatro leis de Newton, juntamente com os conceitos fundamentais da teoria (massa, gravidade) formam o que se pode chamar de ncleo central ou suposies fundamentais da teoria. Este ncleo precisa ser enriquecido com um conjunto de miniteorias acerca da estrutura do sistema solar. Este conjunto constitui um modelo simplificado do sistema solar, onde se considera, por exemplo, que somente foras gravitacionais so relevantes e que a atrao entre planetas muito pequena comparada com a atrao do Sol. Se levarmos em conta que os dados cientficos so registrados com instrumentos construdos a partir de teorias, podemos compreender que o que est sendo testado , na realidade, uma teia complexa de teorias e hipteses auxiliares e a refutao pode indicar apenas que algo est errado em todo esse conjunto.Isso significa que a teoria principal (no caso a teoria de Newton) no precisa ser modificada. Podemos, em vez disso, modificar uma das hipteses auxiliares. Um exemplo clssico dessa situao ocorreu quando os astrnomos calcularam a rbita do planeta Urano com auxlio da teoria de Newton e descobriram que esta rbita no concordava com a rbita observada. Havia, portanto, o que chamamos em filosofia da cincia, de uma anomalia, isto , uma observao que contradiz uma previso.Como vimos, dois astrnomos, Adams e Le Verrier, imaginaram, ento, que poderia haver um planeta desconhecido que estivesse alterando a rbita de Urano. Eles modificaram, portanto, uma hiptese auxiliar a que Urano era o ltimo planeta do sistema solar. Calcularam ento a massa e a posio que o planeta desconhecido deveria ter para provocar as discrepncias entre a rbita prevista e a rbita observada. Um ms depois da comunicao de seu trabalho, em 23 de setembro de 1846, um planeta com as caractersticas previstas Netuno foi observado. Neste caso, o problema foi resolvido alterando-se uma das hipteses auxiliares, ao invs de se modificar uma teoria newtoniana. Em outra situao bastante semelhante uma diferena entre a rbita prevista e a rbita observada do planeta Mercrio , Le Verrier se valeu da mesma estratgia, postulando a existncia de um planeta, Vulcano, mais prximo do Sol do que Mercrio. Mas nenhum planeta com as caractersticas previstas foi encontrado. Neste caso, o problema somente pde ser resolvido com a substituio da teoria de Newton pela teoria da relatividade nenhuma mudana nas hipteses auxiliares foi capaz de resolver o problema, explicando a anomalia.

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A partir da, vrios filsofos da cincia principalmente Kuhn, Lakatos e Feyerabend consideram que nem Popper nem os indutivistas resolveram adequadamente o problema de como testar um sistema complexo de teorias, formado pela teoria principal e pelas teorias e hipteses auxiliares envolvidas no teste. Para esses filsofos, sempre possvel fazer alteraes nas hipteses e teorias auxiliares quando uma previso no se realiza. Desse modo, podemos sempre reconciliar uma teoria com a observao, evitando assim que ela seja refutada. Fica difcil, ento, explicar, dentro da metodologia falsificacionista de Popper quando uma teoria deve ser considerada refutada e substituda por outra.Para apoiar essas crticas, Kuhn, Lakatos e Feyerabend buscam apoio na histria da cincia, que, segundo eles, demonstraria que os cientistas no abandonam teorias refutadas. Em vez disso, eles modificam as hipteses e teorias auxiliares de forma a proteger a teoria principal contra refutaes.Outra crtica parte da idia de que os enunciados de testes (que relatam resultados de uma observao ou experincia), esto impregnados de teorias auxiliares e, por isso, no podem servir como apoio para a refutao da teoria que est sendo testada. Se os testes dependem da teoria, eles so falveis e sempre podem ser revistos no constituindo, portanto, uma base emprica slida para apoiar confirmaes ou refutaes.Embora Popper admita a falibilidade dos resultados de um teste, ele no nos diz quando um teste deve ser aceito como uma refutao da teoria. Popper no teria resolvido, na prtica, o chamado problema da base emprica: a soluo de Popper seria vlida apenas no nvel lgico, mas no teria qualquer utilidade no nvel metodolgico.Outro tipo de crtica envolve a ligao entre as idias de corroborao e verossimilitude. Para Popper, a corroborao seria o indicador (conjectural) da verossimilitude: teorias mais corroboradas seriam tambm mais prximas da verdade.O problema que a corroborao indica apenas o sucesso passado de uma teoria, enquanto a avaliao enquanto a avaliao da verossimilhana de duas teorias implica uma previso acerca do sucesso futuro da teoria: se uma teoria est mais prxima da verdade do que outra ela seria tambm mais confivel, funcionando como um guia melhor para nossas previses. Neste caso, porm, a ligao entre corroborao e verossimilitude parece depender de um raciocnio indutivo: a partir do sucesso passado de uma teoria estimamos seu sucesso futuro (Lakatos, 1970; Watkins, 1984). Sendo assim, os argumentos de Popper estariam sujeitos s crticas induo feitas por Hume.Alm disso, para que uma teoria tenha maior verossimilitude que outra, necessrio que haja um aumento no contedo de verdade (o conjunto de previses no refutadas), sem que haja tambm um aumento de contedo de falsidade (o conjunto de previses refutadas). No entanto, Miller (1974a, 1974b) e Tich (1974) demonstraram que quando duas teorias so falsas, tanto o

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contedo de verdade como o de falsidade crescem com o contedo das teorias (o nico caso em que isso no ocorre seria o caso em que uma das duas teorias verdadeira). Sendo assim, impossvel comparar quanto verossimilhana duas teorias que podem ser falsas.Uma soluo para este problema consiste em propor critrios de avaliao de teorias que no dependam da verossimilhana, como fez Watkins (1984); outra soluo corrigir e reformular o conceito de verossimilhana, de modo que ele sirva como um objetivo da cincia como procuram fazer vrios filsofos (Brink & Heidema, 1987; Burger & Heidema, 1994; Kuipers, 1987; Niiniluoto, 1984, 1987; Oddie, 1986; para crticas a essa tentativa, ver Miller, 1994).

