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NÓMADAS 56 JOVENS E EXPERIMENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA NO BRASIL: ESTÉTICA DA DESTRUIÇÃO, SOCIABILIDADES LIMÍTROFES Rosamaria Luiza de Melo Rocha* * Doctora en Ciencias de la Comunicación de la Universidad de Sao Pablo. Posdoctorada en Ciencias Sociales en la Pontificia Universidad Católica de Sao Pablo. Miembro del Núcleo de Estudios en Complejidad (PUC/SP) y del Núcleo de Estudios Filosóficos de Comunica Vao (ECA/USP). El artículo aborda algunos fenómenos de violencia en ciudades brasileñas, desde un punto de vista comunicacional; la autora logra identificar intersecciones entre ellos, particu- larmente frente a aspectos de visibilidad, construcción de identidad y sociabilidad que involucran a jóvenes urbanos. Buscando sintetizar reflexiones acerca de ciertas ocurren- cias de la violencia –acto social y simbólico- en tal contexto, centra su preocupación en la experimentación de una “cul- tura do risco” – desafiante, personalista y a veces letal. Propone, además, que la violencia se manifiesta y puede ser percibida bajo un proceso dinámico y dialógico funda- do en originales ordenaciones sociales y visuales. Postula, finalmente, que la violencia hoy constituye un poderoso lenguaje, una pedagogía percibida e “incorporada” por di- versos sectores juveniles. Este por demás inquietante componente de la comuni- cación urbana, termina poniendo en evidencia lugares de construcción identitaria a veces tensionados y explosivos, a veces estetizados, poéticos, demarcados por la creciente simbiosis media/sociedad, por la vivencia de los media en cuanto nuevo espacio público y de las ciudades en cuanto peculiares escenarios y focos preferenciales de la visibilidad mediatizada. The article approaches the phenomena of violence in Brazilian cities from a communicational perspective; the author is able to identify intersections between these phenomena, particularly what they have to do with aspects of visibility and construction of identity and sociability as these concepts relate to urban youth. Looking to summarize reflections about certain occurences of violence — a social and symbolic act –- in that context, the author focuses her concern on the experimentation of a “culture of risk,” which is challenging, personalist, and sometimes lethal. In addition, she proposes that violence manifests itself and can be perceived in a dynamic and dialogic process founded on original social and visual orderings. Finally, she postulates that violence today constitutes a powerful language, a pedagogy perceived and “incorporated” by diverse sectors of youth. This very perturbing component of urban commu- nication shows places of construction of identity that are sometimes tense and explosive, sometimes aesthetized, poetic, delimited by the growing media-society symbiosis, by personal experience with the media as a new public space and the cities as peculiar scenarios and preferential focuses of mass media visibility.

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JOVENS EEXPERIMENTAÇÕES DAVIOLÊNCIA NO BRASIL:

ESTÉTICA DA DESTRUIÇÃO,SOCIABILIDADES LIMÍTROFES

Rosamaria Luiza de Melo Rocha*

* Doctora en Ciencias de la Comunicación de la Universidad de Sao Pablo. Posdoctoradaen Ciencias Sociales en la Pontificia Universidad Católica de Sao Pablo. Miembro delNúcleo de Estudios en Complejidad (PUC/SP) y del Núcleo de Estudios Filosóficos deComunica Vao (ECA/USP).

El artículo aborda algunos fenómenos de violencia enciudades brasileñas, desde un punto de vista comunicacional;la autora logra identificar intersecciones entre ellos, particu-larmente frente a aspectos de visibilidad, construcción deidentidad y sociabilidad que involucran a jóvenes urbanos.

Buscando sintetizar reflexiones acerca de ciertas ocurren-cias de la violencia –acto social y simbólico- en tal contexto,centra su preocupación en la experimentación de una “cul-tura do risco” – desafiante, personalista y a veces letal.

Propone, además, que la violencia se manifiesta y puedeser percibida bajo un proceso dinámico y dialógico funda-do en originales ordenaciones sociales y visuales. Postula,finalmente, que la violencia hoy constituye un poderosolenguaje, una pedagogía percibida e “incorporada” por di-versos sectores juveniles.

