ed. 151 - revista caros amigos

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ano XIII número 151 outubro 2009 R$ 9,90 Novo sítio: www.carosamigos.com.br ANA MIRANDA CAROLINA CORAL CESAR CARDOSO CLAUDIUS EDUARDO SUPLICY EMIR SADER FANIA RODRIGUES FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO ZINCLAR JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO RENATO POMPEU TATIANA MERLINO WAGNER NABUCO ENTREVISTA EXCLUSIVA Ferréz PERIFERIA DE SÃO PAULO RECRIA A CULTURA POPULAR AUTO DE RESISTÊNCIA É LICENÇA PARA MATAR ÓDIO DA FAVELA VAI EXPLODIR O que muda na APOSENTADORIA CHILE A LUTA CENTENÁRIA DOS ÍNDIOS MAPUCHE HONDURAS CRISE ABALA A DOUTRINA MONROE URUGUAI A GRANDE PROVA DE FOGO DA ESQUERDA RIO DE JANEIRO

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ano XIII número 151 outubro 2009R$ 9,90

ano XIII ano XIII ano número 151 número 151 número outubro 2009outubro 2009outubroR$ 9,90

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

ANA MIRANDA CAROLINA CORAL CESAR CARDOSO CLAUDIUS EDUARDO SUPLICY EMIR SADER FANIA RODRIGUES FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO ZINCLAR JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO RENATO POMPEU TATIANA MERLINO WAGNER NABUCO

ENTREVISTA EXCLUSIVA

Ferréz

PERIFERIA DE SÃO PAULO RECRIA A CULTURA POPULAR

AUTO DE RESISTÊNCIAÉ LICENÇA PARA MATAR

ÓDIO DA FAVELA VAI EXPLODIR

O que muda na APOSENTADORIA

CHILE A LUTA CENTENÁRIA DOS ÍNDIOS MAPUCHEHONDURAS CRISE ABALA A DOUTRINA MONROEURUGUAI A GRANDE PROVA DE FOGO DA ESQUERDA

RIO DE JANEIRO

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7setembro 2009 caros amigos

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É preciso prestar atenção ao que está acontecendo nas periferias. A mudança é real, concreta, e só não vê quem não quer ou quem, por opção ideológica e algum interesse particular, se recusa a encarar a realidade.

Falamos das periferias em geral, tanto aquelas que se encontram nas beiradas das cidades brasileiras, apinhadas das classes subalternas, quanto àquelas que por obra do processo histórico se tornaram satélites do poderoso império estadunidense.

A entrevista com Ferréz, escritor do Capão Redondo, joga luz sobre a ebulição da periferia paulistana, onde milhões de moradores das favelas são criminalizados e vítimas da violência do Estado. O alerta está dado: o ódio acumulado está na iminência de uma explosão incontrolável.

Reportagem de Marcelo Salles denuncia que, no Rio de Janeiro, a po-lítica de extermínio executada pela polícia, eliminou quase dez mil pes-soas na última década, a maior parte favelados. Os protestos dos mora-dores da periferia carioca são cada vez mais freqüentes e massivos.

No outro lado da mesma moeda, reportagem de Tatiana Merlino mos-tra que a população periférica de São Paulo resiste bravamente ao lixo da indústria cultural dominante e recria, com vitalidade, suas próprias manifestações culturais. A juventude se organiza em torno de saraus de música, poesia e literatura, das bibliotecas comunitárias, mostras de ci-nema e oficinas de hip hop.

A reação praticamente unânime dos países latino-americanos contra o golpe de Estado em Honduras revela que a periferia do império toma iniciativa inédita e se move sem a tutela dos Estados Unidos. José Ar-bex Jr. analisa a crise de Honduras. Mais duas reportagens reforçam esse quadro de rebeldia nas periferias: Carolina Coral fala sobre a luta cente-nária – e atual – dos índios mapuche no Chile; e Fania Rodrigues relata o processo eleitoral no Uruguai, onde o ex-Tupamaro José “Pepe” Muji-ca lidera a disputa pela Presidência da República.

Vale a pena conferir. Boa leitura!

CAROS AMIGOS ANO XIII 151 OutubRO 2009

EDITORA CASA AMARELA ­Revistas­•­LivRos­•­seRviços­editoRiaisfundadoR:­séRgio­de­souza­(1934-2008)diRetoR­geRaL:­WagneR­nabuco­de­aRaújo

EDITOR: hamilton Octavio de souza EDITORa aDjunTa: Tatiana Merlino EDITOREs EsPECIaIs: josé arbex jr e Renato Pompeu EDITORa DE aRTE: Lucia Tavares assIsTEnTE DE aRTE: henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRaFIa: Walter Firmo REPÓRTER EsPECIaL: Marcos Zibordi REPÓRTEREs: Felipe Larsen e Lúcia Rodrigues CORREsPOnDEnTEs: Marcelo salles (Rio de janeiro) e anelise sanchez (Roma) sECRETÁRIa Da REDaÇÃO: simone alves REvIsOR: Ruy Luduvice DIRETOR DE MaRKETInG: andré herrmann PuBLICIDaDE: Melissa Rigo CIRCuLaÇÃO: Pedro nabuco de araújo RELaÇõEs InsTITuCIOnaIs: Cecília Figueira de Mello aDMInIsTRaTIvO E FInanCEIRO: Ingrid hentschel, Elisângela santana COnTROLE E PROCEssOs: Wanderley alves LIvROs Casa aMaRELa: Clarice alvon síTIO: Lúcia Rodrigues aPOIO: Maura Carvalho, Douglas jerônimo e neidivaldo dos anjos aTEnDIMEnTO aO LEITOR: Lília Martins alves, Zélia Coelho assEssORIa juRíDICa: Marco Túlio Bottino, aton Fon Filho, juvelino strozake, Luis F. X. soares de Mello, Eduardo Gutierrez e susana Paim Figueiredo REPREsEnTanTE DE PuBLICIDaDE: BRasíLIa: joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

jORnaLIsTa REsPOnsÁvEL: haMILTOn OCTavIO DE sOuZa (MTB 11.242)DIRETOR GERaL: WaGnER naBuCO DE aRaújO

CaROs aMIGOs, ano XIII, nº 151, é uma publicação mensal da Editora Casa amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de são Paulo, de acordo com a Lei de Imprensa. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DInaP s/a - Distribuidora nacional de Publicações, são Paulo. IMPREssÃO: Bangraf

REDaÇÃO E aDMInIsTRaÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, são Paulo, sP

02 Guto Lacaz.

07 José Arbex Jr. aponta a crise de Honduras como a primavera da América Latina.

08 Joel Rufino dos Santos chama a atenção para as mensagens das telenovelas.

Guilherme Scalzilli conclama a mobilização dos petistas para a eleição de 2010.

09 Caros Amigos apóia o manifesto em defesa da democracia e do MST.

10 Marcos Bagno Falar Brasileiro.

Mc Leonardo comemora a lei que descriminaliza o funk no Rio de Janeiro.

11 Gershon Knispel lembra que as raízes das famílias árabes estão sendo arrancadas.

12 Entrevista com Ferréz O ódio da favela pode explodir a qualquer momento.

17 Wagner Nabuco associa o discurso do governo com o projeto nacional.

Cesar Cardoso fala sobre a última manifestação de Deus para a humanidade.

18 Lúcia Rodrigues Governo mantém perdas para 38% dos aposentados.

24 Ensaio Fotográfico João Zinclar O contraste das águas no Nordeste.

26 Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.

Ana Miranda presta homenagem aos músicos Alexandre e Egberto Gismonti.

28 Marcelo Salles Polícia do Rio de Janeiro mata mais hoje do que na ditadura.

32 Emir Sader analisa o desespero que tomou conta dos tucanos fracassomaníacos.

33 Glauco Mattoso Porca Miséria.

Eduardo Matarazzo Suplicy defende a transparência nas doações eleitorais.

34 Fania Rodrigues conta que a esquerda uruguaia tem prova de fogo nas eleições.

37 Frei Betto fala da tragédia colombiana no panorama da América do Sul.

Fidel Castro alerta sobre o perigo de extinção do homem da face da Terra.

38 Carolina Coral relata a luta centenária do povo mapuche no Chile.

40 Tatiana Merlino mostra como a periferia de São Paulo recria a cultura popular.

44 Gilberto Felisberto Vasconcellos O governo deveria ouvir Bautista Vidal.

45 Claudius

46 Renato Pompeu Idéias de Botequim.

sumárioFoto de capa JESuS CARLOS

A rebelião das periferias

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Page 7: Ed. 151 - Revista Caros Amigos

7outubro 2009 caros amigos

José Arbex Jr.

A “crise de Honduras” sintetiza e ilumi-na um momento histórico ímpar na história mundial. Pela primeira vez desde 1823, quando James Monroe formulou a doutrina que leva o seu nome (“a América para os americanos” - quanto, de fato, tinha em men-te “a América para os estadunidenses”), Washington, nitidamente, perdeu o controle e a iniciativa sobre os desenvolvimentos políticos e sociais na América Lati-na e no Caribe.

O papel assumido pelo Brasil, nesse quadro, tem di-mensão explosiva: em nome dos princípios democrá-ticos que devem nortear a relação entre os Estados, o governo brasileiro não se limitou a “condenar” o re-gime golpista, nem se contentou com sanções limita-das. Isso pode inaugurar uma nova etapa na relação do Brasil com a comunidade mundial das nações, e abrir o caminho para novos desdobramentos democráticos na América Latina.

Exagero? Excesso de otimismo? Precipitação na análise política? Dificilmente. Vamos aos fatos:

1. A América Latina e o Caribe tornaram-se mais importantes do que nunca para os Estados Unidos, após o fiasco no Iraque e no Afeganistão. Não “apenas” por-que as reservas estratégicas de petróleo estadunidenses estão esgotadas, mas também por tudo o que represen-ta a Amazônia em termos de reservas de petróleo, bio-diversidade, minerais e água.

2. Apesar disso, Washington fracassou em todas as suas tentativas recentes de “eliminar os obstáculos” ao seu controle da região. Não conseguiu tirar Hugo Chá-vez do poder, no golpe desferido em abril de 2002; fra-cassou ao tentar fabricar uma guerra civil para elimi-nar o governo de Evo Morales, em 2008; e, talvez mais humilhante ainda: ao tentar prolongar o acordo que permitia o funcionamento da base militar de Manta, no Equador, teve que aceitar o tapa na cara desferido por Rafael Correa (o presidente equatoriano respondeu que, sim, toparia renovar o contrato, se os Estados Uni-dos admitissem a instalação de uma base militar equa-toriana na Flórida!).

3. O golpe em Honduras se inscreve nesse quadro geral. Os golpistas hondurenhos conseguiram, momen-taneamente, aquilo que os demais tentaram sem suces-

so. Acreditar que as oligarquias hondurenhas arquite-taram o golpe sem o conhecimento da embaixada dos Estados Unidos é prova suprema de ingenuidade ou má fé (ou uma mistura dos dois). O embaixador estaduni-dense em Tegucigalpa foi colocado no cargo pela turma de George Bush filho. É partidário incondicional da Dou-trina Monroe. É até possível que Barack Obama tenha sido pego de surpresa, mas jamais os serviços secretos dos Estados Unidos. Em qualquer hipótese, é bastante óbvio que Washington, por mais que tenha condenado o golpe, não ficou nada feliz com a adesão do presidente deposto Manuel Zelaya à Alba e ao Petrocaribe.

4. Barack Obama emite sinais contraditórios e in-coerentes, o que é uma prova de falta de um plano es-tratégico para enfrentar a situação. Ou falta de força para aplicar de forma coerente e decidida uma estra-tégia qualquer. De um lado, Obama proclama “o fim da era em que os Estados Unidos davam as cartas” na América Latina. De outro lado, prolonga o boicote eco-nômico a Cuba, mantém o Plano Mérida para o Méxi-co e para a América Central, e o de instalações de ba-ses militares na Colômbia.

5. Mas Obama enfrenta uma inédita demonstração de resistência e reprovação por parte da imensa maio-ria dos governos latino-americanos.

É nesse ponto que ganha grande relevância o papel assumido pelo Brasil. Nos últimos meses, o presiden-te Luís Inácio Lula da Silva emitiu claros sinais de uma “virada à esquerda” na política externa. Ao anunciar a descoberta do pré-sal, por exemplo, denunciou imedia-tamente os movimentos da Quarta Frota dos Estados Unidos (encarregada de “vigiar” os mares da América Latina e do Caribe), estabelecendo um nexo entre as coi-sas. Depois, Lula demonstrou preferência pelos aviões de guerra da França, sob alegação de que a estadunidense Boeing não transfere tecnologia. Em seguida, Lula con-denou o prolongamento do bloqueio a Cuba e declarou a intenção de interpelar Barack Obama sobre o assunto. Finalmente, o Brasil acolheu Manuel Zelaya como pre-sidente legítimo de Honduras.

Não interessam as razões que levam Lula a assumir tais atitudes. Não se trata, aqui, de alimen-tar ilusões num suposto “neoLula”, nem de acreditar

que os demais governos latino-americanos que desa-fiam Obama tenham aderido ao Partido Bolchevique. Lula, provavelmente, faz isso por estar de olho nas ur-nas em 2010, e por saber que apenas uma mensagem de esquerda, que se descole completamente do PSDB, pode incendiar as multidões e carrear votos para Dil-ma Rousseff (tecnicamente empatada com Ciro Gomes e bem atrás de José Nosferatu Serra). Lula também sabe que a campanha “o petróleo é nosso” tem um imenso potencial explosivo, e por isso trata o debate sobre o pré-sal como uma reedição dos tempos de Getúlio Var-gas. No plano internacional, Lula é forçado a alimen-tar uma relação de amor e ódio com Hugo Chávez, que acabou se impondo como uma referência para a es-querda no hemisfério.

Não importam as intenções de Lula ou de quem quer que seja. Importa que esse processo tem tudo para dar um novo ímpeto ao movimento de massas, num mo-mento em que eclodem e se articulam greves no ABC, em São José dos Campos e de importantes categorias nacionais (carteiros, bancários etc.). Importa o fato de que, no plano internacional, a Casa Branca não tem a última palavra em Honduras, e o governo brasileiro as-sumiu a posição que deveria mesmo ter assumido (e por isso desperta a ira dos “especialistas” e comenta-ristas de sempre).

Desde 1823, o jogo entre as nações do pla-neta tinha na Doutrina Monroe um de seus parâmetros. Nenhuma outra potência mundial sequer tentou, seria-mente, disputar a hegemonia dos Estados Unidos na re-gião (exceto no famoso episódio dos mísseis de 1962, quando a União Soviética tentou transformar Cuba em plataforma de lançamento de mísseis nucleares). Hoje, a Doutrina Monroe, pela primeira vez, começa a fazer água, mas não num quadro qualquer, e sim no da maior crise enfrentada pelo capitalismo desde 1929.

Somos tentados a concluir esse artigo com a sen-tença “a primavera da América Latina começou em Honduras”, nem que seja por um mero exercício pro-vocador de imaginação histórica. Mas é melhor não. Pode dar azar.

José Arbex Jr. é jornalista.

Honduras abala a doutrina Monroe

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caros amigos outubro 2009 8

Guilherme Scalzilli

Quando o obsessivo Colombo chegou à América, chamou a gente que encontrou de índios. O conhecido eram as Índias. Ele de-finiu o novo pelo antigo, a experiência nova pela tradição. Aquela gente não podia ser se-não índios.

É mais ou menos como pensam os que se encontram com ETs, em estradas desertas e serras remotas, os escritores de ficção cientí-fica e os roteiristas de “Guerras nas estrelas”. Menos do que ignorantes, são criaturas medie-vais, no sentido em que foi Colombo, apesar de fundador dos tempos modernos: só podem conceber mais do mesmo, reprodução sem fim da quantidade.

Talvez o leitor não veja a telenovela das oito (que hoje é às nove).

Há nesse folhetim eletrônico, “padrão Glo-bo de qualidade”, uma alienação explícita: a concepção da vida humana como satélite do dinheiro. Pobre nunca é feliz, as relações amo-rosas não passam de variantes do golpe do baú. Há cinquenta anos (como voa o tempo!), o maldito Débord chamava esse lixo de vida inautêntica.

“Caminho das Índias” já não me irritou. Te-ria eu, finalmente, me deixado embriagar pela carpintaria fantasiosa do gênero? Fiquei vi-ciado em novela? É possível, mas quero resis-tir. Não verei a próxima, nem por descuido. Milhares de livros me esperam para releitura – André Malraux, Ciro Alegría...

“Caminho das Índias” é de Glória Perez, que há três décadas, pelo menos, tenta infun-dir conteúdo crítico ao gênero. É dificílimo, pois a forma da telenovela é, em si mesma, bestificante. Herdeira de Janete Clair (1925-83), que viera da radionovela para a tela, Gló-ria tem o sentimento do social e do político. Sei também que é consciente do papel alie-nante da telenovela e busca sempre compen-sá-la com mensagens antissistêmicas (diga-mos assim).

Em “Caminhos da Índia” anotei diversas dessas mensagens sutis:

Para começar, o preconceito de casta. O ce-nário é a Índia exótica, dançante e luxuosa. No final, acossada pelo amor, a casta se estre-pa. Está dentro do figurino romântico, é ver-dade. Só que a casta aparece como forma de garantir um amor não individualista, que se constrói a partir de um casamento arranjado

pela família, não por escolha livre do coração. Numa palavra: vitória do amor construído so-bre o amor romântico. A mensagem de Glória Perez é dialética.

Outra mensagem, menos sutil, é a dos di-reitos dos loucos.

Nos anos 1960, se acirrou o debate psiquia-tria/antipsiquiatria. Nenhum dos lados ven-ceu. Como tantas vezes se viu, o desdobra-mento da vida aproveitou o que há de certo num e noutro lado.

Em “Caminho das Índias”, a loucura de Tar-so é deflagrada (não causada) pelas relações familiares estressantes. A mãe, a perua Melis-sa, não suporta sequer a palavra esquizofrêni-co. No final, aceita que Tarso tome remédios e faça socioterapia, com acompanhamento de um clínico. Tarso quer casar, ama uma garota – que é o contrário de sua mãe.

A garota aceita, happy end.

amigos de papelJoel Rufino dos Santos

Guilherme Scalzilli, historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.gui-lhermescalzilli.blogspot.com Il

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Mensagens

Se quiser manter alguma esperança de eleger Dilma Rousseff em 2010, o PT precisa mobilizar-se imediatamente. A supervalorização da popularidade do presidente Lula mergulhou o partido numa apatia condescendente, agravada por conflitos internos vazios e desagregadores.

A visibilidade midiática de críticos e deser-tores, sob o silêncio dos governistas, fortalece o mito da desilusão do petismo histórico. Urge conclamar intelectuais, artistas e demais celebri-dades a posicionamentos públicos sobre a cam-panha presidencial, demonstrando comprometi-mentos pessoais inequívocos.

À militância cabe posicionar-se imedia-tamente acerca de uma eventual coligação com o PMDB. Ela será decisiva para as chances eleito-rais de qualquer candidato, e não apenas graças aos importantes minutos nos horários eleitorais. Alianças de envergadura nacional costumam ser indigestas e exigem condescendências; seus li-mites merecem discussões pragmáticas, livres de purismos ideológicos.

Um pedido aos senadores e deputados do PT: abandonem a pantomima da indignação tardia. Se o fardo é insuportável, tenham a honradez de entregar os cargos de seus correligionários em to-dos os escalões do governo e iniciem um novo projeto político. Mas, em nome da transparência, ou por simples espírito republicano, parem de agir como se não soubessem o que está em jogo.

