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O CINEMA MUDO Antonio Costa. Compreender o Cinema. Rio de Janeiro, Globo, 1987. SABER VER (E ESCUTAR) O CINEMA MUDO HÆ cerca de dez anos, a RAI, para transmitir um ciclo de clÆssicos do cinema mudo, adotou um sistema realmente curioso. As legendas foram abolidas e subs- tituídas por um stop frame(isto Ø, fotogramas fixos) do œltimo plano anterior à legenda. Um círculo branco impresso por cima indicava a personagem que estava falando e uma voz em off apresentava a fala. É evidente que tal manipulaçªo dos textos fílmicos originais era ditada pela preo- cupaçªo de nªo perturbar os hÆbitos audiovisuais dos telespectadores, consi- derados incapazes de suportar a ordem do discurso do cinema mudo. Penso que nªo ocorreria a ninguØm acrescentar ballons aos afrescos de Giotto na capela da família Scrovegni ou de sonorizar os relevos de Bonanno nos portais do Duomo de Pisa. Naquele caso tratando-se só de cinema tomava-se a liberdade de alterar o equilíbrio entre imagem em movimento e legendas. Tratava- se de um arbítrio grave, se considerarmos que tal equilíbrio era o resultado de cuidadosas pesquisas sobre os valores rítmicos e plÆsticos da diagramaçªo do filme e da organizaçªo seqüencial dos quadros e escritas. PorØm, em relaçªo ao cinema mudo podem ser consumadas deturpaçıes ainda mais graves do que esta. HÆ algum tempo circula uma cópia sonorizada de Outu- bro (1928),de Serguei M. Eisenstein, na qual foram abolidas as legendas e acres- centado um inacreditÆvel comentÆrio que rompe e torna grotesco o complexo sistema de metÆforas visuais no qual reside o sentido do filme. Estes exemplos demonstram amplamente que, querendo facilitar a aproximaçªo aos filmes mudos, acaba-se inevitavelmente por desnaturÆ-los e destruí-los. Se alguØm quiser conhecer e amar e cinema mudo, precisa ter bem claro que sua linguagem Ø diferente da usada pelo cinema sonoro. O espectador que hoje queira aproximar-se do cinema mudo deve adequar-se a um código comunicativo e expressivo diferente daquele a que estÆ acostumado. Nªo se pode entender uma partida de rœgbi se sªo conhecidas somente as regras do futebol, nem se pode compreender a pintura dos primitivos se o ponto de referŒncia for apenas o espaço da pintura renascentista. Da mesma maneira nªo se pode olhar o cinema mudo como se olha o cinema contemporâneo ou o clÆs- sico dos anos 40 e 50. Certamente nªo Ø fÆcil poder ver hoje o cinema mudo. As dificuldades, antes de serem subjetivas, sªo objetivas e se devem, antes de mais nada, às condiçıes em que chegou atØ nós e Ø visível o patrimônio do cinema mudo. Na maior parte dos casos, os filmes mudos, rodados com uma freqüŒncia de dezesseis fotogramas por segundo, sªo projetados com freqüŒncia de 24 (que Ø a dos modernos projetores sonoros). Isso altera irremediavelmente o ritmo do filme. AlØm disso, existe o problema da cor. Grande parte dos espectadores de hoje

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O CINEMA MUDO

Antonio Costa. �Compreender o Cinema.� Rio de Janeiro, Globo, 1987.

SABER VER (E ESCUTAR) O CINEMA MUDO

Há cerca de dez anos, a RAI, para transmitir um ciclo de clássicos do cinemamudo, adotou um sistema realmente curioso. As legendas foram abolidas e subs-tituídas por um stop frame(isto é, fotogramas fixos) do último plano anterior àlegenda. Um círculo branco impresso por cima indicava a personagem que estavafalando e uma voz em off apresentava a fala.

É evidente que tal manipulação dos textos fílmicos originais era ditada pela preo-cupação de não perturbar os hábitos �audiovisuais� dos telespectadores, consi-derados incapazes de suportar a ordem do discurso do cinema mudo.

Penso que não ocorreria a ninguém acrescentar ballons aos afrescos de Giottona capela da família Scrovegni ou de sonorizar os relevos de Bonanno nos portaisdo Duomo de Pisa. Naquele caso � tratando-se só de cinema � tomava-se aliberdade de alterar o equilíbrio entre imagem em movimento e legendas. Tratava-se de um arbítrio grave, se considerarmos que tal equilíbrio era o resultado decuidadosas pesquisas sobre os valores rítmicos e plásticos da �diagramação dofilme e da organização seqüencial dos �quadros� e �escritas�.

Porém, em relação ao cinema mudo podem ser consumadas deturpações aindamais graves do que esta. Há algum tempo circula uma cópia sonorizada de Outu-bro (1928),de Serguei M. Eisenstein, na qual foram abolidas as legendas e acres-centado um inacreditável comentário que rompe e torna grotesco o complexosistema de metáforas visuais no qual reside o sentido do filme.

Estes exemplos demonstram amplamente que, querendo facilitar a aproximaçãoaos filmes mudos, acaba-se inevitavelmente por desnaturá-los e destruí-los. Sealguém quiser conhecer e amar e cinema mudo, precisa ter bem claro que sualinguagem é diferente da usada pelo cinema sonoro.

O espectador que hoje queira aproximar-se do cinema mudo deve adequar-se aum código comunicativo e expressivo diferente daquele a que está acostumado.Não se pode entender uma partida de rúgbi se são conhecidas somente as regrasdo futebol, nem se pode compreender a pintura dos primitivos se o ponto dereferência for apenas o espaço da pintura renascentista. Da mesma maneira nãose pode olhar o cinema mudo como se olha o cinema contemporâneo ou o �clás-sico� dos anos 40 e 50.

Certamente não é fácil poder ver hoje o cinema mudo. As dificuldades, antes deserem subjetivas, são objetivas e se devem, antes de mais nada, às condiçõesem que chegou até nós e é visível o patrimônio do cinema mudo.

Na maior parte dos casos, os filmes mudos, rodados com uma freqüência dedezesseis fotogramas por segundo, são projetados com freqüência de 24 (que é ados modernos projetores sonoros). Isso altera irremediavelmente o ritmo dofilme.

Além disso, existe o problema da cor. Grande parte dos espectadores de hoje

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ignora que a cor foi amplamente usada desde os primórdios do cinema. A Star-Film de Méliès produzia filmes coloridos a mão, fotograma por fotograma, com oauxílio de instrumentos especiais (pochoirs:paletas). Posteriormente, foramadotados sistemas mais sofisticados, como a coloração por embebimento e aviragem.

Estas formas primitivas de cor não constituíam um acréscimo mais ou menoseficaz para o espetáculo. O cinema mudo tinha estabelecido um verdadeiro códi-go cromático; a cada tonalidade dominante do plano correspondiam certas carac-terísticas da cena (por exemplo, a viragem em azul servia para produzir aquiloque hoje se chamaria o �efeito noite�).

Excetuando os casos raros, dado o fato de as cópias tratadas com cores à basede anilina serem rapidamente perecíveis, de filmes em cores que chegaram aténós, pouco se fez até hoje no campo da restauração das cores nos filmes mudos(ou pelo menos naqueles em que a cor tinha um papel essencial).

Ao lado do problema da restauração do texto fílmico em sua forma original, colo-ca-se a questão ainda mais complexa do �texto-espetáculo�. Realmente, em mui-tos casos, a projeção do filme era acompanhada de execuções musicais (paraorquestra, piano ou pianola), cantos e leituras expressivas das legendas.

É extremamente difícil fazer uma idéia do que pode ter sido a projeção de Cabiria(1914), de Giovanni Pastrone, sem a execução contextual para grande orquestrada Sinfonia do fogo, de Ildebrando Pizzetti, ou da Rapsódia satânica (1915), deNino Oxilia, sem a música de Pietro Mascagni. Para não falar das �encenações�da escola napolitana que eram acompanhadas pela execução da canção em quese baseava o argumento do filme.

O emprego de elementos sonoros de vários tipos foi uma aspiração de algumascorrentes do cinema mudo (já Edison havia concebido suas pesquisas sobrereprodução de imagens em movimento como um aperfeiçoamento de seufonógrafo e as próprias �tiras� do Théâtre Optique com o qual Emile Reynaudantecipou desde 1889 o cinema de animação eram dotadas de um engenhososistema de sincronização com efeitos sonoros de diversos tipos). No entanto,nem sempre a ausência do som e da palavra foi sentida como uma carência. Po-demos até afirmar que os resultados mais significativos dos primeiros trinta anosda história do cinema foram obtidos por meio de um emprego coerente das possi-bilidades expressivas da �cena muda�.

A fórmula usada por Tynianov (in Kraiski, 1971, 57) por volta do final dos anos 20(�a �pobreza� do cinema constitui na verdade sua �riqueza��) sintetiza perfeitamen-te a posição dos cineastas e teóricos que trabalharam para fazer amadurecer apotencialidade da linguagem do silêncio e que souberam fazer da falta da �pala-vra dita� um dos pontos de força de suas pesquisas.

É no âmbito deste tipo de produção que o espectador de hoje deve realizar omaior esforço para superar as dificuldades subjetivas que tornam árdua a com-preensão daquela linguagem. Não se trata mais de um problema de �restaura-ção�, mas de recuperação, através de instrumentos críticos e informativos, dasatitudes perceptivas induzidas por aquele nível específico de linguagem cinema-tográfica. Um nível em que a palavra está presente � segundo a sugestiva fórmu-

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la de Eichenbaum � como discurso interior produzido pelo espectador em conta-to com a imagem (in Kraisi, 1971, 23-24). Bastaria esta interpretação � que pare-ce antecipar as recentes teorias da cooperação interpretativa � para fazer-nosentender quão complexa e �produtiva� deva ser a participação que a linguagemdo cinema mudo exige do espectador. Por outro lado, cronistas da época e histo-riadores do cinema fornecem saborosas informações sobre como era ativa parti-cipação do público nos filmes mudos, com comentários, piadas, risadas etc. Oadvento do cinema sonoro modificou os hábitos do público e as relações entrepalavra e imagem: �O público falador dos filmes mudos tornou-se um públicomudo para os filmes sonoros� (Sklar, 1975, 18).

