o 36 artigo - legitimidade fp falencia

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    Legitimidade da Fazenda PbLica Para PostuLar a FaLncia do devedor

    tributrio: a Funo sociaL da emPresa e o interesse Jurdico no Par

    conditio creditoriumNational Treasure s standing to sue tax debtors bankrupt: the interprise s

    social function and juridical interest in the par conditio creditorium

    thayana Felix mendesthiago cioccari brigido

    Procuradores da Fazenda Nacional

    Sumrio: introduo; 1 Evoluo da Legislao Falimentar: a Funo Social da Empresa e a Legitimidade da Fazenda Pblica para o Pedido de Decretao de Falncia; 2 A Compatibilidade do Processo Falimentar com as Prerrogativas da Fazenda Pblica: impossibilidade da utilizao da falncia como ao de cobrana; 3 O Interesse Especfico na Decretao da Falncia: Concurso material de Credores e a Limitao dos Crditos Trabalhistas; 4 Concluso; Referncias Bibliogrficas.

    RESUMO o presente trabalho acadmico objetiva contrapor a partir de uma interpretao constitucional da Lei 11.101/2005 e de alteraes trazidas pela Lei Complementar 118/2005 ao Cdigo Tributrio Nacional a sedimentada jurisprudncia que afasta a Fazenda Pblica do rol de legitimados ativos para decretao da falncia de sociedades empresrias/empresrios individuais insolventes.

    Busca-se desconstruir todas as premissas jurdicas e ticas que levam o Superior Tribunal de Justia mesmo aps a promulgao da Constituio Federal de 1988 e da nova Lei de Falncias e recuperao de Empresas ao entendimento de ausncia de legitimidade e interesse jurdico do Estado na decretao da quebra.

    Para tanto, discutimos fundamentos importantssimos que, aparentemente, no foram considerados pelo egrgio Superior Tribunal de Justia em suas decises, antes e depois da Lei 11.101/2005, tais como: o dever fundamental de pagar tributos, a funo social da empresa insolvente e a importncia do regime falimentar para a efetividade do Sistema Tributrio Nacional e da Livre Concorrncia.

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    PALAVRAS-CHAVES Falncia, Legitimidade Ativa. Fazenda Pblica. Interesse Jurdico Geral. Interesse Jurdico Especfico.

    ABSTRACT The following academic essay seeks to oppose based on a constitucional interpretation of the 11.101/2005 law, and its amendments brought by the 118/2005 declaratory statute to the National Internal Tax Code. the legal precedents that has been lacking the National Treasure from its legal capacity to sue concerning enterprise s bankrupt proceeding.

    This essay seeks to desconstruct some of the ethical and juridical premises that has brought the Federal Superior Court of Appeals even after the enactment of the 1988 Federal Constitution and of the New Bankruptcy Law to the understanding of absence of the Federal State in standing to sue and of juridical interest referring to bankruptcy claims.

    To do so, it will be pointed here fundamental facts that, apparently, have not being appreciated yet by the Federal Superior Court of Appeals in its decisions, before and after the 11.101/05 Law, such as the fundamental duty of paying tributes, the social function of insolvent enterprises and the importance of bankruptcy regime to the effectivety of the taxation system and of free trade competition.

    KEywORdS Bankruptcy. Standing To Sue. Public Treasure. General Juridical Interest. Specific Juridical Interest.

    INTROdUO

    No ano de 2010, j sob a gide da Lei 11.101/2005 (Lei de Falncias e recuperao de Empresas), a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justia teve a oportunidade de reanalisar a complexa questo da legitimidade e interesse da Fazenda Pblica para decretao da falncia de sociedades empresrias/empresrios individuais insolventes.

    Apesar das substanciais alteraes legislativas do regime falimentar brasileiro com o advento da Lei 11.101/2005, o referido Tribunal no Resp 363.206/MG manteve sua jurisprudncia no sentido de que falece Fazenda Pblica tal legitimidade1.

    1 TriBuTrio E ComErCiAL CrDiTo TriBuTrio FAZENDA PBLiCA AUSNCIA DE LEGITIMIDADE PARA REQUERER A FALNCIA DE EMPRESA.

    1. A controvrsia versa sobre a legitimidade de a Fazenda Pblica requerer falncia de empresa. 2. O art. 187 do CTN dispe que os crditos fiscais no esto sujeitos a concurso de credores. J os

    arts. 5, 29 e 31 da LEF, a fortiori, determinam que o crdito tributrio no est abrangido no processo falimentar, razo pela qual carece interesse por parte da Fazenda em pleitear a falncia de empresa.

    3. Tanto o Decreto-lei n. 7.661/45 quanto a Lei n. 11.101/2005 foram inspirados no princpio da conservao da empresa, pois prevem respectivamente, dentro da perspectiva de sua funo social, a chamada concordata e o instituto da recuperao judicial, cujo objetivo maior conceder benefcios s empresas que, embora no estejam formalmente falidas, atravessam graves dificuldades econmico-financeiras, colocando em risco o empreendimento empresarial.

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    De forma to resumida quanto os argumentos de alguns dos ilustres ministros do Superior Tribunal de Justia, no haveria interesse da Fazenda Pblica na decretao da falncia pelo fato de os crditos fiscais no estarem sujeitos ao concurso de credores (artigos 5, 29 e 31 da Lei de Execues Fiscais). Alm disso, prevaleceria o princpio da preservao da empresa sobre o interesse arrecadatrio do Estado.

    Em decises anteriores que negavam a legitimidade, ainda pela tica do Decreto-lei 7.661/45, o STJ2 sustentava que a Fazenda Pblica tinha um instrumento processual prprio e nico, posto que vinculado, para cobrana, qual seja, a Execuo Fiscal3. No poderia utilizar a falncia, j que seria um meio de coao indevida dos devedores.

    o Tribunal apontava, tambm, argumento de cunho consequencialista4, de que se instalaria o caos econmico caso o Fisco pudesse requerer a falncia de todos os seus devedores. De acordo com o Ministro Ruy Rosado de Aguiar no Resp 136.389/MG, (s)e ao Estado dado requerer falncia, isso no uma possibilidade, um dever. Se o Estado requerer a falncia de todos os seus devedores, ser o caos; se tiver o direito de escolher uns devedores e no outros, ser um caos pior.

    Tal argumento, alm de no ter comprovao emprica e carecer de fundamento jurdico, declara a ineficincia do sistema tributrio brasileiro e estimula a sonegao e o calote de crditos pblicos.

    4. O princpio da conservao da empresa pressupe que a quebra no um fenmeno econmico que interessa apenas aos credores, mas sim, uma manifestao jurdico-econmica na qual o Estado tem interesse preponderante.

    5. Nesse caso, o interesse pblico no se confunde com o interesse da Fazenda, pois o Estado passa a valorizar a importncia da iniciativa empresarial para a sade econmica de um pas. Nada mais certo, na medida em que quanto maior a iniciativa privada em determinada localidade, maior o progresso econmico, diante do aquecimento da economia causado a partir da gerao de empregos.

    6. Raciocnio diverso, isto , legitimar a Fazenda Pblica a requerer falncia das empresas inviabilizaria a superao da situao de crise econmico-financeira do devedor, no permitindo a manuteno da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores,tampouco dos interesses dos credores, desestimulando a atividade econmico-capitalista. Dessarte, a Fazenda poder requerer a quebra da empresa implica incompatibilidade com a ratio essendi da Lei de Falncias, mormente o princpio da conservao da empresa, embasador da norma falimentar. Recurso especial improvido. STJ. REsp 363206/MG, Rel. Ministro Humberto Martins. Segunda Turma, julgado em 04/05/2010, DJe 21/05/2010.

    2 REsp 287.824/MG, Rel. Min. Francisco Falco, Primeira Turma, julgado em 20/10/2005, DJe 20/02/2006.

    3 Lei 6830/80. Art. 29. A cobrana judicial da Dvida Ativa da Fazenda Pblica no sujeita a concurso de credores ou habilitao em falncia, concordata, liquidao, inventrio ou arrolamento.

    4 A expresso consequencialismo jurdico utilizada, em sentido amplo, como qualquer programa terico que se proponha a condicionar, ou qualquer atitude que condicione explcita ou implicitamente a adequao jurdica de uma determinada deciso judicante valorao das conseqncias associadas a mesmas e s suas alternativas. Schuartz, Luiz Fernando. Consequencialismo Jurdico, Racionalidade Decisria e Malandragem. Biblioteca Digital FGV. Disponvel em: . Acesso em: 10/01/2012.

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    o ilustre professor rubens requio, forte doutrina contrria legitimidade da Fazenda Pblica para pleitear a falncia do devedor tributrio, discorreu em trecho transcrito na maioria os julgados do Superior Tribunal de Justia:

    De nossa parte, estranhamos o interesse que possa ter a Fazenda Pblica no requerimento da falncia do devedor por tributos. Segundo o Cdigo Tributrio Nacional, os crditos fiscais no esto sujeitos ao processo concursal, e a declarao da falncia no obsta o ajuizamento do executivo fiscal, hoje de processamento comum. Fazenda Pblica falece, ao nosso entender, legtimo interesse econmico e moral para postular a declarao de falncia de seu devedor. A ao pretendida pela Fazenda Pblica tem, isso sim, ntido sentido de coao moral, dadas as repercusses que um pedido de falncia tem em relao s empresas solventes. 5

    Da leitura dos votos vencedores dos ministros no Superior Tribunal de Justia, pode-se perceber que, sem qualquer previso legal expressa, o ente Pblico considerado um credor de menor importncia dentro dos sistemas empresarial e de insolvncia brasileiros. No se est reconhecendo a verdadeira simbiose entre a empresa, o regime tributrio e o desenvolvimento do pas; e a importncia dos instrumentos falimentares para a segurana jurdica tributria6 e para manuteno da concorrncia na ordem econmica7,

    5 Requio, Rubens. Curso de Direito Falimentar, v I. 17. ed. So Paulo: Saraiva, 1998. p. 72.6 De acordo com o professor Ricardo Lobo Torres, a segurana jurdica significa, sobretudo, segurana

    dos direitos fundamentais. A segurana jurdica torna-se valor fundamental do Estado de Direito, pois o capitalismo e o liberalismo necessitam de certeza, calculabilidade, legalidade e objetividade nas relaes jurdicas e previsibilidade na ao do Estado, tudo o que faltava ao patrimonialismo. [...]. () um autntico direito fundamental, no sentido de que as leis tributrias do Estado e a prpria Fazenda Pblica constituem res pblica, ou direitos republicanos, ou direitos de 3 gerao como preferem outros, garantidos pelo ordenamento jurdico e acionveis pelo ministrio Pblico ou por qualquer um do povo. Torres, Ricardo Lobo. A Segurana Jurdica e as Limitaes ao Poder de Tributar. Revista Eletrnica de Direito do Estado, n. 04, out./nov./dez. de 2005. Salvador, Bahia, p. 04.