Apropriando-se das conquistas da ad-ministração atual, com a vitrine da Copa do Mun-do, José Serra seria facilmente eleito presidente. Depois, as fortunas advindas do pré-sal financia-riam também seus sucessores, perpetuados num período inimaginável de continuísmo. Mesmo que então surgisse uma nova liderança progressista viável, os danos da hegemonia tucana já estariam irremediavelmente consolidados.

Essa é uma forma indigna de desperdiçar to-dos os esforços gastos em quase trinta anos de lutas e sacrifícios.

Carta aos petistas: momento de

reagir

Joel Rufino é historiador e escritor.

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Page 9: Ed. 151 - Revista Caros Amigos

9outubro 2009 caros amigos

A reconstrução da democracia no Brasil tem exigido, há trinta anos, enormes sacrifícios dos trabalhadores. Desde a reconstrução de suas organizações, destruí-das por duas décadas de repressão da ditadura militar, até a invenção de novas for-mas de movimentos e de lutas capazes de responder ao desafio de enfrentar uma das sociedades mais desiguais do mundo. Isto tem implicado, também, apresentar aos herdeiros da cultura escravocrata de cinco séculos, os trabalhadores da cidade e do campo como cidadãos e como participantes legítimos não apenas da produ-ção da riqueza do País (como ocorreu desde sempre), mas igualmente como bene-ficiários da partilha da riqueza produzida.

O ódio das oligarquias rurais e urbanas não perde de vista, um único dia, um des-ses novos instrumentos de organização e luta criados pelos trabalhadores brasilei-ros a partir de 1984: o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST. E esse Movimento paga diariamente com suor e sangue – como ocorreu há pouco no Rio Grande do Sul – por sua ousadia de questionar um dos pilares da desigualdade so-cial no Brasil: o monopólio da terra. O gesto de levantar sua bandeira numa ocupa-ção se traduz numa frase simples de entender e, por isso, intolerável aos ouvidos dos senhores da terra e do agronegócio. Um País, onde 1% da população tem a proprie-dade de 46% do território, defendida por cercas, agentes do Estado e matadores de aluguel, não podemos considerar uma República. Menos ainda, uma democracia.

A Constituição de 1988 determina que os latifúndios improdutivos e terras usa-das para a plantação de matérias primas para a produção de drogas, devem ser des-tinados à Reforma Agrária. Mas, desde a assinatura da nova Carta, os sucessivos Governos têm negligenciado o seu cumprimento. À ousadia do MST de garantir es-ses direitos conquistados na Constituição, pressionando as autoridades através de ocupações pacíficas, soma-se outra ousadia, igualmente intolerável para os senho-res do grande capital do campo e das cidades: a disputa legítima e legal do Orça-mento Público.

Em quarenta anos, desde a criação do INCRA (1970), cerca de um 1 de famílias rurais foram assentadas. Mais da metade, entre 2003 e 2008. Para viabilizar a ati-vidade econômica dessas famílias, para integrá-las ao processo produtivo de ali-mentos e divisas no novo ciclo de desenvolvimento, é necessário travar a disputa diária pelos recursos públicos. Daí resulta o ódio dos ruralistas e outros setores do grande capital, habituados desde sempre ao acesso exclusivo aos créditos, subsí-dios e ao perdão periódico de suas dívidas.

O compromisso do Governo de rever os critérios de produtividade para a agricul-tura brasileira, responde a uma bandeira de quatro décadas de lutas dos movimen-tos dos trabalhadores do campo. Ao exigir a atualização desses índices, os traba-lhadores do campo estão apenas exigindo o cumprimento da Constituição Federal, e que os avanços científicos e tecnológicos ocorridos nas últimas quatro décadas, sejam incorporados aos métodos de medir a produtividade agrícola do nosso País.

É contra essa bandeira que a bancada ruralista do Congresso Nacional reage, e

ataca o MST. Como represália, buscam, mais uma vez, articular a formação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) contra o MST. Seria a terceira em cinco anos. Se a agricultura brasileira é tão moderna e produtiva – como alardeia o agro-negócio, por que temem tanto a atualização desses índices?

E, por que não é criada uma única CPI para analisar os recursos públicos des-tinados às organizações da classe patronal rural? Uma CPI que desse conta, por exemplo, de responder a algumas perguntas, tão simples como: O que ocorreu ao longo desses quarenta anos no campo brasileiro em termos de ganho de produti-vidade? Quanto a sociedade brasileira investiu para que uma verdadeira revolução – do ponto de vista de incorporação de novas tecnologias – tornasse a agricultura brasileira capaz de alimentar nosso povo e se afirmar como uma das maiores ex-portadoras de alimentos? Quantos perdões da dívida agrícola foram oferecidos pe-los cofres públicos aos grandes proprietários de terra, nesse período?

O ataque ao MST extrapola a luta pela Reforma Agrária. É um ataque contra os avanços democráticos conquistados na Constituição de 1988 – como o que estabe-lece a função social da propriedade agrícola – e contra os direitos imprescindíveis para a reconstrução democrática do nosso País. É, portanto, contra essa recons-trução democrática que se levantam as lideranças do agronegócio e seus aliados no campo e nas cidades. E isso é grave. E isso é uma ameaça não apenas contra os movimentos dos trabalhadores rurais e urbanos, como para toda a sociedade. É a própria reconstrução democrática do Brasil, que custou os esforços e mesmo a vida de muitos brasileiros, que está sendo posta em xeque. É a própria reconstru-ção democrática do Brasil, que está sendo violentada.

É por essa razão que se arma, hoje, uma nova ofensiva dos setores mais conser-vadores da sociedade contra o Movimento dos Sem Terra – seja no Congresso Na-cional, seja nos monopólios de comunicação, seja nos lobbies de pressão em todas as esferas de Poder. Trata-se, assim, ainda uma vez, de criminalizar um movimento que se mantém como uma bandeira acesa, inquietando a consciência democrática do país: a nossa democracia só será digna desse nome, quando incorporar todos os brasileiros e lhes conferir, como cidadãos e cidadãs, o direito a participar da parti-lha da riqueza que produzem ao longo de suas vidas, com suas mãos, o seu talento, o seu amor pela pátria de todos nós.

• CONTRA A CRIMINALIZACÃO DO MOVIMENTO DOS SEM TERRA.• PELO CUMPRIMENTO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS QUE DEFINEM AS

TERRAS DESTINADAS À REFORMA AGRÁRIA.• PELA ADOCÃO IMEDIATA DOS NOVOS CRITÉRIOS DE PRODUTIVIDADE PARA

FINS DE REFORMA AGRÁRIA. Brasília, 21 de setembro de 2009.

Caros Amigos apóia o Manifesto em defesa da

democracia e do mST

Pedro Tierra, Antonio Candido, Plínio Arruda Sampaio, Eduardo Galeano, Heloisa Fernandes, Alípio Freire. Seguem-se outras centenas de adesões de dirigentes par-tidários, intelectuais, artistas e ativistas do movimento sindical.

“...Legitimam-se não pela propriedade, mas pelo trabalho,nesse mundo em que o trabalho está em extinção.Legitimam-se porque fazem História,num mundo que já proclamou o fim da História.Esses homens e mulheres são um contra sensoporque restituem à vida um sentido que se perdeu...”(“Notícias dos sobreviventes”, Eldorado dos Carajás, 1996).

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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Page 10: Ed. 151 - Revista Caros Amigos

caros amigos outubro 2009 10

Mc Leonardo

Dia desses, uma gaúcha veio me contar, en-tusiasmada, que tinha aberto uma escola de lín-guas em Porto Alegre, que não queria se limitar ao ensino das línguas europeias (inglês, francês, espanhol, italiano, alemão) mas pensava em ofe-recer também o iorubá, para ser uma escola “po-liticamente correta”, que contemple as línguas que “influenciaram” o português brasileiro. Pen-sei com meus botões: “Mais uma iludida”.

O desconhecimento, por parte da maioria dos brasileiros, inclusive linguistas profissionais, da história linguística do nosso país é impressionan-te. Quando, com base nos excelentes estudos de Yeda Pessoa de Castro, digo às pessoas que, das línguas africanas trazidas para cá com o tráfico de escravos, a que menos impacto exerceu sobre o português brasileiro foi o iorubá, as reações costumam ir da surpresa à indignação.

O iorubá é uma língua oeste-africana. Seus falantes só começaram a ser trazidos para o Bra-sil no final do século XVIII, com a destruição do reino de Queto, e também depois de 1830, quan-do foi arrasado o império de Oió. Ficaram con-centrados nas zonas litorâneas, com especial des-taque para a região do Recôncavo baiano. Com os falantes de iorubá e de outras línguas oeste-africanas vieram os cultos religiosos que se tor-naram conhecidos como candomblé. Por causa do prestígio cultural que essas manifestações re-ligiosas alcançaram é que se fixou, entre nós, o mito de que o iorubá é a principal (quando não a única!) língua africana que exerceu “influên-cia” sobre o português brasileiro. Desse mito de-correm inúmeras distorções como, por exemplo, a do filme “Quilombo”, de Cacá Diegues (1984), em que Zumbi dos Palmares e demais quilombo-las falam iorubá, em pleno século XVII, quando ainda não tinham chegado ao Brasil os falantes dessa língua. O mesmo se pode dizer dos inúme-ros cursos de iorubá oferecidos Brasil afora e que muitas pessoas vão frequentar na crença de que, assim, se aproximariam mais das raízes africanas da nossa população e da nossa cultura.

Ora, as línguas que de fato mais confluíram para a formação do português brasileiro são de uma outra família, chamada Banto. São de lín-guas bantas (quicongo, quimbundo, umbundo) a maioria dos escravos trazidos a partir do século XVII e que serão distribuídos por todo o território brasileiro. A antiguidade da presença dos bantos é que explica a grande quantidade de vocábulos plenamente integrados ao falar brasileiro do dia

a dia e referentes aos mais diversos campos da vida humana. As palavras do iorubá que empre-gamos, por outro lado, se referem quase exclusi-vamente ao universo religioso e têm uma difusão muito mais restrita geograficamente. Com isso, se quisermos de fato nos aproximar das nossas ra-ízes africanas mais profundas, é nas línguas do grupo banto que devemos procurá-las. É delas que vêm, entre tantas outras, as já brasileiríssi-mas caçula, carimbo, cachaça, dengo, samba, sa-cana, biboca, maconha, bagunça, jiló, cachimbo, cafungar, fungar, cabular, catinga, catimba, gin-ga, lambada, cangaço, mocambo, moleque, mi-çanga, moqueca, muamba, olelê-olalá, tutu, ti-tica, xingar, quiabo, quitanda, quitute, muxoxo, cochilo, banguela, beleléu, zanzar, ziquizira, son-gamonga, moringa, camundongo, babaca, sen-zala, mucama, macaco, babau, caxumba, capan-ga, canga, tanga, lengalenga, mandinga, coroca, cotó, fubá, cafuné, jagunço, meganha... sem fa-lar, é claro, da grande unanimidade nacional — a bunda!

falar brasileiroMarcos Bagno

Caros amigos, muito obrigado!

Ilus

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Brasileirofala banto? Fundei a APAFUNK (Associação dos

Profissionais e Amigos do Funk), para exigir do Esta-do do Rio um olhar cultural e não policial do movi-mento que tanto conheço há dezessete anos.

Participamos de fóruns, debates, palestras, en-contros com movimentos sociais e não nos negamos a entrar nos gabinetes dos deputados na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro pra exigir uma política cultural para nosso movimento.

A 1º de setembro de 2009, foram votados dois Projetos de Lei que vão ajudar - e muito - nesse pro-cesso de descriminalização.

Um revoga uma Lei que dificultava os bai-les em nosso Estado e o outro faz o Estado reconhe-cer o Funk como cultura popular.

Agradecemos a todos os deputados, mesmo sa-bendo que eles cumpriram com suas obrigações, sa-bemos que isso é muito difícil de acontecer nas as-sembleias legislativas do nosso Brasil.

Sei que não teríamos conseguido ser compreen-didos nessa luta de convencimento a um ritmo tão massacrado pela mídia nos últimos anos, se não fos-se a mídia “magra”.

Mídia alternativa, nunca duvide do seu poder: quero dizer que alguns sites, jornais e revistas fizeram nosso grito ecoar Brasil afora.

Primeiramente agradeço aos sites www.funkde-raiz.com.br, que foi o primeiro a publicar nossa ba-talha, ao www.fazendomedia, ao Observatório da In-dústria Cultural (oicult.blogspot.com.br), à Agencia de Notícias da Favela (www.anf.org.br), ao www.fo-que.com.br, e a todos os outros sites que eu não me lembro agora.

Ao Jornal Cidadão, ao Jornal Brasil de Fato, aos jornais sindicais, universitários e dos movimen-tos sociais.

À revista Vírus Planetário, ao Núcleo Piratininga de Comunicação, a Radio Muda de Campinas e, claro que eu não podia esquecer, da revista Caros Amigos, que me convidou para ocupar o espaço desta coluna.

Obrigado a todos vocês que não só nos ajudaram a divulgar nossa batalha, como nos ensina-ram que a mídia somos nós que fazemos.

Mas uma vez, MUITO OBRIGADO A TODOS!

MC Leonardo é compositor, autor, com seu ir-mão MC Junior, de funks de protesto, como o Rap das Armas. [email protected] - http://mcjunioreleonardo.wordpress.com

Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

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11outubro 2009 caros amigos

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A fundição da família

Omarija, em Ibtin,

na Galileia

Meu velho amigo Abdallah Omarija, da aldeia beduína de Ibtin, que se acomoda aos pés das montanhas da Galileia, na periferia ao norte de Hai-fa, eu o conheci imediatamente depois de meu retor-no para Israel, perseguido pelo Dops, no dia seguinte ao golpe militar de 1964 no Brasil. O único fundidor da região que estava de acordo em adotar o sistema que inventei, de fundir os moldes de isopor, que eco-nomizava tempo de trabalho e custos.

Mais de quarenta anos se passaram e nossas re-lações de amizade sempre se aprofundaram mais e mais. Nos acostumamos a trocar visitas; não faltaram ocasiões. No início, em épocas de festividades reli-giosas, cuja quantidade vinha em dobro, porque Ab-dallah, como os outros árabes, não podia ignorar as festas judaicas, em que não era permitido trabalhar.

De repente, as ocasiões se multiplicaram. Nasceram treze filhos de Abdallah, dos quais só uma menina. Cada nascimento era mais uma oportunida-de de sacrificar um cabrito no grande espeto, bem temperado com páprica, cebola etc., com o fantásti-co café com folhagens aromáticas da erva hell, cujo cheiro ainda me acompanha. Sabemos que, entre os sentidos, a memória do olfato é a mais forte.

A casa de pedra de Abdallah sempre ficava cres-cendo, ignorando as leis que não permitiam constru-ção sem autorização nas terras agrícolas em volta. Quando não havia mais para onde estender a casa, ele começou a construir um andar superior. Segundo os costumes, quando a mãe está com a barriga cres-cendo, todos os vizinhos vinham ajudar a construir o novo cômodo. Isso era decorrência da lei otomana, do tempo da ocupação turca de centenas de anos, com muito maior generosidade do que as proibições im-postas sobre os árabes pelos britânicos e, ainda mais rudemente, pelos israelenses.

A lei turca dizia: uma construção sem auto-rização, se a construção começou antes do nascer do sol e o teto vai se completar antes do por-do-sol do dia seguinte, não pode mais ser demolida. Foi essa lei que virou hábito quando todos os cidadãos da aldeia ou vi-zinhos da cidade chegavam para o mutirão de constru-ção, para terminá-la dentro do prazo quase impossível. Essa lei contribuiu para o reforço da cultura tribal tão

semelhante à cultura dos tempos bíblicos.Durante essas décadas que se passaram, am-

pliou-se a empresa de fundição de Abdallah, enquan-to o primogênito, Jamil, e o segundo filho, Lutfi, fo-ram os primeiros a acompanhar o pai na firma depois de terminarem os oito anos de ensino fundamental. O terceiro filho, Latif, entrou para a faculdade de conta-bilidade; Chasan, o quarto filho, estudou engenharia, e assim por diante. Todos ficaram dentro da empresa e assim Abdallah não precisava depender de estranhos e seus negócios navegavam em águas calmas.

Quando as autoridades israelenses descobriram essas infrações à lei de construções, começaram a chegar as ordens de destruição da casa. A família ex-tensa Omarija, composta de dez famílias nucleares na mesma casa, ia ter o mesmo destino das populações árabes expulsas de suas cidades e aldeias, como em Nazaré, a capital da Galileia.

Ali, desde os anos 1950, as autoridades israelen-ses vinham assentando judeus nas elevações em tor-no da cidade, no que se chamou de Nazaré de Cima. Com o desenvolvimento dessa cidade judaica, as au-toridades israelenses julgaram necessário desapro-priar terrenos da antiga Nazaré árabe e das aldeias árabes da região. Os jovens árabes tinham de encon-trar alternativas de moradia.

Os imigrantes judeus de Nazaré de Cima receberam os apartamentos quase de graça, mas mesmo assim sua situação econômica foi ficando cada vez mais apertada, de modo que tenderam a aceitar as propostas dos jovens árabes de pagarem aluguel pelas moradias, o que irritou os moradores judeus que podiam manter suas casas. Isso porque o valor dos apartamentos foi reduzido a um terço do valor de mercado, por causa da vizinhança árabe.

Para os judeus que alugaram suas residências a árabes foram enviadas cartas com ameaças de mor-te, e o veneno da frustração atingiu os judeus e os árabes conjuntamente. Os desacordos étnicos se tor-naram assunto do dia, e o pior é que a estrutura fa-miliar tão firme e tão tradicional dos árabes, reunida em torno do chefe, pai e avô, começou a ficar irre-mediavelmente abalada.

O aluguel foi subindo, para obrigar os árabes a

irem embora, que sofreram ameaças constantes para não tentarem comprar os apartamentos. As grandes distâncias entre as casas e as escolas, e as distâncias ainda maiores até o local de trabalho, os engarrafa-mentos nos picos da manhã e do fim de tarde – tudo isso virou para os árabes um inferno.

Meu caro amigo Abdallah Omarija não aguentou mais essa situação e morreu há alguns me-ses. Se essa é a via dolorosa por que passam esses árabes cidadãos de Israel, imagine-se o que aconte-ce com os palestinos das regiões ocupadas. Tudo isso veio à minha mente, quando vi, na “Folha de S. Pau-lo” do domingo, 13 de setembro, a notícia do jornal britânico “Financial Times”, “Construção de assenta-mentos também provoca expulsão; árabes recorrem à Justiça”, que dizia:

“Desde o início de agosto, quando duas famílias do bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, foram despejadas à força de suas casas, Muhammad Saba-gh não tem conseguido dormir muito. O encanador aposentado de 61 anos teme que ele, seus cinco ir-mãos e mulheres e filhos deles possam ir para a rua em pouco tempo. A família Sabagh pode se tornar a próxima vítima da batalha que já dura quase quatro décadas, travadas por dois grupos judaicos, para re-aver imóveis em Sheikh Jarrah, distrito árabe ao nor-te da Cidade Velha de Jerusalém, que dizem que lhes pertenciam antes de 1948. Despejos de casas de pa-lestinos erguidas sem alvarás e a construção de casas novas para colonos em Jerusalém Oriental vêm cau-sando a maior divisão sobre os assentamentos entre Israel e os EUA em pelo menos uma década. O aliado mais incansável de Israel tem exortado o país a con-gelar a construção de casas para judeus, para ajudar na retomada das conversas de paz com palestino”.

Para o leitor brasileiro não fica claro que não se trata de “duas famílias” que foram despejadas. Segundo os costumes palestinos de reunir a paren-tela numa propriedade só, apenas na casa da famí-lia Sabagh moram seis famílias no sentido brasileiro do termo. As raízes das famílias árabes estão sendo arrancadas.