Como julgar, então, a recente (1984) reedição de Metrópolis (1927), de Fritz Langfeita pelo músico Giorgio Moroder? Vejamos primeiro do que se trata.

Moroder produziu uma cópia reduzida (87 minutos em relação aos 155 da versãooriginal e aos cerca de 120 das cópias hoje disponíveis). Adotou para a reediçãoda película um sistema de viragens (sépia, azul, vermelho e ouro) usado comliberdade em confronto com o daquela época (isto é, sem muitas preocupaçõesfilológicas) e com algumas colorações adicionais, sem com isso deturpar a subs-tância figurativa do filme.

Mas a operação de Moroder consistiu, sobretudo, no acréscimo de uma trilhasonora que não tem nada a ver com a partitura para orquestra escrita na épocapor Gottfried Huppertz e que é constituída por uma série de músicas de rockexecutadas por vários conjuntos de new wave (entre os quais o Queen, que jáhavia usado trechos de Metrópolis para seu videoclip Radio Gaga) e por execu-ções instrumentais associadas a várias sonoridades produzidas eletronicamente.

Sem dúvida o efeito é sugestivo e o sucesso que o filme teve foi tamanho que sepode supor que a operação será repetida com outros clássicos do cinema mudo.

Um dos motivos do �êxito� da operação de Moroder está na qualidade visual erítmica do filme de Lang. Os vocalismos berrados pelo rock e as sonoridadesmetálicas do sintetizador se prestam para ilustrar um filme sobre o qual, quandoele apareceu, Buñuel usou expressões deste tipo: �... que arrebatadora sinfoniado movimento. Como cantam as máquinas em meio a incríveis transparências,exaltadas pelas descargas elétricas! (...) Cada acérrima vibração dos aços, arítmica sucessão das rodas, dos pistões, de formas mecânicas não plasmadas,são uma ode admirável...� (in Buñuel, 1982, 141).

Como já havíamos observado, nas expressões mais maduras e coerentes docinema mudo, os valores rítmicos da seqüência desempenham um papel essenci-al. Não é por acaso que a moderna videomusic recorreu tão freqüentemente acitações do cinema mudo (pela facilidade com que pode encontrar seqüências deimagens ritmadas visualmente) e o cinema por ela influenciado recuperou técni-cas típicas da montagem (rítmica, sinfônica, analógica e usando contrapontos) daépica do cinema mudo (como acontece em algumas seqüências deKoyaanisqastsi, 1982, de Godfrey Reggio).

Certamente, a operação de Moroder, mais que uma reedição, constitui umremake, um refazer, e deve ser contextualizada naquela �estética do remake� quese tem manifestado em diversos setores, não só cinematográficos (ver vários

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autores, 1984).

Neste sentido, Metrópolis, na adaptação de Moroder, representa um fato comple-tamente diverso das apresentações de grandes filmes do período mudo em cópi-as restauradas com a recuperação das viragens originais e com acompanhamen-to de guandes orquestras que executam as partituras originais ou músicas deépoca. Para a Itália, podem ser recordadas as projeções de Napoleão (1927), deAbel Gance, apresentado em Roma (1982),

por Francis e Carmine Coppola, de Nosferatu, o vampiro (1922), de F. W. Murnau(Pordenone, 1984), Fazendo fita,(1928), de King Vidor (Florença, 1983). Nessescasos, a restauração filológica da cópia original convive com a recuperação dadimensão espetacular ligada à execução musical. De notável interesse filológicoe musical são também as recuperações de partituras para filmes do período mudoapresentadas por Carlo Piccardi na televisão da Suíça italiana.

D0 CINEMATÓGRAFO AO CINEMA: NASCIMENT0 DE UMA LINGUAGEM

Historiadores e teóricos do cinema estão mais ao menos de acordo em conside-rar a fase dos pioneiros (grosso modo, de 1895 até pouco depois de 1910) comouma fase de descoberta e definição de uma técnica reprodutiva utilizada para finsespetaculares e não como o início de uma nova arte e de uma nova linguagem.Contudo, Edgar Morin já abriu a Méliès (além dos pioneiros de Brighton) o méritode ter realizado a passagem do cinematógrafo ao cinema (Morin, 1956, 70-71).Com o primeiro termo o estudioso francês indica o puro e simples aparelho defazer tomadas e projeção de fotografias animadas criado pelos irmãos Lumière,que nunca demonstraram excessiva confiança nas possibilidades artísticas desua invenção. Com o segundo, Morin quer indicar aquele complexo dispositivoexpressivo-espetacular capaz de articular uma linguagem própria e cujaspotencialidades estariam já enunciadas pela produção de Méliès.

A opinião de Morin não é aceita por outros estudiosos: Mitry, por exemplo, negaque Méliès possa ser já considerado um diretor cinematográfico (ou mesmo tea-tral) e está disposto a conceder-lhe no máximo a qualificação de cenógrafo (Mitry,1967, 26).

Mas as disparidades de opiniões sobre pioneiros do cinema não acabam aqui.Segundo Kracauer, as filmagens ao vivo dos irmãos Lumière, embora anônimas eaparentemente insignificantes, já exprimem a verdadeira vocação do cinema, queé realística e deriva diretamente da fotografia instantânea; em conseqüência, asextragavantes fantasias de Méliès, fruto de uma engenhosa combinação de ele-mentos pictóricos, cenográficos e teatrais, constituiriam uma espécie de traiçãoda autêntica natureza do cinema (Kracauer, 1960, 83). Segundo outros, Méliès,mesmo em formas primitivas, teria captado o caráter onírico do cinema, incluindoaquele que se apresenta nas formas objetivas e neutras das filmagens ao vivo.

Esta disparidade de opiniões traduz diversas concepções do cinema, mas é so-bretudo o resultado de aplicações redutivas de categorias e parâmetrosinterpretativos elaborados em função do desenvolvimento posterior do cinemaou, em certos casos, tomados por empréstimo das artes tradicionais. E tudo issoajuda a compreender bem pouco o fenômeno complexo que foi o cinema em suasorigens.

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Para um público que assiste pela primeira vez à projeção de uma antologia defilmes de Edison, Lumière, Méliès ou Porter, após um primeiro sentimento decuriosidade divertida, a �fotografia em movimento� e os �truques de transforma-ção�, que constituíam os elementos de atração dos primeiros espetáculos cine-matográficos, podem parecer uma exibição repetitiva de um prodígio técnico queainda não adquiriu um estatuto de linguagem.

O espectador de hoje tem alguma dificuldade para concentrar-se sobre o que lheé mostrado: as técnicas de filmagem � frontais, sem articulações de planos evariações de ângulo �não permitem ver suficientemente os temas e nunca daforma a que ele está habituado. Além disso, quando se passadas filmagens aovivo dos Lumière, decepcionantes porque nos fazem ver �a Paris de Proust semProust� (Mauriac, 1966, 78), ao curioso e irreal universo de Méliès, a serialidaderepetitiva dos truques faz sentir a falta de uma dialética entre real e fantástico: osvários prodígios ou as situações cômicas se sucedem incessantemente sem umverdadeiro desenvolvimento narrativo.

É a partir de constatações deste tipo que o público de hoje pode tomar consciên-cia � às suas custas � de quão pouco universal é a linguagem do cinema, dequanto é perecível e sujeito a modificações, não obstante sua base permaneçaaproximadamente a mesma. E certamente a linguagem dos filmes de Lumière e deMéliès aparece hoje muito mais obsoleta do que a prosa jornalística ou narrativado mesmo período.

Se o espectador de hoje considera o cinema uma arte ou, mais modestamente,apenas uma forma de narrativa por imagens, os filmes propostos por essas re-trospectivas não lhe parecerão passíveis de enquadrar em nenhuma destas idéi-as de cinema. E, a seu modo, tem razão, porque eles não são nenhuma das duascoisas. O que são então? A resposta é simples: uma curiosidade científico-tecnológica para uso dos ingênuos espectadores das feiras, das �salas do pro-gresso�. Isso não significa diminuir as contribuições muitas vezes geniais dospioneiros do cinema; contudo, para compreender o significado de suas incertas etrêmulas visões é preciso ter em conta o contexto no qual eram apresentados.

Os locais em que o cinema faz sua aparição constituem o espaço indiferenciadoda atração espetacular. Impossível, num tal contexto, atribuir caracterizaçõesestéticas ou lingüísticas aos filmes apresentados. Que sentido pode ter a atribui-ção de opções de tipo realista ou fantástico a esse ou aquele pioneiro, quandosabemos que no Old Poly, a sala do Royal Polytechnical Institution onde ocorreua estréia londrina do Cinematógrafo Lumière, o público pode ver simultaneamentetrens elétricos em miniatura,�rodas da vida� que permitem a animação de peque-nas silhuetas pintadas, máquinas elétricas que produzem fagulhas e ocoreutoscópio que projeta esqueletos gesticuladores?

Atribuir ao cinema dos primeiros caracteres linhas tendenciais, tomadas de posi-ção estética que serão próprias da evolução posterior pode ter um efeitodeformador. Mais produtivo seria entender a era dos pioneiros não como o iníciode uma nova arte e de uma nova forma de narrativa, mas sim como uma época dedissolução do sistema tradicional das artes, aquela que Benjamin chamou �aépoca da reprodutibilidade técnica�.