    7 No Brasil, a concorrncia desleal combatida pelos preceitos da lei 8.884/94 (Lei Anti-truste), decorrentes do princpio constitucional da livre iniciativa. No se pode negar a grave incidncia do no recolhimento de tributos no regime concorrencial brasileiro, e a necessidade de meios efetivos para o seu combate. queles empresrios que deliberadamente no recolhem os tributos conseguem vender seus produtos ou servios a um preo muito abaixo dos concorrentes, diante do grande percentual no custo (preo predatrio, regulado pela Resoluo CADE 20/1999). Ademais, com o no recolhimento de tributos por parte dos contribuintes que deveriam faz-lo, a tendncia Estatal aumentar a carga tributria sobre os demais, principalmente atravs de tributos de mais fcil arrecadao. Viola-se, assim, o fundamento material dos tributos, que a capacidade contributiva. A concorrncia desleal pelo no recolhimento de tributos assunto no s de interesse pblico, mas importantssimo aos agentes do mercado. De acordo com o professor Ives Gandra da Silva Martins, H descompetitividade empresarial e concorrncia desleal sempre que ocorra sonegao tributria, visto que, nesse ponto, a empresa que sonega leva incomensurvel vantagem sobre seus concorrentes que pagam tributos. Martins, Ives Gandra da Silva. Obrigaes Acessrias Tributria e a Disciplina Jurdica da Concorrncia. Disponvel em: . Acesso em: 10/01/2012.

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    j que conferem efetividade8 ao dever constitucional de pagar tributos9.

    No h dvidas de que a legislao falimentar de um pas tem papel primordial no cenrio econmico, por sinalizar aos agentes sobre possveis resultados e estratgias de negcios. Funciona como minimizador de incertezas quanto forma de resoluo de conflitos numa situao de insolvncia. As condies de financiamentos e investimentos envolvem, sempre, a perspectiva de recuperao dos crditos10.

    Constata-se, portanto, que uma lei de falncias tem impactos no s sobre empresas insolventes, mas no comportamento dos agentes e no funcionamento de toda a economia que ter investimentos de maior ou menor risco de retorno a depender da tendncia ao devedor ou ao credor. Sob essa tica, de cunho estritamente econmico, a ausncia de legitimidade da Fazenda Pblica para requerer a falncia vista de modo positivo pelo mercado, por razes bvias que envolvem a manuteno da empresa devedora de tributos.

    Nesse sentido, concordamos com a jurisprudncia ao no admitir o requerimento de falncia pela Fazenda Pblica com base na simples impontualidade11, por dispor o Estado de outros instrumentos processuais especficos de cobrana, menos danosos funo social da empresa12.

    8 O professor Lus Roberto Barrosos, ao tratar do princpio da efetividade, dispe: Atente-se bem: a eficcia refere-se aptido, idoneidade do ato para a produo de seus efeitos. No se insere no seu mbito constatar se tais efeitos realmente se produzem. nesse plano da realidade, esse quarto plano, situado fora da teoria convencional, que se vai encontrar a efetividade ou eficcia social da norma. [...] A efetividade significa, portanto, a realizao do Direito, o desempenho concreto de sua funo social. Ela representa a materializao no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximao, to ntima quanto possvel, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. Barroso, Lus Roberto. Interpretao e Aplicao da Constituio: fundamentos de uma dogmtica constitucional transformadora. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 2003. p. 247/248.

    9 Klaus Tipke, jurista alemo que marcou o estudo da justia fiscal ps-positivista (no que se chamou de virada kantiana), com a ascenso de princpios ligados igualdade ao lado da liberdade, fundamenta a existncia do dever fundamental de pagar tributos como decorrncia dos direitos constitucionais de liberdade e igualdade. O imposto no meramente um sacrifcio, mas sim uma contribuio necessria para que o Estado possa cumprir suas tarefas no interesse do proveitoso convcio de todos os cidados. Tipke, Klaus; Yamachita, Douglas (trad.). Justia Fiscal e Princpio da Capacidade Contributiva. So Paulo: Malheiros, 2002. p. 15.

    10 Et Alli, Marcos de Barros Lisboa. A Racionalidade Econmica na Nova Lei de Falncias e de Recuperao de Empresas. In Direito Falimentar e a Nova Lei de Falncias e de Recuperao de Empresas. Quartier Latin, 2005. p 32.

    11 Lei 11.101/2005. Art. 94. Ser decretada a falncia do devedor que: i sem relevante razo de direito, no paga, no vencimento, obrigao lquida materializada em ttulo

    ou ttulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salrios-mnimos na data do pedido de falncia;

    12 Pela aplicao do princpio da proporcionalidade ao ato administrativo, como decorrncia do Estado de Direito e do devido processo legal substantivo, o mesmo deve ser necessrio, adequado e proporcional em sentido estrito. Infringiria a proporcionalidade em sentido estrito o pedido de falncia pelo agente pblico antes de se verificar infrutfera a Execuo Fiscal. Um meio proporcional se as vantagens

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    A par disso, a impossibilidade de a Fazenda Pblica requerer a falncia de empresa insolvente com base na execuo frustrada e nos atos de falncia13 vai de encontro com o dever fundamental de pagar tributos14, com o prprio conceito de tributo e com toda evoluo histrica do Estado moderno.

    A ausncia de conseqncias judiciais mais severas quando da no localizao de bens dos devedores passveis de penhora em Execuo Fiscal acaba por justificar um planejamento no sentido de no recolhimento deliberado tributos15, alm das sucessivas dissolues

    que promove superam as desvantagens que provoca. vila, Humberto. Teoria dos Princpios da definio aplicao dos princpios jurdicos. 4 ed. So Paulo: Malheiros Editores, 2005. p.110.

    De acordo com Gilmar Ferreira mendes, a violao ao princpio da proporcionalidade ou da proibio de excesso se revela mediante contraditoriedade, incongruncia, e irrazoabilidade ou inadequao entre meios e fins. MENDES, Gilmar Ferreira. O princpio da proporcionalidade na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Revista Dilogo Jurdico, vol I, n5, Bahia, Ago 2001. Disponvel em: . Acesso em: 08/12/2011.

    13 Lei 11.101/2005. Art. 94. Ser decretada a falncia do devedor que: II executado por qualquer quantia lquida, no paga, no deposita e no nomeia penhora bens

    suficientes dentro do prazo legal; III pratica qualquer dos seguintes atos, exceto se fizer parte de plano de recuperao judicial: a) procede liquidao precipitada de seus ativos ou lana mo de meio ruinoso ou fraudulento para

    realizar pagamentos; b) realiza ou, por atos inequvocos, tenta realizar, com o objetivo de retardar pagamentos ou fraudar

    credores, negcio simulado ou alienao de parte ou da totalidade de seu ativo a terceiro, credor ou no; c) transfere estabelecimento a terceiro, credor ou no, sem o consentimento de todos os credores e

    sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo; d) simula a transferncia de seu principal estabelecimento com o objetivo de burlar a legislao ou a

    fiscalizao ou para prejudicar credor; e) d ou refora garantia a credor por dvida contrada anteriormente sem ficar com bens livres e

    desembaraados suficientes para saldar seu passivo; f ) ausenta-se sem deixar representante habilitado e com recursos suficientes para pagar os credores,

    abandona estabelecimento ou tenta ocultar-se de seu domiclio, do local de sua sede ou de seu principal estabelecimento;

    g) deixa de cumprir, no prazo estabelecido, obrigao assumida no plano de recuperao judicial.

    14 Todos os direitos tm custos pblicos, j que no so frutos da natureza ou ddivas divinas, no sendo auto-realizveis. Implicam a cooperao social e responsabilidade. o preo mnimo da liberdade. (A) melhor abordagem para os direitos seja v-los como liberdades privadas com custos pblicos. Nabais, Jos Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: Contributo para a Compreenso Constitucional do Estado Fiscal. Almedina, 2009, p. 175-185. Para o professor Marcus Abraham, que sintetiza a questo da justia fiscal no direito contemporneo e o dever fundamental de pagar tributos, trata-se de obrigao inafastvel, porque, de outra forma, o Estado no teria meios para suportar financeiramente as despesas pblicas [...]. Essa imposio tributria oferta a melhor forma de atendimento s necessidades pblicas, visto que, das diversas receitas pblicas conhecidas na doutrina e na prtica, aquela que mais recursos propicia ao Estado. Abraham, Marcus. O Planejamento Tributrio e o Direito Privado. So Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 68.

    15 Conforme Ives Gandra da Silva Martins, o tributo , por excelncia, veiculado por normas de rejeio social. Dada a complexidade inerente ao crescimento da vida em sociedade, dificilmente a obrigao de recolher tributo seria cumprida sem sano. Martins, Ives Gandra da Silva. Teoria da Imposio Tributria. 2. ed. So Paulo: LTR, 1998. p. 129.

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    irregulares16. Condutas estas que afrontam diretamente a livre concorrncia17.