Gershon Knispel

A casa, uma crônica que se repete

Gershon Knispel é artista plástico.

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caros amigos outubro 2009 12

ferréz tem 33 anos, é escritor, comerciante e au-têntico representante dos sentimentos e das lu-tas da imensa população que vive na perife-

ria de São Paulo. Ficou conhecido porque expressa com realismo a dureza das relações entre povo e Es-tado, entre pobres e ricos, entre as precárias condi-ções de vida nas favelas e a repressão policial.

Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos ele conta como o processo de criminalização da população pobre da periferia tem contribuído para acumular ódio e faz um alerta: “Vai chegar um dia que uma agressão a um menino ou a uma menina vai virar uma revolução em São Paulo inteira”. Fala também de sua vida e de seu amor pela literatura. Fiquem com Ferréz.

Hamilton Octávio de Souza - Fale um pouco da sua vida, onde nasceu, estudou, o que faz hoje.Ferréz - Meu nome é Ferréz, eu não uso meu nome de batismo por que eu não acredito no batismo, não acredito na Igreja Católica. Prefiro um pseudôni-mo, por que é uma coisa que eu inventei também, como a minha carreira. Eu sou vendedor ambulan-te, eu só vivo com coisa debaixo do braço para cima e para baixo para vender às editoras, sou datilógra-fo também, por que escrevo e trabalho com muita coisa para poder ter o básico, então vivo de mui-ta coisa, trabalho de muita coisa. A minha infân-cia foi normal como a de todo moleque de favela, tá ligado? Só não soltava tanto pipa porque meu pai não deixava.

Tatiana Merlino - Nasceu onde?Nasci no Valo Velho, na verdade eu nasci num

lugar chamado Cantinho do Céu, que é antes um pouco, ali no Jardim Capelinha, na zona sul de São Paulo. Nasci ali, fui para o Valo Velho, mas eu sem-pre falo do Valo Velho porque pra mim o começo da minha infância foi no Valo Velho, na casa de alu-guel do meu pai. Depois eu mudei para o Capão Re-dondo, na verdade Valo Velho é área do Capão tam-

entrevista ferréz

Participaram: André Herrmann, Bárbara Mengardo, Felipe Larsen, Hamilton Octavio de Souza, Júlio Delmanto, Lúcia Rodrigues, Luka Amorim, Marcelo Salles, Marcos Zibordi, Otávio Nagoya, Renato Pompeu, Tatiana Merlino. Fotos Jesus Carlos

explodir“A periferia de São Paulo pode

bém, para o Jardim Comercial e estou lá até hoje.

Tatiana Merlino - E os teus pais faziam o que?Meu pai é motorista de ônibus aposentado, de-

pois foi motorista da Sabesp, se aposentou e ago-ra cuida de um bar. Minha mãe é doméstica, traba-lha em casa de família e até hoje é a mesma coisa, ela faz uns bicos e tal, tem um bazarzinho, mas vive de bico também.

Tatiana Merlino - E você é filho único?Sou o irmão mais velho de uma família de três,

tenho uma irmã que é enfermeira e um irmão de 18 anos.

Renato Pompeu - Que idade você tem?Tenho 33. Estou pronto para ser crucificado.

Marco Zibordi - Então começa a falar da escola, que é a primeira crucificação, para você

que não acredita em igreja, a primeira é a escola...

É. Na escola eu tive bastante dificuldade, por-que eu não prestava atenção na aula, mas ao mes-mo tempo eu sabia a lição. Então eu tirava boas notas, prestava atenção no professor, e até hoje os professores perguntam como é que pode esse cara nunca prestou atenção, e esse cara sabia as maté-rias. Eu achava que 20 minutos do que o professor falava eu já entendia, o resto era discurso meio no vazio. Eu repeti a primeira série do primeiro ano no Euclides da Cunha, eu não gostava do ensino, não gostava da escola, não odiava ir para a escola, eu só ia para conversar mesmo e eu achava que não ti-nha nada a ver o que eu estava aprendendo. Eu não aprendi porcentagem na escola, entendeu? Não me ensinaram porcentagem e no comércio que eu abri eu precisava saber porcentagem. A escola me ensi-nou pouco, mas eu tive muitas pessoas boas na es-cola, muitos professores bons, que eram professo-

a qualquer momento”

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13outubro 2009 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

res que não davam lição nem de matemática e nem de português, mas davam lição de vida. Essas pes-soas fizeram a diferença.

Marco Zibordi - A literatura não te ligava em nada na escola?

Não, eu lembro bem da passagem que eu desco-bri da quarta para a quinta série, que tinha os drui-das. Eu gostava muito de história e aí eu perguntava para o professor, eu lembro muito de ter chegado e perguntado para o professor o que eram os druidas e o professor não sabia e aí ele falava: eu não estou dando aula sobre isso. Eu fazia fanzine, já criava uns logos com o fanzine e aí eu fui estudar a cultu-ra dos druidas para poder puxar para o fanzine os logos e tal, aí eu tinha uns interesses que na esco-la não tinha; eu gostava de quadrinhos e na escola não tinha. Eu lembro bem na oitava série de ter um livro de português e ter lá um texto do Arnaldo An-tunes e aí eu falei: puta finalmente na oitava série eu vou ver um cara que eu gosto dentro de um livro de português. Por que no resto não tinha nada.

Júlio Delmanto - E agora você está nos livros de português...

É parece que agora sou eu, pelo menos o mole-que olha e diz tem alguém aqui.

Lúcia Rodrigues - Você acha que a escola está distante da realidade?

Eu acho que a escola perdeu o foco total de qual-quer senso de realidade. Eu acho que a escola e a realidade não têm mais nada a ver e eu acho que uma geração inteira está errando de ir para a es-cola e os professores serem educados do jeito que são também. Por que os professores também es-tão ferrados.

Tatiana Merlino - Quando e como você começou a gostar de literatura?

Meu, não tem uma data assim. Tipo, eu não sei as-sim um dia eu acordei e falei agora eu gosto de lite-ratura, sabe? Mas eu lia sempre quadrinhos e gosta-va de Robert E. Howard que é o autor do Conan e aí eu buscava saber sobre o cara, e a biografia dos au-tores sempre me interessou mais e então eu comecei a buscar saber mais sobre os caras. Eu sempre tive um ensino paralelo ao da escola, então se eu gostava de Conan eu lia Conan no serviço e ia para escola, ti-nha que ler Aluísio de Azevedo ou tinha que ler Car-los Drummond de Andrade lá, mas o Carlos Drum-mond de Andrade lá não me interessava...

Lúcia Rodrigues – O que acha dos rappers tipo Gog, Racionais, Facção Central?

O Gog, o Racionais, o Facção Central, o Cons-ciência Humana, são a minha escola também, eu não existiria e toda uma legião de caras que exis-te hoje que gosta de literatura e rap, não existiria se não fosse eles. O rap, pra mim, junto com os caras é uma injeção, tá ligado? Que na verdade é pra quem tá com dor, quando eu vou em faculdade fazer pa-lestra tem um monte de gente que reclama, mas eu acho violento Facção Central, Racionais... Por que não é para eles, eles não precisam ouvir aquilo, eles não tão na cadeia, eles não tão usando droga, então

não precisa. É bem claro pra mim, as letras de rap no Brasil são as melhores letras do mundo, não existe um tipo de letra de rap no mundo igual as que exis-tem no Brasil. Um rap que o cara fala: No rio em que Jesus andou, o homem navegou e matou pela cor. Não existe em nenhum lugar no mundo um verso como o homem nasceu com defeito de fabricação, invés do coração uma granada de mão dentro do peito. É o tipo de letra que os caras fazem.

Lúcia Rodrigues - O que você acha dos partidos políticos, hoje?

Eu não tenho mais pensamento político nenhum. Eu acho que absteve, sabe quando você está can-sado de sexo que vira abstinente? Ainda bem que você não sabe. Você não é nem um sexo de o ou-tro, você é um ser morfológico que não tem sexo? É a mesma coisa eu na política, eu já trabalhei para deputado, já trabalhei para vereador e eu me senti muito mal depois, quando os caras são eleitos, por-que eu vejo que eu não consegui alcançar os objeti-vos dos caras da quebrada que tava com nós.

Lúcia Rodrigues - Para que partido especificamente?

Era para o PT. Eu sempre trabalhei de graça para o PT, muitos anos. Sempre vendi broche, sempre andei com bandeira na rua, sempre foi de graça, eu nunca ganhei um real, mas teve algumas pessoas do PT com quem eu trabalhei mesmo recebendo e que depois me decepcionou, decepcionou meus amigos e hoje eu tenho algumas pessoas dentro da política que eu valorizaria assim, mas que eu acho que tem diálogo, pelo menos comigo assim como amigo. O Eduardo Suplicy, que é meu amigo assim pessoal, também independente de política, é o único que é eleito para 8 anos e tá lá ainda, volta eu ligo para ele, ele vai, os moleques da quebrada ligam, ele vai. É o único presente, na verdade o Suplicy não é po-lítico, ele é um ser humano.

Tatiana Merlino - Mas e o PT em si? O que você se decepcionou com o PT?

Ah! Eu não sei, eu votei num partido que prome-teu outras coisas, entendeu? Não prometeu escân-dalo, não prometeu virar as costas na hora em um julgamento, não prometeu... O PT virou outra coi-sa, não é o que eu acreditava não. Não estou falan-do que tinha que ser revolucionário, que tinha que mudar tudo, que todo mundo sair de vermelho, mas era uma coisa que eu acreditava como moleque de favela que a favela ia mudar, entendeu? Mas eu tive que esperar o PCC chegar para mudar a favela, não foi o PT... A sigla foi outra, não foi o PT que mu-dou a favela, então nessas partes não é um gover-no autoritário ruim, mas também não é o governo dos sonhos que eu lutei, que eu vendi show, que o Góis morreu na estrada tentando lutar pelo partido, que eu vi muito amigo meu morrendo lutando pelo PT e ficando velho pelo PT, não era isso que a gen-te queria no poder e eu não tô falando só do Lula, tô falando de todo o partido.

Lúcia Rodrigues - O PCC mudou a favela em que maneira?

De toda a maneira possível que você pensa.

Lúcia Rodrigues - Positivamente?Depende da visão. Tem gente que pensa que é

positivo, tem gente que pensa que é negativo. Mas mudou.

Tatiana Merlino - Você pode falar um pouco dos dois lados, do lado positivo e do lado negativo?

O lado positivo é que a elite não sabe mais o que é a favela, não tem nem noção. O governo não tem noção do que é a favela mais, porque é outra fave-la, é outra coisa... E o lado negativo é que a popu-lação sempre vai ser oprimida.

Tatiana Merlino - O lado positivo é outra coisa como?

Não tem como explicar, assim... Mas mudou, eu, por exemplo, quando eu escrevi o Manual Prático do Ódio a favela era aqui, agora se eu for escrever sobre a favela agora é outra coisa. Por isso eu não escrevo mais sobre a favela, o meu próximo roman-ce não é mais sobre a favela, por que eu não faço mais questão da elite saber o que é a favela não, não me interessa mais...

Lúcia Rodrigues - Mas mudou exatamente o quê? Explica um pouco melhor.

Mudou tudo. Mudou a vida criminal, tem regra, mudou tudo o que você imagina na vida cotidiana da periferia mudou.

Lúcia Rodrigues - É um estado paralelo dentro da favela?

Poder paralelo? Não, é o poder. Esse negócio de dizer que é o poder paralelo, não existe o poder pa-ralelo, o Estado não manda na favela, quem disse que o Estado manda na favela? A PM vai lá manda o cara por a mão da cabeça e tudo, repudia o cara, mas depois o cara volta a ser da favela, entendeu? Por mais que os caras cerquem um motoboy, cer-quem o cara que está dentro do ônibus, bata geral em todo mundo eles vão embora e a favela conti-nua. Então mudou tudo e vai mudar mais ainda, tá em processo de mudança.

Lúcia Rodrigues - Mas houve regras fixadas claras? O que aconteceu?

Há regras fixadas claras e toda uma norma de conduta e de respeito que o Estado nunca conse-guiu impor.

Renato Pompeu - Quem impõe?O crime.

Otávio Nagoya – Para os moleques de dentro você acha que é melhor ou pior?

Por um lado é melhor, por outro lado não. Você imagina que a gente deixou de viver num estado em que você pisava no meu pé e você podia levar uma comigo e eu podia te matar; você podia pisar no meu pé e levar uma comigo e eu ter que me segurar e a gente ter que se segurar, mas ao mesmo tempo nós dois estamos regidos por uma força maior que pode não se segurar, entendeu? Então você pensa o que é melhor: você estourar o seu ódio ali na hora ou você viver sob constante ameaça de um ódio maior.

“A periferia de São Paulo pode

a qualquer momento”

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Tatiana Merlino - Mas morre menos gente?Morre menos gente, porque tem mais tensão.

Júlio Delmanto - Existe um papel do crime como mediação nos conflitos cotidianos?

Existe. O crime está em tudo em que o Esta-do nunca teve, o Estado deixou uma lacuna muito grande que o crime cobriu, você vai na delegacia prestar queixa de um carro roubado você fica 4 ho-ras sentado, sendo humilhado pelo policial, parece que você não foi roubado, parece que você roubou, entendeu? E o crime não. Você procura o crime ou ele resolve, ou não. Você no mínimo não fica 4 ho-ras sentado, você não fica na palavra de ninguém, entendeu? Então, onde não chegou o poder público o crime chegou, quando o poder público está cui-dando da elite, o crime está cuidando de outra par-te da cidade que é dele.

Hamilton Octávio de Souza - Esse distanciamento já vem de muitos anos, né?

Para mim a posição é bem clara, a mídia tem uma parte de criminalizar toda a periferia, então a periferia fez um protesto porque morreu uma jovem é o tráfico que mandou, sendo que não foi o trá-fico que mandou. A elite tem mais medo do povo do que do crime, então por isso que ela atemoriza todo mundo falando que é o crime, por que para ela é um jogo.

Hamilton Octávio de Souza – Como você vê essa separação que existe na sociedade brasileira?

Eu acho que a gente tem toda uma classe que-rendo se inserir e que não vai poder se inserir, não tem espaço, não tem organização. Então o cara tem acesso agora a comprar um carro importado parce-lado, ele tem acesso. Só que ele não tem onde por, não tem garagem, não tem estrutura para por o car-ro. O Governo Lula deu estabilidade para todo mun-do poder comprar um carro parcelado, uma casa parcelada, uma roupa parcelada, mas você não tem aonde por tudo isso, você não tem estrutura na que-brada para por tanto carro, os carros ficam no meio da rua, os açougues estão lotados, entendeu? Não tem comida boa, todo mundo come na mesma pi-zzaria. Não tem estrutura para se viver melhor. Não tem estrutura física para abranger gente que tem di-nheiro e o que se está dando é ilusão de que se tem dinheiro, é ilusão.

Hamilton Octávio de Souza - E qual é a saída para este tipo de coisa?

A saída é clara. A saída é... Já começou a saí-da há algum tempo. A saída tá na cara das pesso-as, só não vê quem não quer. A saída é que o povo já tá se mexendo, isso não é utopia minha, é reali-dade, quando você vê uma favela reagindo, quando você vê um ônibus queimando, não é o crime, por mais que a mídia queira, quando você vê as pesso-as que estão legitimadas como embaixadores da pe-riferia tendo acesso a dar entrevista, tendo acesso a falar, entendeu? Aí que a coisa tá difícil... Quan-do a gente tem que ser ouvido, que nem eu sou ou-vido, que nem os outros caras do Hip Hop são ou-vidos, os caras da literatura marginal são ouvidos,

quando a gente é ouvido, aí você começa a perce-ber que a gente tem uma importância e alguma coi-sa tá acontecendo, entendeu?

Lúcia Rodrigues - Mas tem alguma articulação? Vocês tem uma integração entre vocês? Como é que se dá isso?

É aí que a gente tem que ter medo, porque não tem articulação pensada. E quando não tem nada pensado é muito mais fácil fazer funcionar. Porque se num organismo por célula eu converso com tal e tal quebrada e organizo um manifesto é uma coisa que eu criei, certo? Ou a pessoa de outra quebrada lá da Leste criou. Agora quando é automático, quando eu ponho uma notícia de abordagem policial comi-go e todas as favelas mandam email dizendo: é isso mesmo, se precisar nós tamos juntos. Você pega e fala: Opa! Peraí, peraí! Eu não organizei nada disso mano! E tem gente de todos os lugares também, por quê? Porque o cara também tomou tapa na cara, o outro também foi baleado, então eu vejo medo na não organização, entendeu? Por que quando não tem organização, aí a elite tem que ter medo.

Lúcia Rodrigues - Vocês não se sentem representados pela política institucional?

Eu falo tranqüilamente em nome da população, que a população não tem um ou outro que pode até falar: não, eu voto em tal cara aí que é presiden-te da câmara, eu voto no tal deputado, eu voto. Por que? Porque ele ganhou. Você pode chegar nele, trocar idéia e ele falar: não, porque este telhado aí quem deu foi o cara. Então tem um apadrinhamen-to. Mas a grande população é revoltadíssima com a política.

Tatiana Merlino – O que tem de luta? Como é que é a luta e a resistência na periferia hoje?

A luta pelos meios intelectuais e pelos meios de produtos, né? Que lança independente, de fa-zer toda aquela corrente, sabe? De tentar galgar, de aprender a trampar, de aprender a pegar um pa-drão capitalista e mudar ele um pouco para não ser tão perverso, tem todo esse lado empresarial que a periferia tá pegando e vai pegar porque quando se tem um líder que é empresarial a gente vai seguin-do também e tem também toda uma outra luta que eu te falei, que é da população mesmo, a população está se conscientizando. O cara sofre, leva tapa, a chuva derruba o barraco dele, a mulher dele aban-donou ele, mas ele não acredita em Deus, entendeu? Ele tinha tudo para se apoiar, então, de todo tipo ideológico na periferia se tem: O movimento Punk, o movimento Rock, todo mundo está se organizan-do da sua forma, mano. Entendeu?

Lúcia Rodrigues – Como é a truculência da polícia dentro da favela? Atingem indiscriminadamente mães, pais de família, crianças, adolescentes?

Na verdade atinge... Tem vários tipos de opera-ção, depende da operação que tiver. Por exemplo, em Paraisópolis é o choque, então é mais violen-to, é mais forte, na verdade atinge quem é suspei-to, se eu tiver cara de suspeito eu tô aqui de tou-ca, pá, agasalho...

Lúcia Rodrigues - Mas o que é ser suspeito?Suspeito é ter cara de suspeito. É ter cara de fa-

vela...

Tatiana Merlino – Então todo mundo é suspeito, né?

Não, vocês aqui não, vocês passam batido lá. Se pôs uma touca é mais suspeito... Ou seja, todo mo-rador é suspeito, você tá andando ali, o cara te para: você tá indo aonde? Mas é quê, que o quê? Você é do tráfico. Tipo um amigo meu tava andando com um caderno que a gente tava escrevendo um conto junto e ele foi parado esses dias e o cara perguntou: Esse caderno é o do tráfico? Entendeu? Ele falou: Pô! Me respeita mano, eu tô escrevendo, eu sou es-critor, mas o caderno é o do tráfico. Entendeu?

Júlio Delmanto - É uma violência cotidiana que você, que os seus amigos sentem. O que isso gera na vida de uma pessoa?