Para esta dissolução contribuiu certamente o advento da fotografia e do cinema,

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embora na base do fenômeno devam ser assinaladas as profundas transforma-ções econômicas, sociais e culturais determinadas pela Revolução Industrial. Adissolução do sistema tradicional das artes tem, portanto, como cenário o espaçourbano das metrópoles industriais, onde se afirmam aquelas formas de percep-ção estética �coletiva� e �distraída� (Benjamin, 1936, 44-45) que definem as ca-racterísticas estruturais de amplos fenômenos que ficam entre o espetáculo e ainformação e que constituem as primeiras configurações da moderna cultura demassa (exposições universais, decoração urbana, jornalismo ilustrado, cinemaetc.).

É exatamente o caráter indiferenciado e repetitivo das �atrações� que nos sãonovamente propostas nas retrospectivas dos pioneiros do cinema que é logonotado pelos espectadores de hoje. Alguma coisa semelhante se verificou com opúblico daquela época: é aqui que encontramos a mola que detonou a rápidaevolução da linguagem cinematográfica. E é aqui que encontramos as razões darápida decadência da estrela de Méliès: fechado numa romântica concepção deartesanato artístico, ele se viu, depois dos extraordinários êxitos de Viagem à Lua(1902), a cultivar o seu próprio universo poético, sem dúvida coerente, mas rapi-damente obsoleto.

Já durante a primeira década de nosso século, a rápida evolução da linguagem docinema não passa mais pelo laboratório de Montreuil, seguiu outros caminhos. Eo americano Edwin S. Porter que, começando como imitador, ou melhor, comoparodista, dos filmes de Méliès, começa a dar uma articulação espacial e narrati-va mais complexa ao repertório das trucagens (Dreams of the rarebit friend, 1906)e que ensina a organizar em estruturas narrativas as pequenas cenas de atualida-de e de vida americana (The lite of an american fireman, 1903, e O grande roubodo trem, 1903). Mas será sobretudo com a frenética atividade de David W. Griffithna Biograph, entre 1908 e 1912, que ganharão forma os procedimentos técnicos ede organização lógico-narrativa dos planos que nos permitirão falar de �nasci-mento da linguagem cinematográfica� (Brunetta, 1974).

No romance The 42nd paralle (1930), John Dos Passos descreveu com uma eficá-cia superior à de qualquer história do cinema a força de impacto sobre o públicode um filme como O nascimento de uma nação (1915), de David W. Griffith.

O escritor americano se detém sobre as emoções suscitadas pela filme na jovemCharley e em sua namorada e cita em particular �as batalhas, a música e os trom-bones� (eis outra prova da importância da música no cinema mudo), a morte nocampo de batalha durante a Guerra Civil dos dois jovens �nos braços um dooutro� e a carga da Klu Klux Klan que leva à fusão final (Dos Passos, 1930, 363).

Na época em que Dos Passos ambienta esse episódio de seu romance (PrimeiraGuerra Mundial), haviam passado pouco mais de vinte anos das primeiras proje-ções cinematográficas dos irmãos Lumière com seus incertos filmes de poucasdezenas de metros. Todavia, com O nascimento de uma nação o cinema já haviaconquistado todos os seus primados: no plano do espetáculo, da narração e dalinguagem, e � não em último � da economia (tendo custado 110.000 dólares, ofilme rendeu pelo menos 50 milhões). Considerações não menos importantespoderiam ser feitas sobre a força publicitária do filme, como demonstra a vivênciado herói de Dos Passos que, em conseqüência da emoção suscitada pela filme,decide alistar-se.

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Com este filme Griffith conseguiu demonstrar as possibilidades que a cinemaoferecia: 1) articular um complexo espetáculo com a duração de cerca de trêshoras à maneira de uma representação de um teatro de ópera; 2) desenvolveruma narração acabada e de notável complexidade temática como um romancevolumoso; 3) articular a narração alternando as mais grandiosas e espetacularescenas de conjunto ao registro dos mínimos detalhes através de primeiros planose das �máscaras com íris� com uma eficácia e um imediatismo absolutamentenovos. É claro que o cinema não chegou a esses resultados somente graças aGriffith: foram necessários o trabalho, a dedicação e a experiência de muita gentecom a aquisição de resultados parciais que, transformadas em patrimônio co-mum, aceleraram a formação e o desenvolvimento de uma nova linguagem. Limi-tando-nos à experiência griffithiana, é de ressaltar que a historiografia mais re-cente tende a atribuir muito mais importância do que antes ao papel de Billy Bitzer(o operador dos filmes de Griffith), que, segundo muitas evidências, foi algo maisdo que um simples colaborador técnico.

Por outro lado, a evolução da linguagem cinematográfica não pode ser entendidase nos limitamos a registrar uma série de �pela primeira vez�, como observou ocrítico francês J. L. Comolli: o risco é cair na anedota ou na curiosidade arqueoló-gica e pouco mais (Comolli, 1971, 41).

Examinemos, por exemplo, o problema da introdução e do emprego do �primeiroplano�. No já citado romance O último magnata (1941), ambientado no mundohollywoodiano, Fitzgerald, falando de uma roteirista, diz ironicamente:�E se acre-ditava que ela tivesse estado no teatro no mesmo dia em que Griffith inventou oprimeiro plano!� (Fitzgerald, 1941, 124).

Além da piada para ironizar com a onipresença de uma idosa roteirista, não setrata de nada mais que um lugar-comum cinematográfico. Na verdade, encontra-mos primeiras planos (e inclusive primeiríssimos planos e detalhes) em filmesrealizados bem antes que Griffith iniciasse suas atividades na Biograph (1908).

Existe o famoso precedente do primeiro plano do bandido Barnes que dispara emdireção ao público em O grande roubo do trem (1903), de Edwin S. Porter. Mas setratava só de um efeito sem uma função narrativa específica, tanta é assim que ocatálogo de Edison aconselhava os responsáveis pelas projeções a colocá-laindiferentemente no início ou no fim do filme.

Um exemplo pode ser encontrado, alguns anos antes, entre os filmes da chamada�escola de Brighton� (Grã-Bretanha): em Grandma�s reading glass (1900), deGeorge A. Smith, vemos� através da lente de aumento que a avó usa para ler �detalhes da página de um jornal, do rosto da avó e primeiros planos da cabeça deum gatinho e de um canário na gaiola.

Tecnicamente se trata de primeiríssimos planos ou até de detalhes, cujo efeito deisolamento do contexto é acentuado pela máscara circular que serve para simulara visão através da lente.

Sem dúvida, a finalidade de Smith ainda é a de exibir curiosidades óticas (clara-mente demonstrável pela lógica de colocar sucessivamente os planos: do detalhemágico e misterioso da realidade vista através da lente ao plano de conjunto querevela a origem do estranho efeito). Smith ainda se comporta como Méliès, que se

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divertia ao filmar os estranhos efeitos óticos produzidos pela �calçada móvel� naExposição Universal de Paris. Porém, no casa de Smith não existe só a exibiçãoda curiosidade ótica, mas também a sua contextualização através da variaçãodos enquadramentos. A relação entre primeiros planos e planos de conjuntosobre a qual se construiu este breve filme nos autoriza a falar de montagem, nãoapenas em sentido técnico, mas também em sentido técnico-discursivo: temosum efeito de sentido produzido através da seleção de planos diversos (os deta-lhes e os planos de conjunto de uma mesma cena) e a combinação, ou seja, aescolha de uma particular alternância dos planos.

Em Griffith, ao contrário, o uso do primeiro plano, isto é, de um mesmo procedi-mento técnico que certamente não foi ele a inventar, tem uma função bem maiscomplexa, de tipo acabadamente narrativo (e só neste sentido se poderá falar deinvenção, admitindo que se queira realmente usar este termo).

Os primeiros planos da sua heroína Annie Lee introduzidos por Griffith em Manyyears after (1908), filme que teve, apesar de ousadas inovações, um tal sucessoque o levou a fazer um remake três anos depois (Enoch Ardem, 1911), não sãomais curiosidades óticas exibidas e justificadas pelo emprego de um instrumento(a lente). Griffith usa uma possibilidade ótica (filmar a atriz de uma distância pró-xima a ponto de abranger só o rosto no enquadramento) sem nenhuma justifica-ção a não ser comunicar de modo expressivo os estados de ânimo da persona-gem.

O mesmo destino do primeiro plano, que com Griffith passa a fazer parte da novagramática da narração por imagens, coube a outros �artifícios� inventados eexplorados pelos pioneiros como simples curiosidades óticas. É o que acontececom a fusão, que, usada por Méliès como trucagem de transformação, voltamos aencontrar no cinema de Griffith com funções muito mais complexas, comoindicadora de uma passagem do tempo presente para o passado e vice-versa, ouseja, como sinal de separação para introduzir ou concluir um flashback.

Com Griffith o cinema aprende as regras da narração, estabelece os fundamentosde sua sintaxe narrativa. Parece que o próprio Griffith, para tranqüilizar seusprodutores que receavam que o público ficasse desorientado perante estas ino-vações, gostava de recordar que se tratava de recursos já usados por Dickensem seus romances: a questão era contar de modo claro e emocionante uma histó-ria, mesmo que se usassem imagens em vez de palavras (Arvidson, 1969, 66).

A ASCENSÃO DE HOLLYWOOD

No período que vai do final da Primeira Guerra Mundial (1918) até a crise da WallStreet (1929), em pouco mais de uma década, o cinema conhece por toda parteum grande desenvolvimento, atingindo um nível, no plano da indústria, do espetá-culo e da linguagem, que é habitualmente definido o �apogeu do cinema mudo.�

É verdade que no final deste período, exatamente em 6 de outubro de 1927, éapresentado nos Estados Unidos o primeiro filme sonoro propriamente dito, Ocantor de jazz, mas as conseqüências dessa fundamental inovação tecnológicaserão sentidas completamente na década seguinte.