    As prerrogativas hoje existentes em favor da Fazenda Pblica no lhe do - em sede de Execuo - privilgios, garantias ou eficincia superiores as que so dadas ao credor privado. Os institutos da fraude Execuo Fiscal, fraude contra credores, responsabilidade solidria dos scios e sucesso empresarial no so suficientes e sequer exclusivos do credor pblico para garantir o recebimento dos tributos. No impedem que sejam adotados ardis patrimoniais que afastam a possibilidade de quitao do dbito tributrio.

    reconhecer a legitimidade de todo e qualquer credor que possa reclamar seu crdito na falncia, exceto da Fazenda Pblica, penalizar o Estado por ter prerrogativas e dar benefcio indevido ao devedor tributrio em prejuzo da sociedade. A lei de falncias no excluiu qualquer credor especfico de seu regime, e traz diversas previses benficas ao par conditio creditorium e garantias patrimoniais aos credores18.

    As prerrogativas conferidas pela Constituio Federal e pelas leis Administrao Pblica so expresses da Supremacia do Interesse Pblico19. No devem ser utilizadas como argumentos para restringir outros direitos. E evidente que formas eficazes de cobrana de tributos vo muito alm de mera coao moral o que per si no deve ter conotao

    16 Que, de to freqentes, justificaram a edio do enunciado de Smula 434 do Superior Tribunal de Justia: Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domiclio fiscal, sem comunicao aos rgos competentes, legitimando o redirecionamento da execuo fiscal para o scio-gerente.

    17 A neutralidade dos tributos em face da atividade econmica decorre da proibio de tratamento desigual de contribuinte e da exigncia de respeito sua capacidade contributiva, sendo certo que qualquer medida impositiva tributria interferir na capacidade de competio dos agentes econmicos. Isso porque livre mercado significa, de um lado, que os concorrentes competem, em princpio, dentro de um quadro tributrio que marca a estratgia concorrencial de cada um. De outro lado, esse quadro no pode ser discriminatrio, nem criar condies competitivas diferentes entre eles. Assim, o princpio da igualdade, garantido pela neutralidade dos tributos diante da concorrncia, ser ferido se a relao concorrencial entre empresas afetada pela tributao, de tal modo que esta favorea umas e desfavorea outras. ROCHA, Srgio Andr; FARO, Maurcio Pereira. Livre Concorrncia e Neutralidade Tributria. In Revista Brasileira de Direito Tributrio n. 21, jul/ago/2010. p. 25.

    18 So exemplos de previses da Lei 11.101/2005 que so vantajosas a todos os credores, incluindo a Fazenda Pblica: a perda do direito do devedor de administrar e dispor de seus bens (art. 103); inabilitao a qualquer atividade empresarial at sentena que extingue obrigaes falimentares (art. 102); dever de declarar em Juzo e entregar ao administrador judicial todos os bens imveis, mveis, contas bancrias, aplicaes ttulos e dvidas (art. 104, I); suspenso do direito do scio de se retirar da sociedade ou de recebimento do valor de suas quotas/aes (art. 116); ineficcia e revogao de todos os atos praticados dentro do termo legal (art. 129); formas especiais de realizao do ativo (art. 139 e ss.); previso de crime de desobedincia e crimes falimentares, etc.

    19 o princpio da supremacia do interesse pblico sobre o interesse privado princpio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. a prpria condio de sua existncia. Assim, no se radica em dispositivo especfico algum da Constituio [...]. Afinal, o princpio em causa um pressuposto lgico do convvio social. mELLo, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros, 2004. p. 87.

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    negativa. Conferem efetividade s leis tributrias, visando garantir os interesses da coletividade, a prestao de servios pblicos e a manuteno do prprio Estado.

    o Poder Judicirio brasileiro, quando da interpretao da legislao falimentar, no deveria supor que o administrador pblico vai utilizar a falncia como forma de coao indevida e abusiva, em prejuzo do prprio interesse pblico que visa tutelar. A presuno exatamente contrria: de constitucionalidade e legalidade dos atos do Poder Pblico20.

    Ora, se o objetivo da lei 11.101/2005 , ao mximo possvel, buscar a preservao da empresa, e assim dos meios econmicos e dos empregos, dentro de uma perspectiva comunitria e solidria, a lgica que, ao menos em tese, a moral pblica sobressaia moral privada, e no o inverso21 22.

    Se algum credor tem interesse em que a insolvncia tenha solues previsveis, cleres e transparentes, de modo que os ativos, tangveis e intangveis, sejam preservados e continuem cumprindo sua funo social, gerando produto, emprego e renda23, sem dvidas que este o credor pblico. Todos os demais legitimados ao requerimento da falncia visam somente a certeza de recebimento de seu crdito.

    Ainda que se afaste a legitimidade da Fazenda Pblica para requerer a quebra com base na impontualidade seja pela necessidade de 20 Idealmente, todos os rgos pblicos pautam sua conduta na conformidade da Constituio e agem

    na realizao do bem comum. Embora se haja reservado ao Judicirio o papel de intrprete qualificado das leis, os Poderes se situam em plano de recproca igualdade, e os atos de cada um deles nascem com presuno de validade. Mais que isso: nenhum Poder, nem mesmo o Judicirio, pode intervir em esfera reservada ao outro para substitu-lo em juzos de convenincia e oportunidade. BArroSo, Lus Roberto. Interpretao e Aplicao da Constituio. 5 edio. So Paulo: Saraiva, 2003, p.174.

    21 de grande importncia na filosofia do Direito a separao das questes de moral pessoal das de moral social. De acordo com o jurista Peces-Barba, tica pblica a moralidade com vocao de incorporar-se ao Direito positivo, orientando seus fins e seus objetivos como Direito justo. [...] A tica pblica uma tica procedimental que no sinaliza critrios, nem estabelece condutas obrigatrias para alcanar a salvao, o bem, a virtude ou a felicidade, nem fixa qual deve ser nosso plano de vida ltima. PECES-BARBA, Gregrio. Curso de Derechos Fundamentales: teoria general. Madrid: Centro de Estdios Constitucionales, 1995. p. 14-16.

    22 Considera-se moralidade administrativa a conduta dos agentes ou dos rgos da Administrao Pblica compatvel com a norma tica abstrata. [...]. Diogo de Figueiredo Moreira Neto filia a moralidade administrativa tica da responsabilidade, no sentido que lhe deu Max Weber, indica-lhe como referencial a finalidade pblica, detecta-a nos vcios da discricionariedade, ou seja, o mau usi ou abuso dessa faculdade administrativa Torres, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributrio. Volume II. Valores e Princpios Constitucionais Tributrios. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.18. apud Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Moralidade Administrativa: do Conceito Efetivao. Revista de Direito Administrativo n 190, 1992, p. 10-11. No Brasil, (a)s finanas pblicas continuam presas, em grande parte, moralidade privada, eis que no aderimos plenamente ao liberalismo.O tributo no chega a galgar o papel de preo da liberdade e instrumento da justia,. Seno que continua a ser apropriado de forma privada [...]. A moral salvacionista e privada cria o dio ao imposto. Torres, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributrio. Volume II. Valores e Princpios Constitucionais Tributrios. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.12.

    23 Et Alli, Marcos de Barros Lisboa. A Racionalidade Econmica na Nova Lei de Falncias e de Recuperao de Empresas. In Direito Falimentar e a Nova Lei de Falncias e de Recuperao de Empresas. So Paulo: Quartier Latin. 2005. p. 33.

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    precedncia da Execuo Fiscal como meio vinculado de cobrana, seja pela necessidade de protesto para o fim falimentar , no h qualquer razo ou forma de interpretao jurdica24 que retire a legitimidade com base na execuo frustrada25 ou em comprovados atos de falncia26.

    A favor da possibilidade de a Fazenda Pblica postular a falncia do devedor tributrio, com base no artigo 94, II e III da Lei 11.101/2005, pode-se elencar diversos argumentos que sero esmiuados nos tpicos seguintes, tais como: (i) no h qualquer vedao legal expressa ou implcita legitimidade Fazendria; (ii) a manuteno de sociedade empresria devedora de tributos viola a funo social da propriedade, o dever fundamental de pagar tributos e a ordem econmica, em especial a livre concorrncia; (iii) no h qualquer incompatibilidade de procedimentos entre a Execuo Fiscal e o processo falimentar; (iv) viola a isonomia entre os credores negar Fazenda Pblica o pedido de falncia; (v) a Fazenda Pblica est sujeita materialmente a um concurso de credores; (vi) h o interesse pblico geral de fazer cessar as atividades de empresa insolvente sem possibilidade de recuperao, inaugurando o par conditio creditorium.

    Alm desses tantos argumentos que evidenciam a legitimidade da Fazenda Pblica em requerer a falncia de devedor insolvente, o presente estudo prope a apresentar novos fundamentos, em especial o interesse pblico especfico na decretao da falncia tendo em vista a limitao da preferncia dos crditos trabalhistas a 150 (cento e cinqenta) salrios mnimos no curso do processo falimentar.

    1 EVOLUO dA LEGISLAO FALIMENTAR: A FUNO SOCIAL dA EMPRESA E A LEGITIMIdAdE dA FAZENdA PBLICA PARA O PEdIdO dE dECRETAO dE FALNCIA

    Notrio que o encerramento das atividades empresariais um fato relevante no s em termos individuais e privados, mas tambm para a comunidade na qual se insere a empresa. Implica, dentre outros malefcios, no fechamento de postos de trabalho, na perda de arrecadao por parte do Estado e na perda de investimentos naquela atividade.

    24 H certo consenso de que se interpretam restritivamente as normas que instituem as regras gerais, as que estabelecem benefcios, as punitivas em geral e as de natureza fiscal. Comportam interpretao extensiva as normas que asseguram direitos, estabelecem garantias e fixam prazos. Barroso, Lus Roberto. Interpretao e Aplicao da Constituio: fundamentos de uma dogmtica constitucional transformadora. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 2003. p. 121/122.

    25 Caso em que o pedido de falncia seria precedido da Execuo Fiscal infrutfera.

    26 (M)eios ruinosos so os que consistem na pratica de negcios arriscados ou sujeitos exclusivamente sorte, bem como atos de liberalidade ou gastos excessivos e prodigalidade. NEGRO, Ricardo. Aspectos Objetivos da Lei de Recuperao de Empresas e de Falncias: Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 19.