Isso vai gerando. O dia que os caras enquadra-ram a gente, eu e todos os líderes do hip hop ao mesmo tempo, vai gerando que a população toda se juntou e falou: Ei que é isso aí? Vai tumultu-ar os moleques? Os moleques tão só conversando. E aí gerou que os próprios polícias ficaram baten-do rádio um pro outro dizendo: Meu, estão tudo junto aqui e alguma coisa eles vão fazer. E aí gera que fica todo mundo com medo, cara. Eles tam-bém têm medo.

Otávio Nagoya - Você acha que o que aconteceu em Heliópolis é processo de que o povo não vai aguentar mais ser agredido assim?

Ó, eu tenho certeza absoluta do que eu vou te fa-lar, vai chegar um dia que uma agressão a um me-nino ou a uma menina vai virar uma revolução em São Paulo inteira e São Paulo não vai se controlar vai pegar fogo São Paulo inteira. Uma agressão. Vai chegar num momento que um cara vai tomar um tapa na cara que vai despertar o ódio de todo mun-do de todas as quebradas e aí haja mentira para a mídia mentir. Porque eu quero ver o que ela vai fa-lar. Isso não é criminal, estou falando de população, a população não aguenta mais, quando se chega a um nível que a mãe fala pro filho: vai filho, corre senão a polícia vai te pegar, corre lá para dentro, aí você vê que a criança já está crescendo já em esta-do de, entendeu?

Barbara Mengardo - E você acha que está chegando essa hora?

Eu acho que a gente não vai saber o timing dela não. Quem tá na favela vai sentir, eu senti os aten-tados 3, 4 meses antes, fiz até um artigo para a Ca-ros, porque você sente o clima. Tá muito tranqüilo mano, tá muito na moral, tá muito... Muito... En-tendeu? Meu, pensa você morar em um lugar e do nada chega uma força tarefa, todo mundo de pre-to, com fuzil na mão, xingando criança, xingando dona de casa, revirando tudo as casas, revirando tudo e não explica nada e vai embora. Treinamen-to, cara, sabe, o cara pega o batalhão dele e vai trei-nar na sua favela, mano.

Lúcia Rodrigues - Você disse que de repente

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um tapa na cara vai gerar uma insatisfação tão grande que as pessoas vão se levantar, o que é isso? Uma inressurreição, uma revolução, o que vem depois?

Não, é incalculável, não dá para responder. Aí eu ia ser profeta se eu falasse para você. Isso não tem como responder porque é impensável, a população, a massa ela é pensante de uma forma totalmente diferente da minha, eu sou intelectualóide demais para a massa. Eu tô dentro da quebrada, eu respiro a quebrada, mas ao mesmo tempo eu leio Dostoie-vski na minha casa, então é outro pensamento, en-tendeu? Eu faria queimar as lanchonetes america-nas, o povo vai onde primeiro achar, vai nos postos de saúde, no bar mais pobre e quebra tudo, enten-deu? É outro ponto de vista, não tenho legitimida-de para ter o pensamento certo sobre esta respos-ta, tendeu?

Tatiana Merlino – O povo vai esperar morrer uma menina? Quando? Como?

Pelo que eu acho, as pessoas vão ativar quan-do tiverem que ser ativadas, só vai acontecer quan-do tiver que ativar, se tiver que morrer 100 pesso-as não vai ser ativado, mas se tiver que morrer um vai. É mais problema do que uma simples resposta, entendeu? É mais problemático resolver isso, que uma simples resposta.

Lúcia Rodrigues - O PCC funciona de que maneira? É por aí que vai vir a articulação ou não?

Tem nada a ver com criminal, chega uma épo-ca na nossa vida que o povo é povo e crime é crime,entendeu? Por mais que o crime seja do povo, povo é povo e crime é crime, trabalhador é traba-lhador e criminoso é criminoso. Então a articula-ção vem do povo, é muito mais perigoso do que o crime.

Lúcia Rodrigues – A população respeita mais o PCC ou a polícia?

A população tem medo da polícia, entendeu? Respeita mais o PCC ou admite mais o PCC, tem mais medo da polícia. De uma certa forma a polí-cia causa mais medo.

Hamilton Octávio de Souza – O que se faz para vencer o medo?

Medo não se vence. Medo vira ódio, as pessoas estão odiando tudo por causa de medo, medo vira ódio. Todo mundo tá com ódio, já apanhou demais, já sofreu demais, é muita coisa contra, entendeu? Não tem muita semente de esperança não para o cara, vira só ódio, e ódio se faz de várias formas, quando você vê um cara estourando com a mulher dele em casa, aprisionando ela, ela é refém dele, não é ciúme não, é ódio. Quando você vê um assal-to a uma lotação virar uma chacina, é ódio. Quan-do você vê os policiais chegando na quebrada ma-tando um monte de gente porque não sabe quem é comando e quem não é, é ódio... Tudo é explo-são de ódio, a esperança não sobrevive a nada dis-so não, entendeu?

Júlio Delmanto - Você falou do papel da

polícia – e o papel do sistema prisional aí nessa história?

Se acha que ser preso dá medo? Dava medo, mano, dava medo. Se eu for preso hoje vou ser ben-quisto aonde eu for. O cara aí que tá lá na quebrada, já foi motivo de medo, por mais que a cadeia seja cruel, ou não tenha comida decente, tendeu? É ou-tra coisa a cadeia, mudou. A única arma do Estado de pânico ela foi neutralizada já, há muito tempo.

Marcelo Sales - Você escreveu em um dos seus textos que você é buscador de autoestima e incentivador de ódio. Por que incentivar o ódio?

Porque as pessoas têm que odiar da forma odio-samente correta. Tem que odiar o certo, para gente parar de pisar no pé do outro a gente precisa pisar no pé do cara certo. Eu falo que sou incentivador do ódio do caos moderno.

Tatiana Merlino - Para transformar?Para transformar também, para destruir, para

crescer, para regenerar, para nascer de novo. Para mim levantar uma bandeira de paz de um lado eu tenho que levantar uma bandeira de ódio do outro, a Bíblia ensinou isso para gente. O senhor das ba-talhas que foi Jesus Cristo ensinou isso para gente você levanta uma espada na mão para poder coor-denar a massa para um certo tipo de guerra.

Lúcia Rodrigues - Que tipo de ódio?Ódio que volta, que não só vem. Tem que ter

ódio que volta, o cara tem que pegar um ônibus e na hora que trombar com um boy desses aí e o boy falar: Tó, toma, estaciona meu carro. Pô! Cara eu

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não sou manobrista não, pega a sua chave e enfia naquele lugar. E não abaixar a cabeça e falar: Não senhor, eu não sou manobrista. Ódio que volta, eu tô cansado de ódio que vem, entendeu? Tô cansado de entrar em um lugar e o cara falar: O quê o senhor deseja? Mas você não parou ninguém, numa livra-ria você vem parar logo eu, ninguém você parou. Não, mas eu tô perguntando o quê o senhor dese-ja. Aí o cara começa a te seguir pela loja, mas não segue ninguém, isso enche o saco... Uma hora isso enche o saco, entendeu?

Renato Pompeu - Quando você escreve ficção tem em mente o público da periferia ou o público de fora da periferia?

Eu escrevo para periferia mano, quem lê de fora é bastardo. Eu só escrevo para a periferia, toda vez que eu escrevo um conto eu penso: O moleque vai entender? Vai. Então...

Tatiana Merlino - E como é popularizar a literatura na periferia? Quanto custa um livro seu?

Então, meus livros custavam o preço de edito-ra normal até esse ano. Eu sempre busquei acordo com as editoras para sair mais barato, nunca teve resposta, não tem jeito. O mercado não aceita, então eu montei um selo chamado selo povo que a par-tir desse mês já sai um dvd e vai sair um livro ago-ra a cinco reais. Por enquanto tá cinco reais esse novo livro meu, e aí todo mundo pergunta: Como é que você vai fazer a cinco reais? Meu, o autor já não ganha nada, então pra mim não ganhar nada é a mesma coisa. Então eu faço por convicção e não

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faço por dinheiro, então eu tô pagando do meu bol-so essa edição e a editora vai lançar vários autores também a cinco reais.

Renato Pompeu - Você sente que a sua ficção repercute de forma diferente na periferia do que repercute fora da periferia?

Totalmente diferente, totalmente. O cara de fora é como se fosse uma coisa exótica, então cara fala assim: Porra, mas naquele conto dos crentes, muito loco, dei risada demais, mano. Aquela parte lá que o cara troca idéia na igreja, tal. Para você vê como é que é interessante como que o crente pode falar gíria? Então você tem uma introspecção fora, den-tro não, os moleques falam: Nossa, Férrez, aquela parte que o crente fala gíria com o outro é muito louco, por que eu tava na igreja e é a mesma coisa o demônio não saiu, ele tá lá dentro o demônio e a gente fala que o demônio nessa igreja não sai, essa igreja é mó pilantra. Então você vê que é outro tipo de entrar, entendeu?

Renato Pompeu - Quando você cria ficção que peso você dá para a forma e conteúdo?

Eu sempre tento achar que aquele conto ele tem um sentido no mundo, por que se ele não tiver um corpo não basta escrever ele. Então eu já escrevi his-tória que ela era vazia de alma, a história tinha um puta diálogo e tal, mas vai chegar aonde? Entendeu? Eu tenho muita vontade de escrever sobre ser huma-no, entendeu? Favela, clausura, regime semiaber-to, fechado. Eu gosto muito de focar o ser-humano também, os sonhos e a vida de ser-humano.

Marco Zibordi - Queria que você dissesse o que é a literatura marginal.

Literatura marginal, meu é muita coisa, mas é o rap da literatura, literatura marginal é os mole-ques escrevendo direto. Literatura marginal os mo-leques fizeram dia desses, bateram o rádio pra mim: Aí mano, tem um amigo meu que tá escrevendo uns bagulho e quer saber como ele te manda, uns ba-gulho escrito para ti, que ele tá fazendo umas para-das escritas, uns textos, uns bagulhos velho lá e ele quer te mandar. Aí quando você vai ler você fala: Caralho meu! Bom para caralho! Literatura margi-nal é um cara chegar pra ti e falar: O tio, eu tô es-crevendo uns contos aí, pá, uns textos e eu queria ver como é que faz para lançar. Literatura marginal é a gente trocar idéia com moleque, literatura mar-ginal é a minha paixão de onde eu tiver eu conven-cer alguém pela literatura, eu nunca deixei de ser apaixonado pelo que eu faço.

Lúcia Rodrigues - Você já pensou em ser político? Por que este trabalho que você faz é de um vereador, de um deputado que vai acompanhar a área que ele tem atuação. Você já pensou alguma vez em se candidatar?

Meu, pra mim o político ele é que nem um cara andando armado, ele está mal intencionado. Não tem jeito, se eu virar político vão me dar um car-ro com placa preta, vai me dar o conforto de umas passagens de avião, vai me dar uns bagulhos que é para anestesiar. Prefiro ficar na literatura, na ver-dade esse bagulho político quando eu começo a fa-

lar muita gente fala, eu acredito que eu sou político desde que eu nasci, eu faço política também, mas de certa forma a minha hombridade não é patenteada pelo Estado, o Estado não me dá nada.

Felipe Larsen - Mas já te convidaram alguma vez?

Já me convidaram, já teve reuniões que já me chamaram, que falaram que meu nome foi cotado. Também, mas outros partidos também de esquerda e um partido de direita também chegou a me convi-dar. Chegaram a me convidar e na reunião eu falei não também, e falei que não tinha interesse.

Lúcia Rodrigues - Você não acha que partido de direita é inimigo dessa população que mora na periferia?

Acho que todo político é inimigo, mano, já vi-rou uma coisa. À medida que um cara vê uma desa-propriação dessa, o cara não cola, o cara não ajuda, ele vê uma polícia dessa ostensiva que ele não aju-da, não tem PT, é inimigo, entendeu? Quando sur-giu uma emergência no Rio eu não esqueci o que o Lula falou, o Lula falou que tem que ter uma repres-são maior a esse pessoal aí, ele falou isso, morreram quantas pessoas no morro? As pessoas que tinham votado nele morreram no morro, quando um diri-gente fala em público que tem que ter uma repres-são maior nisso, ele sendo de esquerda ou de direi-ta, esse cara é responsável pelas mortes das pessoas que vão morrer ali.

André Hermann - A igreja evangélica é também um tipo de droga na periferia?

A igreja evangélica é uma coisa maravilhosa, os pastores têm um trabalho comunitário que é uma

piada, o cara está vendo o caos ali, mas o cara é uma criatura, mas ele está sofrendo pastor, acabou de levar um tiro, não deixa ele, que ele é criatura, ele está no mundo das drogas, não vamos nos in-trometer com esse povo, com essa raça, porque nós somos de Deus. Eu vejo essa distância, eu vejo que a igreja evangélica podia fazer um trabalho muito maior e não faz, e quando faz, faz show.

André Hermann - E as igrejas católicas?As igrejas católicas têm um trabalho comunitá-

rio mais forte, ela faz um mapa do cara que tá sem uma comida e manda, o padre organiza uma quer-messe. Eu vejo muito o trabalho da igreja católica em lugares que não chega nada, eu não estou de-fendendo a igreja católica, por que ela deve pra nós a vida toda também, mas tem um trabalho ali que é mais conciso com a comunidade, como o padre está sempre dentro da comunidade, não está via-jando de jatinho que nem os pastores, o padre está ali fazendo um trampinho ou outro. A diocese fun-ciona, entendeu?

Tatiana Merlino - Você é ateu?Eu não sou ateu por que eu não li a bíblia dos

ateus, eu estou procurando essa bíblia faz um tem-po, entendeu? Mas eu não sou ateu, não sou agnós-tico, não sou nada disso, eu sou só um ser-huma-no que escreve.

Tatiana Merlino - Você acredita em Deus?Eu queria que ele acreditasse em mim, é verda-

de. Como eu ainda não sei se ele acredita em mim, eu ainda não posso dizer que acredito nele. Mas se ele acreditar em mim eu começo a acreditar nele, porque aí a gente vai se entender.

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Está provado: Deus existe.E não foi preciso discussão mística nem pro-

va científica, nada. Um belo dia o céu se cobriu de nuvens escuras e quando todos pensavam que mais um temporal ia parar São Paulo, um mon-te de anjos com espadas de fogo e outros ape-trechos bíblicos desceu do céu, interrompeu o William Bonner e anunciou: – Ó, Deus vem aí fa-lar com vocês.

E Ele veio. E falou pras tevês do mundo todo, pra não dizerem que estava privilegiando essa ou aquela emissora. E recordou os seis dias em que criou o universo. Ô semaninha agitada! E se lem-brou das conversas com Adão e Eva (evitem coi-sas com M: maçã, maconha...). E rememorou sua fase minimalista, quando escreveu os mandamen-tos. E ainda os conselhos que deu a Jesus (se be-ber na ceia, não dirija!), a Santa Inquisição... Não, esse pedaço Ele pulou. E foi logo pro motivo de sua vinda.

E Deus disse com todas as letras que está de saco cheio da humanidade. Já enviara dicas, in-diretas, sinais, mas nem com o tsunami que man-dou há cinco anos a gente se tocou. Agora, ou to-mamos jeito ou Ele vai levar todas as formas de vida pra Marte e recomeçar por lá, sem a gente por perto pra atrapalhar.

Nem a morte de Jesus repercutiu tão fundo na humanidade. Todos querem se converter. Deus gostou, mas surgiu um problema: para qual reli-gião? E os líderes religiosos correram pra falar pes-soalmente com Ele. Mas na porta do Hilton onde Deus e sua comitiva se hospedaram, já estavam políticos de todo o planeta fazendo fila pra tirar foto com o Todo Poderoso. E corria o boato que na suíte divina representantes da Disney, da Micro-soft, da Coca-Cola e da Nokia apresentavam suas ofertas para patrocinar Deus.

Mas um anjo que saía pelos fundos do hotel teria dito ao William Bonner que Deus não está mais entre nós e foi visto se reunindo com castores, golfinhos e outros animais e mandando eles construírem uma arca.

Era dezembro de 2001 e entrevistávamos, aqui na Caros Amigos, Luiz Marinho, então presiden-te do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, ex minis-tro da Previdência do governo Lula e atual prefeito de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. A entrevista foi boa (Caros Amigos, edição 57) e confirmou o bom preparo político e intelectual que têm os sindicalis-tas formados nos embates sindicais dessa região al-tamente industrializada.

Como é bem conhecido, Marinho é um pupilo di-leto do presidente Lula e um discípulo de trajetória parecida. Começou no sindicalismo e passou para a política.

Certa altura, perguntei ao entrevistado o que achava da frase do senador Fernando Henrique Car-doso em seu discurso de despedida do Senado, afir-mando que sua principal tarefa como futuro presi-dente seria “desmontar o estado Varguista”. Marinho respondeu: “eu também sou contra o estado Varguis-ta”. Assim de chofre fiquei um tanto surpreso, mas logo me dei conta que essa resposta era coerente com a formação dessa geração de sindicalistas, bem como com a formação teórica e política no PT.

Ressalvo que Marinho deveria estar se referindo principalmente à estrutura sindical montada por Var-gas, em particular a contribuição sindical obrigatória e a unicidade na base territorial.

Feita a ressalva, retorno ao meu tema. O pri-meiro programa do PT foi muito influenciado pela esco-la “uspiana” de sociologia, com seu representante mais vistoso, o sociólogo Francisco Weffort, que por anos presidiu o PT e se bandeou para o PSDB, assumindo o Ministério da Cultura no primeiro governo de FHC.

Quando fiz história na USP, final dos anos 70, os alunos das ciências humanas aprendiam que Vargas foi um ditador populista que aparelhou os sindicatos, criou a pelegagem, outorgou uma constituição fascista ba-seada na Carta del Lavoro, do fascista Benito Mussolini e por aí vai. Também aprendíamos que qualquer refe-rência à defesa dos interesses nacionais, de um proje-to de país independente e de luta anti-imperialista era um discurso atrasado, já que a luta de classes era entre patrão e empregado e defender os interesses nacionais era, no fundo, escamotear a luta de classes.

Bem, é fato que de 1937 a 1945, no Estado Novo, Vargas governou como ditador, aparelhou os sindica-tos, vicejaram os grandes pelegos, e, com a polícia de Filinto Müller, prendeu e torturou militantes políti-cos. Tudo isso foi execrável. Mas esquecer que o Bra-sil e o Estado tal qual hoje o conhecemos foram uma criação do Vargas, e que, para milhões de trabalhado-

Nacionalista, eu

Wagner Nabuco

Wagner Nabuco é historiador.

res e pobres, houve avanços reais, isso sim é uma mis-tificação histórica. As realizações foram muitas, cito as mais importantes: a criação da Petrobras e a lei do monopólio do petróleo, a Eletrobrás, a consolidação das leis trabalhistas (a sonhada carteira de trabalho), a siderurgia nacional, a Vale do Rio Doce, a taxação dos lucros das multinacionais, o salário mínimo nacio-nal com aumentos reais e muito mais.

Mas em São Paulo , núcleo duro do conservado-rismo nacional, nada disso vale. Os paulistas, influen-ciados por sua elite retrógrada, até hoje não se refi-zeram da derrota de 1932. Aliás a família Mesquita, representante dessa elite, dona do Estadão e funda-dora da USP foi uma das mais importantes articula-doras do levante derrotado de 1932.

Relembro tudo isso à guisa do discurso do presidente Lula, quando do lançamento do novo mo-delo de exploração do petróleo na camada do pré-sal. Não esperava tanto. É certo que nos últimos dois anos, cá e acolá, apareceram falas do presidente que se aproximam do discurso do trabalhismo histórico, teorizado por gente do naipe de Darcy Ribeiro e Al-berto Pasqualini.