Este por demás inquietante componente de la comuni-cación urbana, termina poniendo en evidencia lugares deconstrucción identitaria a veces tensionados y explosivos,a veces estetizados, poéticos, demarcados por la crecientesimbiosis media/sociedad, por la vivencia de los media encuanto nuevo espacio público y de las ciudades en cuantopeculiares escenarios y focos preferenciales de la visibilidadmediatizada.

The article approaches the phenomena of violence inBrazilian cities from a communicational perspective; theauthor is able to identify intersections between thesephenomena, particularly what they have to do with aspectsof visibility and construction of identity and sociability asthese concepts relate to urban youth.

Looking to summarize reflections about certainoccurences of violence — a social and symbolic act –- inthat context, the author focuses her concern on theexperimentation of a “culture of risk,” which is challenging,personalist, and sometimes lethal.

In addition, she proposes that violence manifests itselfand can be perceived in a dynamic and dialogic processfounded on original social and visual orderings. Finally,she postulates that violence today constitutes a powerfullanguage, a pedagogy perceived and “incorporated” bydiverse sectors of youth.

This very perturbing component of urban commu-nication shows places of construction of identity that aresometimes tense and explosive, sometimes aesthetized,poetic, delimited by the growing media-society symbiosis,by personal experience with the media as a new public spaceand the cities as peculiar scenarios and preferential focusesof mass media visibility.

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O sangue tem manchado/Nossos cartões postais (...)/Quadrilhas rivais, matançasbrutais(...)/O que aconteceaqui e lá, pá pá pá/Tem in-fluência no país inteiro, rátá tá/Um Quarto mundodentro de um terceiro/Barrilde pólvora pra explodir/K.D.meu isqueiro? (Pavilhão9, “Vietnan”)

Quem é Terceiro não meleve a mal/Porque o Co-mando dominou geral/Eesse rap que eu canto aqui/Estou oferecendo pro bondedo Odir/Vida do crime,meu irmão/É pra quem temdisposição (“Rap da invasãodo Odir”1 )

Pesquisando as repercussõessimbólicas e materiais da vio-lência nas cidades brasileiras2

é possível localizar as marcasdeixadas tanto pelo “fantasma”da violência quanto por suaprática difundida. Edificações, ruas,muros, circuitos eletrônicos, cercas,grades... muitos parecem funcionarcomo uma intrigante afirmação depotência diante do “mundo exter-no”. Determinados espaços urbanoscomprovam que, assim como osdiscursos e narrativas sobre a vio-lência, também o “construir” e o“demarcar” comportam um aspec-to performático; são singularescomponentes — e talvez um dosnós mais perenes — da cadeia lin-güística e do próprio ciclo daviolência. O atual sentimento deinsegurança resultaria, nestes ter-mos, de uma amplificação dos ris-cos, de uma obsessão egoísta porproteção, estabelecendo umparadoxo: o espaço/tempo urbano,em termos macro, propicia a desso-cialização para, microscopicamen-

te, como na coesão grupal baseadana violência, assistir à emergência ecristalização de padrões originais,ainda que indesejados, de sociabi-lidade3.

Das manifestações de agressãocega às práticas autodestrutivas, aviolência multiplica sua face,ambíguo espelho identitário quereferenda a ação. Não mais o re-verso do controle, mas a eclosãoanômala de sua própria condiçãode incerteza. O plástico filme dasegurança máxima em-perra nas engrenagensdo projetor. E nesteponto ele queima. Maisdo que uma banalização

da violência,f e n ô m e n o s

ocorridos re-centementeno Brasil ilus-tram como es-tratégias deautodefesapodem en-campar um per-

verso “esporte” de agressão gratuitaencampado por setores juvenis,com a flagrante ultrapassagem defronteiras de classe. O caso dos“beiseboys”4 é apenas um entre tan-tas das singulares manifestações da“autonomização” da violência na

cultura jovem. Utilizando tacos debeisebol como “arma branca” naresolução de conflitos — de umabriga de trânsito até as desavençasestritamente pessoais —, todos osentrevistados são unânimes em jus-tificar seu uso com o apelo à defesapessoal. Ainda não haviam vindoa público, na época de veiculaçãodeste episódio, fatos como oassassinato de um índio pataxó porum grupo de adolescentes de classemédia alta na Capital Federal,Brasília5 . Mas uma das imagensconstantes de uma reportagem quedocumentava a ocorrência foi sufi-cientemente profética: a cena dofilme “Laranja Mecânica”, em queos mesmos tacos eram usados paraespancar um mendigo.