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    Cientes de tais conseqncias, e sob fortes presses do capital internacional27, os modernos ordenamentos jurdicos buscaram criar regras que possibilitassem a recuperao de atividades empresariais que, embora em crise, ainda fossem economicamente viveis e socialmente relevantes. Bem como, buscaram a maximizao da utilidade dos ativos ainda existentes, aumentando a possibilidade de retorno do crdito28.

    J nas dcadas de 70 e 80, pases como Frana, Alemanha e Japo reformavam seu direito falimentar sob a tica da continuidade da atividade econmica. Nos pases em desenvolvimento29, as alteraes das legislaes vieram aps as crises econmicas ocorridas nos anos 90, quando se verificou a ineficincia das normas em vigor30.

    Assim, sob a influncia do modelo de regulao americano31, e mediante presses polticas internacionais32, nosso pas alterou radicalmente sua legislao falimentar para positivar o princpio

    27 Com intuito de promover padres de estabilidade financeira e influenciar alteraes nos pases em desenvolvimento, foi publicado pelo Banco mundial um documento que dava suporte s reformas necessrias nas legislaes falimentares dos pases em desenvolvimento: os Princpios e Diretrizes para eficazes sistemas de insolvncia e de direito dos credores (Principles and guidelines for effective insolvency and creditor rights systems). O relatrio foi elaborado em colaborao com o Fundo Monetrio Internacional, Comisso de Direito Internacional de Comrcio das Naes Unidas, diversos Bancos de Desenvolvimentos, dentre outros organismos internacionais. Este documento, manifestamente baseado no modelo americano, criou conceitos para permitir o salvamento da empresa em crise, atravs da reestruturao societria e negociao entre envolvidos, de regras de responsabilizao e penalizao, e da possibilidade de, quando invivel a preservao da empresa, uma gil transferncia dos ativos a agentes mais eficientes no mercado. Disponvel em: .

    28 Apesar de parecer uma obviedade, a construo desse quadro demandou um longo caminho histrico mundial, impulsionado pela constatao de que a existncia de um modelo de insolvncia eficaz essencial para a promoo de um ambiente de investimento slido e, assim, o crescimento do setor privado. JoHNSoN, Gordon W. Nova Lei Brasileira de Falncia e Recuperao de Empresas: Uma Comparao com as Normas Internacionais. In OLIVEIRA, Ftima Bayma (org.). Recuperao de Empresas: Uma Mltipla Viso da Nova Lei. So Paulo: Pearson, 2006. p.119

    29 No Chile, a reforma da legislao falimentar se deu com a Ley 20.073/05, de modo a privilegiar acordos entre o devedor e seus credores. A Argentina promulgou a reforma de sua Lei de Falncias atravs das alteraes trazidas pela Ley 25.589/2002 e Ley 26086/2006, tambm por presses expressas do FMI e do Banco Mundial. Com essas reformas, passou a ser permitida a alienao do estabelecimento empresarial sem sucesso tributria ou trabalhista, estimulando a preservao da atividade.

    30 At ento, em regra, enquanto os pases de sistema jurdico de origem anglo-saxo privilegiavam os credores, os pases de tradio romano-germnica tinham legislaes tendentes aos devedores, com reduzida proteo ao crdito no processo judicial de falncia.

    31 A regulao americana, regida pelos Captulos 7 e 11 do Cdigo de Insolvncias dos EUA, tem duas facetas: uma pr-devedor, quando estimula a reorganizao e recuperao da empresa passvel de reabilitao, mesmo que sob o controle dos credores; e outra pr-credor, quando da liquidao dos ativos da empresa extinta, visando maximizar a receita das vendas. Cdigo de Insolvncia dos Estados Unidos, de 1978, ttulo 11. O Captulo 7 trata dos processos de falncias, e o Captulo 11 dos processos de reorganizao empresarial, atravs da recuperao.

    32 Em vrios estudos, a legislao falimentar foi apontada como a grande responsvel pelos elevados spreads bancrios e pelo elevado Risco Brasil. AFoNSo, Jos roberto; KHLEr, Marcos Antnio; FrEiTAS, Paulo Springer de. Evoluo e Determinantes do Spread Bancrio no Brasil. Centro de Estudos da Consultoria do Senado Federal. Braslia, 2009. Disponvel em: , p. 18.

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    constitucional da funo social da propriedade e da empresa, superar a antiga idia privatista que vigorava no Decreto-Lei de 1945, e, desse modo, permitir a maior insero no mercado de crdito internacional e a reduo dos juros bancrios33 34.

    O antigo diploma falimentar de 1945 se encontrava h muito obsoleto vigorou por quase 60 anos , j que fora concebido dentro de um contexto social e econmico onde o comerciante individual era o centro do sistema35. Era pacfico na doutrina que a lei em vigor dificultava excessivamente a recuperao das empresas viveis e o retorno dos crditos, havendo, portanto, a necessidade de edio de normas mais eficientes36. Muitas e importantes empresas tradicionais brasileiras deixaram de ser preservadas, fazendo com que importantes ativos, principalmente intangveis, se perdessem37 38.

    E foi dentro desse cenrio nacional de ineficcia da legislao vigente e internacional de necessidade de adaptao estrutura externa que, aps mais de 10 anos de tramitao no Congresso e muitas alteraes do projeto inicial, a Lei 11.101 de 2005 foi promulgada, com

    33 J no primeiro mandado do presidente Lula, observou-se um grande esforo poltico para aprovao de um novo regime de insolvncias a permitir maior integrao economia mundial. Em Carta de Intenes enviada FMI em 28/02/2003, a equipe econmica do governo, formada pelos ento Ministros da Fazenda Antnio Palocci e pelo presidente do Banco Central do Brasil, Henrique Meirelles, expressamente se comprometia com a reforma da Lei de Falncias, permitindo maior garantia aos credores. Havia, inclusive, a fixao de prazos para o progresso na votao e aprovao da nova Lei junto ao Congresso Nacional.

    34 Dentro de um regime falimentar de proteo exacerbada do Devedor, qualquer sinal de crise econmica e inadimplncia gera a diminuio da possibilidade de se obter crdito e o aumento do seu custo. E exatamente no momento de crise empresarial que a atividade econmica mais necessita do capital financeiro, ante a crucial importncia para a continuidade ou encerramento das atividades.

    35 FErES, Marcelo Andrade. Da Constitucionalidade dos Condicionamentos Impostos pela Nova Lei de Falncias ao Privilgio dos Crditos Trabalhista. Rev. Jur., Braslia, v. 7, n. 74, ago/set, 2005, p.01-07.

    36 A lei brasileira foi considerada a mais ineficiente entre 155 pases do mundo pelo International Financial Corporation (IFC), rgo do Banco Mundial. .

    37 So exemplos os casos da Mesbla, Mappin, Rede Manchete, Sears, Lojas Brasileiras, etc.

    38 Ainda na dcada de 1970, Fbio Konder Comparato defendia que O mnimo que se pode dizer nessa matria que o dualismo no qual se encerrou nosso Direito Falimentar proteger o interesse pessoal do devedor ou os interesses dos credores - no molde a propiciar solues harmoniosas no plano geral da economia. O legislador parece desconhecer totalmente a realidade da empresa como centro de mltiplos interesses do empresrio, dos empregados, dos scios capitalistas, dos credores, do Fisco, da regio, do mercado em geral - , desvinculando-se da pessoa do empresrio. De nossa parte, consideramos que uma legislao moderna da falncia deveria dar lugar necessidade econmica da permanncia da empresa. A vida econmica tem imperativos que o direito no pode, nem deve, desconhecer. A continuidade e a permanncia da empresa s um desses imperativos, por motivo de interesse tanto social, quanto econmico. COMPARATO, Fbio Konder. Falncia legitimidade da fazenda pblica para requer-la. Revista dos Tribunais. So Paulo: Revista dos Tribunais, n. 442, agosto, 1972, p. 49.

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    o ntido escopo de viabilizar a continuidade da empresa como unidade produtiva39.

    Passaram-se os interesses imediatos dos credores e do devedor ao segundo plano. A preservao da empresa vivel, na qualidade de instituto essencial ao desenvolvimento econmico, o foco da evoluo do sistema.40

    Com relao legitimidade ativa da Fazenda Pblica no processo falimentar, at a vigncia do Decreto-lei n 7.661/1945, somente as obrigaes eminentemente comerciais ensejavam o pedido de falncia. Por tal motivo, no havia maiores discusses doutrinrias sobre a matria, diante da natureza tributria dos dbitos.

    Aps a promulgao do Decreto-Lei 7.661/45, a doutrina majoritria passou a considerar que apenas credores quirografrios eram legitimados ao requerimento judicial da quebra. Isso porque, credores com garantia real s podiam pedir a falncia de seus devedores se renunciassem a essa garantia, ou se comprovasse sua insuficincia, conforme o artigo 9, III, b do Decreto-Lei 7.661/4541.

    Nesse mbito, concluso doutrinria, o credor tributrio que tambm dispunha de privilgios legais, no poderia se valer da falncia42. Apesar da ausncia de previso legal expressa, a jurisprudncia passou a decidir nesse sentido, mesmo aps a promulgao da Constituio de 1988, que instituiu o Estado Social e Democrtico de Direito, e trouxe

    39 (O) legislador, e com ele o juiz, tm principalmente por objetivo a salvaguarda da empresa, em funo do valor e do interesse que ela representa para economia regional ou nacional. GUIMARES, Maria Celeste Morais. Recuperao Judicial de Empresas Direito Concursal Contemporneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 167.

    40 roDriGuES, Frederico Viana. A Recuperao de Empresas Economicamente Viveis por Intermdio da Securitizao de Crditos no Brasil e no Direito Comparado. Revista de Direito Bancrio e de Mercado de Capitais. So Paulo: Revista dos Tribunais, v. 8, n. 29, jul./set. 2005, p. 153.