A afirmação da supremacia de Hollywood na economia cinematográfica mundial éo primeiro dado significativo. Tal supremacia é seguramente uma conseqüência

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do andamento e do êxito da Primeira Guerra Mundial, mas é também o resultadode uma política de produção baseada sobre enormes investimentos de capital esobre o desenvolvimento de formas de integração vertical, isto é, de controle porparte de sociedades individuais de todos os três setores em que se articula aindústria cinematográfica: produção, distribuição, exibição. Calcula-se que porvolta de 1928, sete trustes dominassem �quase completamente o mercado ameri-cano e em grande medida o mercado mundial do cinema� (Bachlin, 1945, 29).

Na Europa, as difíceis condições da revitalização após o trágico parêntesis daguerra não impediram um florescer de pesquisas e experiências com tais resulta-dos que induziram os produtores americanos a contratar atores e diretores euro-peus. Nem sempre isso significou um ponto de encontro entre o primado econô-mico de Hollywood e o artístico da Europa e nem sempre conduziu aos resultadosesperados.

A vitalidade sobre o plano econômico da produção hollywoodiana dos anos 20 (eem ampla medida das décadas seguintes) baseou-se principalmente em doisfatores: o studio system e o star system. O advento do cinema sonoro contribuirápara dar uma articulação mais complexa e um nível mais estável a um sistemaque em suas linhas gerais já se tinha afirmado nos anos 20 e que permanecerábasicamente imutável até 1948, quando um decreto da Corte Suprema julgaráilegal a concentração monopolista dos três setores da indústria cinematográficapraticado pelas major companies.

A constituição do studio system pode ser acompanhada através da irresistívelascensão de Adolph Zukor, que no início dos anos 20 leva a cabo, sob a siglaParamount, o projeto de uma companhia de ciclo integrado que além da produçãoe da distribuição controle diretamente também a exibição, ou seja, as salas deprojeção. Emigrado da Europa em tenra idade, como C. Laemmle, L. B. Mayer, W.Fox, os irmãos Warner, os futuros magnatas do cinema americano, o húngaroZukor, após começar como administrador de salas, trabalhou como importador defilmes europeus, criando a Famous Players, uma sociedade de produção indepen-dente, com a qual tentou, juntando-se a outros, opor-se ao exagerado poder daMPPC (a Motion Picture Patents Company, que monopolizava o setor produtivo).Em 1916, a fusão da Famous Players com a Lasky Feature Play Company permitiaa Zukor uma primeira integração entre produção e distribuição que foi depoiscompletada com uma política de aquisição sistemática de salas cinematográficas(que chegaram a cerca de 600 em 1921). No vértice de uma sociedade que assu-miu o nome de Paramount, Zukor constituiu um modelo logo imitado por outrassociedades que criaram uma estrutura análoga. Aos produtores independentesnão restou outra solução que tratar de constituir suas próprias companhias dedistribuição: tal foi o caso de David W. Griffith, Charlie Chaplin, DouglasFairbanks e Mary Pickford, que constituíram a United Artists.

Naturalmente, o studio system não é apenas uma particular forma de integraçãoentre diversos setores da indústria, mas representa também um método precisode organização do trabalho destinado à maximização dos lucros através de umaexploração optimal dos recursos. Isso comporta uma rígida divisão do trabalho euma total subordinação de todos os componentes da produção (diretores, atores,roteiristas etc.) à figura do produtor.

�A unidade artística sou eu�, declara o protagonista do romance O último magna-

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ta, de Scott Fitzgerald, que, como já recordamos, inspirou-se na mítica figura deIrving G. Thalberg, produtor da MGM.

Estreitamente integrados no studio system estão, por um lado, o star system,quer dizer, o estrelismo como peculiar instrumento de promoção do produto cine-matográfico, e, por outro, o sistema dos gêneros, ou seja, um instrumento eficazde diferenciação dos produtos além de um expediente de racionalização do pro-cesso produtivo baseado na máxima especialização dos vários componentes dotrabalho artístico (diretores, roteiristas, atores etc.).

�Os produtores podiam apresentar o menu, mas era o público que escolhia oprato�. Mesmo sem aceitar completamente esta avaliação otimista do estrelismo(Bronlow, 1979, 157), é indubitável que esse sistema, espontâneo ou induzido, foidesde os anos 10 um dos principais instrumentos de promoção do consumocinematográfico.

O fenômeno não foi exclusivamente americano. Os próprios produtores procura-ram a princípio explorar fenômenos de estrelismo já existentes, como por exem-plo o citado A. Zukor, que iniciou a sua fortuna importando um filme interpretadopela estrela da cena parisiense, Sarah Bernhardt (La Reine Elisabeth, 1912), etentando posteriormente uma exploração dos ídolos teatrais (o que não deu osresultados esperados).

O estrelismo cinematográfico teve, desde o começo, características diversas doque se manifestou em setores contíguos, o que dependeu em grande parte daradical novidade daquele dispositivo especial de produção de imaginário que foi ocinema.

O maior relevo que o estrelismo americano parece ter desde os anos 20 é umadas conseqüências do fato, muito simples de enunciar, que os Estados Unidosproduziram cerca de 80% do total dos filmes realizados no mundo no períodomudo. Foi o enorme poder da indústria cinematográfica estadunidense que am-pliou e deu dimensões inéditas a um fenômeno tão intimamente ligado ao desen-volvimento da cultura de massa: a viagem à Europa realizada em 1926 por MaryPickford e Douglas Fairbanks demonstrou ao mesmo tempo a força de atração domito do cinema e do mito da América; basta pensar que em sua chegada a Mos-cou foram acolhidos por uma multidão de mais de trezentas mil pessoas(Bronlow, 1979, 157).

Um fenômeno como o de Rodolfo Valentino, que interessa tanto à história doscostumes quanto à do cinema, demonstra a capacidade que a instituição cinema-tográfica tem de impor um mito num breve espaço de tempo: de Os quatro cava-leiros do Apocalipse (1921), o filme de Rex lngram que o tornou conhecido dopúblico, até sua morte prematura decorrem apenas cinco anos.

lntimamente ligado ao fenômeno do estrelismo está o dos gêneros cinematográfi-cos: o ídolo é chamado a encarnar papéis fixos, a repetir determinadas atuaçõesuma vez que estas tenham ganho o favor do público. Eis portanto DouglasFairbanks, que liga sua carreira de ator (mas também de produtor) ao gênero deaventuras, Lon Chaney, ao horror, enquanto Theda Bara inaugura o modelo davamp no filme histórico.

O sistema dos gêneros já está bem definido nos anos 20: comédia sentimental,

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melodrama, drama épico-histórico, western, filme de gângster e, certamente não oúltimo em ordem de importância, a slapstick comedy, o gênero que, embora nãotenha sobrevivido ao aparecimento do cinema sonoro, é o único que continua atéhoje a ser projetado mesmo para públicos não especializados.

A FASE ÁUREA DO CINEMA CÔMICO

Um historiador do cinema americano escreveu que o fenômeno do cinema cômicoproduziu �algumas das maiores obras de arte nos Estados Unidos do séculovinte� (Sklar, 1975, 147). A fórmula pode parecer excessivamente solene para umcinema que tem origens em formas de espetáculo como o burlesco, o vaudeville ea music hall e que, não obstante o grau de precisão rítmica e a elegância da com-posição a que o levaram Charlie Chaplin a Buster Keaton, teve, ao menos noinício, seus elementos de força nas perseguiçôes, tortas na cara, �belezas nobanho� e catastróficas intervenções de policiais incapazes (as célebres KeystoneCops).

E, contudo, o reconhecimento da importância desse gênero ocorreu logo na Euro-pa, e por parte das mais sofisticadas e refinadas vanguardas intelectuais: basta-ria lembrar a evidente influência do burlesco americano sobre um clássico davanguarda dadaísta como Entr�acte (1924) de René Clair e Francis Picabia ou ahomenagem a Chaplin no filme experimental do pintor Fernand Léger Le balletmécanique (1924).

Quais são as razões da extraordinária vitalidade deste gênero que conquistou opúblico popular de todas os continentes e forneceu ao imaginário de nosso sécu-lo protótipos de uma condição tragicômica do homem contemporâneo?

O slapstick é um engenho constituído por duas tabuletas, conhecido tambémcomo �espátula de Arlequim�, com o qual são simuladas os ruídos das pancadasque os atores trocam entre si. É a própria etimologia que nos lembra que aslapstick comedy vem de longe e é o resultado de uma ampliação e de uma inten-sificação, possibilitadas pelo novo meio, de uma série de efeitos já codificados noteatro, nas variedades, no circo. Com o desenvolvimento do gênero cômico, ocinema americano, por um lado, permanece fiel ao dos primeiros anos (pensemosem Méliès, que marcou o momento de conversão cinematográfica da tradição damusic hall, e em Max Linder) e, por outro lado, conquista o espaço urbano, doqual toma as situações, os objetos, os ritmos necessários à construção das seusdelírios cômicos.