Navegando nacontra-mão ouo prazer do risco

Em documentários sobre omovimento funk na cidade

do Rio de Janeiro, chamaatenção, por sua vez, aconstante referência dosentrevistados à morte,pontuada pelo riso e pelaafirmação de virilidade.Dos enfrentamentos sim-bólicos aos conflitos comseguranças, da provo-cação coreografada ao

acerto de contas armado na saídados bailes, a linguagem da vio-

lência está ali, engendrando um frá-gil destemor, signos distintivosadotados por uma massa de“ejetados” do fluxo urbano, queexplode, aqui e ali, na forma deautodestruição. No êxtase da afir-mação de potência individual, aritualização alucinatória do corpodo “outro” e, igualmente, a descla-

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ssificação coletiva da vida: “—Quem vai no baile tem consciênciado risco que corre, tem de estarpreparado pra morrer... e a mulhe-rada gosta dos caras destemidos,por quê você acha que o bandidãotem as garotas mais bonitas dopedaço?”, era algo assim o quedizia, sorridente, um dos jovens en-trevistados6 .

Em outro contexto, o mesmodesejo de desafiar a morte, de tes-tar ao extremo seus limites: é aprática dos rachas, forma selvageme empobrecida dos esportesradicais, das corridas de Fórmula 1.Aqui, dirigir um carro equivale aganhar um passaporte para o mun-do masculino e competitivo do“quem chega antes a lugar nen-hum”, desejo cinematicamentemitificado, na época dos jovens semdestino, na figura de James Dean.Não é de se estranhar o impacto damorte do piloto Ayrton Senna: elehavia conseguido o gozo máximono domínio da máquina, juntoseram um só. Mas a glamourizaçãodo risco não lhe pouparia a vida.

As fugas cinematográ-ficas protagonizadaspelo jovem assal-tante LeonardoPareja7 tambémilustram umadas lamentáveisfaces do desejo desucesso e perigodesfrutado em um in-tenso e contínuo pre-sente, melhor ainda se propagadoad infinitum por registros mediá-ticos. A intensidade do vividoparece, em casos como este, supe-

rar a percepção da extensão e dasconseqüências do delito. Relatos dejovens de classe média envolvidosem ações criminosas tendem igual-mente a retratar esta união entrebanalização do delito e gosto pelorisco. Em um destes casos, oenvolvido dizia ter participado deassaltos “por curiosidade”, “para vercomo era a sensação do perigo”.Outro jovem, preso por partici-pação em um assassinato, declaravater matado por “bobeira”. Um ado-lescente de 17 anos, filho de umacomerciante, afirmava ter passadoa furtar “para poder me vestirmelhor”8 . Como dizia Pareja,diante do espelho narcíseo dascâmeras de tevê, “roubava pelogosto da emoção. E também por-que queria ter dinheiro, nãosuportava ficar sem dinheiro paraviajar, comer bem, ir ao cinema”.

Não por acaso, as praias cariocasforam o palco escolhido para o po-tente aparecimento dos “arrastões”,explosões juvenis de agregaçãoforçada, inclusão marcada pela ex-trema rapidez de movimentação epela efemeridade, com a ostentação

de signos distintivos,de uma identidade

cunhada na exclusão, de uma esté-tica própria, invadindo um espaçoconsagrado ao relaxamento e aoócio, explicitando que, muitasvezes e para muitos jovens, o limi-te entre prazer e risco, entre lazere combate está se tornando pordemais tênue. A movimentaçãojuvenil que tomou de assalto aspraias, fazendo delas um enormeplayground da diversão e dassociabilidades limítrofres, recebe-ria, já em sua primeira grandeocorrência, em 18 de outubro de1992, um domingo, esta denomi-nação, “arrastão”, movida pelasimilaridade entre a atitude atri-buída aos jovens — formando, comseus corpos em movimento, umarede para supostamente roubarpertences dos banhistas, literal-mente arrastando-os, expulsando-os, em pânico, das praias — e atradicional atividade dos pescado-res9 . Em setembro do ano seguintee no dia 12 de outubro do mesmo1993, algo voltaria a acontecer —nesta última data, em francaexibição para o registro mediático.Em 92, a grande cobertura, do“grande arrastão”, ocorreria no do-minical programa “Fantástico”,semanário de variedades da Rede