    41 Art. 9 A falncia pode tambm ser requerida:

    [...] III - pelo credor, exibindo ttulo do seu crdito, ainda que no vencido, observadas, conforme o caso, as seguintes condies:

    a) credor comerciante, com domiclio no Brasil, se provar ter firma inscrita, ou contrato ou estatutos arquivados no registro de comrcio;

    b) o credor com garantia real se a renunciar ou, querendo mant-la, se provar que os bens no chegam para a soluo do seu crdito; esta prova ser feita por exame pericial, na forma da lei processual, em processo preparatrio anterior ao pedido de falncia se ste se fundar no artigo 1, ou no prazo do artigo 12 se o pedido tiver por fundamento o art. 2.

    42 Faltaria Fazenda Pblica interesse econmico e moral para postular a declarao da falncia de seu devedor, pois teria o instrumento processual prprio, que seria a Lei 6830/1980. REQUIO, Rubens. Curso de direito falimentar. v. I. 17 ed. So Paulo: Saraiva, 1998. p. 109.

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    efetividade aos direitos e deveres fundamentais ligados igualdade, justia e segurana jurdica43 44.

    A nova Lei de Falncias inovou ao no reproduzir o artigo 9, inciso III, letra b, do Decreto-Lei 7.661/45, utilizando a expresso qualquer credor ao elencar aqueles que podem requerer a falncia do devedor. Logo, a lei no nega a ningum a legitimidade ativa para requerer a falncia e, ao contrrio, afirma expressamente que todos os credores podem solicitar a quebra do seu devedor empresrio, no fazendo qualquer distino em relao natureza do crdito. Destaca-se, ainda, a opinio do professor Waldo Fazzio Jnior emitida ainda sob a gide do revogado Decreto-Lei:

    Tambm a Fazenda Pblica pode requerer a falncia do devedor empresrio, embora no esteja sujeita ao concurso de credores para receber seu crdito. Em primeiro lugar inexiste qualquer restrio legal. O fisco possui ttulo executivo e, uma vez caracterizados os motivos legais que determinam a quebra, pode e deve a Fazenda Pblica valer-se do direito que at a credores civis garantido. [...]. Depois, o art. 187 do CTN confere privilgio ao crdito fiscal, e no uma imposio.45

    o ministro Castro Filho, voto vencido no julgamento do recurso Especial n 164.389/MG46, ainda sob a gide do D.L 7661-45, afirmou nesse mesmo sentido que:43 De acordo com o professor Jos Souto Maior Borges, existe uma hierarquia semntica entre os

    princpios fundamentais, os direitos fundamentais sobretudo o direito de igualdade e outras normas constitucionais. O princpio da igualdade no est apenas no texto da Constituio; o princpio da igualdade a prpria Constituio. BorGES, Jos Souto Maior. A Isonomia Tributria na Constituio de 1988. So Paulo: Malheiros, 1994, p. 12.

    44 (O) Sistema Tributrio Nacional, que regula pormenorizadamente a matria tributria, mantm relao com a Constituio toda, em especial com os princpios formais e materiais fundamentais independente de estarem expressa ou implicitamente previstos - e com os direitos fundamentais, sobretudo com as garantias de propriedade e de liberdade, os princpios sistematicamente fundamentais (systemtragenden Prinzipien), que mantm vnculos com o poder de tributar e atribuem significado normativo a outros princpios, so o princpio republicano, o princpio federativo, o princpio da segurana jurdica e o princpio da igualdade. VILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributrio. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 201, p. 75.

    45 JNIOR, Waldo Fazzio, Manual de Direito Comercial, 3 ed. So Paulo: Atlas, 2004, p. 638-639.

    46 PROCESSO CIVIL. PEDIDO DE FALNCIA FORMULADO PELA FAZENDA PBLICA COM BASE EM CRDITO FISCAL. ILEGITIMIDADE. FALTA DE INTERESSE. DOUTRINA. RECURSO DESACOLHIDO.

    i - Sem embargo dos respeitveis fundamentos em sentido contrrio, a Segunda Seo decidiu adotar o entendimento de que a Fazenda Pblica no tem legitimidade, e nem interesse de agir, para requerer a falncia do devedor fiscal.

    ii - Na linha da legislao tributria e da doutrina especializada, a cobrana do tributo atividade vinculada, devendo o fisco utilizar-se do instrumento afetado pela lei satisfao do crdito tributrio, a execuo fiscal, que goza de especificidades e privilgios, no lhe sendo facultado pleitear a falncia do devedor com base em tais crditos. STJ. Resp 164389 / MG. Relator para o acrdo Ministro Slvio de Figueiredo Teixeira. Julgamento em 13/08/2003. DJe de 16/08/2004.

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    Ademais, como se disse e conveniente reiterar, a lei no fornece bices expressos a que a Fazenda Pblica requeira a falncia de seu devedor. Logo, se no probe, admite.

    Com o advento da Lei 11.101/2005, diante da omisso legislativa e com a necessidade de interpretao conforme a Constituio, a discusso sobre a legitimidade da Fazenda Pblica para requerer a falncia deve permear no s o direito de propriedade, mas principalmente a salvaguarda da funo social da empresa e o dever fundamental de pagar tributos.

    Como visto, o objetivo da Lei 11.101/2005 foi o de estimular a continuidade das atividades empresariais, desde que, por bvio, haja condies de viabilidade e eficincia. Geraram-se incentivos reorganizao do negcio, mas com a preocupao em coibir problemas de risco moral, de enriquecimentos ilcitos, de fraudes contra credores e de desrespeito livre concorrncia.

    inegvel a aplicao dos valores segurana jurdica e justia atravs do par conditio creditorium e das regras de controle do patrimnio e atividades do falido, de modo que clarividente, no caso de empresas que no tm condies de recuperao, o interesse da Fazenda Pblica em fazer iniciar o concurso formal de credores sob o Juzo universal da falncia.

    Alm disso, a sociedade empresria que no seja capaz de saldar com suas obrigaes fiscais, no pode ser admitida dentro do cenrio econmico brasileiro, pelo papel negativo no livre mercado. A manuteno de empresa que deixa de recolher aos cofres pblicos os tributos devidos denota concorrncia desleal e, portanto, atinge os interesses dos demais atores privados47.

    A funo social da empresa passa, necessariamente, pelo pagamento de tributos48. Dessa forma, sequer existira conflito ou sopesamento entre

    47 Por isso, todos tm simultaneamente o dever de suportar financeiramente o Estado e o direito (o direito-dever) de ter uma palavra a dizer sobre os impostos que estamos disposto a pagar. Um dever-direito que tem um outro significado, designadamente, que a nenhum membro da comunidade pode ser permitido excluir-se de contribuir para o suporte financeiro da mesma, incumbindo, por conseguinte, ao Estado obrigar a todos a cumprir o referido dever. Pois, embora tal dever, como qualquer outro dever, constitua diretamente uma posio passiva do contribuinte face ao Estado, reflexamente ele configura-se como uma posio ativa do contribuinte traduzida no direito de este exigir do Estado que todos os membros da comunidade sejam constitudos destinatrios desse dever em conformidade com a respectiva capacidade contributiva e, bem assim, que todos eles sejam efetivamente obrigados ao cumprimento do mesmo. CASALTA, Jos Nabais. Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal. In Greco, Marco Aurlio; Godoi, Marciano Seabra de. Solidariedade Social e Tributao. So Paulo: Dialtica, 2005. p. 134. Apud ABrAHAm, Marcus. O Planejamento Tributrio e o Direito Privado. So Paulo: Quartier Latin, 2007.

    48 [...] (T)oda atividade econmica privada, tanto na titularidade dominical, quanto no exerccio de quaisquer direitos patrimoniais, encontra-se vinculada aos princpios fundamentais da repblica, inscritos no Ttulo i da Constituio Federal, que tm como fundamentos, dentre outros, na dico do art. 1o, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho e da livre iniciativa. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Funo Social da Propriedade e Legalidade Constitucional. In A Luta pela Reforma Agrria nos Tribunais. Porto Alegre: Companhia rio-Grandense de Artes Grficas, no prelo. Apud SCHREIBER, Anderson. Funo Social da Propriedade na

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    princpios constitucionais49 a justificar a interpretao da lei de falncias contrariamente aos interesses do Fisco50.

    Ainda, como mencionado, no pouco freqente a dissoluo irregular das empresas no Brasil. Tal hiptese, prevista como ato ruinoso no artigo 94, III, g, da Lei 11.101/05, tambm evidencia o interesse da Fazenda Pblica para a decretao da falncia, diante da inexistncia de atividade empresarial a ser preservada.

    Por fim, o pedido de falncia feito por qualquer credor com base na execuo frustrada pode ser ilidido atravs do depsito do valor total do crdito51. Tambm no ser decretada a falncia quando, nas hipteses especficas, for pleiteado e deferido o pedido de Recuperao Judicial52 53. E, ainda, a incluso do dbito tributrio em programa de parcelamento

    Prtica Jurisprudencial Brasileira. Disponvel em: . Acesso em: 05/01/2012.

    49 Na conhecida definio do jurista alemo Robert Alexy, princpios so mandamentos de otimizao que, diante de situaes fticas e jurdicas concretas, devem ser realizados na maior medida possvel, demandando juzo de ponderao. ALExY, Robert. Teoria de Los Direitos Fundamentales. madrid: Centro de Estdios Polticos y Constitucionales, 2002.

    50 Nos casos em que a empresa ainda for vivel, e houver interesse do devedor, aplicar-se-ia o regime de Recuperao Judicial ou Extrajudicial. Caso contrrio, a liquidao inevitvel, devendo se garantir a alienao dos ativos de forma rpida e eficiente para evitar a deteriorizao e maximizar o recebimento pelos credores. Mesmo com a decretao da quebra, possvel a preservao e otimizao dos bens por um terceiro adquirente, desde que haja a celeridade necessria

    Lei 11.101/2005. Artigo 75. A falncia, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a preservar e otimizar a utilizao produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangveis, da empresa.