3. A filosofia de Thomas Kuhn

Em A Estrutura das Revolues Cientficas, publicado originalmente em 1962, o filsofo Thomas Kuhn (1922-1996), critica a viso da cincia proposta tanto pelos positivistas lgicos como pelo racionalismo crtico popperiano, demonstrando que o estudo da histria da cincia d uma viso da cincia e do seu mtodo diferente da que foi proposta por essas escolas.Logo aps a primeira edio de seu livro, Kuhn foi criticado por ter defendido uma viso relativista da cincia, ao negar a existncia de critrios objetivos para a avaliao de teorias e ao defender uma forte influncia de fatores psicolgicos e sociais nessa avaliao.Na segunda edio do livro (1970b) no posfcio e em outros trabalhos (1970a, 1971, 1977, 1979, 1987, 1990), Kuhn defendeu-se das crticas, afirmando que tinha sido mal interpretado: Meus crticos respondem s minhas opinies com acusaes de irracionalidade e relativismo [...] Todos os rtulos que rejeito categoricamente [...] (1970a, p. 234). No entanto, medida que procurava se explicar melhor, Kuhn foi tambm reformulando muitas de suas posies originais. Para alguns filsofos da cincia, como Newton-Smith (1981), essas mudanas foram tantas, que fica difcil dizer se um racionalista deveria negar tudo que Kuhn diz (p. 103).Em seu primeiro livro (1957), Kuhn prope-se a discutir as causas da Revoluo Copernicana, que ocorreu quando a teoria heliocntrica de Coprnico substituiu o sistema geocntrico de Ptolomeu. Para Kuhn, o fato de que teorias aparentemente bem confirmadas so periodicamente substitudas por outras refuta a tese positivista de um desenvolvimento indutivo e cumulativo da cincia. Contrariamente ao falsificacionismo de Popper, porm, Kuhn acha que uma simples observao incompatvel com uma teoria no leva um cientista a abandonar essa teoria, substituindo-a por outra. Para ele, a histria da cincia demonstra que esta substituio (chamada revoluo cientfica) no e no poderia ser to simples como a lgica falsificacionista indica. Isso porque uma observao nunca absolutamente incompatvel com uma teoria.

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Na realidade, uma teoria falsificada no precisa ser abandonada, mas pode ser modificada de forma a se reconciliar com a suposta refutao. Mas, neste caso, por que os cientistas s vezes tentam modificar a teoria e, outras vezes, como no caso de Coprnico, introduzem uma nova teoria completamente diferente? O objetivo central de Kuhn , portanto, o de explicar por que os cientistas mantm teorias apesar das discrepncias e, tendo aderido a ela, por que eles as abandonam? (Kuhn, 1957, p. 76). Em outras palavras, Kuhn vai tentar explicar como a comunidade cientfica chega a um consenso e como esse consenso pode ser quebrado. (Alm de livros e artigos do prprio Kuhn, podem ser consultados, entre muitos outros, os seguintes trabalhos: Andersson, 1994; Chalmers, 1982; Gutting, 1980; Hoyningen-Huene, 1993; Kitcher, 1993; Lakatos & Musgrave, 1970; Laudan, 1984, 1990; Newton-Smith, 1981; Oldroyd, 1986; Scheffler, 1967; Siegel, 1987; Stegmller, 1983; Watkins, 1984.)

3.1 O conceito de paradigma

Para Kuhn, a pesquisa cientfica orientada no apenas por teorias, no sentido tradicional deste termo (o de uma coleo de leis e conceitos), mas por algo mais amplo, o paradigma, uma espcie de teoria ampliada, formada por leis, conceitos, modelos, analogias, valores, regras para a avaliao de teorias e formulao de problemas, princpios metafsicos (sobre a natureza ltima dos verdadeiros constituintes do universo, por exemplo) e ainda pelo que ele chama de exemplares, que so solues concretas de problemas que os estudantes encontram desde o incio de sua educao cientfica, seja nos laboratrios, exames ou no fim dos captulos dos manuais cientficos (Kuhn, 1970b, p. 232).Kuhn cita como exemplos de paradigmas, a mecnica newtoniana, que explica a atrao e o movimento dos corpos pelas leis de Newton; a astronomia ptolomaica e copernicana, com seus modelos de planetas girando em torno da Terra ou do Sol e as teorias do flogisto e do oxignio, que explicam a combusto e a calcinao de substncias pela eliminao de um princpio inflamvel o flogisto ou pela absoro de oxignio, respectivamente. Todas essas realizaes cientficas serviram como modelos para a pesquisa cientfica de sua poca, funcionando tambm, como uma espcie de viso do mundo para a comunidade cientfica, determinando que tipo de leis so vlidas; que tipo de questes devem ser levantadas e investigadas; que tipos de solues devem ser propostas; que mtodos de pesquisa devem ser usados e que tipo de constituintes formam o mundo (tomos, eltrons, flogisto etc.).A fora do paradigma seria tanta que ele determinaria at mesmo como um fenmeno percebido pelos cientistas: quando Lavoisier descobriu o oxignio, ele passou a ver oxignio onde, nos mesmos experimentos, Priestley e outros cientistas defensores da teoria do flogisto viam ar deflogistado. Enquanto Aristteles olhava para uma pedra balanando amarrada em um fio e via um