Globo, assistidodurante décadaspor inúmeras ge-rações de brasi-leiros e um dosbaluartes da in-tegração fami-liar em torno deexibições tele-visivas. Em 93,no compene-

trado “JornalNacional”,

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carro-chefe do telejornalismo destaque é a maior emissora de TV dopaís, a mesma Rede Globo.10

Nas praias, Ipanema e Arpo-ador, uma confusão, iniciada porcerca de cinqüenta garotos, não seestenderia muito. Mas talvez jáanunciasse o que iria ocorrer emoutubro — a encenação do con-fronto e o pânico dos que já sesentiam previamente ameaçados.Estes deveriam lidar com umsentimento paradoxal: à comoçãoante o extermínio dos meninos derua na Candelária e da chacina nafavela de Vigário Geral11 somava-se o pânico ante candidatospotenciais a exterminados. Se, em92, a classificação do “roubo co-letivo” prosperava, os aconteci-mentos de 93 apresentariam umaincômoda impermeabilidade inter-pretativa. A despeito da “crimina-lização” dos acontecimentos, forampouquíssimos os roubos compro-vados — se é que os houve. Astú-cia inesperada, a multidão dejovens exibia-se intencionalmentepara as câmeras e, mais ainda,através de um ritual de enfren-tamento cujos códigos só elescompartilhavam. Exibiam um po-der, um vigor, uma coreografia euma música que, naquele momen-to, os telejornais desconheciam.Seu teatro caótico era incom-preensível. O enfrentamento codi-ficado e a disputa intergrupal eauto-destrutiva uniam-se, repenti-namente, em um só corpo “desa-fiante”. Unidos pela linguagem davelocidade, seguiam juntos naconsecução de um desafio maior,da conquista de um alvo que, porvezes, parecia ser a própria velo-cidade, que lhes permitia avançarsobre o território “estrangeiro” —a praia e a tevê.

Foram muitas as tentativas de“desvendar” a potente invasão co-dificada, aquela contaminação queparecia ultrapassar, mais do que oespaço dos bailes, qualquer projetoou orientação prévia, qualquer co-mando externo. Os garotos que sevêem nas cenas estavam tomadosde uma alegria inebriante, de umêxtase súbito de reconhecimento,encantados com sua própria visi-bilidade, submersos no ritmo damultidão que colocavam emmovimento. O que os jovens leva-ram ao templo do ócio era tambémuma vivência muito particular datemporalidade. Os motivos de-sencadeadores posteriormente ale-gados (a briga de galeras, a extensãoda rivalidade de facções dacriminalidade organizada) seriamquestionados pelo desenrolar dosfatos e pelas investigações maisacuradas. Desfrutar do impactocausado pela movimentação — aexpulsão ou intimidação dosbanhistas, a presença das câmerasde tevê que corriam para acom-panhá-los — parecia ser realmen-te o que interessava, o que tornavamais saborosa a diversão. As gale-ras, mesmo os grupos sem nome eidentificação estavam cientes deseu “valor de marca”. Dispunham,na praia, de algo bem mais inte-ressante do que uma griffe paraostentar. Contrapondo-se ao des-frute da lentidão sensorial, doscorpos estendidos e distensionadosna areia, irromperam com suavivência de um presente total,vivência colada a sua pele, des-prendendo-se, como suor, de seuscorpos e gestos, da velocidade vio-lenta, da mobilidade contagiante,da intensidade de sua atuação.Este tempo sem futuro, êxtase or-giástico e por vezes auto-destrutivodo aqui-agora, literalmente choca-

va-se contra a multidão dos ban-histas, desafiando-lhes a sair dolugar, tanto simbólico quantoespacial.

Quando foram para as praias,pouco havia, para os garotos dasgaleras de favelas e subúrbios, dealgo que lembrasse o estilo de ves-tir que exibem nos bailes. Asbermudas, os tênis de griffe, ambossoariam por demais banais no lugarque ocuparam. O que exibiam erasua própria imagem — corporal, so-cial, racial — , era ela a própria in-cógnita, embalada pela ostentaçãode um código — as danças, osenfrentamentos, os cantos de gue-rra — que também soava descon-certante para grande parte daquelesbanhistas “da zona sul”. “Vamos in-vadir a praia dos playboys para mos-trar que a gente existe”, diria umdos jovens das galeras entrevista-das12 . Se havia semelhança entre oclima dos arrastões e aquele dos bai-les funk, esta não era marcada ex-clusivamente pela violência, maspropriamente pela festa.