    Pargrafo nico. O processo de falncia atender aos princpios da celeridade e da economia processual.

    51 Lei 11.101/2005. Art. 98. Citado, o devedor poder apresentar contestao no prazo de 10 (dez) dias. Pargrafo nico. Nos pedidos baseados nos incisos I e II do caput do art. 94 desta Lei, o devedor

    poder, no prazo da contestao, depositar o valor correspondente ao total do crdito, acrescido de correo monetria, juros e honorrios advocatcios, hiptese em que a falncia no ser decretada e, caso julgado procedente o pedido de falncia, o juiz ordenar o levantamento do valor pelo autor.

    52 Lei 11.101/2005. Art. 95. Dentro do prazo de contestao, o devedor poder pleitear sua recuperao judicial. Art. 57. Aps a juntada aos autos do plano aprovado pela assemblia-geral de credores ou decorrido o

    prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeo de credores, o devedor apresentar certides negativas de dbitos tributrios nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Cdigo Tributrio Nacional.

    53 Lei 5172/66. Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crdito tributrio: VI o parcelamento. Art. 155-A. O parcelamento ser concedido na forma e condio estabelecidas em lei especfica.

    (Artigo includo pela Lcp n 104, de 10.1.2001) 1o Salvo disposio de lei em contrrio, o parcelamento do crdito tributrio no exclui a incidncia

    de juros e multas. Art. 68. As Fazendas Pblicas e o Instituto Nacional do Seguro Social INSS podero deferir, nos

    termos da legislao especfica, parcelamento de seus crditos, em sede de recuperao judicial, de acordo com os parmetros estabelecidos na Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Cdigo Tributrio Nacional.

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    antes da deciso judicial, ilidiria a decretao da falncia, j que suspenderia a exigibilidade do crdito tributrio54.

    Conclui-se, portanto, que, caso a empresa no seja efetivamente insolvente, e no tenha cometido atos de falncia, haver uma soluo jurdica que afaste a quebra, mesmo quando requerida pela Fazenda Pblica. Assim, garantir-se- a continuidade da empresa que tenha condies de cumprir com sua funo social.

    2 A COMPATIBILIdAdE dO PROCESSO FALIMENTAR COM AS PRERROGATIVAS dA FAZENdA PBLICA: IMPOSSIBILIdAdE dA UTILIZAO dA FALNCIA COMO AO dE COBRANA

    A falncia de uma sociedade empresria significa perdas generalizadas, cuja ordem jurdica deve organizar a ordem social dos gravames, atravs do concurso de credores55. Nada mais exterioriza os valores isonomia e justia no mbito da insolvncia empresarial do que princpio do par conditio creditorum56.

    Antes de adentrar neste tpico, pedimos vnia para novamente reproduzir trechos do voto do ministro Castro Filho no recurso Especial 164.389/MG:

    Ao criar privilgios, como o da incolumidade concursal para a dvida ativa do Estado, o legislador brasileiro no pretendeu coactar as possibilidades de sua cobrana judicial, mas ampli-las. Asseveram que tal incolumidade processual, formal, no significando dispensa

    54 Diante da necessidade de alterao por lei complementar a ser editada, ainda no possvel a participao do Fisco ou a incluso dos dbitos tributrios na Recuperao Judicial. No entanto, atualmente, o parcelamento do dbito tributrio sempre possvel nos termos da Lei 10.522/2002.

    Lei 5172/66. Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crdito tributrio: VI o parcelamento. Art. 155-A. O parcelamento ser concedido na forma e condio estabelecidas em lei especfica.

    (Artigo includo pela Lcp n 104, de 10.1.2001) 1o Salvo disposio de lei em contrrio, o parcelamento do crdito tributrio no exclui a incidncia

    de juros e multas.

    55 FErES, Marcelo Andrade. Da Constitucionalidade dos Condicionamentos Impostos pela Nova Lei de Falncias ao Privilgio dos Crditos Trabalhista. Rev. Jur., Braslia, v. 7, n. 74, p.01-07, ago/set, 2005.

    56 O tratamento prioritrio dos credores o principal objetivo do processo falimentar. A profissionalizao da administrao da falncia , na verdade, mera condio para melhor atender aos direitos dos credores. A depurao da massa e a coibio da m-f presumida da falida so, a seu turno, pressupostos para a definio dos recursos destinveis satisfao daqueles mesmos direitos. A rigor, a falncia a tentativa de justa distribuio dos insuficientes bens da sociedade devedora entre os credores. Esse princpio do tratamento paritrio, ao mesmo tempo em que assegura aos credores com ttulo de mesma natureza a igualdade, estabelece hierarquias em favor dos mais necessitados (os empregados) e do interesse pblico (representado pelos crditos fiscais), relegando ao fim da fila os empresrios). Coelho, Fbio Ulhoa, Curso de Direito Comercial. v. 3. So Paulo, Saraiva, 2003. p. 344/345.

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    do concurso material de preferncias, nem assegurando Fazenda o recebimento dos seus crditos 57.

    No mrito da discusso sobre a legitimidade e interesse da Fazenda Pblica na decretao de falncia, pode-se refutar de incio que a circunstncia de o crdito tributrio ser privilegiado, com a possibilidade de ajuizamento e continuidade da execuo fiscal no curso da falncia, afasta a convenincia de, em certas circunstncias, se pleitear a quebra.

    O interesse processual, como condio ao exerccio vlido do direito ao, diz respeito a aparente necessidade em que se encontra o autor de pedir aquele provimento judicial, a fim de fazer valer o direito substantivo de que se afirma titular. A existncia ou no do interesse de agir decorre unicamente do sistema da lei, no da natureza das coisas.

    Mas j se viu que o executivo fiscal nem sempre leva satisfao do crdito, diante da malcia de contribuintes sem escrpulos, que se escondem atrs da personalidade jurdica de empresas diversas, no pagam seus dbitos tributrios e ainda proporcionam concorrncia desleal s empresas que funcionam regularmente.58

    insistimos que, realmente, seria precipitado admitir o requerimento de falncia pela Fazenda Pblica com base na impontualidade (artigo 94, I da Lei 11.101/2005). Ser impontual no significa ser insolvente. A insolvncia somente restar comprovada para o Estado aps o devido processo legal, que a Execuo Fiscal ou o Processo Admistrativo Fiscal, onde seja assegurado o contraditrio e ampla defesa.

    No curso da Execuo Fiscal, poder o devedor tributrio discutir judicialmente o mrito da dvida, atravs da apresentao de embargos execuo, de exceo de pr-executividade, ou mesmo de ao ordinria prpria. Conseqentemente, com a suspenso da exigibilidade do dbito59, no haver interesse de agir da Fazenda Pblica para requerer a falncia.

    Entretanto, em sendo o exigvel crdito tributrio e restando infrutfera a cobrana pela Execuo Fiscal, por qual razo no se aplicariam

    57 STJ. Resp 164389 / MG. Relator para o acrdo Ministro Slvio de Figueiredo Teixeira (1088). Julgamento em 13/08/2003. DJe de 16/08/2004.

    58 Trecho do voto do Ministro Castro Filho no Recurso Especial 164.389/MG.

    59 Na Execuo Fiscal, a suspenso da exigibilidade do crdito tributrio decorrer da garantia do Juzo, necessria apresentao dos Embargos. No caso de ajuizamento de ao ordinria, tal como ao anulatria de dbito, ainda que posterior Execuo Fiscal e independente de garantia, apenas restar suspensa a exigibilidade da dvida ativa caso haja deciso judicial ainda que liminar - nesse sentido.

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    os artigos da Lei de Falncias referentes execuo frustrada60? Assim como, caso constatado pelo agente pblico a ocorrncia de qualquer dos atos ruinosos previstos no artigo 94, II da Lei 11.101/200561, seja no curso da Execuo Fiscal, seja no mbito de processo administrativo regulado por lei, por qual motivo no estar justificado o interesse no pedido de falncia?

    No se pode sustentar simplesmente a incompetncia do Juzo falimentar para apreciar o mrito dos crditos tributrios. Tal como os crditos trabalhistas que devem ser discutidos no Juzo especializado, caso haja no processo falimentar alguma impugnao legtima sobre a existncia ou validade do crdito fiscal, o caminho ser o ajuizamento de ao prpria diretamente no juzo fazendrio.

    Observa-se, de forma resumida, que no existe qualquer incompatibilidade procedimental quanto legitimidade da Fazenda Pblica em requerer a falncia de seus devedores com base na execuo frustrada ou nos atos de falncia62.

    Com relao ao uso da Lei de Falncias como meio de coao indevida ao pagamento de tributos, no h motivos jurdicos para distinguir o credor pblico do credor privado. O Superior Tribunal de Justia tem entendimento consolidado no sentido de que o pedido de falncia no pode ser usado como sucedneo de ao de cobrana por nenhum credor63 64.

    Se o pedido de falncia afrontar dolosamente a lei, poder o Estado ser responsabilizado civilmente na prpria sentena de improcedncia65,

    60 Lei 11.101/2005. Art. 94. Ser decretada a falncia do devedor que: II executado por qualquer quantia lquida, no paga, no deposita e no nomeia penhora bens

    suficientes dentro do prazo legal; 4o Na hiptese do inciso II do caput deste artigo, o pedido de falncia ser instrudo com certido

    expedida pelo juzo em que se processa a execuo. Art. 98. Citado, o devedor poder apresentar contestao no prazo de 10 (dez) dias. Pargrafo nico. Nos pedidos baseados nos incisos I e II do caput do art. 94 desta Lei, o devedor

    poder, no prazo da contestao, depositar o valor correspondente ao total do crdito, acrescido de correo monetria, juros e honorrios advocatcios, hiptese em que a falncia no ser decretada e, caso julgado procedente o pedido de falncia, o juiz ordenar o levantamento do valor pelo autor.

    61 Comprovando-se a ocorrncia de qualquer dos atos previstos no artigo 94, III da Lei 11.101/2005, a falncia presumida de forma absoluta, sendo dispensvel qualquer ao judicial.

