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Volume 6 n o 1 Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus Leandson Vasconcelos Sampaio 1 Resumo: O trabalho visa apresentar nas obras do romancista-filósofo Prêmio Nobel de Literatura em 1957 Albert Camus (1913-1960) a relação entre Ética, Literatura, Engajamento e Responsabilidade, levando em consideração que o pensador franco-argelino está inserido em uma tradição de escritores que utilizam além dos ensaios filosóficos, também textos literários como método de pensamento, ressaltando a sensibilidade através da narratividade literária. Desse modo, mostraremos notrabalho como há no pensamento camusiano uma busca pelo equilíbrio entre a razão e a sensibilidade a partir de uma escrita imag-ética, tanto através dos ensaios filosóficos, quanto através da sensibilidade literária. A relação entre Filosofia e Literatura caracteriza no filósofo africano uma fusão entre pensamento e a imagem literária, por isso a escrita imag-ética de Camus faz parte do seu método de filosofar, pois a imagem dá substância ao pensamento. Mostraremos também que, enquanto intelectual engajado, desde a sua juventude na Argélia, Camus utiliza seus textos literários como forma de posicionamento político e de denúncia, pois, para ele, escrever é agir. Considerando que, para ele, mesmo o silêncio é também um posicionamento político, pretendemos mostrar como o engajamento camusiano com a Literatura está ligado a um ethos da responsabilidade do escritor. Para Camus, o escritor é livre para escrever, mas há sempre uma responsabilidade ético-política na escrita. Em uma época em que o potencial bélico do mundo nunca foi tão potente, incluindo, sobretudo, as bombas-atômicas, para Licenciado, bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). 1 140

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Volume 6 no 1

Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em Albert Camus, pp. 140-152

Filosofia e literatura: ética, engajamento e responsabilidade em

Albert CamusLeandson Vasconcelos Sampaio 1

Resumo: O trabalho visa apresentar nas obras do romancista-filósofo Prêmio Nobel de Literatura em 1957 Albert Camus (1913-1960) a relação entre Ética, Literatura, Engajamento e Responsabilidade, levando em consideração que o pensador franco-argelino está inserido em uma tradição de escritores que utilizam além dos ensaios filosóficos, também textos literários como método de pensamento, ressaltando a sensibilidade através da narratividade literária. Desse modo, mostraremos notrabalho como há no pensamento camusiano uma busca pelo equilíbrio entre a razão e a sensibilidade a partir de uma escrita imag-ética, tanto através dos ensaios filosóficos, quanto através da sensibilidade literária. A relação entre Filosofia e Literatura caracteriza no filósofo africano uma fusão entre pensamento e a imagem literária, por isso a escrita imag-ética de Camus faz parte do seu método de filosofar, pois a imagem dá substância ao pensamento. Mostraremos também que, enquanto intelectual engajado, desde a sua juventude na Argélia, Camus utiliza seus textos literários como forma de posicionamento político e de denúncia, pois, para ele, escrever é agir. Considerando que, para ele, mesmo o silêncio é também um posicionamento político, pretendemos mostrar como o engajamento camusiano com a Literatura está ligado a um ethos da responsabilidade do escritor. Para Camus, o escritor é livre para escrever, mas há sempre uma responsabilidade ético-política na escrita. Em uma época em que o potencial bélico do mundo nunca foi tão potente, incluindo, sobretudo, as bombas-atômicas, para

Licenciado, bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).1

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Camus, que foi Editor-chefe do jornal Combate, - principal jornal clandestino da Resistência à Ocupação nazista na França - a responsabilidade ética do escritor possui uma dimensão fundamental de compromisso para com a coletividade. Neste horizonte, como a escrita camusiana é uma escrita ligada às questões do presente, mostraremos a dimensão ética da escrita e a sua relação com a escrita literária a partir do diagnóstico do seu tempo, que necessitava de respostas para questões decisivas. Como a reflexão filosófica camusiana trata sempre de questões decisivas, o que está em jogo na ética do escritor engajado é o combate à legitimação da violência, sobretudo, a que parte de sistemas filosófico-políticos totalizantes, tanto de direita quanto de esquerda, tema este que abordaremos a partir dos editoriais jornalísticos intitulados Nem Vítimas, Nem Verdugos (1947).