Da estética àdizimação: auto-destruição e destruiçãodo outro

O que de mais preocupanteemerge destas análises é a possi-bilidade de que tal experimentaçãoda violência pela violência, doêxtase destrutivo de base auto-referencial, esteja se difundindo soba forma de um padrão de gosto ede obtenção de prazer, um “agen-ciamento do desejo”, como escre-vem Deleuze e Guattari em Milplatôs13 , alimentando uma lingua-gem da violência que, mesmo se

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estetizada em sua forma deaparecimento, tem resultados ob-jetivos de dimensão dramática eextensiva. Submergir ao poder doêxtase da violência equivale, naverdade, a um mergulho delibera-do na hiperexcitação sensorial deuma temporalidade sem cronologia.Mais do que uma ultrapassagem darazão, trata-se da ultrapassagem dalimitação corpórea — pessoal e dooutro —, a perda da referência dis-tintiva interior/exterior. É ela que,invariavelmente, se quer negar,como se, desafiando-a, o homem setornasse mais potente do que seulimite físico, e o “objeto da des-truição” significasse muito mais doque sua conformação objetiva. Emsituações como essa, a auto-destruição ou a destruição do corpodo outro parecem contar pouco.Narcisismo e niilismo se confun-dem. A embriaguez da potênciadestrutiva leva à ultrapassagem doslimites do corpo e da sociabilidade.Os corpos, parafraseando PaulVirilio14 , tornam-se eles mesmos“máquinas de guerra”. Acompetição ou o desejo devencê-la convertem-se emdesejo de destruiçãopura e simples, nestecombate do qualse pode sair des-troçado. Des- truir émais importante que vencer.

Outro episódio de violênciacoletiva ocorrido no Brasil traçapontos de contato com os casosapresentados, corroborando algu-mas de suas proposições e mostran-do que, outras, são ainda novelos aserem longamente desenredados.Trata-se da eclosão, televisibilizada,de confrontos violentos em jogos defutebol brasileiros, envolvendogrande número de torcedores dos

times que disputavam a partida.Nestes episódios, o “jogo daviolência” que, nos arrastões, temo caráter do enfrentamentoagressivo e ritualizado, evolui parauma brincadeira mais arriscada,mais letal; a diversão torna-se umjogo de destruição e morte.

O mais impressionante deles,de maior proporção e repercussãonos media, aconteceria no dia 20de agosto de 1995, no estádio doPacaembu, em São Paulo, após adecisão da Supercopa de Junioresentre Palmeiras e São Paulo. Estefenômeno específico — abatalha campals a n g r e n t a eexplosiva, como saldo de 102feridos, umdos rapazesag re -

d i d o sdiante das

câmeras vindoposteriormente a

falecer — foiveiculado, direto e ao

vivo, pelas redes de tevê. Ascenas que se viram, submetidas

posteriormente aos mais diversosrecursos técnicos (iluminação,“congelamento”, câmera lenta,

repetição), mostravam umamovimentação veloz e desordena-da, um clima de guerra desconexaestampado nas feições dos agressores-vítimas, em que a violênciaultrapassava qualquer bandeira e“filiação” prévia. Quando a violênciacontagiou a massa de torcedores,mais vigorosa do que assustada, maisviolenta que organizada, aquelesjovens nada pareciam “defender”, to-mados de uma ânsia destrutiva quecolocava em risco sua própriaintegridade física.

Se esta violência extremada,explosiva, não pode ser considera-da um componente estruturalperene, seja das organizadas, sejado comportamento do torcedorcomum, parece-me inegável que, nomomento em que explodiu oconflito intergrupal, o enfrentamentode dimensão coletiva, eram aviolência e o desejo de enfren-tamento e destruição