    62 o Juzo competente para a Fazenda Pblica Federal requerer a falncia de empresa devedora ser o Juzo comum falimentar, diante da ressalva do artigo 109, I da Constituio Federal de 1988.

    Art. 109. Aos juzes federais compete processar e julgar: i - as causas em que a unio, entidade autrquica ou empresa pblica federal forem interessadas na

    condio de autoras, rs, assistentes ou oponentes, exceto as de falncia, as de acidentes de trabalho e as sujeitas Justia Eleitoral e Justia do Trabalho;

    63 REsp 920140 / MT; RESP 959695-SP.64 Entretanto, de acordo com rubens requio, sob o ponto de vista do credor, a falncia, embora

    uma execuo extraordinria e coletiva, constitui um meio de obter a cobrana de seu crdito. REQUIO, Rubens. Curso de Direito Falimentar, 1 vol., 2 ed. So Paulo: Saraiva, 1976, p. 29.

    65 Lei 11.101/2005. Art. 101. Quem por dolo requerer a falncia de outrem ser condenado, na sentena que julgar improcedente o pedido, a indenizar o devedor, apurando-se as perdas e danos em liquidao de sentena.

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    com ao de regresso caso existente responsabilidade funcional66. Ainda, comprovada conduta sujeita Lei de improbidade Administrativa, ser o agente pblico tambm por ela sancionado67.

    Ademais, por determinao constitucional, o presentante da Fazenda Pblica deve sempre pautar seus atos pela estrita legalidade, com a razoabilidade necessria eficincia, de modo a alcanar o interesse pblico.

    cone do direito administrativo brasileiro, Celso Antnio Bandeira de mello, baseado em autores italianos, faz uma importante distino entre interesse pblico propriamente dito e interesse meramente das pessoas estatais, alertando que somente se admite que os agentes pblicos atuem com base no primeiro:

    interesse pblico ou primrio, repita-se, o pertinente sociedade como um todo, e s ele pode ser validamente objetivado, pois este o interesse que a lei consagra e entrega compita do Estado como representante do corpo social. Interesse secundrio aquele que atina to s ao aparelho estatal enquanto entidade personalizada [...]. Com efeito, por exercerem funo, os sujeitos de Administrao Pblica tm que buscar o atendimento do interesse alheio, qual seja, da coletividade, e no o interesse de seu prprio organismo qua tale considerado, e muito menos dos agentes estatais 68.

    Conclui Celso Antnio que o dever-poder do agente pblico s poder ser validamente exercido na extenso e intensidade proporcional ao atendimento do escopo legal. Todo excesso abuso, e como tal, comportamento invlido que o Judicirio deve fulminar a requerimento do interessado69.

    Assim, vedar a priori determinada conduta Fazenda Pblica por considerar que tende ao interesse secundrio, sem anlise especfica do caso concreto, seria dar uma interpretao restritiva da lei, com violao Constituio Federal. Seria, de fato, uma inverso das prerrogativas e dos privilgios, colocando o interesse do credor privado individual em posio de superioridade aos interesses de custeio das despesas pblicas.

    1o Havendo mais de 1 (um) autor do pedido de falncia, sero solidariamente responsveis aqueles que se conduziram na forma prevista no caput deste artigo.

    2o Por ao prpria, o terceiro prejudicado tambm pode reclamar indenizao dos responsveis.

    66 Artigo 37, 6 da Constituio Federal de 1988.67 Lei 8.429/2002. Em especial artigo 11, I. Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que

    atenta contra os princpios da administrao pblica qualquer ao ou omisso que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade s instituies, e notadamente:

    I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competncia;

    68 mELLo, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros, 2004. p. 90.69 Ibidem, p. 91.

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    3 O INTERESSE ESPECFICO NA dECRETAO dA FALNCIA: CONCURSO MATERIAL dE CREdORES E A LIMITAO dOS CRdITOS TRABALHISTAS

    A interpretao sistemtica do ordenamento jurdico, em especial da Lei 11.101/2005 e das alteraes provocadas pela Lei Complementar 118/2005 na Lei 5172/66, evidencia que a Fazenda Pblica est sim sujeita a um concurso material de credores.

    Apesar da previso do artigo 187 do Cdigo Tributrio Nacional (CTN) e do artigo 29 da Lei 6830/8070, no se pode negar que, fora do par conditio creditorium, os crditos decorrentes da legislao do trabalho ou do acidente do trabalho preferem ilimitadamente os tributrios, nos termos do artigo 186 do CTN.

    Assim, no curso da Execuo Fiscal, ainda que penhorados bens suficientes garantia do crdito, o Juzo Trabalhista poder penhorar os mesmos bens e oficiar ao Juzo Fiscal sobre a prevalncia daqueles credores, sem qualquer limite de valor71. Logo, faz-se necessria uma reviso jurisprudencial do entendimento que, vedando a legitimidade para pedido de decretao de quebra, afirma o interesse do credor fiscal em no ver discutido seu crdito em outro juzo que no seja o especializado.

    ora, em sendo a Devedora tributria empresa insolvente, caso no haja a decretao da falncia, improvvel que exista patrimnio suficiente para quitar todos os dbitos apurados na Justia do Trabalho e saldo para os dbitos tributrios. Na prtica, a execuo fiscal ser completamente ineficaz.

    Ademais, ressalta-se que, apesar de, fora do par conditio creditorium, o crdito com garantia real no obstar o prosseguimento da Execuo Fiscal at a satisfao do dbito, cada vez mais comum a utilizao pelas instituies financeiras de contratos de arrendamento mercantil e alienao fiduciria em garantia, de modo a evitar a perda do bem para credores privilegiados, como so os tributrios.

    70 Lei 5.172/66. Art. 187. A cobrana judicial do crdito tributrio no sujeita a concurso de credores ou habilitao em falncia, recuperao judicial, concordata, inventrio ou arrolamento. (Redao dada pela Lcp n 118, de 2005)

    Lei 6830/80. Art. 29 - A cobrana judicial da Dvida Ativa da Fazenda Pblica no sujeita a concurso de credores ou habilitao em falncia, concordata, liquidao, inventrio ou arrolamento

    71 PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTRIO. ExECUO FISCAL. ARREMATAO DE BEM. CONCURSO DE CREDORES. ORDEM PREFERENCIAL. CRDITO TRABALHISTA SOBRE CRDITO TRIBUTRIO. CRDITO FEDERAL SOBRE ESTADUAL, E ESTE SOBRE MUNICIPAL. PRECEDENTES. SMULA 83 DO STJ. FUNDAMENTO DA DECISO AGRAVADA NO ATACADO. SMULA 182 DO STJ.

    1. A jurisprudncia do STJ entende que, no concurso de credores, os crditos trabalhistas sobrepem-se aos crditos tributrios, e nestes, o concurso de preferncia se verifica na seguinte ordem: os da Fazenda Federal, Estadual e Municipal. Incidncia da Smula 83/STJ. [...]. STJ. AgRg no REsp 1254077 / SP. 2 Turma. Relator Ministro Humberto Martins. Julgamento em 03/11/2011. DJe 11/11/2011.

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    Alm do que, fora do Juzo universal da falncia, no trmite de eventuais aes trabalhistas, acidentrias e que envolvam direitos bancrios, no h a intimao da Fazenda Pblica credora como terceira interessada, dificultando a impugnao de eventuais acordos ou mesmo do prprio contrato.

    Foi pela constatao das fraudes cometidas pelos Empregadores no intuito de prejudicar seus credores que o legislador ordinrio, justificadamente72 73, limitou o recebimento preferencial dos crditos trabalhistas em 150 (cento e cinqenta) salrios mnimos74. Fbio ulhoa Coelho reconhece que tal limitao objetiva impedir que se consumam os recursos da massa com o atendimento dos altos salrios dos administradores 75.

    Logo, alm do interesse geral de fazer cessar as atividades da sociedade empresria insolvente, existe um interesse especfico da Fazenda Pblica em inaugurar o concurso de credores sob Juzo universal

    72 Durante a tramitao do Projeto de Lei 4376, o Senador Ramez Tebet pontuou que o objetivo seria impedir a corriqueira fraude utilizada por alguns empresrios de m-f, que, ao se verem na iminncia de decretao da quebra, forjavam crditos trabalhistas, sobretudo com a convivncia dos administradores das sociedades. Na prtica, essas fraudes se exteriorizavam pelo ajuizamento de reclamatrias trabalhistas contra a empresa, por parte dos administradores ou outros altos empregados, objetivando numerrios astronmicos, amparados pela alegao de direitos fictcios. Faziam-se acordos, que eram homologados pela Justia do Trabalho e, mais tarde, na fase de habilitao de crditos na falncia, eram apresentados como ttulos judiciais de hierarquia prioritria. Alm disso, impondo o limite defender-se-ia o prprio trabalhador, j que o recebimento de altos valores, antes dos outros credores, prejudicavam os ex-empregados que efetivamente deveriam ser protegidos, submetendo-os a rateios com ex-ocupantes de altos cargos. Longe de piorar a situao dos trabalhadores, garante a eles maior chance de recebimento, pois reduz-se a possibilidade de verem parte significativa do valor que deveriam receber destinada ao pagamento dos altos valores dos quais os ex-administradores afirmam ser credores trabalhistas.

    73 o ministro do Supremo Tribunal Federal ricardo Lewandowski, relator da Ao Direta de Inconstitucionalidade n 3934-2 que discute a limitao da preferncia dos crditos trabalhistas na ao de falncia, discorreu em seu voto de improcedncia do pedido, que a lei 11.101/2005 busca assegurar que esta proteo alcance o maior nmero de trabalhadores, ou seja, justamente aqueles que auferem os menores salrios. Ressaltou o Relator que a Conveno 173 da Organizao Internacional do Trabalho dispe no seguinte sentido: a legislao nacional poder limitar o alcance dos crditos trabalhistas a um montante estabelecido, que no dever ser inferior a um mnimo socialmente aceitvel.