É preciso acrescentar que a slapstick comedy, que o público sempre identificoucom as máscaras de seus atores mais conhecidos (Mack Sennett, CharlieChaplin, Buster Keaton, Harold Lloyd etc.), foi um cinema de direção. Os historia-dores mais atentos sublinharam quanto Sennett deve à lição de Griffith e a suatécnica de montagem, mesmo sendo evidente que a obtenção do efeito cômicoexige ritmos mais excitantes e situações exasperadas. A realização de uma gagde efeito irresistível exige uma execução perfeita. Uma cena dramática pode serboa ou discreta (no andamento da narração pode funcionar muito bem mesmoque tenha algum defeito); por sua vez, uma gag só pode ser perfeita, ou seja,deve atingir exatamente o alvo. Assim, nada é mais absurdo do que as acusaçõesdirigidas a Chaplin por ter feito �teatro filmado�, de se ter limitado a transferirpara filmes sem uma elaboração particular as suas performances mímicas,

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gestuais. Considere-se, por exemplo, que Chaplin, para fazer O emigrante (1917),rodou mais de 27 mil metros de película para utilizar pouco menos de seiscentos(Sklar, 1975, 140).

Uma última consideração não menos importante do que as precedentes: não sóem Chaplin e em Keaton, mas desde as primeiras produções da Keystone deMack Sennett até Harold Lloyd, o burlesco americano fornece o mais sistemáticorepertório de lugares, situações, objetos que definem o espaço urbano e a �civili-zação das máquinas�, realizando em forma acabada aquela adequação da estéti-ca à nova sensibilidade modificada pela velocidade e pela máquina que o futuris-mo tinha preconizado.

O tráfego urbano, os automóveis, a fábrica (Tempos modernos, 1936, de Chaplin),os locais de divertimento e de espetáculo: todos aqueles aspectos plásticos efigurativos que inspiraram as sinfonias visuais do cinema europeu (de D. Vertov aW. Ruttmann) e fornecem ao cinema americano o pano de fundo para a comédiasentimental, as histórias policiais e os dramas sociais, transformam-se noburlesco, em elementos constitutivos de uma mudança do universo por meio daparódia.

A definição dos mecanismos e da estrutura da gag foi um dos problemas quemais fascinou os historiadores e os teóricos da linguagem cinematográfica. Natu-ralmente não é possível estabelecer uma lei única, válida para todos, de Chaplin aKeaton, de Harold Lloyd a Sennett, de Harry Langdon a Larry Semon, inclusiveporque é diferente a função atribuída pelos diversos autores à gag.

E contudo podemos localizar na estrutura do �virar de cabeça para baixo� o deno-minador comum das diferentes gags. Isso pode acontecer no âmago da açãocênica, como na contínua transformação do sentido que Chaplin atribui aos obje-tos, às situações, alterando usos e funções codificadas e afirmando as razões doseu ego arbitrário, lírico, imprevisível: em Casa de penhores (1916), nós o vemosabrir um despertador como se fosse uma lata de conserva: em Rua da paz (1917),Carlitos transforma um lampião numa espécie de mortal �câmara de gás�, com aqual consegue se desembaraçar de seu adversário.

Efeitos análogos de alteração radical do sentido podem ocorrer também por apro-ximação de diversos planos que nos levam a descobrir um sentido completamen-te diferente daquele que tínhamos percebido inicialmente. Encontramos exemplosdisso em Harold Lloyd e em Buster Keaton.

No início de O homem-mosca (1923), um enquadramento em que o �jovem�Harold Lloyd aparece a ponto de ser enforcado ao lado de um padre que o confor-ta e mulheres que choram revela-se como um detalhe de uma vulgar cena dedespedida na estação: uma série de ocorrências simultâneas oportunamente�isoladas� pelo enquadramento produziram um efeito de sentido totalmente dife-rente.

No começo de My wife�s relations (1922), Buster Keaton se apresenta como umescultor empenhado em plasmar suas criações, mas uma ampliação da perspecti-va nos faz entender que a �argila� massa e o �escu1tor� está exibindo bolinhosque vão para o forno.

Num estudo semiótico sobre a estrutura das gags de Buster Keaton, S. Du

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Pasquier (1970) mostrou como elas estão baseadas na sucessão de duas fun-ções diferentes: a uma primeira unidade de significado definida como normativacontrapõe-se uma segunda definida como perturbadora: esta última pulveriza osentido da primeira sem contradizer a situação mas explicitando um sentido di-verso da aparente. Não é somente a incerteza e a instabilidade das relações entreo corpo e o espaço que dominam o universo da slapstick comedy: dificuldades decoordenação motora ou imprevisíveis e insuperáveis obstáculos que nascem dassituações mais simples e elementares estão na base da slow-burn, um tipo de gagcujo mestre foi Buster Keaton e que consiste no lento mas irremediável deteriorarde uma situação que a princípio era muito simples. A ambigüidade das relaçõespessoais, do significado das situações e dos gestos, dos dados mais comuns daexperiência cotidiana: são estes os temas recorrentes que sustentam as maisirresistíveis acumulações de efeitos cômicos. A isso se pode acrescentar a ob-sessiva repetição de uma série de situações que permitiu aproximar a estruturada gag à das configurações oníricas: podemos recordar as lutas até a exaustãode Carlitos para reequilibrar a barraca suspensa no vazio em Em busca do ouro(1925) ou para não cair, enquanto os macacos lhe beliscam o nariz, em O circo(1928); as �catástrofes� nas quais é continuamente lançado o frágil corpo deBuster Keaton; as loucas escaladas de edifícios de Harold Lloyd.

CINEMA E VANGUARDAS HISTÓRICAS

Na Europa, já a partir das anos 10 e com maior intensidade nos anos 20, desen-volve-se uma complexa interação entre cinema e vanguardas artístico-literárias.

Falar de interação entre cinema e vanguardas e não diretamente de cinema devanguarda implica o reconhecimento da diversidade dos dois fenômenos (asvanguardas, de um lado, e o cinema, de outro), que se relacionaram com formas,finalidades e resultados profundamente diferentes.

O cinema, em seus vários aspectos de dispositivo técnico-científico, de indústriacultural, de novo instrumento de comunicação, constituía por si só um fenômenoprofundamente inovador ou até revolucionário, e justamente em relação ao planotradicional das artes. Tudo isso foi bem entendido por Benjamin (1936), que esta-beleceu uma profunda ligação entre o nova estatuto da arte �na época de suareprodutibilidade técnica� e o desenvolvimento de um possível uso revolucioná-rio.

Com a linguagem que parece ressentir-se dos mais incandescentes manifestosda vanguarda soviética, Benjamin descreve assim o advento do cinema: �Depoischegou o cinema e com a dinamite dos décimos de segundo fez explodir estemundo semelhante a uma prisão; desta forma estamos em condições de empre-ender tranqüilamente viagens aventurosas entre suas ruínas dispersas.� (Benja-min, 1936, 41).

Para o cinema, exatamente por essas características, olharam com grande inte-resse todas as vanguardas históricas. Muitas vezes, daí tiraram indicações para oquestionamento radical dos valores estéticos tradicionais (por exemplo, o futuris-mo) e para o �trabalho destrutivo� em relação à odiada cultura �burguesa� (comoocorreu no dadaísmo). Em outros casos, o cinema se torna o ponto de referênciaou um campo de experiência para a elaboração de uma nova estética e para aatribuição de novas funções à linguagem artística (é o que acontece, ainda que

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em formas diversas, no surrealismo e na vanguarda soviética).

No âmbito da interação entre cinema e vanguardas históricas podem caber fenô-menos muito diferentes. O de artistas de vanguarda como Schönberg, Kandinsky,Ginna e Corra, Survage, Eggeling e Richter, que anteciparam ou concretamenteexperimentaram o emprego do cinema para dar uma dimensão dinâmica, rítmica eplástica a suas pesquisas sobre formas abstratas (ficando fora ou na fronteira dainstituição cinematográfica). Há também o caso de cineastas que se inspiraramnas elaborações formais e temáticas das vanguardas artístico-literárias para arealização de seus filmes, como aconteceu com o cinema alemão, que constituiuum importante pólo de expansão e difusão do que o expressionismo tinha elabo-rado no campo literário, pictórico e teatral.

Agora, faremos uma resenha dos principais momentos da interação entre cinemae vanguardas históricas, evidenciando sobretudo as várias modalidades dainteração (para conhecer o fenômeno nas suas distintas articulações se remetepara: Verdone, 1977, para um perfil de conjunto, Bertetto, 1983 e 1975, Rondolino,1972 e 1977, Kurtz, 1926 e Tone, 1978, Quaresima, 1979 para a que concerne amanifestos, projetos e documentos).

Futurismo e Dada

O manifesto La cinematografia futurista (A cinematografia futurista) foi redigidapor Filippo Tommaso Martinetti e seus seguidores em 1916 (agora em Bertetto,1983, 233-37), relativamente tarde em relação às precedentes e mais notóriasdeclarações programáticas do movimento (o manifesto de fundação é de 1909 ejá em intervenções precedentes, mas em especial nas teorizações e nas experi-ências teatrais, as futuristas tinham demonstrado, mesmo sem nominá-lo expres-samente, terem sido influenciados pelo cinema de vários modos).

Tal manifesto, na realidade, antecipa uma realização cinematográfica das provo-cações e experiências já postas em prática pelos futuristas, durante suas �noita-das�, com a poesia e o teatro: fusão das várias artes num ímpeto único de supe-ração dos valores estéticos tradicionais, choque caótico e dissonante de materi-ais visuais tomados dos mais diversos contextos, plena liberdade de qualqueruso lógico, coerente, codificado ou codificável do novo meio.

Infelizmente não se desenvolveu um cinema que se possa chamar de futurista.Vita futurista (1916), de Arnaldo Ginna, perdeu-se e, de quanto sabemos, só reali-zava parcialmente as programas do manifesto, enquanto em Thaïs (1916), deAnton Giulio Bragaglia, os elementos de vanguarda estão limitados à cenografiaelaborada par E. Prampolini para a última parte.