Parece que os embates do dia a dia do governo que Lula presenciou e, como brasileiro que veio lá dos fundões, apaixonado pela nossa gente, mas acima de tudo um homem pragmático, o levaram a repensar suas originais influências teóricas (surgimento do PT) e a aproximá-lo de um discurso e ações que ressaltam a necessidade de um projeto nacional independente. A palavra soberania não causa tanta estranheza nas fa-las do presidente e de petistas históricos.

Alvíssaras. Aos demotucanos e pendurica-lhos, herdeiros do moralismo cabotino udenista, as vi-úvas chorosas de Carlos Lacerda, Bilac Pinto, Eduardo Gomes, Roberto Campos, Sandra Cavalcanti, defenso-res do nosso alinhamento aos Estados Unidos e para sempre produtores de “commodities”, resta apresen-tar e disputar no voto um projeto alternativo de go-verno, Estado e nação. Se continuarem na velha can-tilena moralista, antiga desde 1945, serão atropelados no processo de desenvolvimento do nosso país. Ou, para repetir um clichezão: “seu destino político será a lata de lixo da história”.

PS: Depois de escrito esse artigo, o acordo estraté-gico entre Brasil e França para defesa nacional, com transferência ilimitada de tecnologia e a recente en-trevista que Lula deu ao jornal Valor Econômico refor-çaram minha impressão aqui descrita.

Cesar Cardoso

Cesar Cardoso é escritor e tem o blog PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com)

Ei, você viu DEUS por aí?

Cesar Cardoso é escritor e tem o blog PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com)

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Lúcia Rodrigues

o acordo firmado entre a CUT, Força Sindi-cal, CGTB, UGT e o governo federal, e que deve ser aprovado em breve na Câmara dos

Deputados, ficou aquém das expectativas dos apo-sentados brasileiros. A decisão é contestada pela Cobap (Confederação Brasileira de Aposentados e Pensionistas), que não reconhece nas centrais sindi-cais legitimidade para fechar acordos em nome dos trabalhadores aposentados com o Executivo. “Que-remos que os projetos do senador Paulo Paim (PT-RS) é que vão à votação”, destaca o presidente da Cobap, Varley Gonçalves.

O senador petista tem sido o principal aliado dos aposentados no Congresso Nacional. São de autoria

dele os projetos de lei que preveem o mesmo percen-tual de reajuste para os beneficiários que recebem acima do salário mínimo e os que ganham o piso. Paim também quer extinguir o fator previdenciário, mecanismo que achata o salário do trabalhador em até 40% no momento em ele que sai da ativa. O par-lamentar também está empenhado em aprovar uma emenda à Constituição que veta o bloqueio ou con-tingenciamento das dotações orçamentárias desti-nadas à seguridade social pelo Executivo.

Os três mecanismos que penalizam milhares de aposentados foram introduzidos no cenário nacio-nal pelo governo do ex presidente Fernando Hen-rique Cardoso, na década de 90. A proposta acor-

dada entre as quatro centrais sindicais e o governo Lula atenua as perdas causadas ao longo dos anos pela administração tucana, mas mantém distorções ao não garantir a isonomia no percentual de rea-juste dos vencimentos entre os aposentados que re-cebem acima do salário mínimo e os que ganham o piso salarial.

O teto das aposentadorias pagas pelo Ministério da Previdência Social aos segurados do INSS é de R$ 3.218, 90. Em julho, o Ministério pagou benefícios previdenciários a 23.213.354 segurados, dos quais 14.401.629 (62%) receberam o salário mínimo.

Pelo acordo, a partir de 2010 os aposentados que recebem até um salário mínimo terão o benefí-cio corrigido pela variação de 100% do crescimen-to do PIB (Produto Interno Bruto) de 2009, além da reposição da inflação. Já para os aposentados que ganham acima do piso, o índice de reajuste em re-lação ao PIB cai pela metade.

O dirigente da Confederação é um dos inúmeros brasileiros que teve os benefícios previdenciários reduzidos ao se aposentar em função do fator previ-denciário. “Era para eu ganhar o teto, mas só rece-bo R$ 1.400”, lamenta. Varley se aposentou há seis anos após ter trabalhado por três décadas na mesma empresa. As condições de insalubridade permitiram que ele se aposentasse pela legislação especial.

Acordo firmado entre centrais sindicais e governo Lula atenua prejuízos, mas mantém distorções. Proposta deve ser votada ainda este ano na Câmara dos Deputados. Novas regras devem entrar em vigor em 2010. Ilustração Aldo Gama

PREVIDÊNCIAGoverno mantém perdas para 38% dos aposentados

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Ele teme que a manutenção de um índice dife-renciado de reajuste entre os segurados provoque, em alguns anos, uma forte concentração de apo-sentados na faixa de um salário mínimo. “A ten-dência é que daqui a algum tempo todos passem a ganhar o salário mínimo”, endossa o temor, o se-nador Paim.

A decisão acordada entre as quatro centrais sin-dicais e os representantes do Executivo, além de perpetuar a distorção no reajuste dos vencimentos desses aposentados em função da manutenção de percentuais diferenciados, também estabelece cláu-sulas de barreira que condicionam o acesso dos tra-balhadores à aposentadoria. Ao extinguir o fator previdenciário, fixa novas regras que criam o fa-tor 95/85.

Se aprovada a proposta pela Câmara, os traba-lhadores que quiserem se aposentar vão ter de cum-prir uma clausula de barreira especificada por uma fórmula que associa idade a tempo de contribuição previdenciária. A nova regra fixa que para se apo-sentar com o valor integral do salário, o homem de-verá ter completado 60 anos de idade e contribuído por 35 anos com a previdência social. Para as mu-lheres, o tempo de contribuição fixado fica em 30 anos conjugado à idade mínima de 55 anos.

A atual regra vigente do fator previdenciário ba-liza o cálculo para se chegar ao valor do benefício a que o segurado terá direito, em uma fórmula mate-mática que leva em consideração a idade, alíquota e o tempo de contribuição no momento da aposen-tadoria, associada à expectativa de vida, prevista na tabela do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). As mulheres são as maiores penaliza-das pela regra atual, em função da expectativa de vida delas ser superior a dos homens.

Quintino Severo, secretário geral da CUT, uma das quatro centrais signatárias do acordo, justifica a decisão argumentando que o governo federal ve-taria a proposta de reajuste isonômico para todos os aposentados. “Defendemos que o reajuste dos apo-sentados não pode imobilizar a reposição do salá-rio mínimo. O governo disse que era impossível dar o mesmo índice de reajuste para todos os aposen-tados”, argumenta.

A tese defendida pela Central é contestada pelo senador Paim. “A CUT nesse caso foi mais conser-vadora que o Senado, que é considerado uma Casa conservadora”, alfineta. O petista considera que as centrais deveriam centrar fogo na pressão em cima dos parlamentares, com mobilizações populares, pela aprovação dos projetos de sua autoria que já foram chancelados no Senado.

Outra crítica que o senador tece é em relação à manutenção da DRU (Desvinculação de Receita da União) pelo Executivo para a dotação orçamentá-ria da seguridade social, onde estão abrigados, além dos recursos destinados à previdência social, tam-bém os das áreas de assistência social e da saúde. O mecanismo admite o desvio de até 20% das recei-tas da dotação destinadas ao pagamento dos bene-fícios previdenciários, para qualquer tipo de gasto que o governo venha a ter. O pagamento de juros é um dos itens para os quais os recursos da previ-dência têm sido direcionados.

O ministro da Previdência Social, José Pimentel,

foi procurado pela reportagem da Caros Amigos, por intermédio de sua assessoria de imprensa, para comentar as questões, mas não se pronunciou.

O desvio de recursos previsto pela DRU foi pos-sível devido à legislação aprovada na gestão do tu-cano e mantida intacta na do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O governo Lula chegou a cogitar do-brar o seu percentual. “Em 2005, quando se discu-tia a tese do déficit nominal zero defendida por An-tonio Palocci e Delfim Netto, o governo pensou em elevar o percentual para 40%”, relembra o professor da Economia da Unicamp, Eduardo Fagnani.

O docente é especialista em políticas públicas e em particular em previdência social. Defensor da Constituição de 1988, ele explica que as conquis-tas asseguradas pela Carta Magna na área da segu-ridade social representaram avanços importantes e que, por isso, sempre estiveram na mira do pensa-mento conservador.

O texto constitucional brasileiro seguiu o mo-delo previdenciário dos países da OCDE (Organiza-ção para Cooperação e Desenvolvimento Econômi-co) que reúne as nações mais industrializadas do mundo. O modelo desenhado pelos constituintes baseou-se no princípio da solidariedade. Por isso, foi possível garantir, por exemplo, que os traba-lhadores rurais tivessem assegurado o direito ao re-cebimento de aposentadoria, apesar de não terem contribuído com o fundo.

MItos NEolIbERAIs

Ao contrário do que tentam fazer crer os neo-liberais, ao propagar a falsa ideia de que a Consti-tuição de 1988 criou direitos sem prever fontes de arrecadação para o seu sustento, o artigo 195 da Constituição Federal derruba essa falácia, ao dis-por sobre o estabelecimento de uma cesta de re-cursos para financiamento da seguridade e conse-quentemente para o pagamento dos benefícios a aposentados e pensionistas. “A afirmação dos ne-oliberais de que a Constituição de 88 só criou des-pesas, sem fontes de receita, é outra mentira”, afir-ma Fagnani.

Antes da promulgação de 1988, os recursos que bancavam a previdência social vinham basicamen-te da contribuição sobre a folha de pagamento em que patrões e empregados participavam com per-centuais distintos, além da presença do governo. Com a promulgação da Carta Magna foram cria-das contribuições específicas para subsidiar o or-çamento da seguridade social como, por exemplo, Cofins (Contribuição para o Financiamento da Se-guridade Social), CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido).

Fagnani conta que a elite não digeriu até hoje os avanços previstos na redação constitucional. “A questão de fundo é que nunca admitiram um mo-delo que pega 8% do PIB e vincula à seguridade so-cial. A classe dominante e seus interlocutores, como a imprensa, queriam que esse percentual estivesse disponível para o governo pagar juros da dívida.”

O senador José Sarney (PMDB-AP), à época pre-sidente da República, afirmou em cadeia de rádio e televisão, pouco antes dos constituintes promulga-rem a Carta Magna, que se o texto proposto fosse aprovado pelos parlamentares tornaria o país ingo-

vernável. A tese advogada por Sarney era a de que os avanços sociais previstos na redação constitu-cional levariam o Brasil à insolvência.

O objetivo da elite, verbalizado e expresso na fala de Sarney, era justamente o de conter os avan-ços sociais previstos na redação do texto constitu-cional, mais especificamente no que tange ao capí-tulo que dispõe sobre a seguridade social.

A partir de então a voz conservadora não ces-sou os ataques às conquistas asseguradas, ao mes-mo tempo em que defende a necessidade de se re-formar à previdência social brasileira. O principal argumento utilizado para justificar a reforma é o de que a previdência é deficitária. O docente da Uni-camp contesta essa versão. “Quando se fala que a previdência tem déficit, se mente à luz da Consti-tuição. É uma atitude no mínimo leviana”, frisa. O senador Paim reforça os argumentos de Fagnani. “Nos últimos 10 anos a seguridade teve superávit de R$ 400 bilhões. Só no ultimo ano o superávit foi superior a R$ 50 bilhões”, destaca o petista.

Os neoliberais, no entanto, insistem em afirmar que ocorreu o crescimento da despesa. A tese é recha-çada por Fagnani. Para o economista da Unicamp, o X da questão reside no fato de que o mercado de tra-balho ter sido comprimido ao longo de duas décadas e meia e na ausência de crescimento econômico.

“Tivemos 25 anos de estagnação econômica. O problema da previdência não é de despesa, mas de receita, de arrecadação. E arrecadação depende do quê? Depende do crescimento da economia, do mercado de trabalho, de carteira assinada. Duran-te 25 anos nossa taxa de crescimento foi em média de 1,8%”, conta. Ele considera que a segunda ges-tão do presidente Lula melhorou significativamen-te o crescimento econômico do país.

“Todo o pensamento neoliberal se apoia em mi-tos, falsas verdades e no senso comum. Essa ideia que se criou, não tem nenhuma sustentação. É uma mentira”. Para o professor, há uma jogada por trás desse discurso crítico em relação à previdência so-cial nos anos 90. “Queriam abrir o mercado ao ca-pital privado”, alerta.

Os bancos e as seguradoras são os principais be-neficiários dessa estratégia. A criação de um teto para as aposentadorias previstas no regime geral de previdência social também serviu a esses interesses. “Quando se cria um teto, se abre um enorme espaço para os grandes bancos internacionais e nacionais avançarem. Por isso, detonam. Agem ideologica-mente, porque estão de olho nesse filão”, adverte.

A reforma realizada no final dos anos 90, pelo governo do ex-presidente Fernando Henrique Car-doso, além de mexer na previdência dos trabalha-dores cobertos pelo INSS, pavimentou o caminho para os banqueiros, ao regulamentar os planos de previdência privada. O estabelecimento de um teto para os benefícios pagos pelo INSS induziu milha-res de trabalhadores a buscarem uma previdência privada, para complementar a renda.

O governo Lula também prosseguiu com a regu-lamentação dos planos de previdência complemen-tar fechados, nos quais os sindicatos podem gerir e incentivar seus sócios a aderir a esses planos de previdência privada, que também contribuem com a movimentação da ciranda financeira.

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Lúcia Rodrigues é jornalista.

“Me aposentei com nove salários mínimos e hoje recebo dois...”

O metalúrgico Antonio Valeri trabalhou 35 anos antes de se aposentar. Poderia ter saído da ativa an-tes, em função da aposentadoria especial por insa-lubridade que o cargo de pintor de automóveis, que desempenhou por 28 anos na Ford, garantia. Prefe-riu continuar trabalhando, para robustecer o futu-ro benefício previdenciário, a antecipar o descanso previsto na legislação trabalhista.

A certeza de uma vida digna ao lado da mulher, logo após se aposentar em 1988, foi se frustrando ao longo das duas décadas. Valeri viu sua aposenta-doria sofrer um achatamento drástico. O sonho aca-bou se transformando em pesadelo. “Me aposentei com nove salários mínimos e hoje recebo dois e um pouquinho. Eu não entendo isso”, lamenta.

As adversidades da vida nunca foram motivo para desanimar o italiano de Strangolagalli, cida-de localizada na região metropolitana de Roma, que chegou ao Brasil em 1953, com 19 anos de idade, em busca de uma vida melhor. Não tinha parentes, nem amigos, nem dinheiro. Dormiu uma semana na rua até conseguir uma vaga em um quarto, que o proprietário aceitou fiar até ele encontrar trabalho. “Naquela época não tinha perigo.”

O primeiro emprego veio por indicação do dono do bar onde ele guardava a mala enquanto saía para procurar trabalho. Começou a abrir buracos no solo para a instalação da rede de esgoto. O trabalho era pesado e o salário minguado. A condição de imi-grante sem documentação legalizada manteve Va-leri no emprego até encontrar outro que o remune-rasse melhor.

Agora já não dormia mais ao relento, mas os bens materiais limitavam-se a uma cama com col-chão e uma coberta fina. “Demorei seis meses para

comprar o travesseiro”, relembra.Valeri não esconde a indignação de ver a apo-

sentadoria corroída pelas perdas acumuladas ao longo de anos. “Trabalhei 35 anos e agora passaria fome se os meus filhos não me ajudassem. A gen-te tem de ir à feira, farmácia, ao mercado, sacolão, não dá, não dá mesmo. Os aposentados no Brasil são maltratados, pisados, esmagados.”

Ele critica a decisão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de desvincular o índice de reajus-te dos aposentados do percentual aplicado ao piso. “O Fernando Henrique chamou a gente de vagabun-do. Mas vagabundo é ele, que se aposentou com 39 anos de idade”, devolve.

O descaso em relação aos aposentados é apon-tado por ele como um desrespeito a quem ajudou a construir o país. “Não é só comigo que fazem isso, tem muito velhinho aposentado que deu a vida nes-te país. Quem construiu este país foram os aposen-tados, mas vê se eles entendem isso”, critica, refe-rindo-se às autoridades.

O ex metalúrgico não debita na conta do ex co-lega de profissão e atual presidente da República uma fatura alta. “O Lula entrou lá e disse que ia melhorar para nós, mas continua a mesma coisa do Fernando Henrique. Mas eu não vou xingar ele, porque foi o único que ajudou o Brasil. Estacionou a inflação e sustentou até hoje, senão não dava nem para comer”, ressalta.

Ele tem esperança em conseguir recompor o po-der de compra que adquiriu quando estava na ati-va. “Não quero nem os atrasados, só quero voltar a ganhar os nove salários que eu ganhava quando me aposentei.”

A situação de Valeri se complicou nos últimos meses. Ele precisou ser hospitalizado devido a um problema ocasionado por um remédio errado en-tregue na farmácia do posto de saúde perto de sua residência.

Na sequência o aposentado foi vítima de erro médico. A solicitação da ressonância magnética es-pecificava que o exame deveria ser feito sem con-traste, devido a uma insuficiência renal, mas o mé-dico realizou o procedimento com a substância.

Atualmente ele realiza sessões de hemodiálise três vezes por semana e duas de fisioterapia. Não dirige mais e depende da mulher e dos filhos para tudo. O convênio e os remédios são pagos pela fi-lha, que é professora da rede municipal de ensino na capital paulista.

“Se eu fosse pagar do meu bolso eu ia comer o quê? O sol, a lua...”, afirma indignado. Ele também reclama da propaganda feita pelo prefeito Gilberto Kassab na eleição passada. “O posto de saúde está uma droga, falavam que tinha remédios em casa, mas não tem nem lá. É tudo mentira, só fazem isso para ganhar votos.”

Valeri indigna-se com aposentadoria corroída

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IDosos MANtéM fAMílIAA previdência pública ainda funciona para mui-

tos beneficiários como um colchão protetor. Mui-tas vezes é a única fonte de renda de que dispõem para sobreviver. Dados do IBGE revelam que, em 53% dos domicílios brasileiros em que residem ido-sos, são eles os responsáveis por mais da metade de renda familiar. Esse percentual se eleva para 63,5% dos domicílios nordestinos.

Os vencimentos da aposentadoria também aju-dam a movimentar a economia de muitas cidades brasileiras. Segundo o professor Fagnani, em apro-ximadamente 70% dos municípios do Estado de São Paulo o valor das aposentadorias recebidas pe-los idosos é superior ao montante repassado pelo Fundo de Participação dos Municípios. No Nordes-te esse percentual atinge 90% das cidades.

“Esse programa de proteção social é extraordi-nário. Dizem que o Brasil saiu rápido da crise por causa do consumo interno. E o que é o consumo interno? São essas famílias que continuam direcio-nando sua renda para o consumo.” Ele teme, no en-tanto, que, no futuro próximo, os novos idosos não possam desfrutar dessa realidade. A desregulamen-tação do mercado de trabalho, em que menos gen-te possui carteira assinada, inviabilizaria a conces-são de aposentadorias no futuro.

lEgIslAção PRotEgE soNEgADoREs

A lista com os nomes dos empresários sonega-dores da previdência social não pode mais ser con-sultada pela internet. Ela foi removida do sítio do Ministério da Previdência Social com a criação da Super Receita, que passou a administrar os recur-sos previdenciários.

A mudança de órgão fiscalizador favoreceu os de-vedores da Previdência Social ao assegurar o anoni-mato. A Receita Federal se baliza no Código Tributá-rio Nacional, que garante sigilo fiscal aos devedores. A nova lista que está disponível no sítio da Procura-doria Geral da Fazenda Nacional, responsável pelas cobranças judiciais, não aponta nem a natureza do débito nem o valor da dívida do sonegador.