Palavras-chave: Camus, ética, literatura, política

ó se pensa através das imagens. Se queres ser filósofo, escreva romances.” (CAMUS, s/dC: 18), escreveu o Albert Camus em seus Cadernos, aos 23 anos. Neste horizonte, para o romancista-filósofo

Prêmio Nobel de Literatura em 1957, em seu método de pensamento a imagem literária está intrinsecamente ligada ao seu método de filosofar buscando um equilíbrio entre a sensibilidade literária e a reflexão filosófica, não reduzindo assim a Filosofia apenas à análises logicistas, escolásticas e exegéticas , ampliando a 2

dimensão da escrita em sua “filosofia transposta em imagens” (CAMUS, 1998: 133), havendo no pensamento camusiano “uma oscilação constante entre reflexão e escrita ficcional” (PINTO, 1998: 21). Desse modo, a Literatura camusiana não é então uma mera ilustração de sua Filosofia, faz parte de uma articulação intrínseca em seu método de pensamento:“Explicam-me este mundo com uma imagem. Então percebo que vocês chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. Tenho tempo de me indignar? Vocês já mudaram de teoria” (CAMUS, 2004: 34). Ou seja, a articulação entre Filosofia e Literatura se dá através do pensamento imagético, em uma fusão entre a reflexão filosófica e a sensibilidade da narratividade literária. Diz Camus em O Mito de Sísifo:

Os grandes romancistas são romancistas filósofos, isto é, o contrário de escritores de tese. Assim Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievski, Proust, Malraux, Kafka, para só citar alguns. [...] A escolha que eles fizeram de escreverem em imagens em vez de escreverem em raciocínios é indicadora de um certo pensamento que lhes é comum na [...] convicção da mensagem instrutiva da aparência sensível. (CAMUS, 2004: 122).

Como ressalta Nilson: “O emprego de imagens em Camus corresponde adequadamente a sua posição 2

de valorizar o sensível e não reduzir a filosofia à dimensão lógica”. (SILVA, 2013, p. 9. Disponível em: <http://migre.me/gm7gl>. Acesso em: 1 de Ago. 2017. 11:00h).

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Nesta perspectiva, compreendemos Camus como artista-filósofo, pois com a imagem artística da narratividade literária Camus transfigura a realidade enquanto filósofo-criador. “O filósofo, mesmo que seja Kant, é criador. Tem seus personagens, seus símbolos e sua ação secreta.” (CAMUS, 2004: 115). Ou seja, não podemos separar o pensamento camusiano em uma hierarquia e sim tratar os seus escritos unindo a criação artística e a Filosofia. A criação artística, diferentemente do que se pensa no senso comum, faz parte de um modo de pensar a realidade e não de fugir dela, sendo o ato de escrever uma forma também de inserir-se no mundo, não de escapismo.

Aí reside o engano de uma certa crítica que coincide com a visão que o senso comum tem do romance: evasão e desligamento do mundo, separação da vida, edulcoração que seria ao mesmo tempo traição da realidade. Compreender dessa maneira o romance é deixar-se guiar pela lógica binária que governa os nossos hábitos: ou o mundo real, ou a ficção, com a exclusão completa de um pelo outro. Ora, a contradição presente na atitude revoltada e expressa na arte nos convida a considerar os dois elementos ao mesmo tempo. A criação humana não é sempre e necessariamente a produção de uma ilusão. (LEOPOLDO, 2004: 230-231).