J. Mitry (1971, 33) emite um juízo bastante limitativo sobre relações entre futuris-mo e cinema, afirmando que Marinetti, em seu manifesto, �enunciava verdadesque o pior filme americano já tinha evidenciado há anos (simultaneidade dasações, movimentos no espaço e no tempo, significado dos objetos, primeirosplanos etc.)�. Todavia há uma verdade implícita nessa opinião (que infelizmenteMitry se limita a enunciar de forma um tanto drástica só para o futurismo): o reco-nhecimento da influência exercida pelo cinema sobre as vanguardas artístico-literárias.

A celebração da beleza da locomotiva, à qual são dedicados alguns parágrafos

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fundamentais do manifesto da fundação da futurismo (1909), havia começadocom os primeiros filmes da história do cinema, com a chegada da trem na estaçãode Ciobat (1895), dos irmãos Lumière, catorze anos antes que Marinetti a exaltas-se como símbolo da revolução estética proposta por ele. Além disso, as�cronofotografias� do americano E. Muybridge e do francês E. Marey, além deconstituir uma fase preparatória para advento do cinema, tinham fornecido hátempos exemplos da extraordinária beleza da reprodução mecânica do corpo emmovimento e nos quais se inspiraram tanto as vanguardas pictóricas MarcelDuchamp, por exemplo, com seu célebre Nu descendo uma escada (1912), quantoas pesquisas sobre �fotodinamismo� de A. G. Bragaglia (1916). São igualmenteevidentes as analogias entre as espirais rolantes utilizadas por Duchamp paraseu filme experimental Anemic Cinema (1926) e os efeitos de figuras geométricasem movimento realizada, em época pré-cinematográfica, com o cromatoscópio,uma sofisticada aplicação da lanterna mágica.

Do mesmo modo, a sugestão do universo fantástico de Méliès foi construídasobre a integração dos elementos cenográficos notavelmente elaborados e dosmovimentos dos atores, ou seja, sobre um procedimento de construção do espa-ço fílmico que será freqüente nas experiências da vanguarda: além do já citadoThaïs, recorde-se o expressionismo alemão, a partir de O gabinete do doutorCaligari (1919), de Robert Wiene, e a primeira vanguarda francesa (por exemplo,em L�inhumaine, 1924, de Marcel L�Herbier).

No movimento Dada, a referência ao cinema tem o significado de negação e ironiados valores estéticos tradicionais. Pode-se recordar uma das primeiras noitadasdadaístas em Paris (5 de fevereiro de 1920) com o anúncio (falso) da participaçãode Charlie Chaplin, como prova do interesse da vanguarda européia por gênerocomo o burlesco.

No decorrer de uma outra noitada dadaísta, intitulada Le coeur à barbe, foi proje-tada o filme Le retour à la raison (1923) que o fotógrafo americano Man Ray haviaobtida montando pedaços de filmes impressos nos modos mais diversos, desde otradicional, com efeitos de refinada elegância, a outro, não muito ortodoxo, de pôrem contato materiais como alfinetes, instrumentos de desenho etc.

O mais completo repertório de �figuras� de linguagem cinematográfica empresta-das pelo repertório dos �truques� e das gags do cinema cômico (do velhoburlesco francês e da slapstick comedy americana) encontra-se em Entr�acte(1924), de René Clair, a partir de um roteiro do pintor dadaísta Francis Picabia.Esse filme, cujo título significa literalmente intervalo, devia ser a chave de umanoitada teatral intitulada Relâche, isto é, descanso. Ele é em grande parte consti-tuído pelo grotesco funeral, transformado numa �comédia de perseguição�, deum artista-prestidigitador que no final faz desaparecer todas as personagens,inclusive ele próprio, claro exemplo do programa dadaísta de deboche da arteburguesa e de assimilação de si mesma àquela mistura de jogo e magia que era oespetáculo cinematográfico das barracas de feira.

Surrealismo

O movimento surrealista, que nasceu em Paris em 1924 em seguida à crise domovimento Dada, não só antecipou e em parte realizou um novo tipo de cinema,mas se interessou ativamente pelo fato cinematográfico, pelas analogias que

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existem entre o cinema, principalmente em suas manifestações mais populares, eo sonho, entre os mecanismos da visão fílmica e os mecanismos do inconsciente.A. Kyron atribui a Breton, chefe do movimento, o mérito de ter demonstrado, comsua habitual clarividência, �a força do cinema que pode (e deve) ser o melhortrampolim do qual o mundo exterior mergulhará nas águas magnéticas e brilhan-temente negras do inconsciente, da poesia, do sonho.� (Kyron, 1963, 9).

Sem dúvida, o surrealismo e, antes dele, o dadaísmo tiveram um papel fundamen-tal em sugerir ou inspirar as mais livres e radicais experiências no campo cinema-tográfico. Mas muitas vezes elas ocorreram às margens ou fora do movimento: talé o exemplo de Le ballet mécanique (1924), do pintor Fernand Léger, ou do filmedo poeta Jean Cocteau (Le sang d�un poète, 1930) que, mesmo apresentandoelementos muito próximos do surrealismo, foram sempre recusados pelo movi-mento.

Da mesma maneira foi violentamente recusado La coquille et le clergyman (1927),realizado por Germaine Dulac sobre uma idéia de Antonin Artaud. Apesar da infe-liz escolha do intérprete e de um uso qualitativo e quantitativamente pouco con-trolado de trucagens, o filme de Dulac transmite ao menos em parte o clima ob-sessivo e delirante do roteiro de Artaud. Os projetos e as teorizações de Artaudno campo cinematográfico são de grande interesse, sobretudo se relacionadoscom as suas conhecidas elaborações no campo teatral. Infelizmente o cinema�visionário� preconizado por Artaud teve somente uma formulação literária, comoaconteceu com as propostas de outros poetas como Philippe Soupault e RobertDesnos (mesmo se deste último se pode recordar um poema que inspirou o filmede Man Ray, L�étoile de mer, de 1928, que pode ser considerado autenticamentesurrealista).

Contudo, os filmes em que encontramos a mais coerente e exaustiva realizaçãodo verbo surrealista são Un chien andalou (1928) e L�âge d�or (1930), de LuisBuñuel.

No primeira deles, realizado em colaboração com o pintor Salvador Dali, encon-tramos um uso da montagem e da técnica de construção das seqüências queconstitui um equivalente fílmico da �escrita automática� experimentada pelospoetas surrealistas, ou seja, a livre aproximação, segundo os percursos sugeri-dos pelo inconsciente e sem controle lógico-racional, de imagens tomadas dosmais diversos contextos.

O célebre prólogo de Un chien andalou, em que vemos juntas a imagem �lírica� deuma leve nuvem que passa em frente à lua e a outra, literalmente insuportável, dalâmina de uma navalha que corta o olho de uma mulher, pode ser encarado comoo manifesto programático do encontro entre surrealismo e cinema, a práticafílmica da palavra de ordem surrealista �esquartejar o tambor da razão racionantee contemplar o vazio.� (ver Costa, 1976).

As violentas polêmicas e as intervenções de censura suscitadas por L�âge d�or,no qual ao deboche dos valores burgueses e a um espírito anticlerical se contra-põe uma exaltação do valor subversivo do erotismo (l�amour fou celebrado pelossurrealistas), levaram Breton e seus companheiros não só a assumir a causa dofilme, mas até a dedicar-lhe um aceso manifesto (in. Bertetto, 1983, 340-47).

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Expressionismo

No cinema alemão, depois da Primeira Guerra Mundial, a influência doexpressionismo pictórico, literário e teatral determinou o florescimento de umasérie de filmes que têm seu marco saliente em O gabinete do doutor Caligari(1919), de Robert Wiene.

Com o termo caligarismo difundido após a grande repercussão internacional dofilme, pretende-se designar um estilo baseado em cenografias e métodos derepresentação de matriz teatral e pictórica com o fim de exprimir uma visão defor-mada de situações e ambientes em sintonia com os argumentos que apresentampersonagens decididamente patológicas e vivências marcadamenteemblemáticas. Em O gabinete do doutor Caligari, uma série de delitos misteriososé obra de um sonâmbulo manobrado durante uma louca experiência de um psiqui-atra; mas tudo se revela, no final, uma alucinação de um doente mental.

Nos excessos do caligarismo está presente a exigência de um controle absolutode todos os elementos da encenação que é provavelmente a herança mais impor-tante da experiência do cinema expressionista e do Kemmerspielfilm.

Com este último termo, calcado em Kammerspiel(teatro de câmara), cunhado porMax Reinhardt, se designa um grupo de filmes com roteiro de Carl Mayer, que foraco-autor do roteiro de O gabinete do doutor Caligari, com algumas característicasem comum: ambientação em espaços unitários rigorosamente delimitados; umaatenção particular aos objetos que, além de assumir funções precisas no planoda dramaturgia, assumem complexas valências simbólicas; movimentos decâmera (travellings, panorâmicas) e variações dos ângulos de filmagem destina-dos a uma acentuação dos efeitos dramáticos; uma sistemática limitação, levadaà quase total eliminação, do uso das legendas, com o objetivo de chegar a umtipo de narração baseado em elementos puramente visuais e universalmentecompreensíveis. Este ciclo de filmes, que compreende Escada de serviço (1921),de Paul Leni e Leopold Jessner, Destroços (1921) e A noite de São Silvestre(1923), de Lupu-Pick, tem a sua conclusão em A última gargalhada (1924), deFriedrich W. Murnau, uma película em que a mais rigorosa estilizacão da encena-ção convive com um grande respeito pelas convenções do realismo cinematográ-fico. O filme de Murnau, definido pelo maior teórico do encontro entre cinema eexpressionismo (Kurtz, 1926, 87) �uma evidente obra-prima estilizada�, provocouum enorme interesse em Hollywood, cujos produtores, à caça de talentos euro-peus para inserir em suas organizações produtivas, lutaram para contratar aequipe inteira que o havia realizado.