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corpo pesado tentando alcanar seu lugar natural, Galileu via um movimento pendular (Kuhn, 1970b).Para Kuhn, a fora de um paradigma viria mais de seus exemplares do que de suas leis e conceitos. Isto porque os exemplares influenciam fortemente o ensino da cincia. Eles aparecem nos livros-texto de cada disciplina como exerccios resolvidos, ilustrando como a teoria pode ser aplicada para resolver problemas (mostrando, por exemplo, como as leis de Newton so usadas para calcular a atrao gravitacional que a Terra exerce sobre um corpo em sua superfcie). So, comumente, as primeiras aplicaes desenvolvidas a partir da teoria, passando a servir ento como modelos para a aplicao e o desenvolvimento da pesquisa cientfica. Os estudantes so estimulados a aplic-los na soluo de problemas e tambm a modificar e estender os modelos para a soluo de novos problemas.Os exemplares so, portanto, a parte mais importante de um paradigma para a apreenso dos conceitos cientficos e para estabelecer que problemas so relevantes e de que modo devem ser resolvidos. Desse modo, eles determinam o que pode ser considerado uma soluo cientificamente aceitvel de um problema, ajudando ainda a estabelecer um consenso entre os cientistas e servindo como guias para a pesquisa.Aps ter sido criticado por usar o termo paradigma de modo bastante vago (Masterman, 1970), Kuhn afirmou, no posfcio de A Estrutura das Revolues Cientficas (1970b), que ele preferia usar o termo paradigma no sentido mais estrito, de exemplares. Apesar disso, o termo paradigma continuou a ser usado em sentido amplo pela maioria dos filsofos da cincia e o prprio Kuhn reconheceu ter perdido o controle sobre este termo.Alm disso, como durante as mudanas de paradigma (o termo ser usado aqui em sentido amplo, salvo observao em contrrio) h tambm mudanas na teoria que compe o paradigma, Kuhn muitas vezes fala indistintamente em substituir uma teoria ou paradigma (1970b).

3.2 A cincia normal

A fora de um paradigma explicaria por que as revolues cientficas so raras: em vez de abandonar teorias refutadas, os cientistas se ocupam, na maior parte do tempo, com o que Kuhn chama cincia normal, que a pesquisa cientfica orientada por um paradigma e baseada em um consenso entre especialistas.Nos perodos de cincia normal, todos os problemas e solues encontradas tm de estar contidos dentro do paradigma adotado. Os cientistas se limitariam a resolver enigmas (puzzles). Este termo usado para indicar que, na cincia normal, as anomalias (resultados discrepantes) que surgem na pesquisa so tratados como enigmas ou quebra-cabeas (puzzles), do tipo encontra-

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do nos jogos de encaixar figuras ou nas palavras cruzadas: a dificuldade de achar a palavra ou a pea certa deve-se nossa falta de habilidade e no (provavelmente) a um erro na construo ou nas regras do jogo. Do mesmo modo, os problemas no resolvidos e os resultados discrepantes no ameaam a teoria ou o paradigma: o mximo que o cientista poder fazer contestar e modificar alguma hiptese auxiliar, mas no a teoria principal ou o paradigma.Na cincia normal no h, portanto, experincias refutadoras de teorias, nem grandes mudanas no paradigma. Essa adeso ao paradigma, no entanto, no impede que haja descobertas importantes na cincia normal, como aconteceu, por exemplo, na descoberta de novos elementos qumicos previstos pela tabela peridica (Kuhn, 1977). um progresso, porm, que deixa as regras bsicas do paradigma inalteradas, sem mudanas fundamentais.Essa adeso seria importante para o avano da cincia, uma vez que se o paradigma fosse abandonado rapidamente, na primeira experincia refutadora, perderamos a chance de explorar todas as sugestes que ele abre para desenvolver a pesquisa. Uma forte adeso ao paradigma permite a prtica de uma pesquisa detalhada, eficiente e cooperativa.

3.3 Crise e mudana de paradigma

H perodos na histria da cincia em que teorias cientficas de grande amplitude so substitudas por outras, como ocorreu na passagem da teoria do flogisto para a teoria do oxignio de Lavoisier, do sistema de Ptolomeu para o de Coprnico, ou da fsica de Aristteles para a de Galileu.Nestes perodos, chamados de Revolues Cientficas, ocorre uma mudana de paradigma: novos fenmenos so descobertos, conhecimentos antigos so abandonados e h uma mudana radical na prtica cientfica e na viso de mundo do cientista. Segundo Kuhn, embora o mundo no mude com a mudana de paradigma, depois dela o cientista passa a trabalhar em um mundo diferente (1970b, p. 121).Para Kuhn, a cincia s tem acesso a um mundo interpretado por uma linguagem ou por paradigmas: nada podemos saber a respeito do mundo independentemente de nossas teorias. Ele rejeita a idia de que possamos construir teorias verdadeiras ou mesmo cada vez mais prximas verdade (Kuhn, 1970a; 1970b; 1977).Pelo mesmo motivo, seria impossvel estabelecer uma distino entre conceitos observveis que se referem a fenmenos observveis, no influenciados por teorias e conceitos tericos, que se referem a fenmenos no observveis (como campo ou eltron), construdos com auxlio de teorias.Kuhn compara as mudanas no modo de observar um fenmeno durante as revolues cientficas a mudanas de Gestalt, que ocorrem holisticamente: por exemplo, quando certas figuras ambguas podem ser vistas de modos