O novo formato inviabiliza a consulta quando o interesse é descobrir quem são os devedores da pre-vidência e o montante que devem ao fisco. Apro-ximadamente 1 milhão de devedores constam des-sa lista, mas não se sabe o porquê de terem sido inscritos no Cadin (Cadastro Informativo de Crédi-tos não Quitados do Setor Público Federal). A atu-al listagem praticamente só favorece aos bancos, que podem levantar informações sobre os tomado-res de empréstimo.

O senador Paim conta que a dívida das três es-feras do Estado Brasileiro (municípios, Estados e União) com a Previdência ultrapassa R$ 3,5 tri-lhões. “Mas os principais devedores da Previdên-cia são da área privada, depois vêm os municípios.” Ele critica o fato do Legislativo conceder anistia aos devedores. “O Congresso dá anistia para deve-dores, vai anistiando, vai anistiando e eles nunca pagam. As prefeituras não depositam a previdên-cia e veem toda hora aqui chorar para continuar não pagando.”

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ensaio João Zinclar

No inverno de 2009 choveu forte no sertão nordestino. Os açudes sangra-ram. Numa região onde a seca e a “falta de água” são motivos de discursos e projetos salvadores, quando a água chega em abundância não existe estrutura para aproveitá-la. O semi árido nordestino tem 70 mil açudes, com capacidade de armazenar 37 bilhões de m³ de água, o que desfaz o mito da falta. Seria su-ficiente se o povo pobre tivesse acesso a ela. Mas prevalecem ações que só be-neficiam o capital. A transposição do São Francisco é apontada como solução. A sabedoria popular de convivência com a seca é secundarizada. Enquanto isso, as barragens e grandes projetos agroindustriais sugam quase toda água do rio. Bancos de areia em seu leito são parte de sua paisagem. Transpor as águas do Velho Chico não é solução. O que estão fazendo, mais uma vez, é transposição de dinheiro público para o bolso da velha e a nova indústria da seca. • As fotos fazem parte de um trabalho documental em andamento no rio São Francisco e nas águas do semi-árido nordestino desde 2005.

Texto: Reginaldo Cruz

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ensaio João Zinclar

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Ana MirandaMeMórias De uM jornalista não-investigativoRenato Pompeu

Ele é um minucioso guardador, podemos ver em sua casa, já ao entrarmos, violinos e violas e bandolins, pequenos objetos colhidos em viagens, o piano azul onde ele aprendeu a tocar... tudo tem o seu canto, tudo brilhando. Às paredes, pinturas, fo-tos, desenhos... Egberto guarda meus desenhos. Guar-dou durante vinte anos uma caixa de lápis de cor que eu usava, e quando me devolveu a caixa e vi aquelas cores, os lápis ainda apontados, foi como se os tem-pos brincassem de voltar... tudo ele conserta, arruma, recupera. Coleciona amigos desde as mesas da infân-cia. De tudo ele cuida, como um virtuose.

Sua música é natural, como se saísse de fontes de água pura, ramos de lírios, das mãos de crianças, de matas virgens, capelas e sertões, de seus cabelos ema-ranhados... como se fosse o canto de uma ave do Para-íso ou o murmúrio da floresta. Sopros lituanos, hindus, os cantos do velho Sapaim... Egberto Gismonti me en-sinou a gostar de Stravinski, agora me ensina a ouvir Gesualdo, o príncipe de Venosa. Alguns de meus livros escrevi ao som de Sobrevivência, Zigzag, Infância... O país das águas luminosas... Nó caipira... ele ouve mú-sica bem baixinho, quase ninguém percebe, mas ele escuta perfeitamente, tem um ouvido apuradíssimo e absoluto. Virtuose em muitos instrumentos! Com-põe feito os lobos, em todos os tons. Aprendeu piano aos cinco anos de idade, aprendeu clarineta, flauta... é mestre também em violão, e violão de oito cordas... tudo vira instrumento em suas mãos. Um dia nos reen-contramos com uma serenata de oboé que ele fez em meu jardim. E eu fiz dezenas de desenhos dele, Egberto é ótimo para ser desenhado, com aqueles cabelos...

Ele é muito cultivado, está sempre len-do e sempre grandes textos, gosta de padre Vieira, de Mário de Andrade, de Guimarães Rosa, de Ma-noel de Barros... e os cabelos dele... já os penteei, sei como são. Quem conseguir passar por aquele labirin-to... agora não consigo parar de ouvir seu último dis-co, em dose dupla, “saudações”. Lindíssimo, com ecos nordestinos, sertanejos, cubanos... e um dueto de vio-lões com o filho, aquele menininho de olhos verdes límpidos, Alexandre Gismonti, que cresceu e agora é músico feito o pai. Saudações!

Nota sobre o novodisco dos Gismonti

Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, e outros romances, editados pela Companhia das Letras. Suas crônicas estão reu-nidas no volume Deus-dará, da Editora Casa Amarela. [email protected]

Consta que um alto quadro da revista Veja, nos anos 1970, fez a seguinte pergunta ao car-navalesco Joãosinho Trinta: “Você não acha que o povo gosta de luxo, e intelectual é que gosta de miséria?” Ao que o carnavalesco respondeu algo como “É”. Ficou famosa a declaração bombásti-ca de Joãosinho Trinta: “Povo gosta de luxo, in-telectual é que gosta de miséria”.

Também na Veja, mas nos anos 1980: cha-mado a fazer uma matéria sobre o médium Chico Xavier, que psicografava livros (isto é, escrevia livros quando nele “baixava” o espírito de algum autor morto), um repórter escreveu que, na opi-nião de Jorge Amado, Chico Xavier era o melhor autor brasileiro. O editor estranhou, chamou o repórter e perguntou: “o Jorge Amado disse isso mesmo?” Ao que o repórter respondeu: “Não, ele ainda não disse, mas estamos negociando”. O re-pórter fizera uma série de telefonemas a Jorge Amado para lhe perguntar o que achava de Chi-co Xavier, mas ainda não conseguira a deseja-da frase. A “declaração” de Jorge Amado acabou nunca sendo publicada.

Ainda na Veja, na passagem dos anos 1970 para os anos 1980. Lula tinha acabado de sur-gir como liderança nacional e um alto quadro da revista ordenou que um repórter o entrevis-tasse. O repórter voltou com uma entrevista bas-tante informativa, mas o alto quadro da revista se queixou, dizendo algo assim como o Lula ti-nha de declarar alguma coisa na linha de que, se não for na lei, vai ser na marra, do contrário não havia razão para publicar a entrevista. O repór-ter voltou sucessivas vezes a falar com Lula, mas não dizia nada de parecido. A entrevista jamais foi publicada.

Estranhei quando vi na primeira página da Folha de S. Paulo, nos anos 1980, uma foto de

um muro de um casarão numa ladeira em Cam-pinas-SP, pichado com a frase, em letra de ho-mem, “Ana, te fiz mulher”, e com a resposta, em letra de mulher, “Como é mesmo o seu nome?”. O texto dizia que as frases tinham inspirado uma famosa pesquisadora a escrever um livro sobre sexo nos dias atuais. Eu conhecia bem o Centro Velho de Campinas e não me lembra-va de ter visto um casarão numa ladeira tão acentuada. Perguntei à fotógrafa em que região de Campinas ficava aquele casarão. A fotógrafa respondeu que o casarão ficava na rua da casa da pesquisadora, em São Paulo. O repórter e a fotógrafa estavam na casa da pesquisadora, a entrevistando e fotografando, quando a pesqui-sadora disse que seu livro tinha sido inspirado no choque que ela levou ao ver aquelas frases escritas num muro em Campinas. Terminada a entrevista, já na rua, o repórter pediu que a fo-tógrafa comprasse pincéis de grafite. Ele escre-veu a frase de cima e, ela, a de baixo.

“Eu sou do tempo que os brasileiros viajavam para Buenos Aires para poderem andar de metrô”

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A criatividade mesquinha

Renato Pompeu é jornalista e [email protected]

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Marcelo Salles

hanry Silva voltava da casa de uma cole-ga, numa favela chamada Boca do Mato, na Zona Norte do Rio de Janeiro. O nome

tem sua razão de ser. O lugar dá para uma monta-nha, no bairro Lins de Vasconcelos, onde a vege-tação nativa ainda é preservada. Em vez de retor-nar pela rua, ele decidiu fazer o trajeto mais curto: pelo alto do morro. Assim, caminhando próximo aos postes de energia do topo da montanha, Han-ry cruzou pouco mais que 1 Km. A vista abrevia ainda mais a viagem: com tempo bom é possível ter uma visão panorâmica da cidade, emoldurada pela Ponte Rio-Niterói e pela Baía de Guanaba-ra. Eram cinco da tarde quando se aproximava de sua casa, no Morro do Gambá – também conheci-do como Nossa Senhora da Guia.

O estudante já estava bem perto, nem 100m

faltavam. Ao chegar, tomar banho, trocar de rou-pa e seguir para o colégio. Estava de bermuda preta e sem camisa. Vinha balançando a chave de casa, despreocupado, fazendo um caminho ao qual já se habituara. No entanto, aquele 21 de novembro de 2002 seria diferente. Hanry foi sur-preendido por policiais do 3º Batalhão de Polícia Militar e arrastado uns 20m abaixo. Foi posicio-nado entre uma pedra de 2m x 1,5m e um arbus-to com folhagem densa e suficientemente grande para encobrir o resto de visão que alguém pode-ria ter do lugar. A casa mais próxima dali fica a uns dez minutos de caminhada, em mata semi-fechada.

Por volta de 17h40, um estampido ecoou no Morro do Gambá. Aos dezesseis anos de idade, Hanry foi assassinado com um tiro certeiro no co-

ração. Tinha 1,65m, era mulato, corpo seco. Cur-sava o primeiro ano do ensino médio – nunca re-petiu – e sonhava ser jogador de futebol, como tantos outros garotos.

No dia seguinte sua mãe acordou preocupada. O filho não havia dormido em casa. Márcia Ja-cintho percorreu a favela toda atrás de notícias, quando teve a ideia de ir ao hospital mais pró-ximo. No Salgado Filho ficou momentaneamen-te aliviada: apenas dois jovens haviam sido en-caminhados pela polícia na noite anterior, ambos descritos como traficantes que já chegaram mor-tos. Márcia continuava a busca quando alguém li-gou do IML: “Vem pra cá porque acho que mata-ram seu filho”.

Chegando lá, Márcia começou a morrer em vida. A dor é tanta que hoje, quase sete anos de-pois, ela ainda chora quando recorda a cena: “Meu filho não teve velório. Tava inchado, um cheiro muito forte, muito escuro, ninguém o reconhe-ceu”. Márcia começou a morrer por um lado, mas de outro nasceu uma guerreira que iria lutar com unhas e dentes para fazer justiça. Suas razões de viver passaram a ser basicamente essas: provar que seu filho não era traficante, como acusara a polícia, e responsabilizar os assassinos.

Inicialmente, Márcia fez o trabalho de inves-tigação sozinha, pois a autoridade competente alegava não dispor dos recursos necessários. En-tão ela voltou ao local do crime, fez a primei-ra reconstituição com as próprias sandálias, fo-tografou, encontrou testemunhas. Até o boletim ambulatorial do hospital ela foi pegar, já que a Delegacia de Polícia não se mexia.

Essa história ela me conta enquanto vascu-lhamos os arredores de onde Hanry foi assassi-

Uma política de extermínio levada a cabo pela polícia carioca, com apoio de setores da mídia e a omissão do Ministério Público e do Judiciário, vem provocando um verdadeiro genocídio no Rio de Janeiro. Nesta década já foram eliminadas quase 10 mil pessoas, a maioria delas nas favelas da capital.

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nado. Do pé ao topo, demoramos quase uma hora de subida bastante puxada. O Morro do Gambá tem centenas, talvez milhares de casas, de to-dos os tipos: alvenaria, madeira, compensado ou tudo misturado. Aqui, a maior parte da popula-ção é negra. E pobre. Serviços públicos como co-leta de lixo demoram a chegar, deixando o chão imundo, sobretudo nas partes mais altas. Ao lado da pequena quadra de futebol, de terra batida, há um barranco imenso, uns cem metros quadra-dos de sacos plásticos, restos de comida e sujei-ra de todo tipo.

Conforme subimos, percebo que o adensamen-to populacional vai se reduzindo, até que cruza-mos a última casa – um compensado de madei-ra de uns 20m quadrados, no máximo, de onde saem seis pessoas. Uma mulher idosa, uma crian-ça bem pequena e os demais, adolescentes. Már-cia arrisca o caminho da esquerda, mas o mato está muito fechado. “Tem certeza que é aí?”, per-gunto. “É sim, é que não venho aqui faz tempo”. Continuo seguindo, meu receio em franco con-traste com o seu destemor. Até que um dos ado-lescentes da última casa, um negro bem preto, se aproxima e fala: “Tia, não é por aí, não. É pelo outro lado”. E nos mostra o caminho.

Passaram-se dois anos e nove meses até que a perícia oficial agisse. A partir daí, apareceram várias contradições na versão dos policiais, que alegaram, por exemplo, troca de tiro com bandi-dos que estariam em cima de uma pedra, levan-do a crer que o disparo teria vindo de baixo para cima (e não o contrário, como foi comprovado pelo laudo cadavérico). O horário alegado pelos policiais também não batia. Como poderia ha-ver uma troca de tiros às 19h40 no alto do mor-ro se a entrada do garoto no hospital teria sido às 20h08? Seria como enfrentar seis ou sete bandi-dos fortemente armados, como argumentaram os policiais, recolher o corpo baleado, descer o mor-ro inteiro carregando o fardo, colocá-lo na via-tura e deixá-lo no hospital, que fica a vinte mi-nutos dali. Nem o The Flash.

Seis anos depois, Márcia conseguiu levar a jul-gamento dois dos onze policiais militares que ha-via acusado. Marcos Alves da Silva foi condena-do a nove anos de prisão por homicídio doloso e fraude processual (simulou apreensão de arma e droga com Hanry) e Paulo Roberto Paschuini a três anos pelo último crime. Os dois vão recorrer, sendo que o segundo em liberdade.

O caso de Hanry foi um dos 9.179 óbitos re-gistrados como “autos de resistência” – quando a polícia mata um opositor em legítima defesa – entre 2000 e 2009 (até maio), de acordo com o Instituto de Segurança Pública, órgão vinculado ao Executivo Estadual. Uma média de 2,67 mor-tes por dia. É como se em dez anos toda a popu-lação do bairro da Glória sumisse do mapa. Por outro lado, foram registrados 59.949 homicídios dolosos, no mesmo período; crimes que o Estado não foi capaz de evitar.

O número de “autos de resistência” dá à polícia do Rio o título de campeã de letalidade. Entre to-das as outras corporações similares no mundo, é a que mais mata – e também a que mais morre (dado

que, por si só, evidencia uma política de segurança equivocada). Até o relator da ONU para execuções sumárias e extrajudiciais, Philip Alston, declarou, após recente visita ao Rio de Janeiro: “no Brasil os policiais matam tanto em serviço como fora de serviço e nenhuma investigação é feita já que to-dos os índices se justificam a partir de ‘autos de resistência’ ou ‘mortes em confronto’”.

A origem da ferramenta jurídica “auto de re-sistência” está na Ordem de Serviço “N”, nº 803, de 2/10/1969, da Superintendência da Polícia Ju-diciária, do antigo estado da Guanabara. O dispo-sitivo afirma que “em caso de resistência, [os po-liciais] poderão usar dos meios necessários para defender-se e/ou vencê-la” e dispensa a lavratura do auto de prisão em flagrante ou a instauração de inquérito policial nesses casos.

Registre-se: não são raras as situações em que os policiais necessitam usar a força como respos-ta a ações hostis de traficantes varejistas. É como explica o delegado Marcus Nunes, coordenador da CORE, unidade de elite da Polícia Civil: “Somos muitas vezes recebidos a tiros. Geralmente o poli-cial entra numa comunidade em tese hostil porque é controlada por um grupo fortemente armado, querendo fazer de tudo pra não ser preso, usando todos os esforços necessários, às vezes com equi-pamentos de primeira geração, munição em fartu-ra, granadas”. No entanto, como reconhece o de-legado, essa situação de extrema pressão sobre o policial, aliada a outros fatores, pode levar a exe-cuções registradas como autos de resistência.

“Me chamava a atenção a diferença no pre-enchimento dos ROs [Registros de Ocorrência]”, comenta a antropóloga Ana Paula Miranda, que foi diretora-presidente do Instituto de Seguran-ça Pública. Por um lado, havia falta de cuidado nos registros em geral, mas aqueles referentes aos autos de resistência “vinham bem montados, com informações padronizadas e a falta de teste-munhas que não fossem policiais”, diz a pesqui-sadora da Universidade Federal Fluminense. Ana Paula chama a atenção para a escalada da vio-lência da polícia, que cada vez mata mais e pren-de menos (ver quadro na página 31).

A polícia do Rio de Janeiro atua com muito pouco controle, interno ou externo. A Correge-doria nem sempre atua com a isenção desejada, as armas utilizadas em operações dificilmente são identificadas e os policiais que se envolvem em troca de tiros não recebem atenção especial do governo – em outros Estados, como São Paulo, já existe uma política assistencial voltada para esses profissionais da segurança, como auxílio psicoló-gico. No entanto, engana-se quem acredita que a polícia é a única responsável pelo atual estado de coisas. Quando se registra uma ocorrência como “auto de resistência”, o delegado tem trinta dias para investigar e, então, deve enviar suas conclu-sões para o Ministério Público Estadual.

O MP é o titular da Ação Penal e, diante do re-latório, o promotor deve decidir se retorna o mate-rial para a delegacia solicitando novas apurações, se oferece denúncia contra o policial ou se enca-minha o processo com pedido de arquivamento para o juiz. Neste caso, se o magistrado concordar,

o processo é arquivado. Se discordar, a decisão fi-nal passa à Procuradoria Geral de Justiça, cujo ti-tular é indicado pelo governador do Estado.

Para esclarecer os dados, procurei o Ministério Público. Fiz o primeiro contato no dia 17 de agos-to. Na assessoria de imprensa, fui atendido por Paolla Serra, depois por Lívia Monteiro. Não me deram retorno. No dia 14 de setembro, voltei a in-sistir. Dessa vez falei com Leonardo, que também não me respondeu. Alguns dias antes eu havia ido ao Tribunal de Justiça, onde conversei com três defensores públicos. Eles disseram que recebem pouquíssimos inquéritos em casos de autos de re-sistência, às vezes nem um por mês, o que indica poucas denúncias do MP contra policiais.

O pioneiro a analisar os pareceres do Ministé-rio Público sobre os autos de resistência foi o de-sembargador Sérgio Verani, no livro “Assassina-tos em nome da lei” (entrevista à página 31). Na apresentação da obra, o jurista Evandro Lins e Sil-va anota: “Examinando dezenas de inquéritos, al-guns deles em que funcionou como juiz, Sérgio Verani pôde identificar uma uniformidade ideo-lógica que conduziu ao arquivamento ou à ab-solvição, em todos eles, dos policiais acusados do assassinato de 42 pessoas”. Nesta cesta ideológica encontra-se o pedido de arquivamento, assinado por um promotor, que classifica a vítima da ação policial como “micróbio social”. O caso é de 1982, mas permanece atual. Vinte e dois anos depois, a 21a Promotoria de Investigação Penal de Bangu acusou os bandidos que teriam enfrentado a polí-cia de “verdadeiros soldados do mal”.