A experiência do cinema expressionista deixou marcas profundas, e não somenteno cinema alemão. Por um lado, é possível discernir, em alguns aspectos formaise sobretudo temáticos, obsessões a antecipações do que aconteceria durante aexperiência do nazismo, como faz Kracauer (1947), era seu clássico estudo que,na edição original, leva o título From Caligari to Hitler (De Caligari a Hitler). Poroutro lado, analisando os componentes formais e as técnicas de realização docinema expressionista (ver Eisner, 1981), é possível localizar as basesmetodológicas e estilísticas de um grupo de diretores, entre os quais se desta-cam Friedrich W. Murnau e Fritz Lang, operadores como K. Freund e F. A. Wagner,cenógrafos e atores que deram uma contribuição fundamental para o desenvolvi-mento da linguagem cinematográfica (mesmo depois da transferência para

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Hollywood, após a subida ao poder de Hitler, de uma considerável parte dos qua-dros artísticos e técnicos do cinema alemão).

Às vanguardas russas

As relações entre cinema e vanguarda na Rússia consistem, depois de 1917, naatribuição ao novo meio expressivo de um papel particular na realização de umprojeto revolucionário, em termos políticos mais do que estéticos. O que caracte-riza a experiência do cinema revolucionário russo é a convivência de dois proje-tos estreitamente ligados. De um lado, o estudo sobre bases experimentais, comose pretendia fazer no laboratório de Kulechov; por outro lado, o projeto revolucio-nário.

Segundo o espírito científico do tempo, Kulechov e seus alunos estudavam asleis constitutivas da comunicação fílmica e os elementos específicos da lingua-gem cinematográfica. Numa direção paralela procediam as pesquisas do grupoformalista constituído por lingüistas e críticos literários como Jakobson,Skolovskii, Tynianov e Eichembaum, os quais, além de ocuparem-se de cinemacomo teóricos ou como roteiristas, influenciaram profundamente, com suas pes-quisas sobre estruturas da comunicação literária, as elaborações teóricas e asrealizações de uma vanguarda cinematográfica que foi formalista no sentidopleno e melhor do termo (ver Kraiske, 1971).

Ao mesmo tempo em que elaboravam uma espécie de gramática da comunicaçãovisual baseada essencialmente na montagem, os cineastas russos participavamde um movimento político que acreditava na possibilidade de libertar a arte dacondição de separação e isolamento na qual a havia colocado a cultura �burgue-sa� e de fazer dela um dos elementos propulsores da construção de uma novasociedade. Em tal projeto foi atribuído um papel de primeira plano ao cinema,enquanto meio capaz não só de refletir as modificações da experiência perceptivaintroduzidas pela técnica e pelas diferentes condições de vida da sociedade in-dustrializada, mas de refazer ele próprio, em sentido revolucionário, as concep-ções de espaço e de tempo.

Segundo Vertov, autor de filmes de montagem baseados em filmagens ao vivo, ocinema, renunciando ao teatro com poses, à encenação e sobretudo às temáticas�decadentes� do teatro e da literatura �burguesa�, podia dar a sua contribuiçãopara a liquidação da arte (o �próprio termo arte é contra-revolucionário�, afirmavaem 1924) e, aceitando e exaltando a sua natureza de olho mecânico, estava emcondições de restituir uma �mais fresca percepção do mundo� (ver Bertetto,1975, 69-78). Na verdade, o maior interesse da obra de Vertov está na relaçãoentre a natureza documentalista do material e o artifício do procedimento da suaorganização rítmica, segundo um método bastante próximo das técnicas da poe-sia de Maiakovski e da teoria do método formal.

Naturalmente, esse modo de combinar empenho político e experiência formalestava destinado a chocar-se com a incompreensão do grande público, que naURSS, apesar de tudo, continuava a admirar os ídolos hollywoodianos, comodemonstra a acolhida tributada a Mary Pickford e Douglas Fairbanks em 1926.Nem as coisas podiam ser de outra forma, com os sistemas burocráticos do Parti-do Comunista que preferiam poucas pesquisas formais e maior eficácia de propa-ganda.

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Ao �cinema-olho� de Vertov, segundo o estilo pitoresco e rumoroso da vanguardasoviética, Eisenstein contrapôs o seu �cine-punho�: propôs um cinema �recita-do�, baseado sobre a encenação, no qual as �atrações� rigorosamente produzi-das e orquestradas fossem capazes de agir em profundidade sobre a psique doespectador. As teorias de Eisenstein, elaboradas inicialmente num contexto tea-tral, foram aplicadas nos filmes Greve (1925), O Encouraçado Potemkin (1926) eOutubro (1927).

Eisenstein também se chocou contra uma barreira de incompreensões desde oseu primeiro filme. Seu texto A atitude materialista em relação à forma (1925, inBertetto, 1975, 136-42) procura atribuir à forma fílmica uma função não puramentedecorativa e de ilustração de conteúdos e palavras de ordem elaboradas poroutros.

Eisenstein, aprofundando suas investigações e experiências sobre a linguagemfílmica, chegou a elaborar sua teoria da �montagem intelectual�, que encontrouaplicação principalmente em Outubro. Dotado de uma vasta cultura literária, cien-tífica e artística, ele viu no cinema uma linguagem complexa e capaz de realizarprocedimentos análogos aos da pintura e do romance, tornar-se um terreno deexperiências dos processos lógico-comunicativos estudados pela lingüística epela psicologia: pesquisou em particular as relações entre linguagem cinemato-gráfica e escrita ideogramática, entre as configurações fílmicas e as da lingua-gem interior, entre as formas do �pensamento visual� típicas do cinema e osprocedimentos da �mentalidade primitiva� e do �pensamento selvagem� investi-gados pela moderna antropologia.

Os aspectos mais ágeis e inovadores da vanguarda soviética foram travados ereprimidos pelo sistema político. A utopia do fim da separação da arte na constru-ção de uma sociedade em que a própria arte tomava parte no processo de produ-ção naufragou por causa de um sistema que, muito mais do que a livre experiên-cia das vanguardas, demonstrou preferir os dogmas: e quando a fé se demons-trou insuficiente, recorreu a métodos repressivos e policiais.

CONVITE AO CINEMA MUDO ITALIANO

Durante muito tempo se fez pouco ou nada na Itália para aprofundar e difundir oconhecimento do período do cinema mudo. Enquanto se negligenciava em elabo-rar uma séria política de recuperação, conservação e restauração do patrimôniofilmográfico daquela época, a crítica cinematográfica se contentava em podercitar as prováveis influências de Giovanni Pastrone, o criador de Cabiria (1914),sobre Griffith, ou as �antecipações� do neo-realismo identificáveis em Sperdutinel buio(1914), de Nino Martoglio (do qual se perdia entretanto a única cópia exis-tente), ou em Assunta Spina (1915), de Gustavo Serena.

Certamente, a crise dos anos 20, os anos do advento do fascismo, que colocou ocinema italiano numa posição de inferioridade no quadro da extraordinária maturi-dade expressiva alcançada pelo cinema em outros países, não encorajou a pes-quisa nem as tentativas de recuperação.

O cinema italiano conheceu nos anos 20 uma longa e complicada crise determina-da, entre outros fatores, pela falida experiência da UCI (uma tentativa, mal equili-brada entre megalomania e incompetência empresarial, de unificar num truste

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a produção).

Voltando a propor, depois das glórias dos anos 10 e após a paralisação da produ-ção causada pela Primeira Guerra Mundial, os modelos já amplamente exploradospelo gênero colossal histórico-mitológico e pelo estrelismo dannunziano, o cine-ma italiano pagou caro o não renovamento técnico e expressivo (Brunetta, 1979,207-208). A comparação entre a produção italiana dos anos 20 e a das outrascinematografias pode resultar pouco edificante, mas não justifica silêncios,incúria, falta de pesquisa histórico-crítica.

Felizmente, a situação mudou na última década. Hoje, além da maior possibilidadede ver os filmes sobreviventes por ocasião das várias retrospectivas, postos àdisposição de apaixonados e estudiosos, existem ótimos instrumentos bibliográ-ficos para o conhecimento de nosso cinema mudo. Recordemos alguns títulos,inclusive pelo interesse das indicações metodológicas ou dos aspectos particula-res do cinema mudo que eles propõem.

Desde os capítulos sobre o período mudo da Storia Del cinema italiano, Brunetta(1979; 1982) torna claro o significado de sua proposta de uma história do cinemacomo história de uma instituição social que engloba todos os aspectos (não só osestéticos) do fenômeno cinematográfico e chama em causa uma metodologia depesquisa histórica aberta às mais variadas contribuições e sugestões provenien-tes de outras disciplinas, como a lingüística, a sociologia etc.

A monumental obra Cinema muto italiano, de Bernardini (1980-1981), constitui apesquisa mais completa sobre o cinema italiano dos primeiros anos e junto aorigor da investigação historiográfica (sobre locais do espetáculo, organizaçãoeconômico-industrial, o público e o estrelismo) apresenta um material ilustrativode raro interesse. Martinelli (1980-1981) recolheu nos quatro volumes de suafilmografia do Cinema muto italiano todas as informações escritas relativas aosfilmes produzidos de 1919 ao final dos anos 20: não apenas todos os dados relati-vos aos que participaram na realização, mas também os enredos recolhidos emfontes da época, as resenhas publicadas e obtidas nos verbais das comissões decensura, as descrições das seqüências cortadas ou modificadas com as maisvariadas motivações. A leitura dessa documentação, recomendável também paraquem não tenha particulares interesses cinematográficos, oferece uma idéia daquantidade de informações sobre a história e a sociedade de um período e quepodem ser obtidas de fontes relativas ao cinema.