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diferentes, como um coelho ou um pato (figura 1): O que eram patos no mundo do cientista antes da revoluo passam a ser coelhos depois dela (Kuhn, 1970b, p. 111).

Figura 1. Coelho ou pato?

Como nenhuma teoria ou paradigma resolve todos os problemas, h sempre anomalias que, aparentemente, poderiam ser solucionadas pelo paradigma, mas que nenhum cientista consegue resolver.Um exemplo de anomalia ocorreu quando Herschel, utilizando um novo e melhor telescpio, observou que Urano considerado como uma estrela na poca no era puntiforme, como uma estrela, mas tinha a forma de um disco. Outra anomalia ocorreu quando Herschel observou que Urano movia-se ao longo do dia entre as estrelas, em vez de permanecer fixo, como elas. Herschel achou que Urano era um cometa, at que outros astrnomos observaram que Urano tinha uma rbita quase circular em volta do Sol, como fazem os planetas. A forma e o movimento de Urano eram, portanto, anomalias que no se encaixavam na percepo original de que Urano era uma estrela.Ao mesmo tempo, Kuhn fala que algumas anomalias so significativas ou essenciais, ou ainda que elas so contra-exemplos, no sentido de que podem lanar dvidas sobre a capacidade do paradigma de resolver seus problemas e gerando com isso uma crise (1970a, 1970b, 1977, 1979). O problema ento descobrir o que levaria uma anomalia a parecer algo mais do que um novo quebra-cabeas da cincia normal (1970b, p. 81).

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Tudo o que Kuhn apresenta (1970b, 1977, 1979), porm, so indcios de alguns fatores que poderiam estimular os cientistas a considerar uma ou mais anomalias como significativas: uma discrepncia quantitativamente significativa entre o previsto e o esperado; um acmulo de anomalias sem resoluo; uma anomalia que, apesar de parecer sem importncia, impea uma aplicao prtica (a elaborao de um calendrio, por exemplo, no caso da astronomia ptolomaica); uma anomalia que resiste por muito tempo, mesmo quando atacada pelos melhores especialistas da rea (como as anomalias na rbita de Urano, que levaram descoberta de Netuno ou as discrepncias residuais na astronomia de Ptolomeu); ou ainda um tipo de anomalia que aparece repetidas vezes em vrios tipos de teste. Do momento em que a cincia normal produziu uma ou mais anomalias significativas, alguns cientistas podem comear a questionar os fundamentos da teoria aceita no momento. Eles comeam a achar que algo est errado com o conhecimento e as crenas existentes (1977, p. 235). Surge uma desconfiana nas tcnicas utilizadas e uma sensao de insegurana profissional. Neste ponto, Kuhn diz que a disciplina em questo est em crise (1970b, 1977).A crise gerada se o cientista levar a srio as anomalias e perder a f no paradigma: para Kuhn, a revoluo copernicana aconteceu porque problemas no resolvidos levaram Coprnico a perder a f na teoria ptolomaica (Kuhn, 1957).A crise pode ser resolvida de trs formas: as anomalias so resolvidas sem grandes alteraes na teoria ou no paradigma; as anomalias no interferem na resoluo de outros problemas e, por isso, podem ser deixadas de lado; a teoria ou o paradigma em crise substitudo por outro capaz de resolver as anomalias.A nica explicao para o que ir acontecer parece ser psicolgica: se o cientista acredita no paradigma, ele tenta resolver a anomalia em alter-lo, modificando, no mximo, alguma hiptese auxiliar. Se perdeu a f no paradigma, ele pode tentar construir outro paradigma capaz de resolver a anomalia.

3.4 A tese da incomensurabilidade

Em A Estrutura das Revolues Cientficas, Kuhn parece defender a tese de que impossvel justificar racionalmente nossa preferncia por uma entre vrias teorias: a tese da incomensurabilidade.A incomensurabilidade decorre das mudanas radicais que ocorrem durante uma revoluo cientfica: mudanas no significado do conceito; na forma de ver o mundo ou de interpretar os fenmenos e nos critrios para selecionar os problemas relevantes, nas tcnicas para resolv-los e nos critrios para avaliar teorias.