    74 A limitao existe somente no caso de falncia da sociedade empresria, e apenas s verbas derivadas do contrato de trabalho, no sendo aplicada indenizao proveniente de acidente de trabalho causada por dolo ou culpa do empregador ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de Falncia e Recuperao de Empresa: de Acordo com a Lei . 11.101/2005. 22. ed. ver. e atual. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 253. O crdito trabalhista que ultrapasse a quantia de 150 salrios mnimos considerado quirografrio, nos termos do artigo 83, VI, c da Lei 11.101/2005. A justificativa desse limite, conforme a Emenda 343 proposta pelo Deputado Pedro Henry, foi a (m)odificao do alcance da preferncia conferida aos crditos trabalhistas, com a finalidade de melhor distribuir os recursos decorrentes da realizao de ativos da empresa entre os diversos grupos de credores alcanados pela insolvncia do devedor, preservando-se o objetivo macroeconmico de estimular e baratear o crdito.

    75 COELHO, Fbio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, v.3: Direito de Empresa. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 363.

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    da falncia, diante da limitao da preferncia dos crditos trabalhistas e da possibilidade de maior controle sobre os demais crditos76.

    Na Lei 11.101/2005, as execues fiscais no se suspendem por ocasio da decretao da falncia77. Entretanto, o produto do bem penhorado e levado hasta pblica pelo Juzo fazendrio deve ser arrecadado no Juzo falimentar e submetido ordem de classificao dos crditos para fins de pagamento. Assim, no processo falimentar que ocorre, quando possvel, a sua liquidao78.

    Portanto, em vista do princpio da supremacia do interesse pblico, inconcebvel que a Fazenda Pblica seja excluda da legitimidade ativa para pleitear a falncia do devedor, invertendo as prerrogativas em desfavor do Estado.

    Encerra-se, ratificando a boa sntese da Fazenda Pblica de Minas Gerais no Recurso Especial 3263363.206 - MG que sem o concurso de credores, o privilgio da Fazenda no tem nenhuma utilidade79.

    76 Em doutrina contrria a que hora defendemos, o ilustre professor Srgio Campinho expe:

    Sempre professamos, de longa data em nossas aulas e palestras, a convicta tica de falecer Fazenda Pblica no propriamente legitimidade, mas notadamente interesse de agir. O artigo 187 do Cdigo Tributrio Nacional, tanto na sua redao original, quanto na que lhe foi outorgada pela Lei Complementar 118/2005, de cristalina preciso ao prescrever no estar a cobrana do crdito tributrio sujeita falncia ou a qualquer concurso creditrio. Sua cobrana se d por meio da ao de execuo fiscal, disciplinada na Lei 6.830/80 que, em seu artigo 29, repete a regra do artigo 187 acima referido. Ademais, a competncia para processar e julgar a execuo da dvida da Fazenda Pblica, nos termos do artigo 5 da mesma Lei 6.830/80, exclui a de qualquer outro juzo, inclusive, prev expressamente a norma, o da falncia. [...]. E isso tudo se verifica, porquanto a cobrana de um tributo atividade vinculada, competindo ao Estado fazer uso da ao de execuo fiscal, instrumento apropriado para a satisfao do seu crdito. CAmPiNHo, Srgio. Falncias e Recuperao de Empresas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 278.

    77 Lei 11.101/2005. Art. 76. O juzo da falncia indivisvel e competente para conhecer todas as aes sobre bens, interesses e negcios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas no reguladas nesta Lei em que o falido figurar como autor ou litisconsorte ativo.

    Pargrafo nico. Todas as aes, inclusive as excetuadas no caput deste artigo, tero prosseguimento com o administrador judicial, que dever ser intimado para representar a massa falida, sob pena de nulidade do processo.

    78 Lei 11.101/2005. Art. 83. A classificao dos crditos na falncia obedece seguinte ordem:

    I os crditos derivados da legislao do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqenta) salrios-mnimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho;

    ii - crditos com garantia real at o limite do valor do bem gravado; III crditos tributrios, independentemente da sua natureza e tempo de constituio, excetuadas as

    multas tributrias;79 Continua a pea do recurso da Procuradoria do Estado de minas Gerais: Somente com o concurso

    que o Fisco poder exigir a satisfao de seu direito antes dos credores comuns. No havendo concurso, tanto o credor comum, quanto o privilegiado se utilizaro da via executiva, cada um movendo sua ao, no existindo nenhum privilgio de um com relao outra. Seria, pois, extremamente ilgico negar Fazenda Pblica o direito de requerer a falncia.

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    4 CONCLUSO

    A Fazenda Pblica, objetivamente considerada, o complexo dos recursos e obrigaes financeiras do Estado. Vimos, portanto, que no se pode confundir a Fazenda Pblica com a Administrao Financeira ou Tributria, bem como o interesse pblico primrio da coletividade com o interesse secundrio, dos agentes pblicos que compe o aparelho Estatal.

    Como professa ricardo Lobo Torres, logo nas primeiras pginas de seu Curso de Direito Financeiro e Tributrio,

    (o)bter recursos e realizar gastos no um fim em si mesmo. O Estado no tem o objetivo de enriquecer ou aumentar seu patrimnio. Arrecada para atingir certos objetivos de ndole poltica, econmica ou administrativa. [...] A obteno de receita para suprir as necessidades pblicas, nota caracterstica da atividade financeira, visa prestao de servios pblicos e defesa dos direitos fundamentais.

    E concluiu com a maestria que lhe peculiar que:

    (a) liberdade necessita das finanas do Estado para que possa se afirmar, ao mesmo tempo em que limita o exerccio da atividade financeira. A justia na sociedade moderna passa pela fiscalidade e pela redistribuio de renda.80

    Tal constatao sintetiza uma importante caracterstica do Estado Social e Democrtico de Direito, construda no antes de longos perodos de lutas sociais e revolues histricas. Paralelamente, coincide com a nova feio da legalidade tributria, vista a partir da reaproximao entre o Direito e a moral e da adoo do pluralismo metodolgico de interpretao jurdica81.

    Dentro desse contexto, no se pode negar o fato de que as sociedades empresrias e os demais atores privados, to importantes ao desenvolvimento econmico, dependem da estrutura e da segurana fornecidas pelo Estado para gerarem lucros e riqueza, principalmente na ambivalncia da sociedade de risco82. Assim como, a prpria vida em sociedade com a necessidade de soluo para os conflitos sociais, supra-individuais e supra-nacionais depende do controle e atuao do Estado.

    80 Torres, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributrio. 17. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 05.81 Ribeiro, Ricardo Lodi, Temas de Direito Constitucional Tributrio. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

    2009, p. 25-67.

    82 Ribeiro, Ricardo Lodi, Temas de Direito Constitucional Tributrio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 25-67

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    Tudo isso, como mencionado, tem um custo pblico, arcado pela incidncia tributria de acordo com a capacidade contributiva. Ainda assim, apesar de parecer bvio o dever fundamental de pagar imposto, diante da moral tributria salvacionista vigente no Brasil, o tributo visto com grande repulsa social. Culturalmente, vive-se uma busca desenfreada pela exonerao tributria.

    Como maneira de sobrepujar isso, e diante da necessidade de arrecadao e manuteno da isonomia, o Estado deve encontrar meios de conferir efetividade s normas jurdicas tributrias, atravs de instrumentos coercitivos. Importantes so as previses de crimes contra a ordem tributria e a prpria Execuo Fiscal, com suas conseqncias administrativas. Mas, por vezes, no so suficientes para garantir o retorno do crdito pblico ou, ao menos, para coagir ao pagamento de tributos.

    A Execuo Fiscal no pode ser vista pela jurisprudncia como o nico e exclusivo meio idneo de cobrana dos dbitos pblicos, seja por no existir garantia de eficcia, seja por retirar do Estado, sem que haja previso legal expressa, outros meios constitucionalmente compatveis com as prerrogativas da Fazenda Pblica.

    Tais prerrogativas, decorrentes da Supremacia do interesse Pblico, no devem ser utilizadas como argumento para diminuir o acesso a outros instrumentos de efetividade das normas tributrias. Instrumentos este que, inclusive, esto disposio de todo e qualquer credor. Seria penalizar o Estado pelo privilgio legal do Juzo especializado e da execuo lastreada na Certido de Dvida Ativa.

    A decretao da falncia de sociedade empresria insolvente, que no tenha condies de continuar exercendo sua funo social, meio coercitivo e medida necessria manuteno da ordem econmica do pas. A funo social da empresa passa, necessariamente, pelo pagamento de tributos. Desse modo, no pode ser cerceado ao Estado o direito de inaugurar o par conditio creditorium, e fazer aplicar os severos preceitos da Lei 11.101/2005, caso esteja diante da insolvncia de empresa irrecupervel.

    De fato, resta afastado o interesse de agir do Fisco para a decretao da falncia com base na simples impontualidade. Mas inegvel que existe o interesse jurdico geral da Fazenda Pblica em iniciar o processo falimentar com base na execuo frustrada ou diante da comprovao de atos de falncia. Seja para fazer cessar as atividades e proteger o mercado contra o abuso econmico dos devedores tributrios, seja para preservar a isonomia dos credores em concurso junto ao Juzo universal.

    Por fim, considerando que, mesmo no Juzo fazendrio, a Fazenda Pblica est submetida a um concurso material de credores, posto que preterida por eventual penhora de crditos trabalhistas e decorrentes de acidente de trabalho sem qualquer limite de valor , resta evidente que pode haver interesse jurdico especfico em iniciar o concurso formal de

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    credores. Previu o legislador infraconstitucional que, no caso da falncia, a preferncia dos crditos trabalhistas est limitada a 150 (cento e cinqenta) salrios mnimos, como forma de garantir a isonomia e obstar eventual fraude contra os demais credores.

    Por tais motivos, necessria a alterao jurisprudencial para, mediante a interpretao da Lei 11.101/2005 conforme os valores e princpios trazidos pela Constituio Federal de 1988, reconhecer a legitimidade ativa da Fazenda Pblica para o pedido de decretao de falncia das empresas que no podem cumprir com sua funo social.

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