Não faltam contribuições sobre aspectos que conservam, além de um interessehistórico, grande força sugestiva no plano figurativo e espetacular, como adopagem fotográfica, plano por plano, de Cabiria, de Pastrone (Prolo-Radicati-Rossi, 1977), ou o volume Gli uomini Forti (Farassino-Sanguineti, 1983), dedicadoao cinema dos �machões�, ou seja, um dos fenômenos mais curiosos e internaci-onalmente conhecidos do cinema mudo italiano, cujo sucesso foi renovado re-centemente por gêneros como os plena (filmes sobre a antiga Roma) e o westernà italiana.

Com esses e outros instrumentos bibliográficos � entre os quais seria precisorecordar pelo menos a antologia da publicidade cinematográfica das primeirasdécadas (Mostra lnternazionale dei Nuovo Cinema, 1980) � é possível reencon-trar de modo adequado o cinema mudo italiano, não obstante todas as perdas

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sofridas. Se o percorremos, para conhecê-lo e compreendê-lo por aquilo que elefoi, para estudar suas formas e configurações dominantes em relação às caracte-rísticas originais da vida e da cultura nacionais, a viagem não será inútil, mas ricaem descobertas e, muitas vezes, fascinante.

Um dos aspectos característicos do cinema italiano no período mudo é o quepodemos definir como policentrismo produtivo, quer dizer, a presença contempo-rânea de muitos centros de produção em diferentes cidades, mesmo pequenas:tal fenômeno tenderá a reduzir-se, senão a desaparecer, nos anos 30, em seguidaà política centralizadora do fascismo, e culminará com a criação da Cinecittà(1937).

As contribuições, freqüentemente originais, de cada cidade (Turim, Nápoles, Milãoe, naturalmente, Roma, mas também Gênova, Catânia...) para o desenvolvimentodo sistema de distribuição e producão são notáveis e testemunham quão comple-xa e rica de fermentação foi essa fase de nossa indústria do espetáculo. Oativismo empresarial de Turim desempenhou um papel dominante e esteve nabase dos extraordinários resultados conseguidos com o gênero histórico-mitoló-gico que atingiu seu cume com Cabiria, mas não se pode esquecer Nápoles, ondese desenvolveu uma forma peculiar de produção com caráter regional (em cujoâmbito apresentam particular interesse os filmes de Elvira Notari), mas ondecomeçou também a atividade inicialmente distribuidora e depois produtora deGustavo Lombardo, futuro fundador da Titanus.

Se o gênero histórico-mitológico é o de maior destaque e assegura a penetraçãodo cinema italiano nos mercados estrangeiros, não se pode esquecer a produçãocômico-popularesca que, embora dominada por um certo ecletismo favorecidopelo emprego de atores estrangeiros como André Deed (Cretinetti) e FerdinandGuillaume (Polidor), tem seus traços originais.

Bastaria recordar filmes como La meridiana in convento (1915), de EleuterioRodolfi, que conta, num clima de galhofa, um caso de epidemia voyeurista provo-cado pela foto �picante� de uma colegial, com elementos de comicidade corrosivaem relação ao comportamento pequeno-burguês e que encontra um dos seustrunfos na interpretação de Ernesto Vaser; ou o extraordinário Pinocchio (1911),de Giulio Antamoro, no qual não só é digna de destaque a performance mímico-gestual de Ferdinand Guillaume, como também a curiosa contaminação entre osprincipais elementos do romance de Collodi, fielmente respeitados, aspectosespúrios que parecem tirados da nascente mitologia cinematográfica (basta pen-sar que Pinochio e Geppetto vão parar nos Estados Unidos, onde o primeiro éadorado pelos índios como um deus e o segundo quase acaba assado: o finalfeliz é garantido pela chegada dos jubas vermelhas).

O ecletismo que caracteriza a produção italiana dos anos 10 nem sempre é sinalde incerteza ou improvisação, mas testemunha de um clima de pesquisa e deexperimentação (não por acaso um dos fatores da crise dos anos 20 será justa-mente a repetição do uso de modelos já explorados). Caráter eclético tem, semdúvida, a produção de Pastrone que, embora dominada por uma influênciadannunziana, move-se contemporaneamente sobre várias frentes: do colossalhistórico-mitológico (Cabiria) aos melodramas passionais como II fuoco (1915) eTigre reale (1916), ambos com Pina Menichelli; da reciclagem em clave bélico-patriótica do mito de Maciste (Maciste alpino, 1916) à interessante experiência de

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La guerra e il sogno de Momi (1916), no qual, mais que o tema nacionalista, inte-ressam as soluções técnicas obtidas em colaboração com Segundo de Cbomòn,um mago dos efeitos especiais e cuja contribuição às mais ousadas inovações deCabiria tinha sido determinante.

Sob a égide do ecletismo se desenvolve também o amplo fenômeno do estrelismofeminino, no qual o protótipo da mulher fatal e inigualável, talvez modelado sobrea Elena Muti de II piacere, de D�Annunzio, é um dos componentes embora nãoseja o único.

Certamente os elementos dannunzianos são os predominantes, mas não se podeesquecer outras contribuições: por exemplo, a de Verga, autor por meio de umaintermediária (a condessa Dina Castellazzi di Sorvedolo), do roteiro de Tigre reale,tirado de seu conto homônino; a personagem interpretada por Lyda Borelli em Lamemória dell�altro (1913), de Alberto degli Abbati, parece modelada, pelo menosna primeira parte, numa mitologia de matriz futurista: e ao futurismo remete tam-bém para Thaïs (1916), de Bragaglia, que, se não é propriamente um filme futuris-ta, é seguramente um caso interessante de cruzamento entre temáticas decaden-tes e audaciosas soluções cenográficas (devidas ao futurista Prampolini), entrecinema de consumo e pesquisa de vanguarda.

Poderíamos citar ainda as contribuições individuais das várias personalidades deatrizes, mesmo que seja através de um clichê, como por exemplo a enigmáticaDiane Karenne, atriz de origem polaca, roteirista, produtora e diretora, de quem,infelizmente, nos resta só um filme (Miss Dorothy, 1920, de Giulio Antamoro): umapersonagem por conhecer, inclusive pelo caráter anticonformista dos temas porela tratados.

Eclética é, ainda, a personalidade de Francesca Bertinique, na variedade de suaprodução, consegue diferenciar-se da linearidade monocórdica de suas suasrivais: bastaria recordar a extraordinária prova de Mariute (1918), de EdoardoBencivenga, que, apesar dos evidentes exageros da propaganda bélica e de auto-propaganda como estrela (produzida pela Bertini Film,é a descrição de um dia daestrela no papel de si própria), constitui um documento excepcional e uma provade grande versatilidade interpretativa.

Menor aceitacão sobre a fantasia popular tiveram os parceiros masculinos dasestrelas (Mario Bonnard, Febo Mari etc.), com a provável exceção de AmletoNovelli. Fato compreensível, dado o caráter, por definição inimitável, do protótipodo verdadeiro ídolo da época, Gabriele D�Annunzio, certamente a invenção maisbem-sucedida da nascente indústria cultural italiana.

Dannunziano pelo próprio nome da personagem, Maciste, que do porto de Gênovasubiu aos esplendores da tela, foi Bartolomeo Pagano, destaque de uma série de�machões� que são os verdadeiros ídolos masculinos do cinema mudo italiano:Sansão (Luciano Albertini), Ajax (Carlo Aldini), Saetta (Domenico Gambino) etc.

A flexibilidade de Maciste em adaptar-se ao mito do gigante bom e generoso emambientes e épocas diversas está na base de sua vitalidade e de sua permanên-cia: do mundo romano de Cabiria ao fronte da Primeira Guerra Mundial (Macistealpino), com uma incursão final num improvável inferno dantesco (Maciste nainferno, 1926, de Guido Brignone), onde encontramos em ação elevadores e tele-

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visões, numa mistura quase petroliana de (falso) classicismo e modernidade, decomédia de costumes e dança fantástica. Esse último filme constitui a inevitávelafirmação, agora parodista e burlesca, do mito do bom herói que resgata os fra-cos da injustiça. lnevitável, uma vez que se prepara para interpretar o mesmopapel, sem ironia e � lamentavelmente � não mais nos filmes de ficção, mas nosdocumentários do Instituto Luce, o novo �deus� Benito Mussolini.

Chegamos assim a um outro aspecto pouco aprofundado do período mudo, o dasrelações entre cinema e fascismo (relações que foram estudadas sobretudo parao período dos anos 30, e em particular a partir de 1934, quando toma forma umaintervenção orgânica do fascismo no campo cinematográfico). É também de gran-de interesse o fascismo cinematográfico dos primeiros tempos, sobretudo se forrelacionado com o clima de restauração, de fechamento restaurador que dominagrande parte da cultura italiana dos anos 20, incluindo o cinema, para entender asresponsabilidades que o mundo da cultura teve em favorecer o desenvolvimentoe a afirmação do fascismo (ver Brunetta, 1979, 229-267). Também neste camponão faltam descobertas interessantes, pelo menos no plano da documentaçãohistórica. Tal é o caso de II grido dell�aquila (1923), de Maria Volpe, no qual já seencontram definidos os temas da política cultural do fascismo (que posteriormen-te terão interpretações cinematográficas formalmente mais refinadas e tecnica-mente mais complexas em filmes de Blasetti, Forzano, Trenker etc.): ligação entrea tradição do Risorgimento(período do século XIX em que se conquistou aunidadepolítica e a independência da Itália) e do fascismo,produção de textos populistas,exaltação do mundo camponês em oposição ao operário, recuperação de tradi-ções populares (as máscaras da commedia dell�arte), tendo como objetivo a cele-bração de um nacionalismo exasperado.