Assim, entendemos que a Literatura não se desliga do mundo, ao contrário, a narratividade literária é também uma forma de inserção e comprometimento com realidade. Em outras palavras, a criação romanesca também está comprometida com a realidade prática, possuindo assim uma tarefa ética:

A tarefa ética deve ser entendida em estrita conexão com o envolvimento do homem no conhecimento da realidade humana: sendo a existência o fundamento compreensivo desse conhecimento, aquilo que esse fundamento nos revela acerca da realidade humana nos compromete com a sua realização, principalmente porque a compreensão da existência não significa apropriar-se de um dado, mas comprometer-se com uma tarefa, com algo que temos de fazer, e não apenas contemplar. É nesse sentido que a tarefa ética da literatura acompanha o caráter eminentemente prático do conhecimento do homem: escrever é agir. (LEOPOLDO, 2004: 258).

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Desse modo, podemos dizer que a articulação entre Filosofia e Literatura desvela um êthos que também está ligado ao engajamento camusiano, levando em 3

consideração também que para Camus escrever é agir, pois “cada palavra engaja.” (CAMUS, 1944: 136 apud GERMANO, 2008: 267) . Neste sentido, ao decidir 4

escrever, o escritor sai de sua esfera individual e passa para a esfera da coletividade. A sua obra que fomenta uma visão de mundo também demonstra os seus posicionamentos sobre o mundo direta ou indiretamente, tendo em vista que até mesmo o silêncio é um posicionamento . “No sentido estrito, o escritor engajado é 5

aquele que assumiu, explicitamente, uma série de compromissos com relação à coletividade, que ligou-se de alguma forma à ela por uma promessa e que joga nessa partida sua credibilidade e sua reputação” (DENIS, 2002: 31). Em outras palavras, escrever é um ato e este ato possui as suas consequências a partir dos posicionamentos tomados pelo escritor:

engajar-se significa também tomar uma direção. Há assim no engajamento a idéia central de uma escolha que é preciso fazer. No sentido figurado, engajar-se é desde então tomar uma certa direção, fazer a escolha de se integrar numa empreitada, de se colocar numa situação determinada, e de aceitar os constrangimentos e as responsabilidades contidas na escolha. Por conseguinte e sempre de modo figurado, engajar-se consiste em praticar uma ação, voluntária e efetiva, que manifesta e materializa a escolha efetuada conscientemente. (DENIS, 2002: 32).

Neste sentido, diz Amitrano em nota de rodapé: “Ao designar um êthos em Camus, pressuponho que 3

ele possua em sua filosofia a inserção de um pensamento da práxis, isto é, a inserção de uma teoria cujo objeto seja a ação humana. Com a designação de êthos é possível visualizar, em seu pensamento, algo que se difere de uma posição teorética; isto é, de uma Metafísica ou Física. O que, de fato se vê é a inserção de um pensamento da práxis, uma teoria cujo objeto é a ação humana e pela qual se investiga aquilo que, de certo modo, constitui uma forma de política”. (AMITRANO, 2014: 26-27).

CAMUS, A.Combat Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8: 136.In: 4

GERMANO, Emanuel Ricardo. O pensamento dos limites: contingência e engajamento em Albert Camus. Tese de Doutorado - Faculdade de F., Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2008.

Ressalta Denis: “Toda obra literária, qualquer que seja a sua natureza e a sua qualidade, é engajada, 5

no sentido em que ela é portadora de uma visão do mundo situada e onde, queira ela ou não, se revela assim impregnada de posição e escolha. Para o escritor, não há escapatória possível, mesmo pelo silêncio”(DENIS, 2002: 36).

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Camus, que foi engajado desde a sua juventude na Argélia e posteriormente 6

como Editor-Chefe do jornal do jornal Combat (principal jornal clandestino da Resistência durante a Ocupação nazista na França), sempre assumiu o seu compromisso com a realidade presente . A urgência do momento presente está ligada 7

à tarefa ética da escrita engajada que rompe com qualquer tentativa de imparcialidade da escrita, pois “a preocupação com a posteridade dá lugar à consciência da urgência, a reinvindicação de autonomia e de distância transforma-se numa exigência de responsabilidade e de participação, a postura de imparcialidade anula-se” (DENIS, 2002: 67). Com efeito, a escrita engajada também possui a sua modéstia ao comprometer-se com a realidade presente. Como comenta Denis:

O escritor engajado renuncia, portanto, a apostar na posteridade e escolhe resolutamente responder às exigências do tempo presente. E ele assume o sacrifício da sua glória póstuma como inerente ao seu engajamento, vendo aí um salutar exercício de modéstia que atesta a sua vontade de reunir-se ao mundo dos homens e de tomar parte nos debates que o agitam. (DENIS, 2002: 41).