do outro oag regador

comum, aindaque circunscrito e

circunstancial, que em-balavam e u n i a m os

jovens adversários. Se é cícli-ca ou esporádica a adoção de um

comportamento explosivo de gran-des dimensões — causando a destrui-ção de estádios e o enfrentamentodireto, o ataque físico intergrupal —, a presença da violência como atode agressão brutal não está naverdade excluída do cotidiano“uniformizado”. É este o quadroque nos apresenta um ex-membrode organizadas. O portrait de umbárbaro a tempo parcial oferecidoregistra, já em 94, um ano antes dagrande explosão do Pacaembu, que“as torcidas organizadas perderamqualquer limite para suas ações vio-lentas, porque viram que a chanceda impunidade é muito grande”. Os“personagens” que dão vida a estafala são todos muito jovens e muitoviolentos, desprovidos de pudor,arrependimento ou algo que sepossa chamar “consciência crítica”.São garotos quase felizes com adestruição que promovem, quasedespreocupados com as implicaçõesde seus atos. São movidos por umacoragem absoluta que lhes éoutorgada pelo pertencimento à tor-cida, pelo empunhar de suabandeira, pelo entoar de seu hino,

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a camisa do time passando de sím-bolo integrador a escudo que lhesprotege do medo. Mas, quando to-mados de excitação após um com-bate intergrupal, após uma partida,mesmo que “pacífica”, o desejo daviolência eventualmente obscure-ce a identidade grupal. Em momen-tos como este, o alvo da agressão,o receptáculo da violência quequerem a todo custo extravasarpode ser o torcedor comum ou, atémesmo, os colegas de organizada.

Sem descartar as diferenças eparticularidades de cada agru-pamento — tanto em termos desua organização interna, quantode sua inserção e significadosócio-cultural — pode-seafirmar que o tipo deocupação do espaço feitapor torcidas e por par-ticipantes do segundoarrastão causou um impactodisruptivo semelhante. Ambos,valendo-se do «efeito medium»que despertavam, cristalizaram, aovivo e nas telas, uma linguagem daviolência potente e veloz, auto-referencializada mas, nem por isso,anômica. Regras existiam, mas elaseram definidas pelo grupoconflitivo, pela circunstância edesdobramentos da «batalha».

Em um caso, o palco do espe-táculo foi a praia, em outro, oestádio e o campo de futebol; am-bos, lugares de lazer. O primeiro,dedicado ao ócio, ao relaxamentocorpóreo; o outro, dedicado àpaixão da disputa, dos corposretesados à espera da catarse. Napraia, havia a sensualidade àmostra, distendida, oscorpos que se olham enão se tocam. Nocampo, a sexua-

lidade tensa, um tanto misógina,feita de corpos em atrito, de des-cargas em uníssono. Na praia, oscorpos despidos, distinguindo-sepelo formato, pelos maiores oumenores cuidados, demarcadospelo atributo da saúde, da belezafísica. No campo, os corpos vesti-dos, uniformizados, as roupas emseu valor ritual, osten-tando a integração-diferenciação atravésdos emblemas do “ti-me”. Nos dois “lugares”emergia a ocupaçãoagressiva, desafiadora.

Uma, anômalaem seu acon-

tecer, não eliminava o código facil-mente reconhecível, compartilhadopor milhões de brasileiros, como aultrajá-lo; a outra, era por si codifi-cada, falava de coisas que não se“conhecia” ou não se assimilava,mas trazia consigo o código decorpos em estado de enfrenta-mento, ostentando o valor diferen-cial de suas próprias característicasfísicas, como a devolver, por forçada velocidade e da ocupação vio-lenta, o estigma que a eles eraimputado. Os bárbaros que coloni-zaram nossos vídeos, estes sa-queadores do instante, não haviamde fato “perdido o controle”. Elesdominavam, como ninguém, otempo e o espaço, embalados peloanonimato e pelo pertencimento aogrupo, mas, mesmo assim, exibindoesta alma coletiva, este “rosto”transfigurado para as câmeras.

Citas

1 Este rap consta de fitaapreendida pela políciacarioca em dezembro de 95,contendo detalhes da reto-mada de bocas-de-fumo porum comboio do ComandoVermelho, poderosa facçãodo narcotráfico no Brasil.A “operação” resultara namorte de oito integrantesdo grupo rival, todos de-capitados. Nesta mesmaárea de conflito haviam

sido baleados torcedores doSantos, um time de futebol do Estado

de São Paulo.

2 Este artigo contém umapequena síntese de pesquisas

desenvolvidas pela autora,que contaram com o

apoio financeiro deCnpq e Fapesp. São

várias as refe-rências docu-

mentais ebibliográ-

f i c a sque

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sustentam este trabalho. Por limitaçõesde espaço, não se encontram aqui repro-duzidas. Para uma visão detalhada desteaporte, consultar a tese de doutorado Es-tética da violência: por uma arqueologiados vestígios (São Paulo, ECA/USP,1998), de nossa autoria.