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Assim, como comparar teorias ou paradigmas, se os cientistas que aderem a paradigmas ou teorias diferentes tm vises diferentes do mesmo fenmeno (onde um v o flogisto o outro v oxignio) ou, colocando de forma ainda mais radical, se o mundo muda com o paradigma (antes da descoberta de Herschel havia uma estrela onde agora h um planeta)?Outra questo, que os problemas que exigiam solues dentro de um paradigma podem ser abandonados como obsoletos na viso de outro paradigma o mesmo acontecendo com o tipo de soluo escolhida. Conseqentemente, durante uma revoluo cientfica h ganhos mas tambm h perdas na capacidade de explicao e previso: a teoria nova explica alguns fatos que a teoria antiga no explica, mas esta continua a explicar fatos que a teoria nova no capaz de explicar. Nesta situao, torna-se problemtico afirmar que uma das teorias superior a outra. Esta tese conhecida como a perda de Kuhn (Kuhn-loss) (Watkins, 1984, p. 214).A incomensurabilidade existiria tambm devido a uma dificuldade de traduo entre os conceitos e enunciados de paradigmas diferentes. Nas revolues cientficas ocorrem mudanas no significado de alguns conceitos fundamentais, de modo que cada comunidade cientfica passa a usar conceitos diferentes mesmo que as palavras sejam as mesmas.Isto quer dizer que, embora os conceitos do paradigma antigo continuem a ser usados, eles adquirem um significado diferente: o conceito de massa na teoria da relatividade, por exemplo, seria diferente do conceito de massa na mecnica newtoniana. O mesmo acontece com o conceito de planeta na teoria de Ptolomeu e na teoria de Coprnico.Os enunciados (leis e hipteses) teriam ento de ser traduzidos de um paradigma para outro. Mas, na ausncia de uma linguagem neutra (independente de teorias ou paradigmas) a traduo no pode ser feita sem perda de significado.Finalmente, como veremos depois, a incomensurabilidade decorre tambm do fato de que cada cientista pode atribuir pesos diferentes a cada um dos critrios para a avaliao de teorias (poder preditivo, simplicidade, amplitude etc.) ou ento interpret-los de forma diferente sem que se possa dizer qual o peso ou a interpretao correta. Alm disso, a prpria escolha desses critrios no pode ser justificada objetivamente por algum algoritmo lgico ou matemtico, por exemplo.Diante da dificuldade ou mesmo da impossibilidade de uma escolha entre teorias ou paradigmas, no de estranhar que Kuhn d a entender que a aceitao do novo paradigma no se deva ou, pelo menos, no se deva apenas a recursos lgicos ou a evidncias experimentais, mas capacidade de persuaso ou propaganda feita pelos cientistas que defendem o novo paradigma. Na falta de argumentos e critrios objetivos de avaliao esta aceitao ocorreria atravs de uma espcie de converso de novos adeptos ou ento medida

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que aqueles que se recusam a aceitar o novo paradigma fossem morrendo (1970b).Em obras posteriores, porm, (1970a, 1977, 1983) e no posfcio obra original (1970b), ele passou a afirmar que nem todos os conceitos mudam de sentido durante as mudanas de teorias ou paradigmas: h apenas uma incomensurabilidade local, em que a mudana de sentido afeta apenas um pequeno subgrupo de termos (1983, PP. 670-671).Neste caso, haveria uma incomunicabilidade apenas parcial entre os defensores de paradigmas diferentes e o potencial emprico de teorias incomensurveis poderia ser comparado, uma vez que essas teorias tm interseces empricas que podem ser mutuamente incompatveis. Assim, embora o conceito de planeta tenha mudado na passagem da teoria de Ptolomeu para a de Coprnico, as previses de cada teoria sobre as posies planetrias podem ser feitas com instrumentos apropriados, que medem os ngulos entre os planetas e as estrelas fixas. O resultado dessas medidas pode se revelar incompatvel com alguma dessas previses. Neste caso, a comparao entre teorias pode ser feita porque algumas das previses empricas no se valem dos conceitos incomensurveis.

3.5 A avaliao das teorias

As razes fornecidas por Kuhn para escolher a melhor entre duas teorias no diferem, segundo ele prprio, das linhas tradicionais da filosofia da cincia. Sem pretender dar uma linha completa, Kuhn seleciona cinco caractersticas de uma boa teoria cientfica [...]: exatido, consistncia, alcance, simplicidade e fecundidade (1977, p. 321).A exatido, para Kuhn, significa que as previses deduzidas da teoria devem ser qualitativa e quantitativamente exatas, isto , as conseqncias da teoria devem estar em concordncia demonstrada com os resultados das experimentaes e observaes existentes (1977, p. 321).A exigncia de consistncia significa que a teoria deve estar livre de contradies internas e ser considerada compatvel com outras teorias aceitas no momento.Quanto ao alcance, desejvel que ela tenha um amplo domnio de aplicaes, isto , que suas conseqncias estendam-se alm das observaes, leis ou subteorias particulares para as quais ela esteja projetada em princpio (1977, p. 321). Isso significa que uma teoria deve explicar fatos ou leis diferentes daqueles para os quais foi construda.A simplicidade pode ser caracterizada como a capacidade que a teoria tem de unificar fenmenos que, aparentemente, no tinham relao entre si. Uma boa teoria deve ser capaz de organizar fenmenos que, sem ela, permaneceriam isolados uns dos outros.