Assim, a escrita engajada possui uma responsabilidade ética para com o presente e para com a coletividade, recusando o conforto da irresponsabilidade. Na Conferência “O Artista e seu tempo” na Universidade de Uppsala na Suécia em 1957, Camus faz a reflexão sobre o papel do escritor engajado e a responsabilidade do escritor, ou melhor, dos artistas, pois “o tempo dos artistas irresponsáveis passou” (CAMUS, s/dB: 177). Lembrando que “quando Camus diz ‘artista’ ele também diz ‘filósofo’” (GERMANO, 2008: 183), a crítica camusiana também se dirige aos filósofos com as suas meras formalidades e abstrações que servem como fuga da realidade:

Os fabricantes de arte (ainda não disse os artistas) da Europa burguesa, antes e depois de 1900, aceitaram, assim, a

Sobre isto, diz Aronson: “Jornalista engajado, Camus teve seu papel na libertação de acusados em 6

mais de um caso importante. Entre 5 e 15 de Junho de 1939, ele escreveu uma série de reportagens sobre a fome e a pobreza na região costeira e montanhosa da Kabylia. Estes estiveram entre os primeiros artigos detalhados já escritos por um argelino europeu descrevendo as condições miseráveis de vida da população nativa. Camus conclamou a administração colonial a oferecer um salário mínimo, a construir escolas e a distribuir comida.”.(ARONSON, 2007: 52).

Como ressalta Denis: “Com efeito, engajando-se, o escritor se decide a ir ao encontro das exigências 7

do tempo presente. Ele deseja que a sua obra aja aqui e agora e ele aceita, em compensação, que ela seja situada, legível num contexto limitado e, portanto, ameaçada por uma obsolescência rápida. Disso resulta que o escritor engajado escolheu de qualquer modo sacrificar a posteridade da sua obra para responder à urgência do momento.” (DENIS, 2002: 79).

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irresponsabilidade, porque a responsabilidade supunha uma rotura esgotante com a sua sociedade (os que realmente romperam chamavam-se Rimbaud, Nietzsche, Strindberg e sabe-se o preço que pagaram). É dessa época que data a teoria da arte pela arte, o divertimento de um artista solitário, é bem justamente a arte artificial de uma sociedade fictícia e abstrata. O seu resultado lógico é a arte dos salões ou a arte puramente formal que se nutre de preciosismos e de abstrações e que acaba pela destruição de toda a realidade. (CAMUS, s/dB: 148).

Ou seja, a crítica camusiana à “arte pela arte” é também uma crítica à arte submissa ao mercado, levando em consideração que os artistas já não podem se dar ao luxo da irresponsabilidade, sobretudo, em uma época perpassada por grandes guerras, estados totalitários policialescos, bombas atômicas, Campos de Concentração etc. Por isso, diz Camus na Conferência que “Racine, em 1957, pediria desculpa de ter escrito Bérénice em vez de combater em defesa do Edito de Nantes” (CAMUS, s/dB: 140-141). Neste horizonte, a recusa da irresponsabilidade é também uma recusa da passividade intelectual que assombra o seu tempo, que é também uma característica da escrita engajada. Assim, comenta Denis:

O que caracteriza desde então o engajamento é a recusa da passividade com relação a este inevitável envolvimento no mundo. Já que não é possível eludir a escolha, é preciso realizá-la voluntariamente e lucidamente, melhor do que ser escolhido pelas circunstâncias ou pela situação. (DENIS, 2002: 36).