3 Obviamente, a violência não é o únicofator de coesão. Também o podem ser adiversão, o lazer, as relações de amizade,o desejo de encontro, entre outros. Maso que se observa é a tendência de que ainteração social se desloque das ruas para“interiores”, privados e pessoais, das“tribos” aos espaços fechados como osbailes, os shoppings, as casas. Esta possi-bilidade, que alguns autores classificamcomo universal, é mais clara em países ecidades nos quais o espaço público é des-valorizado e deteriorado, quando muitopassando por processos e projetos deassepsia.

4 Documentado no caderno Folhateen dojornal Folha de S. Paulo, em 24 de julhode 1995.

5 O índio, morto após ser incendiado pelogrupo de adolescentes, dormia nas ruasda cidade, sob a marquise de um pontode ônibus. O episódio gerou profundaindignação no país.

6 Em outros cantos da cidade, adolescen-tes moradores de condomínios fechadosde alto padrão envolvem-se em acidentesde carro, em atropelamentos, colecionamacusações de vandalismo. Em um destescasos, garotos entre 13 e 17 anos foramacusados de espancar o faxineiro docondomínio quando este tentava tirar oskate de um deles, de uso proibido nagaragem do prédio. Outro episódio queveio a público é o do grupo de adolescen-tes que, numa sucessão de “brincadeirasviolentas”, teria causado o incêndio doapartamento do zelador de umcondomínio vertical.

7 Este jovem criminoso, articulado, bem-educado e de boa aparência, conquistou,em sua breve “carrreira”, uma incrívelnotoriedade, manipulando com exce-lência seus aparecimentos na mídia. Apósarregimentar uma legião de fãs extra-muros, foi morto a tiros no interior doCepaigo (Centro Penitenciário Agroin-dustrial de Goiás), em dezembro de 1996.

8 O Estado de S. Paulo, 27/07/96; Folha deS. Paulo, 03/09/96.

9 Nos anos de 92 e 93 a referência a uma“onda de arrastões” estava presente emvários veículos da imprensa nacional.Fazia-se referência, neste caso, a oco-rrências mais marcadamente criminais ouàquelas que configurassem uma “briga degangues”, ambas esporádicas, localizadas,mas persistentes. Não disponho de da-dos que permitam aferir a procedência detal classificação, mas tanto a revisão bi-bliográfica realizada quanto conversasinformais com cariocas levam-me asuspeitar que houvesse, nestadenominação, um forte viés alarmista egeneralista. Os episódios que discuto —a movimentação de outubro de 1992 eaquela de outubro de 1993 —, além deoriginais em termos de seu impactomediático, posto que houve cobertura aovivo e destacada inserção no noticiáriotelevisivo, possuem o diferencial de teremse constituído como fenômeno dedimensão coletiva, envolvendo grandenúmero de jovens, agrupados ou não em“galeras”. Em 93, a pesquisa realizadapermite constatar que não se tratava deuma movimentação com finalidade cri-

minal determinante ou significativa.Mas, neste ano, era clara a consciênciado “efeito media” que se poderia obtercom a manifestação.

10 No caso da cobertura televisiva, mesmoconsiderando-se que outras emissorasveicularam os episódios, o campoespectorial atingido por tais programas ea supremacia técnica da Rede Globolevam diversos analistas a valorizarem,justificadamente, este impactodeflagrador, tanto em termos da “auto-celebração” compartilhada, quanto naimportância que tal visibilidade específi-ca adquiriu, seja para os participantes,seja para outros setores da população, quenão o presenciaram diretamente.

11 Essas chacinas se tornaram paradig-máticas da situação da violência no Bra-sil. Representaram uma ferida psíquica eum divisor de águas inequívoco, atestan-do o trágico espraiamento da impunidadee dos atos de violência cega quereferendam uma política branca dedizimação.

12 OESP, 21 de outubro de 1993.

13 Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia.Vol. 3. Rio de Janeiro, Editora 34, 1996.

14 Línsecurité du territorire. Paris, Galilée,1989.

Escultura y dibujo de Germán Londoño:“El último de su especie” (1975) y

“Cazador sobre un río” (1995)