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A fecundidade implica que a teoria deve desvendar novos fenmenos ou relaes anteriormente no verificadas entre fenmenos j conhecidos (1977, p. 32). Ela deve ser uma fonte de novas descobertas; deve ser capaz de orientar a pesquisa cientfica de forma produtiva.Alm dessas razes, Kuhn cita, ocasionalmente, o poder explanatrio (outro conceito comum na filosofia tradicional), a plausibilidade e a capacidade da teoria de definir e resolver o maior nmero possvel de problemas tericos e experimentais, especialmente do tipo quantitativo (1977).A plausibilidade significa, para Kuhn, que as teorias devem ser compatveis com outras teorias disseminadas no momento (1970b, p. 185).Em relao capacidade de resolver problemas, Kuhn mais explcito: alm de resolver os problemas que deflagraram a crise com mais preciso que o paradigma anterior, o novo paradigma deve garantir a preservao de uma parte relativamente grande da capacidade objetiva de resolver problemas conquistada pela cincia com o auxlio dos paradigmas anteriores (Kuhn, 1970b, p. 169).Alm disso, Kuhn inclui tambm na capacidade de resolver problemas, a habilidade de uma teoria de prever fenmenos que, da perspectiva da teoria antiga, so inesperados (Kuhn, 1970b, 1977).Kuhn reconhece que o poder explanatrio, a plausibilidade e, principalmente, a capacidade de resolver problemas, podem ser deduzidos dos valores anteriores. Mas no tem a preocupao de avaliar a coerncia ou a redundncia desses critrios, uma vez que atribui um peso menor a eles do que os filsofos tradicionais.Para Kuhn, esses critrios no so conclusivos, isto , no so suficientes para forar uma deciso unnime por parte da comunidade cientfica. Por isso, ele prefere usar o termo valores em vez de critrios. Isso acontece por vrios motivos. Em primeiro lugar, valores como a simplicidade, por exemplo, podem ser interpretados de formas diferentes, provocando uma discordncia entre qual das teorias de fato mais simples. Alm disso, um valor pode se opor a outro: uma teoria pode ser superior em relao a determinado valor, mas inferior em relao a outro: uma teoria pode ser mais simples e outra mais precisa (Kuhn, 1970a, p. 258). Neste caso, seria necessrio atribuir pesos relativos a cada valor mas esta atribuio no faz parte dos valores compartilhados pela comunidade. Na realidade, cada cientista pode atribuir um peso diferente a cada valor. Alm disso, embora esses valores possam servir para persuadir a comunidade cientfica a aceitar um paradigma, eles nos servem para justificar a teoria no sentido de que ela seria mais verdadeira que outra. Para Kuhn, no h ligao entre os valores e a verdade de uma teoria (ou de sua verossimilitude).Finalmente, Kuhn no v como justificar estes valores, a no ser pelo fato de que esses so os valores compartilhados pela comunidade cientfica: Que melhor critrio poderia existir do que a deciso de um grupo de cientistas?

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(1970b, p. 170). A justificativa para a aceitao desses critrios passa a ser, portanto, a opinio da comunidade cientfica que trabalha com o paradigma em questo.Kuhn sustenta que, do momento em que a escolha de teorias no completamente determinada pelos valores compartilhados da comunidade cientfica (simplicidade, preciso etc.), nem pode ser determinada (provada ou refutada) por uma base emprica, outros fatores, que variam de indivduo para indivduo, influem nesse escolha: experincia profissional, convices religiosas e filosficas, certos traos da personalidade (timidez, esprito de aventura etc.) (1970a, 1970b, 1977).Para Kuhn esta indeterminao til para o desenvolvimento da cincia: como nenhuma teoria comprovada ou refutada conclusivamente, qualquer deciso de escolha implica um risco. Por isso, seria interessante que alguns cientistas no abandonassem uma teoria prematuramente. importante que alguns escolham a teoria nova e outros mantenham a adeso teoria antiga: somente assim o potencial das duas teorias poder ser desenvolvido a exausto.A partir dessas concluses, Kuhn ataca outra tese admitida por positivistas lgicos e racionalistas crticos a de que h uma diferena entre o contexto da descoberta e o da justificativa de uma teoria. Para Kuhn, uma vez que fatores individuais e psicolgicos que poderiam participar apenas do contexto da descoberta para os filsofos tradicionais podem e devem participar da avaliao de teorias, a diferena entre os dois contextos se dissolve.No entanto, ao mesmo tempo que chama a ateno para fatores subjetivos de avaliao, Kuhn acha que na converso de toda uma comunidade ao novo paradigma os argumentos baseados na capacidade da nova teoria de resolver problemas so decisivos. Assim, a nova teoria somente ser aceita pela comunidade, se ela for capaz de resolver anomalias significativas que levaram crise e se for capaz, tambm, de resolver uma grande parte dos problemas resolvidos pela teoria antiga (1970a). medida que os cientistas trabalham para corrigir e desenvolver as teorias, o nmero de evidncias empricas e argumentos tericos em favor de uma teoria pode aumentar progressivamente, a ponto de convencer um nmero cada vez maior de cientistas, at que, eventualmente, toda a comunidade passa a aceitar uma nica teoria ou paradigma: o novo consenso restabelece ento a volta de uma cincia normal (Kuhn, 1970b).No entanto, Kuhn argumenta que, embora em alguns casos a resistncia mudana no parea razovel, no se encontrar um ponto onde a resistncia [ao paradigma vigente] torne-se ilgica ou no cientfica (1970b, p. 159).Esse ponto coloca novamente em questo a objetividade da escolha: se no se pode convencer um cientista por argumentos que sua resistncia ilgica ou no cientfica, ento, para que escolher entre duas ou mais teorias? Por que no

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ficar com todas elas possibilitando o desenvolvimento exausto de todos os paradigmas?