A responsabilidade ética do escritor engajado para com a coletividade também está ligada ao risco de escrever, sobretudo, em épocas de cerceamento contínuo da liberdade, por isso, em seus Discursos da Suécia (1957) Camus diz que “é preciso que assumamos todos os riscos e trabalhos da liberdade” (CAMUS, s/dB: 175). Havia sempre o perigo rondando os escritores engajados, principalmente os escritores clandestinos . Camus chegou a ser ameaçado de morte por conta dos seus 8

Ressalta Aronson: “Ao publicar muitos artigos clandestinos, frequentemente sob circunstancias 8

perigosas, para fortalecer o povo contra os alemães ou para encorajá-los, eles se habituaram a pensar que escrever é um ato, e adquiriram o gosto pela ação. Longe de fingir que o escritor não é responsável, eles exigiram que ele esteja pronto a cada momento para pagar pelo que escreve. Na imprensa clandestina não havia uma só linha que não pusesse em risco a vida do autor ou do impressor ou daqueles que distribuíam os panfletos da Resistência; assim, após a inflação dos anos entre guerras, quando as palavras pareciam papel-moeda, pelo qual ninguém podia pagar em ouro, a palavra escrita reencontrou o seu poder” (ARONSON, 2007: 94).

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escritos , as publicações precisavam de um cuidado extra.“Criar, atualmente, é criar 9

perigosamente. Toda publicação é um ato e este ato expõe às paixões de um século que nada perdoa”. (CAMUS, s/dB: 140). Nesta perspectiva, a ética da escrita engajada está também no fato de haver uma responsabilidade onde as palavras necessitam ser mensuradas. “Essa consciência da responsabilidade do órgão de imprensa diante do público nascera na luta da imprensa clandestina. Nessa época as palavras deviam ser pensadas, pois um engano poderia significar a prisão ou a morte” (BARRETO, 1971: 127). Neste sentido, diz Camus em um de seus Editoriais do jornal Combat:

O que nós queremos? Uma imprensa que seja clara e viril e escreva em um estilo descente. Quando nós sabemos, como nós jornalistas temos conhecimento nesses últimos quatro anos, que escrevendo um artigo pode trazer você a prisão ou te matar, fica claro que as palavras tem valor e devem ser mensuradas cuidadosamente. O que nós estamos esperando é restaurar a responsabilidade jornalística com o público. (CAMUS apud ARAÚJO, 2009: 4 apud LÉVI-VALENSI, 2002: 22).

Com efeito, podemos dizer que o que Camus diz sobre a responsabilidade jornalística também vale para a Filosofia e a Literatura na qual, neste sentido, as palavras também devem ser cuidadosamente mensuradas. A responsabilidade para com as palavras em Camus está ligada aos escritores que legitimam a violência para fomentar ideologias políticas. As palavras irresponsáveis podem gerar “banhos de sangue” e terror em um mundo com potencial bélico sem precedentes na história, por isso é preciso assumir o compromisso ético com as palavras dos escritores engajados. Nos Editoriais do jornal Combat intitulados Nem Vítimas, Nem Verdugos, Camus faz a reflexão sobre o avanço das ciências belicistas que os Estados utilizam como técnica do medo. Diz Camus: “O século XVII foi o século das Matemáticas, o século XVIIIo século das Ciências Físicas, e o século XIX o da Biologia. O nosso século XX é o século do medo” (CAMUS, s/dA: 163). Assim, Camus ressalta o avanço científico aliado aos Estados totalitários sustentados por ideologias, por isso ele diz que “a ciência é certamente uma causa do medo, porque os seus últimos progressos técnicos obrigaram a negar-se a si mesma, e porque os seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a destruição da terra inteira” (CAMUS, s/dA: 163). A racionalidade que proporcionou o avanço científico também trouxe o medo como técnica aliada aos Estados belicistas:

Ressalta Todd: “No hotel, por telefone e por escrito, Camus recebeu ameaças de morte. Ele poderia 9

ser sequestrado”. (TODD, 1998: 638) e “No exterior do Círculo, cerca de mil opositores se agitam. Eles gritam: - Mendès fuzilado! – Morra Camus!”. (TODD, 1998: 639).