“No ano passado aquele comandante [coronel Marcos Jardim] de certa forma repetiu isso: ‘[a PM é o melhor] inseticida social’. Inseticida social!”, recorda Sérgio Verani: “Como também uma ex-pressão usada quando foi preso o Elias [Maluco, acusado de matar o jornalista Tim Lopes]. E aí fo-ram expedidos mandados de busca e apreensão e o juiz escreveu na decisão dele que o Grupo do Elias era um ‘lixo genético’. O juiz escreveu isso: ‘lixo genético’! Que é a mesma coisa de ‘micróbio social’, ‘inseticida’. O desprezo com a vida. Uns podem viver, mas esses desclassificados não”.

“Quem mata é a Polícia, mas Quem enterra é o Judiciário”

Outro indicativo de descaso do Poder Judiciá-rio é que em muitas sentenças o magistrado abre mão do despacho fundamentado e passa a usar uma mera etiqueta adesiva, tipo essas da marca Pimaco, para determinar o encerramento do pro-cesso investigatório. Como consta da decisão assi-nada em 10 de janeiro de 2005, a respeito de três mortes causadas por policiais na favela do Rebu, em Senador Camará: “Na forma de promoção do MP de folhas retro, determino o arquivamento do presente feito. Dê-se baixa e arquive-se”.

Por essas razões, o delegado de Polícia Civil Orlando Zaccone, mestre em Ciências Penais, não tem dúvidas em afirmar: “Quem mata é a polícia, mas quem enterra é o Judiciário”. Profundo co-nhecedor da Criminologia Crítica, Zaccone alia a teoria à prática. Foi ele quem conduziu as inves-tigações que solucionaram a Chacina do Borel, em

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2003, em que os crimes foram inicialmente regis-trados como autos de resistência. É com essa au-toridade que ele analisa: “O que vai definir o ar-quivamento dos autos ou o processo dos policiais pela morte da vítima é se a vítima está ou não definida como ‘inimigo’, traficante, gerando uma ‘legitimidade’ na ação da polícia”.

No caso do Borel, estava claro que as vítimas não eram traficantes varejistas, o que, segundo Zaccone, ajudou a responsabilizar os policiais. Se fossem, isto seria mais difícil porque existe uma autorização implícita para matar uma determinada classe, “subjetivada em várias agências”, conforme explica o delegado: “O Estado de Exceção que es-tamos vivendo hoje é onde o Direito não é aplica-do em determinados espaços e a determinadas pes-soas. E o direito à vida não está garantido a todos. No caso daqueles que são reconhecidos como ini-migos, esse direito à vida está suspenso”.

O detalhe – onde mora o diabo – é saber de onde vem a definição do inimigo. Quem tem o po-der para definir isso? Quais são as agências polí-ticas, além do Executivo e sua polícia, do Minis-tério Público e do Judiciário? Se você pensou na mídia, acertou em cheio.

“Os meios de comunicação de massa são as ins-tituições mais importantes no sentido de produzir modos de viver e de existir nesse mundo”, explica Cecília Coimbra, doutora em Psicologia pela Uni-versidade Federal Fluminense (UFF). A brutal con-centração da mídia no país contribuiu, e muito, para potencializar essas mensagens: seis emissoras comerciais de televisão, ideologicamente afinadas, controlam praticamente tudo o que 191.000.000 de brasileiros assistem. No Rio de Janeiro, as op-ções de jornais são cada vez menores. Títulos como Última Hora, O Jornal, A Noite, O Pasquim, A Ma-

nhã, entre outros, simplesmente desapareceram. Na década de 1950 eram 52 títulos contra apenas sete na década de 1990. “A mídia é um dispositivo privilegiado na sociedade capitalista para a pro-dução de modos de adesão a esse sistema que está aí”, complementa a professora.

No caso dos “autos de resistência”, a mídia opera para desumanizar determinados segmentos da população. Desse modo, “você passa a acredi-tar que os pobres são perigosos, que precisam ser isolados e, se necessário, até mortos”, diz Cecília.

Maria Dalva da Costa Correia da Silva sabe bem como funciona o aparato midiático. Em 16 de abril de 2003, a operária de 54 anos perdeu um filho as-sassinado por policiais. No dia seguinte, Thiago da Costa Correia e Silva foi chamado de bandido pelo jornal Extra, das Organizações Globo. Título: “Ti-roteio mata quatro em morro da Tijuca”; subtítu-lo: “Policiais são surpreendidos e trocam tiros com bandidos do Borel”. O texto da matéria relacionava o estudante como traficante, numa tentativa de le-

“Policial age sob pressão”

Márcia Jacintho aponta o caminho por onde os policiais levaram o corpo do seu filho Hanry

gitimar o seu assassinato. “Sei que não houve tro-ca de tiro. Foi execução e todos levaram tiro nas costas e na cabeça”, desabafa Maria Dalva. Thia-go tinha 19 anos, cursava a oitava série do ensino fundamental e trabalhava, com carteira assinada, fazendo manutenção de bombas de gasolina.

A operária se aposentou para ter mais tempo de lutar por justiça. Conseguiu provar a inexistência de troca de tiros, organizou passeatas, escreveu ao presidente Lula. Depois de tanto barulho, a Polí-cia Federal entrou na investigação. Cinco PMs fo-ram indiciados, dois absolvidos e um condenado a 52 anos de prisão. Os outros dois ainda não fo-ram julgados. Hoje, quase sete anos depois, todos os policiais envolvidos estão em liberdade.

“Quando seu filho é acusado de bandido, as pessoas acham que tem que morrer mesmo”, de-sabafa Maria Dalva: “Meu filho não era bandido e a gente não tá querendo dizer que tem que matar bandido. A polícia tem que cumprir o dever dela, que é prender, não matar”.

Entrevista com Marcus Castro Nunes Maia, de-legado e Coordenador da CORE, unidade de elite da Polícia Civil.Caros Amigos - Que cenário o policial encontra numa operação?Marcus Castro Nunes Maia - Somos muitas ve-zes recebidos a tiros, alguns pra facilitar a fuga dos traficantes e outros pra confronto efetivo con-tra os policiais, tentando efetivamente alvejá-los. Geralmente o policial entra numa comunidade, em

tese hostil, porque é controlada por um grupo for-temente armado, querendo fazer de tudo pra não ser preso, usando todos os esforços necessários, às vezes equipamentos de primeira geração, munição em fartura, granadas, armamentos explosivos mili-tares, bazucas, como são popularmente chamadas. Os nossos blindados hoje não são garantia de nada, até pela qualidade e quantidade de armamento que são encontrados nas mãos de traficantes. Em algu-mas das realidades, os disparos dos traficantes não são efetuados contra os policiais, mas contra os moradores, populares, como acontece às vezes no Morro dos Macacos, começam a atirar contra veí-culos que passam na rua pra acabar a operação.

Pode falar mais um pouco?Outro ponto de vista da hostilidade, extrema-

mente compreensível é o quê? Qual órgão do Es-tado que vai dentro de uma comunidade carente? Salvo a polícia, conheço poucos. Imagina você ter todo dia na sua casa um policial. Ninguém gosta. Mas todo dia está lá pra combater o tráfico. Aí aca-ba entrando em confronto armado. O policial ati-ra, o traficante atira contra ele. Possibilidade de bala perdida? Existe, claro, porque estamos num confronto armado. O policial às vezes está lutan-do pela sobrevivência dele, ele é ser humano como qualquer um.Que outros fatores podem atrapalhar o trabalho do policial?

Um policial com um moral abatido porque às vezes não pode fazer seu trabalho como acha que deve fazer, um policial mal remunerado, às vezes não tem treinamento, não tem condições de dor-mir, porque [além do trabalho no Estado] tem que buscar outro sustendo pra família, problemas fa-miliares que alguns tem, o estresse da profissão, a todo momento estar entre ter algum desvio de con-duta – não estou dizendo que ele é criado pra isso,

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31outubro 2009 caros amigos

Marcelo Salles é jornalista e coordenador de Caros Amigos no Rio de Janeiro. [email protected]

às vezes ele erra e é severamente punido – o policial também sucumbe ao medo, é um ser humano como qualquer outro. E ele retrata um pouco a sociedade, ele também é membro da sociedade. Então a socie-dade exige que ele tenha uma determinada condu-ta, ou mate, execute alguém, às vezes ele execu-ta por medo, por ter vivido a iminência da morte, e por ter um ódio profundo daquele algoz, que há poucos segundos teve quase a capacidade de ma-tá-lo, só não fez isso por incompetência.

O policial age sob pressão.Exigir dele a capacidade, a frieza de raciocinar,

pensar e falar: ‘o senhor está preso. O senhor tentou

“Matar as pessoas faz parte da lógica do capital”

O desembargador Sérgio Verani, da 5a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, é autor do livro “Assassinatos em nome da lei”, um estudo sobre dezenas de autos de resistência entre as dé-cadas de 70 e 80. A obra faz duras críticas ao Mi-nistério Público e ao Poder Judiciário: “O discur-so sobre a neutralidade jurídica e a imparcialidade técnica apenas dissimula o seu caráter de classe”, escreve Verani, para quem tal ideologia se mate-rializa numa política de extermínio levada a cabo por sucessivos governos, conforme explica nes-ta entrevista à Caros Amigos (o delegado Orlando Zaccone participou como entrevistador).

Caros Amigos - Como o senhor analisa dos autos de resistência?Sérgio Verani - Há muitos anos que são mais de cem autos de resistência, naquela estatística [di-vulgada pelo Instituto de Segurança Pública, ór-gão estadual]. Lembro que quando chegou a cem foi com o Garotinho, e aí ele disse assim: “Ah, en-tão isso significa que a polícia está trabalhando”. Acho que é um escândalo.

Pode resumir como fica essa negação da Lei?É uma morte, na verdade seria um homicídio

qualificado, que exige um processo pra apurar a autoria, mas nada. Não há o processo. A lei aqui não se aplica, não funciona.

Relação do número de presos em flagrante por cada morto pela polícia. O estudo comparativo realizado pela antropóloga Ana Paula Miranda mostra que a exceção vem se tornando regra.

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me matar por todos os meios, agora o senhor não consegue mais, se entrega’? Sim, é o que diz a lei e o que a gente espera de um policial. Mas só que o policial despreparado, às vezes, mal remunerado, cheio de problemas como qualquer um, potenciali-zado com a iminência da morte, porque muitas ve-zes ele vê a morte de perto, a dele e a dos amigos, falar isso pro algoz dele... Ou seja, é difícil. Não que ele não tenha que fazer isso, ele tem, é obrigação dele. Não justifica a ação dele, mas a gente come-ça a compreender um pouco a ação que faz, às ve-zes uma execução. Muitas das vezes pode ser isso que leva a esses autos de resistência ditos forjados. Pode ser que em alguns casos tenha sido assim.

O que mudou da ditadura de 1964 para hoje?Agora há mais autos de resistência do que na

ditadura. Acho que agora é mais escancarado. Na ditadura havia um clamor “ah, a polícia apontou a arma!”. Agora aponta até para os professores. Pra outras pessoas aponta mais, mata muito mais. Não é que o auto seja forjado. É uma prática de exter-mínio. Forjadas talvez sejam as justificativas.

Para dissimular execuções?É, porque a execução é evidente. Com dez tiros

nas costas, como é que pode essa vítima estar se defendendo? Eu enxergo uma política de extermí-nio. Mais recrudescida nesse século 21, como con-sequência do próprio sistema político baseado no capital. Quando é que aparece o Estado? Só apa-rece na repressão. Eu acho que não tem saída no capital, só vai exacerbando essa repressão. E o ex-termínio faz parte, tem que matar as pessoas, é a lógica do capital, da sociedade fundada assim.

O que o senhor quer dizer com “capital”?A constituição social, a estrutura econômica fun-

dada no capital, a propriedade privada. Essa ideia da saída do Estado das políticas públicas. Não tem mais médico no Estado, é tudo contratado. Aliás, não tem mais funcionário público. Tem toda a questão da mídia também, quando diz: “Dez traficantes foram mortos”. Já com estudante é diferente. Pra quem lê o jornal também. As pessoas não ficam muito hor-rorizadas se dez traficantes são mortos.

O discurso do governador interfere...Quando ele fala “vamos continuar enfrentan-

do os traficantes”, alimenta o confronto, “aqueles são os inimigos, podem morrer”.

Como funciona a cabeça dos seus colegas?Suponho que funcione como uma legitimação

de que a pessoa pode morrer. Acho que é um des-prezo pela vida do outro, porque é o cara que mora lá no morro, não faz parte da vida da pes-soa, não tem relação, é um desprezo.

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caros amigos setembro 2009 32F a ç a s e u a u t o c r e d e n c i a m e n t o n o l o c a l o u p a r a e v i t a r f i l a s o p r é - c r e d e n c i a m e n t o e m n o s s o s i t e :

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FRACASSOMANíACOS

Emir Sader

Emir Sader é cientista político.

SugeStõeS de leituRA

ESTRUTURA SOCIAL E FORMAS DE CONSCIÊNCIAIstván MeszárosBoitempo EditorialUMA EPOPÉIA BRASILEIRA – A COLUNA PRESTESAnita Leocádia PrestesEditora Expressão PopularPOR QUE NÃO SOU CRISTÃOBertrand RussellEditora L&PM

A invenção se deve às ironias de FHC. Mas os tucanos se tornaram os arautos da fracassomania, porque o governo Lula não poderia dar certo. Senão, seria a prova da incompetência dos que se julgavam os mais competentes.

Lula fracassaria porque não contaria com a ex-pertise de Pedro Malan, Celso Lafer, Paulo Rena-to, José Serra, os irmãos Mendonça de Barros, entre tantos. Lula não poderia dar certo, senão a pessoa mais qualificada para dirigir o Brasil na ótica tuca-na, FHC, se mostraria muito menos capaz que um operário nordestino.

Por isso o governo Lula teria que fracassar eco-nomicamente, com a inflação descontrolada, a fuga de capitais estrangeiros, o “risco Brasil” despencando, a estagnação herdada de FHC prolongada e aprofunda-da, o descontentamento social se alastrando, as diver-gências internas do PT dividindo profundamente o par-tido, o governo se isolando social e politicamente no plano interno, assim como no plano internacional.

A imprensa se encarregou de propagar o fracasso do governo Lula. Ricardo Noblat, apresentando o livro

de uma jornalista global, afirmava expressamente, de forma coerente com o livreco de ocasião, que “o go-verno Lula acabou” (sic). A crise de 2005 do governo era seu funeral, os urubus da mídia privada salivavam na expectativa de voltarem a eleger um dos seus para se reapropriarem do Estado brasileiro.

FHC gritava, no último comício do candida-to do seu partido, que havia renegado seu governo; com a camisa para fora da calça, o ex-presidente su-ado, desesperado, gritava: “Lula, você morreu”, refle-tindo seus desejos, em contraposição com a realida-de, que viu Lula se reeleger, sobre o cadáver político e moral de FHC. Um jornalista da empresa da Aveni-da Barão de Limeira relatava o desespero do seu pa-trão, golpeando a mesa, enquanto dava voltas em tor-no dela, dizendo: “Onde foi que nós erramos, onde foi que nós erramos?”, depois de acreditar que a gigan-tesca operação de mídia montada a partir da entrevis-ta dada por um escroque que o jornal tinha publicado, havia derrubado o governo Lula.

Ter que conviver com o sucesso popular, econômico, social e internacional do governo Lula é

insuportável para os fracassomaníacos. Usam todo o tempo de rádio, televisão e internet, todo o espaço de jornal para atacar o governo, e só conseguem 5% de rejeição ao governo, com 80% de apoio. Um resultado penoso. Qualquer gerente eficiente mandaria todos os empregados das empresas midiáticas embora.

Como disse, desesperadamente, FHC ao Aécio, tentando culpá-lo por uma nova derrota no ano que vem: “Se perdermos, são dezesseis anos fora do go-verno...”

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Depois que fiquei cego só vou ao restauran-te acompanhado de quem me faça a bandeja, emquanto aguardo à mesa. Outro dia estava-mos em quatro e, ao me trazer a sobremesa, um dos amigos descreveu-me o manjar: “É metade bolo, metade puddim...” Outro amigo deflagrou a discussão: “Daria p’ra chamar de bolo?” Não me fiz de rogado: “Bem... poderia-mos chamar de ‘boluddim’... ou de ‘puddolo’...” Risos, após os quaes alguem suggere que “bo-luddim” soaria menos indecente que “puddo-lo”, ao que retruquei:

“Ah, mas não depende de gosto e sim de lo-gica. Onde fica o puddim? Na parte de cima?” Confirmaram. “Então seria ‘boluddim’ si eu começasse a comer por baixo...” E peguei a fatia na mão, ameaçando mordel-a a partir do bolo, no que escutei o clicar das cameras digi-taes, ja que todos querem me photographar de bocca aberta, no meio duma dentada. “Mas si eu começasse a comer do lado do puddim, te-ria que ser ‘puddolo’, é claro!”

Mais risos, quando então todos passaram a fallar ao mesmo tempo, mixturando os neo-logismos “boluddim” e “puddolo” até que pa-recessem “bololô”, “pupuddim”, “dimdimlô”, “pupulô” e outras bobagens pré-primarias, como no “Esporte em discussão” da Jovem Pan, programma que, por signal, adoro e que me faz rachar o bico. A esta altura do cam-peonato, o leitor deve estar se perguntando qual o interesse de occupar espaço numa co-lumna com tamanha inutilidade. Entretanto, si repararmos bem, é exactamente o mesmo typo de inutilidade que têm as sessões plena-rias no Senado ou na Camara, para não fallar das outras assembléas. Com a differença de que os parlamentares ganham demais para fi-carem discutindo si seria “boluddim”, “puddo-lo” ou byzantinismos quejandos, e quem paga a conta do restaurante somos nós.

porca miséria!Glauco Mattoso

Em volta duma chicara de chaexiste tanta coisa, que a toalhase torna até pequena, pois não haespaço para toda aquella tralha...

São pratos e travessas, onde estáa immensa variedade do que calhaàs damas degustar: por mais que eu vacitar, sempre commetto alguma falha...

Puddins e mais puddins, bolos e bolos...Si eu fosse o amphitryão, nem onde pol-os iria mais saber, tantos que são!

Mas como bem de longe eu os cobiço,em vez de preoccupar-me só com isso,preoccupo-me com meu arroz-feijão...

Soneto para a tradição inglesa [1824]

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Eduardo Matarazzo Suplicy

Em 15 de setembro, o plenário do Se-nado votou a nova legislação que definirá as normas das eleições de 2010, com destaque para a realiza-ção de eleições diretas, a qualquer tempo, para os go-vernadores e prefeitos no caso de perda dos manda-tos. Com respeito ao uso da internet houve um entendimento. Ficou assegurada a total liberdade de comunicação e uso da internet entre os candidatos e seus eleitores, vedado o anonimato. O consenso sur-giu de um intenso debate entre os relatores, Senado-res Marco Maciel e Eduardo Azeredo, favoráveis a al-gumas restrições, e os Senadores Aloizio Mercadante e Álvaro Dias, que – com a participação de senadores de todos os partidos – defendiam uma maior liberda-de de comunicação e uso da internet.

A divisão no plenário surgiu com relação a duas emendas que apresentei visando garantir maior transparência dos doadores nas campanhas:

1. Propus que os partidos políticos, as coligações e os candidatos fossem obrigados, durante a campa-nha eleitoral, a divulgar, pela internet, nos dias 6 e 30 de setembro, relatório discriminando os recursos em dinheiro ou estimáveis em dinheiro que tivessem recebido para financiamento da campanha eleitoral. Deveriam ser listados os nomes dos doadores, fossem os de origem do fundo partidário, fossem de pesso-as físicas ou jurídicas, os respectivos valores doados e os gastos que realizam. Isso significaria que, antes do domingo, 3 de outubro, dia em que se realizarão as eleições de 2010, a informação sobre os doadores es-taria inteiramente disponível. Diferentemente da prá-tica atual – que só divulga estas informações seis me-ses após o pleito.