3.6 Concluso

Para Kuhn, o progresso em cincia consiste, principalmente, na maior capacidade de resolver problemas que as novas teorias apresentam em relao s antigas teorias incluindo-se a solues mais precisas e maior nmero de previses de dados empricos. Kuhn parece defender aqui um critrio objetivo de progresso. Ao mesmo tempo, porm, afirma que, durante uma mudana de paradigma, h perdas na capacidade de explicar certos fenmenos e na capacidade de reconhecer certos problemas como legtimos alm de um estreitamento no campo da pesquisa (Kuhn, 1977). Mas, se h perdas e ganhos, como aferir o progresso?O conceito de progresso pode ser avaliado de forma objetiva, se aceitarmos que a cincia se aproxima cada vez mais da verdade. Mas Kuhn considera essa idia inaceitvel e desnecessria, criticando no apenas aquele que defende o aumento da verossimilitude das teorias cientficas, mas tambm uma viso realista da cincia.Kuhn defende aqui a posio no-realista de que sem sentido falar de uma realidade absoluta, livre de teorias, uma vez que no temos acesso a essa realidade. Ele considera que esta suposio no necessria para explicar o sucesso da cincia.A posio de Kuhn , claramente, instrumentalista: uma teoria apenas uma ferramenta para produzir previses precisas, no tendo qualquer relao com a verdade ou com a verossimilitude. Teorias no so verdadeiras nem falsas, mas eficientes ou no eficientes. dentro desta viso que Kuhn concebe o progresso cientfico.Restam ainda duas questes importantes: Kuhn apresenta boas razes para a avaliao de teorias? At que ponto as idias de Kuhn podem ser relativistas?Em sentido amplo, o relativismo a tese de que a verdade ou a avaliao de uma teoria, de uma hiptese ou de algo mais amplo (paradigma, sistema conceitual ou mesmo todo o conhecimento) determinada por (ou funo de) um ou mais dos seguintes fatores ou variveis: perodo histrico, interesse de classe, linguagem, raa, sexo, nacionalidade, cultura, convices pessoais, paradigma, pontos de vista enfim, por qualquer fator psicossocial, cultural ou pelo sistema de conceitos utilizados. Para o relativismo, todos esses fatores seriam uma barreira instransponvel para a objetividade. No caso especfico da filosofia da cincia, a tese relativista afirma que no h critrios ou padres objetivos para avaliar as teorias, uma vez que esses critrios dependem de um ou mais dos fatores acima.

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Se a tese for verdadeira, ns estamos, de certa maneira, aprisionados dentro do nosso sistema de conceitos (ou dentro de paradigmas, classes sociais, pocas histricas, linguagem etc.) e, simplesmente, no h um sistema superior, objetivo ou neutro para avaliar nossas idias. Neste caso, fica comprometida no apenas a possibilidade de avaliao de teorias, mas tambm a prpria idia de progresso do conhecimento cientfico ou da cincia. Afinal, que critrio teramos para afirmar que uma teoria melhor que outra ou que h progresso ao longo de uma seqncia de teorias?Embora Kuhn tenha rejeitado o rtulo de relativista, vrios filsofos consideram que ele no consegue apresentar boas razes para a escolha de teorias (Andersson, 1994; Bunge, 1985a, 1985b; Lakatos, 1970, 1978; Laudan, 1990; Popper, 1979; Shapere, 1984; Scheffler, 1967; Siegel, 1987; Thagard, 1992; Toulmin, 1970; Trigg, 1980, entre muitos outros).Como pode, por exemplo, haver progresso, do momento em que a capacidade de resolver problemas avaliada de forma diferente pelos defensores do paradigma antigo e do novo (para os primeiros pode ter havido mais perdas do que ganhos, enquanto os ltimos fazem a avaliao inversa) e do momento em que fatores psicolgicos e sociais necessariamente influenciam essa escolha o que vem a ser justamente a tese relativista?As teses de Kuhn, principalmente na interpretao mais radical, estimularam um intenso debate. Os filsofos que acreditam que os critrios de avaliao de teorias devem ser objetivos, isto , devem ser independentes das crenas dos cientistas ou das circunstncias sociais do momento, procuraram rebater suas teses relativistas, de forma a defender o uso de critrios objetivos para a avaliao das teorias, como fizeram, os seguidores do racionalismo crtico (Andersson, 1994; Bartley, 1984; Miller, 1994; Musgrave, 1993; Radnitzky, 1976, 1987; Watkins, 1984).Outro grupo parte para a posio oposta, levando as teses relativistas s ltimas conseqncias, como fizeram Paul Feyerabend (1978, 1988) e a Escola de Edimburgo (Barnes, 1974; Bloor, 1976; Collins, 1982; Latour & Woolgar, 1986).Finalmente, h aqueles que, como Imre Lakatos e Larry Laudan, incorporam em sua filosofia algumas idias de Kuhn, procurando, no entanto, construir critrios objetivos para a avaliao de teorias (Lakatos, 1970, 1978; Laudan, 1977, 1981, 1984, 1990).

4.Lakatos, Feyerabend e a sociologia do conhecimento

Do mesmo modo que Kuhn, Imre Lakatos (1922-1974) acha que sempre possvel evitar que uma teoria seja refutada fazendo-se modificaes nas hipteses auxiliares. A partir da, Lakatos procura reformular a metodologia de Popper de forma a preservar a idia de objetividade e racionalidade da cincia. J Paul Feyerabend (1924-1994) segue uma linha ainda mais radical do que a de

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Kuhn, ao afirmar que no existem normas que garantam o progresso de cincia ou que a diferenciem de outras formas de conhecimento. Finalmente, a sociologia do conhecimento procura demonstrar que a avaliao das teorias cientficas determinada por fatores sociais.