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O ponto de partida de Nem vítimas nem carrascos é a constatação, que será também a origem de O Homem revoltado, que nossa época se caracteriza pelo assassinato lógico, isto é, pela justificação filosófica da violência. A política está, com efeito, dominada pelas ideologias – o liberalismo ou o marxismo – que defendem, em nome da liberdadeou da luta contra a alienação, certas formas de violência. Além disso,estas ideologias não se limitam a legitimar as atrocidades, elasimpõem também o silêncio aos que são neutros ou que gostariam dedenunciar os exageros do seu próprio campo. (WEYEMBERGH, 1998:121-122, tradução nossa)

Neste horizonte, “Camus prossegue notando que a civilização contemporânea de seu tempo se aprimora no ideal hobbesiano de tornar, mais do que nunca, o medo, uma técnica de controle social” (GERMANO, 2008: 237). O medo está ligado à engrenagem do Estado que utiliza de forma sistemática as técnicas, sobretudo, bélicas, de controle e ameaça à vida de diversas formas, pois, afirma, ainda em O Século do Medo, que “se o medo em si não pode ser considerado como uma ciência, não há dúvida de que ele seja, entretanto, uma técnica” (CAMUS, s/dA: 164). As engrenagens mortíferas do Estado dominaram o século XX: “Este homem mecanizado, dominado pelo medo, traumatizado pela guerra,silenciado pela indiferença a quem se dirige Camus, ‘segrega desumanidade’, pois, seencontra aprisionado pelo fatalismo. A engrenagem da morte dele se apoderou”. (GERMANO, 2008: 237).Continua Germano:

Do ponto de vista da responsabilidade do intelectual, para Camus, vencer a técnica do “medo”, significa, então, testemunhar a injustiça de ambos os lados da“trincheira”, cruzando o fosso que separa as ideologias e que impõe o silêncio comedido diante da injustiça. (GERMANO, 2008: 251).

Então, a tarefa ética do intelectual engajado é a de romper com o silêncio e enfrentar o medo que se concretiza no cotidiano gerando um silêncio que é também ruidoso. Como ele afirma: “Penso, no entanto, que em vez de condenar o medo, devemos considerá-lo como um dos primeiros elementos da situação e, por conseguinte, tentar reagir contra ele” (CAMUS, s/dA: 168). Por isso, é necessário fomentar o diálogo em meio ao que ele chamou de “uma imensa conspiração de silêncio, provocada pelos mesmos a quem ela interessa” (CAMUS, s/dA: 166). No editorial intitulado O caminho do diálogo em Nem Vítimas, Nem Verdugos, Camus

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afirma que “Sim, o que é necessário combater hoje é o medo e o silêncio [...]. O que é necessário defender é o diálogo e a comunicação universais dos homens entre si. A servidão, a injustiça, a mentira, são pragas que cortam a comunicação e impedem o diálogo” (CAMUS s/dA: 204-205). É necessário o diálogo para combater o medo e o silêncio, engajando-se em um mundo que “nos parece ser conduzido por forças cegas e surdas, incapazes de ouvir os gritos de alerta, os conselhos e as súplicas” (CAMUS, s/dA: 165). Na reflexão camusiana “delineia-se uma concepção intransigente da responsabilidade do intelectual. Trata-se de emitir uma mensagem clara aos filósofos de plantão – que molham suas penas no sangue e não na tinta” (GERMANO, 2010: 32). Dito de outro modo, Camus faz uma dura crítica aos intelectuais que buscam legitimar a violência.

Em Nem vítimas,Nem Carrascos a indignação de Camus está dirigida contra oslegitimadores profissionais de plantão que, em robe de chambre, incentivam eplanejam, de seus escritórios, o derramamento de sangue – alheio, seguramente; para Camus, os intelectuais como Sartre fazem parte da engrenagem da morte que se autolegitima e absolve pelo conceito de finalidade histórica que constroem da clausura tépida dos gabinetes. São mais uma faceta da tecnologia do medo que, dos homens às técnicas, mobiliza para matar. (GERMANO, 2008: 140).

Camus coloca-se em combate direto aos escritores que exaltam a violência em nome de abstrações teóricas. A tarefa da responsabilidade ética do intelectual engajado insere-se no combate à legitimação da violência em nome de ideologias totalizantes.

É neste sentido que podemos compreender o texto de Camus como um ato emdefesa de uma concepção rigorosa, e no limite, intransigente, da responsabilidadeintelectual. Enquanto, em nome de uma moral da responsabilidade, do lado de Sartre eMerleau-Ponty legitima-se, no período, a violência “progressiva”, Camus se insurgecontra a filosofia da legitimação do assassinato: o que se mostra inadmissível, comodissemos, é que, em robe de chambre, os filósofos, de seus escritórios, legitimem eincentivam o derramamento de sangue: sobretudo se é o sangue alheio que está emquestão. (GERMANO, 2008: 241).

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O filósofo franco-argelino em Nem Vítimas, Nem Verdugoscombatetodas as filosofias que legitimam a morte, sobretudo, por trás do conforto das Academias ou dos escritórios dos jornais, pois estes intelectuais não possuem “nenhuma imaginação no que diz respeito à morte dos outros. Este é o mal do nosso século, tal como o fato de amar pelo telefone, de não trabalhar a matéria, mas a máquina de matar e de ser morto por procuração” (CAMUS, s/dA: 174). A responsabilidade ética do intelectual exige um imperativo intransigente contra as engrenagens da morte em nome do Estado.Por isso, Camus recusa “um mundo em que o crime é legal e que a vida humana é considerada como fútil” (CAMUS, s/dA: 170). Ele coloca-se em seus Editoriais de forma crítica com relação a todos os intelectuais que legitimam a morte.

Esta “assepsia de gabinete” dos editores da Temps Modernes, que pretendesujar as mãos com sangue dos outros, certamente, contrasta com a atitude camusiana.Enquanto do Deux Margots, do Flore ou da cour aux ErNeSt, os elegantes editores daTemps Modernes, passado o sufoco, seus amigos incentivam tecnicamente oassassinato lógico deseus pares revolucionários, compensando sua inação por umfurorteórico, Camus, que conhece bem mais de perto as exigências dahistória,encarnadas, seja na miséria do subúrbio da África do Norteaonde nasceu e se criou,seja nas alcovas da Resistência parisiense,esforça-se para construir uma salvaguardafilosófica da vida.(GERMANO, 2008: 242).

Há uma dimensão ética fundamental de preservação da vida na filosofia ético-política de Camus, por isso ele critica todas as filosofias que incentivam a violência, sobretudo, as que não levam em consideração a possibilidade inclusive de destruição do mundo em guerras nucleares.Do ponto de vista antropológico, a violência é inevitável, entretanto, do ponto de vista da responsabilidade ética do escritor engajado ela não deve ser legitimada, sobretudo, em nome de ideologias, por isso ele diz que “as pessoas, como eu, desejariam um mundo, não em que se tivesse deixado de matar (nós não somos tão ingênuos como isso!), mas um mundo em que o assassínio não fosse legitimado” (CAMUS, s/dA: 174-175). Assim, a reflexão camusiana nos leva a fazer uma reconsideração da noção de utopia política, considerando o avanço científico-bélico que se tornou a pior face negativa da Ciência no século XX.

É, pois necessário admitir que a recusa da legitimação do crime nos obriga a reconsiderar a noção de utopia. Quanto a esta, parece-nos poder dizer o seguinte: a utopia é o que está em consideração com a

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realidade. Deste ponto de vista, seria inteiramente utópico desejar que nunca mais ninguém voltasse a matar. Essa seria a utopia absoluta. Mas exigir que o crime deixe de ser legitimado seria uma utopia bem menor. Por outro lado, as utopias marxista e capitalista, ambas baseadas na idéia de progresso, ambas convencidas de que a aplicação dos seus princípios deve fatalmente conduzir ao equilíbrio da sociedade, são utopias muito maiores e que, ainda por cima, nos estão a custar demasiado caro. (CAMUS, s/dA: 176-177).