4.1 As idias de Lakatos

Para ilustrar a tese de que sempre possvel evitar que uma teoria seja refutada fazendo modificaes nas hipteses auxiliares, Lakatos imagina um planeta hipottico que se desvia da rbita calculada pela teoria de Newton. De um ponto de vista lgico, isso seria uma falsificao da teoria. Mas em vez de abandonar a teoria, o cientista pode imaginar que um planeta desconhecido esteja causando o desvio. Mesmo que este planeta no seja encontrado, a teoria de Newton no precisa ser rejeitada. Podemos supor, por exemplo, que o planeta muito pequeno e no pode ser observado com os telescpios utilizados. Mas vamos supor que uma nuvem de poeira csmica tenha impedido sua observao. E mesmo que sejam enviados satlites e que estes no consigam detectar a nuvem, o cientista pode dizer ainda que um campo magntico naquela regio perturbou os instrumentos do satlite. Desse modo, sempre se pode formular uma nova hiptese adicional, salvando a teoria da refutao. Lakatos mostra assim que refutaes de teorias podem sempre ser transformadas em anomalias, atribudas a hipteses auxiliares incorretas (Lakatos, 1970).Com exemplos como esse, Lakatos mostra tambm que, contrariamente a Popper, as teorias cientficas so irrefutveis: as teorias cientficas [...] falham em proibir qualquer estado observvel de coisas (Lakatos, 1970, p. 100).Para Lakatos, a histria da cincia demonstra a tese de que as teorias no so abandonadas, mesmo quando refutadas por enunciados de teste: oitenta e cinco anos se passaram entre a aceitao do perilio de Mercrio como anomalia e sua aceitao como falseamento da teoria de Newton (1970, p. 115).Alm disso, para Lakatos as teorias no so modificadas ao longo do tempo de forma completamente livre: certas leis e princpios fundamentais resistem por muito tempo s modificaes (como aconteceu com as leis de Newton, por exemplo). Por isso ele acha que deve haver regras com poder heurstico, que orientam as modificaes e servem de guia para a pesquisa cientfica. Se for assim, a pesquisa cientfica poderia ser melhor explicada atravs de uma sucesso de teorias com certas partes em comum: o cientista trabalha fazendo pequenas correes na teoria e substituindo-a por outra teoria ligeiramente modificada. Esta sucesso de teorias chamada por Lakatos de programa de pesquisa cientfica.

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A parte que no muda em um programa de pesquisa chamada de ncleo rgido do programa (Lakatos, 1970). O ncleo rgido formado por um conjunto de leis consideradas irrefutveis por uma deciso metodolgica, uma conveno compartilhada por todos os cientistas que trabalham no programa. Esta deciso metodolgica necessria devido ao problema de Duhem: a falsificao atinge o sistema de hipteses como um todo, sem indicar qual delas deve ser substituda. Logo, necessrio estabelecer por conveno que certas leis no podem ser mudadas em face de uma anomalia. Esta conveno impede tambm que os pesquisadores fiquem confusos, submersos em um oceano de anomalias (Lakatos, 1970, p. 133).No caso da mecnica newtoniana, o ncleo rgido formado pelas trs leis de Newton e pela lei da gravitao universal; na gentica de populaes, encontramos no ncleo a afirmao de que a evoluo uma alterao na freqncia dos genes de uma populao; na teoria do flogisto, a tese de que a combusto envolve sempre a liberao de flogisto; na astronomia copernicana o ncleo formado pelas hipteses de que a terra e os planetas giram em torno de um Sol estacionrio, com a Terra girando em torno de seu eixo no perodo de um dia (Lakatos, 1970, 1978).O ncleo rgido formado, portanto, pelos princpios fundamentais de uma teoria. ele que se mantm constante em todo o programa de pesquisa, medida que as teorias so modificadas e substitudas por outras. Se houver mudanas no ncleo, estaremos, automaticamente, diante de um novo programa de pesquisa. Foi isso que ocorreu, por exemplo, na passagem da astronomia ptolomaica para a copernicana ou na mudana da teoria do flogisto para a teoria da combusto pelo oxignio.Para resolver as anomalias, isto , as inadequaes entre as previses da teoria e as observaes ou experimentos, o pesquisador tenta sempre modificar uma hiptese auxiliar ou uma condio inicial, em lugar de promover alteraes no ncleo. As hipteses auxiliares e as condies iniciais formam o que Lakatos chama de cinto de proteo (1970, p. 133), j que elas funcionam protegendo o ncleo contra refutaes. Quando alguma anomalia era observada no sistema de Ptolomeu, por exemplo, procurava-se construir um novo epiciclo para explicar a anomalia. O mesmo teria ocorrido em relao suposio da existncia de um novo planeta (Netuno), com o fim de proteger os princpios bsicos da teoria newtoniana.A regra metodolgica de manter intacto o ncleo rgido chamada heurstica negativa do programa. J a heurstica positiva constitui o conjunto de sugestes ou palpites sobre como [...] modificar e sofisticar o cinto de proteo refutvel (1970, p. 135). Na heurstica positiva estariam, por exemplo, as tcni