A utopia modesta de Camus é a de salvar os corpos para que o futuro seja possível: “A minha convicção é que já não podemos razoavelmente ter a esperança de tudo salvar, mas que pelo menos podemos tentar salvar os corpos para que o futuro continue a ser possível” (CAMUS, s/dA: 189). Neste sentido é que no Editorial intitulado Socialismo Mistificado, Camus afirma: “Será necessário, então, escolher uma outra utopia mais modesta e menos onerosa. Pelo menos, é assim que se coloca o problema, uma vez que se recusa a legitimação do crime” (CAMUS, s/dA: 189). Ouseja, Camus busca uma utopia modesta, contra o crime legitimado: “Constatamosassim que o fato de recusar a legitimação do crime não é mais utópico que as atitudesrealistas de hoje” (CAMUS, s/dA: 178). Então, ele propõe uma utopia modesta contraas ideologias que sustentam a legitimação da violência: “O imperativo ético de ‘salvaros corpos’, ‘utopia em menor grau’, é erigido, portanto, contra as ideologias absolutasque, à esquerda e à direita sacrificam os homens singulares à história, em virtude desuas diferentes concepções do progresso” (GERMANO, 2008: 242). Neste horizonte,Camus busca uma filosofia política que não seja legitimadorada violência , tema este10

que desenvolverá em O Homem Revoltado (1951). O compromisso do escritor deromper com o silêncio contra as engrenagens da morte também mostra que opensamento camusiano é uma forma de denúncia, por isso o artista-filósofo evoca emseu discurso este rompimento com a abstenção:

No meio desta balbúrdia, o escritor já não pode esperar manter-se à parte para perseguir os pensamentos e as imagens que lhes são queridos. Até aos nossos dias, e de qualquer maneira, a abstenção sempre foi possível na história. Aquele que não aprovava podia muitas vezes calar-se ou falar de outra coisa. Hoje tudo mudou. O próprio silêncio assume um temível sentido. A partir do momento em que a própria abstenção é considerada como escolha, punida ou louvada como tal, o artista, quer queira, quer não, está embarcado.

Diz Germano: “Contra a utopia de que a engrenagem da violência progressiva, ou dos regimes 10

policiais quaisquer que eles sejam, instaurem a justiça terrestre, Camus contrasta sua utopia modesta e, portanto, ‘menos onerosa’ - um mundo no qual a violência não seja mais legítima.” (GERMANO, 2008: 242).

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Embarcado parece-me aqui mais justo do que comprometido [engagé]. Não se trata, na verdade, para o artista, de um compromisso voluntário, mas antes de um serviço militar obrigatório. Qualquer artista dos nossos dias está embarcado na galé de seu tempo. Tem que resignar-se, mesmo pensando que essa galé cheira a arenque, que os seus guarda-chusmas são realmente demasiado numerosos e que, além disso, leva mal rumo. Estamos em pleno mar. O artista, tal como os outros, tem que remar, por sua vez, sem morrer, se puder, isto é, continuando a viver e a criar. (CAMUS, s/dB: 137-138).

Em suma, à luz do romancista-filósofo africano, podemos pensar sobre a relação entre Filosofia e Literatura a partir de um compromisso ético-político do escritor engajado, levando em consideração o cuidado minucioso com as palavras e suas consequências no presente. A ética da responsabilidade da escrita engajada camusiana exige uma crítica intransigente contra as filosofias que justificam a morte em nome de ideologias e das engrenagens dos Estados que se sustentam a partir do paradigma do medo encarnado no cotidiano e que precisa ser enfrentado. Em outras palavras, Camus nos leva a refletir sobre as consequências éticas da escrita evocando a responsabilidade dos intelectuais, recusando a apatia e a passividade diante de um mundo constantemente aniquilado com a atmosfera política sombria do seu Século, assim como nós também no presente momento do atual contexto político brasileiro. Diante disso, como Camus, é preciso romper com o silêncio e pensarmos hoje em como nos comprometermos, sem nada temer.

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