2. Também apresentei proposta que vedava a doa-ção oculta, que permite aos partidos receberem doações sem informar para quais candidatos elas se destinam.

Infelizmente foram rejeitadas. A primeira por 39 votos não e 23 sim, e a segunda por 41 votos con-tra dezesseis. O argumento dos que votaram contra-riamente é que a transparência poderia constranger os doadores. Entretanto, tenho a convicção de que o interesse maior que deveria prevalecer é o dos eleito-res que gostariam de conhecer a natureza das contri-buições para cada candidato.

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Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

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caros amigos outubro 2009 34

Depois de viver a experiência do primeiro governo de esquerda da sua história, o povo uruguaio vai às urnas, no dia 25 de outubro, para escolher o novo presidente. Fotos Fania Rodrigues

Fania Rodrigues

esquerda uruguaia

um ex-guerrilheiro lidera as intenções de voto para as eleições presidenciais do Uru-guai. O que seria impossível na América do

Sul dos anos 1970, quando muitos países viviam em plena ditadura militar, ainda soa estranho, mesmo se tratando de um dos mais democráticos países da América Latina. José “Pepe” Mujica, hoje com 74 anos, é o candidato a sucessor do primeiro governo de esquerda da história do Uruguai, que chegou ao poder em 2005, quando foi eleito Tabaré Váquez, da Frente Amplio, um partido de coalizão que reúne diferentes forças políticas de linha marxista.

“El Pepe”, como é conhecido, começou sua mi-litância política ainda na década de 1960, quando ingressou no Movimiento de Liberación Nacional - Tupamaros (MLN-T), uma organização política uru-guaia composta por distintos movimentos da es-

querda radical, que atuou como guerrilha urbana, entre 1960 e início da década de 1970. Preso qua-tro vezes, no total Mujica passou quase 15 anos de sua vida encarcerado. O último período de deten-ção durou 13 anos, entre 1972 e 1985, vivendo em condições precárias, sofrendo tortura e isolamento. Marcado pelos seis balaços da época do enfrenta-mento armado e pelos anos de cadeia, quando ga-nhou a liberdade, beneficiado pela lei de anistia, Mujica levou sua luta para as vias eleitorais. Criou o Movimento de Participação Popular (MPP), den-tro da Frente Amplio, e no ano de 1994 foi eleito deputado federal por Montevidéu e depois em 1999 senador, cargo que ocupa desde então. Agora, no próximo dia 25 de outubro vai enfrentar a mais dura das batalhas da sua vida: o veredicto do povo através das urnas.

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35outubro 2009 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Ministro da Pecuária, Agricultura de Pesca, en-tre 2005 e 2008, Pepe Mujica não era o favorito do atual presidente, Tabaré Vásquez, para a sua suces-são. Vásquez nunca escondeu sua preferência por Daniel Astori, ex-ministro de Economia e Finanças de seu governo. Derrotado nas internas da Frente Amplio, realizadas em 28 de junho desse ano, Asto-ri aceitou o convite de Mujica para ser seu vice.

Polêmico, contraditório, herói para uns e perigo-so para outros, Pepe é inteligente e culto, não usa gravata, não gosta de assessores, fala o que pensa e muitas vezes comete gafes. Faltando 40 dias para as eleições ele deu uma extensa entrevista para o jor-nal argentino La Nación, em que fez algumas decla-rações no mínimo desastrosas para um candidato a presidência e quase causou um incidente diplomáti-co. Disse que “o problema de Hugo Chávez é que ele fala demais. Tem que falar menos”. Sobre a Argen-tina afirmou: “Não sei qual é a ideologia dos Kirch-ner. Parece que são progressistas, mas também são peronistas. No Uruguai é difícil para nós entendê-los”. E não parou por aí. Falou que “a justiça tem odor de vingança” e que nela não crê.

Depois admitiu que também fala demasiada-mente. Nessa mesma semana, o jornalista uruguaio Alfredo García lançou, no dia 13 de setembro, o li-vro Pepe Coloquios, com 14 entrevistas de Mujica, em 28 horas de conversas gravadas. O livro virou polêmica, teve repercussão internacional e esgotou em poucos dias. Nele o presidenciável faz mais de-clarações sobre os Kirchner, a quem define como “patota” (gangue, em português) e chama o gover-no e os ruralistas argentinos de “burros”.

No entanto, isso em nada mudou o cenário po-lítico. Mujica e Astori continuam liderando as pes-quisas, com 45% das intenções de votos. Mas as eleições não estão ganhas. Mais quatro partidos es-tão na disputa, entre eles o Partido Nacional (Blan-co), Colorado, Assembleia Popular e Partido Inde-pendente. Mas apenas os candidatos de dois deles possuem chances reais de vencer as eleições: José “Pepe” Mujica, da Frente Amplio, e Luis Alberto La-calle, do Partido Nacional, que possui 32% das in-tenções de votos.

O Uruguai possui uma direita organizada e com tradição política. “O Partido Nacional é muito an-tigo, criado em 1836, assim como o Colorado, cria-do em 1825, um dos primeiros do mundo. São par-tidos de direita que historicamente tiveram em seu cerne o liberalismo e a democracia”, observa o cien-tista político Adolfo Garcé, professor e pesquisador do Instituto de Ciência Política da Universidade da República de Montevidéu.

Luis Alberto Lacalle, de 68 anos é um políti-co experiente. Ex-presidente uruguaio, governou o país entre 1990 e 1995 e foi um dos grandes res-ponsáveis pelo processo de consolidação da de-mocracia. Assumiu o governo com 49 anos, sendo considerado um dos mais jovens presidentes que o Uruguai já teve. Isso porque ingressou na política em 1958, quando tinha apenas 17 anos.

Advogado, cientista social e jornalista, Lacal-le é um intelectual respeitado. Também foi deputa-do nacional e senador. Opositor à ditadura militar, em agosto de 1978 recebeu uma garrafa de vinho enviada por um desconhecido, com um bilhete que

dizia “brindar pela Pátria em sua nova etapa” e as-sinado com a sigla “MDN”. Garrafas iguais foram enviadas também aos legisladores do Partido Na-cional, Carlos Julio Pereyra e Mario Heber. Muitos acreditaram que era pelos rumores de que o país es-tava prestes a sofrer um golpe dentro do próprio re-gime. No entanto, a motivação era outra. Os vinhos estavam misturados com um potente veneno. Lacal-le não provou a bebida, alertado por sua esposa que achou tudo muito suspeito. Mas a companheira de Mario Heber, Cecilia Fontana, experimentou e mor-reu logo em seguida. O caso nunca foi esclarecido e há suspeitas inclusive de haver ligação com a mor-te, em 1976, do ex-presidente brasileiro João Gou-lart, que também pode ter sido envenenado.

semelhaNças e difereNçasJosé “Pepe” Mujica é uma figura muito polêmi-

ca, que encontra muita resistência em uma parte da sociedade e é muito querido entre os pobres e pou-co aceito pelos ricos. “As pessoas sentem carinho por Mujica, muitas o admiram pelos anos que este-ve na luta revolucionária. O respeitam pelo modo como vive, por sua coerência. Porque a ele não im-porta dinheiro, nem conforto. Vive em uma cháca-ra a 20 km do centro da cidade, tem uma casa hu-milde e cultiva suas próprias flores. Não é como os políticos clássicos que têm grandes carros e um lu-xuoso apartamento em um bairro lindo. Mujica tem um carro muito velho e usa roupas velhas. As pes-soas gostam dele e o consideram um homem ho-nesto e sensível. Acreditam, sobretudo os pobres, que ele compreende seus problemas”, analisa Adol-fo Garcé.

Com Lacalle é diferente. “O respeitam e acredi-tam que ele entende os problemas do mundo, que é um homem culto e bem informado. Todo mundo sabe que Lacalle pode ser um presidente que resol-ve muitos entraves. Tem aspecto de presidente. Fala

como um presidente. Tem uma casa linda em Car-rasco, um dos lugares mais caros de Montevidéu. É um homem que as pessoas sentem que as pode re-presentar”, compara o cientista político.

O que se sabe é que a competição entre Muji-ca e Lacalle é muito dura no terreno retórico. Mu-jica fala da corrupção dos anos 1990, do governo de Lacalle, que por sua vez fala da violação dos di-reitos humanos cometida pela guerrilha urbana que Mujica integrou. Para o pesquisador da Universida-de da República de Montevidéu, Adolfo Garcé, ao mesmo tempo em que confrontam não estão se con-trapondo com dois projetos de país completamen-te distintos. “José Mujica está fazendo uma campa-nha de centro-esquerda e Lacalle de centro-direita, sem grandes conflitos de interesses”.

Essa, no entanto, é a crítica mais feroz tanto ao governo de Tabaré Vásquez, quanto à candidatura de Pepe Mujica. Pois a Frente Amplio, assim como o PT do presidente Lula, saiu da esfera ideológica que sempre a norteou e vem atuando mais como pro-gressista ou centro-esquerda.

CoNquistas e derrotasPara o operário Luis Alberto Forte, de 43 anos,

a esquerda está sem palavras. “Há um vazio de dis-curso. Pois os intelectuais que sempre defenderam uma sociedade igualitária agora estão no poder e se calaram”, afirma. Além disso, o governo não pro-moveu, nem discutiu a reforma agrária e os custos de vida ainda continuam muito altos para o tra-balhador.

Segundo o pesquisador da Universidade da Re-pública de Montevidéu, a Frente Amplio continua sendo um partido de esquerda, mas hoje está mo-derada. Assim como a grande maioria dos parti-dos de esquerda da América Latina estão repen-sando suas ideias e suas propostas programáticas, com objetivos menos ambiciosos no que diz res-peito às mudanças que querem realizar e mais am-biciosa no sentido de querer governar. De acordo com Pepe Mujica a luta armada tampouco chegou à terra prometida. “Os dois momentos têm uma coi-sa em comum. A diferença é que agora temos mais companheiros, mas já não se propõe mudar o mun-do”, afirma.

A Frente Amplio vive a glória de ter feito mu-danças importantes nos campos social, trabalhista, educacional e da saúde, e o conflito ideológico de defender o socialismo e governar um Estado capita-lista. Porém, para o candidato do Partido Nacional, Luis Alberto Lacalle, não existe esquerda, nem di-reita do Uruguai. “Eu não sou de direita e as pesso-as tão pouco identificam o governo da Frente Am-plio como de esquerda. Assim como acontece com o presidente Lula, no Brasil. O PT tem passado de es-querda, mas sua política econômica não é esquer-dista”, declara Lacalle.

O pesquisador Roberto Elissalde realizou um ex-tenso estudo sobre a administração da Frente Am-plio, entre março de 2005 e junho de 2009, que resultou no livro Gozos y sombras del gobierno pro-gresista, lançado no dia 13 de setembro de 2009. Nesse livro, Elissalde mostra muitas mudanças es-truturais que foram realizadas nesse período. “A Mujica começou a militância na década de 60

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saúde, por exemplo, sofreu uma reforma completa. Além disso, mais de mil crianças possuem cober-tura médica gratuita, que antes não tinham. O sis-tema fiscal também foi alterado. Agora quem tem mais dinheiro também paga mais. O imposto de va-lor agregado, que era muito injusto, deixou de ser cobrado e, em contrapartida, foi criado um impos-to sobre a riqueza.”

Também houve uma reforma no sistema de fi-nanciamento da casa própria. O Banco Hipotecário do Uruguai, depois de oito anos, voltou a financiar a construção e a compra de casas. Outro feito im-portante foi a criação do Ministério de Desenvol-vimento Social, que promoveu um grande avanço nas políticas de inclusão social. “O governo aqui fez uma coisa muito parecida com a Bolsa Família do Brasil, dando subsídio às pessoas pobres”, ex-plica Elissalde.

O governo oferece um pacote de ajuda que abrange a educação, a saúde e uma ajuda em di-nheiro. Com medidas como essas o Uruguai con-seguiu eliminar metade da pobreza, que atingia 30% da população em 2005. Além de ter diminu-ído significativamente a indigência, que caiu de 5% para 2,4%.

Para o sindicalista Juan Castillo, dirigente do PIT-CNT (Plenário Intersindical de Trabalhadores - Convenção Nacional de Trabalhadores) e do Parti-do Comunista, também foram muitos os ganhos nos direitos trabalhistas. “Conquistas, como as leis de negociação coletiva, liberdade sindical e oito horas para os trabalhadores do campo, hoje são uma re-alidade. Sem dúvida, há um salto em qualidade na vida dos trabalhadores, o que é justo apreciar. Ago-ra, estamos profundamente enamorados desse go-verno? Não! Sem dúvida estamos muito melhores que no governo anterior, mas há muito a conquis-tar. Os desafios ainda são muitos. Em primeiro que

sempre deixamos claro que o mais importante ha-via acontecido, pois a esquerda tinha conquistado o governo, mas que não tinha o poder. Essa foi uma questão que gerou muito debate”, ressalta Castillo.

CoNstruiNdo o deseNvolvimeNto

Que tipo de país os uruguaios querem construir? A resposta virá no dia 25 de outubro, nas urnas elei-torais. O país que chegou a ser conhecido como a Suíça da América, na década de 1950, amargou du-rante anos em um extenso processo de degradação industrial que assolou sua economia. Com a moe-da desvalorizada, o país parece estar acordando de uma ressaca de quatro décadas.

O desemprego no final do governo de Jorge Ba-tlle (2000-2004), do Partido Colorado, era de 14%, mas chegou a 20%, em 2002, durante a crise da Ar-gentina. Hoje, a taxa é de 6,9% e a geração de pos-tos de trabalho continua aumentando, mesmo em meio a uma crise financeira mundial, quando a Es-panha está com 20% de desemprego.

Além disso, no dia 15 de setembro uma boa no-tícia encheu o povo uruguaio de esperança. O país não só não caiu em recessão como retomou o cres-cimento. Uma situação excepcional em época de crise econômica mundial. No segundo trimestre de 2009 cresceu 0,5%, em comparação ao primeiro, e 1,5% em relação ao mesmo período de 2008, quan-do o país obteve um vigoroso crescimento de 9%. Com isso o governo elevou para 1,2% a meta de crescimento econômico para esse ano, que era de 0,7%. Ao que tudo indica o Uruguai será um dos poucos países da América Latina que terminará o ano de 2009 crescendo.

Isso porque, segundo Juan Castillo, a crise não atingiu todos os âmbitos da produção. As pequenas economias e os países dependentes, como o Uru-guai, têm algumas coisas negativas, mas também

outras positivas. O crescimento econômico mundial demora a chegar, em compensação as reações ne-gativas também. Nessa crise quem mais sofreu foi a indústria têxtil, pois os vizinhos Brasil e Argentina inundaram o mercado.

Somente 5% do que se produz do Uruguai é con-sumido dentro do país. Por isso a indústria está li-gada diretamente a exportação. Tudo o que é pro-duzido no país é feito em escala para exportação, pois os custos para a pequena quantidade de con-sumidores uruguaios seriam muito altos, como no caso do arroz. 95% da produção é vendida no exte-rior, da qual 80% é comprada pelo Brasil. No caso da indústria têxtil, como a produção é pequena e há uma superoferta dos vizinhos gigantes, a produção nacional é inibida.

Um dos pontos positivos é que o consumo inter-no está aumentando, por isso o país, ano a ano, está experimentando excelentes níveis de crescimento. De acordo com as estimativas do PIT-CNT, o Produ-to Interno Bruto (PIB) expandirá em 4% em 2009 e a economia poderá chegar a 2%. Contudo, o dirigente do PIT-CNT adverte: “Não nos contentamos em ter um governo de esquerda que melhore as condições de vida do capitalismo, mas queremos edificar a base para construirmos o socialismo no nosso país. Consciente de que isso passa por um grande pro-cesso de acumulação de forças, com muita amplitu-de, fortalecendo a unidade e trabalhando para que, oxalá mais cedo do que tarde, possamos construir uma sociedade diferente. Com um mundo avesso, mas possível, tanto que Cuba segue construindo, tanto que outros povos estão avançando nessa dire-ção, como a Venezuela”, finaliza. Atualmente Juan Castillo é candidato a deputado nacional, pelo Par-tido Comunista do Uruguai e pediu licença das ati-vidades sindicais no dia 15 de setembro.

Fania Rodrigues é jornalista.

O sindicalista Juan Castillo, dirigente do Partido Comunista Luis Alberto Lacalla, ex presidente uruguaio

O cientista político Adolfo Garcé, da Universidade da República de Montevidéu

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Fidel Castro

A UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) enfrenta um im-passe diante da teimosia do presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, de ampliar a instalação de bases usamericanas no território de seu país. Os demais presidentes estão contra. Preferem preservar a soberania e a inde-pendência da América do Sul.

Na reunião de Bariloche, em agosto, o presidente Lula bem argumen-tou: se desde 1952 as tropas estadunidenses não conseguiram erradicar o narcotráfico na Colômbia, por que agora estariam aptas a fazê-lo?

Funcionam na Colômbia três Estados paralelos: a guerrilha das FARC; o narcotráfico; e os grupos paramilitares, criados supostamente para combater os dois primeiros. Desde 1991, cerca de 2.500 sindicalistas fo-ram assassinados naquele país, quinhentos sob o governo de Uribe. Os pa-ramilitares puxam o gatilho, mas quem os financia são empresas nacionais e transnacionais.

A Coca-Cola sofre processo judicial por ter apelado aos paramilitares para reprimir atividades sindicais, entre 1992 e 2001, que resultaram na morte de sete sindicalistas. A Chiquita Brands, exportadora de banana, ad-mitiu ter financiado o grupo terrorista Autodefesa da Colômbia. A Dyncorp foi acusada de contaminar com substâncias tóxicas lavouras de pequenos agricultores na fronteira entre Colômbia e Equador, visando a erradicação do plantio de coca. Tais fatos têm impedido que o governo dos EUA, em-penhado na investigação dessas empresas, realize o grande sonho de Uri-be: assinar o tratado de livre comércio entre os dois países.

A empresa Drummond, com sede no Alabama, explora minas de carvão e é acusada de ordenar o assassinato, por mãos de paramilitares, de três dirigentes sindicais. Ela extrai da Colômbia mais de 16 milhões de to-neladas de carvão/ano. Seu faturamento anual está calculado em US$ 500 milhões, graças ao trabalho de 3 mil mineiros remunerados a US$ 2,5/hora.

A Justiça de Atlanta acusou a empresa de acobertar os assassinos dos sin-dicalistas colombianos e condenou a empresa, baseada numa lei de 1789, promulgada para punir ações de pirataria e crimes cometidos fora do terri-tório dos EUA. O processo correu sob segredo de Justiça, mas a mídia de Ala-bama pressionou e, agora, sabe-se que Rafael García, ex-chefe do departa-mento de informática do DAS (Departamento Administrativo de Segurança), órgão máximo da segurança do Estado colombiano, preso por haver destru-ído informações sobre os narcotraficantes de seu país, revelou as conexões entre parlamentares e funcionários comprometidos com os paramilitares.

García confessou que pouco antes do assassinato dos sindicalistas pre-senciou uma reunião entre o presidente da filial colombiana da Drummond e o chefe paramilitar que controlava a região. Viu quando o empresário entregou a ele US$ 200 mil para assassinar os sindicalistas. Contou ainda que os paramilitares usavam barcos da Drummond para transportar coca-ína à Europa e Israel.

Favorecer na Colômbia um terceiro mandato de Uribe é sacramentar a corrupção e a impunidade.

TRAGÉDIA Colombiana

Uma espécie em peRIGo De exTInção

Frei Betto

Na Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente convocada pela ONU no Rio de Janeiro, afirmei quando era o chefe do Es-tado cubano: “Uma espécie está em perigo de extinção: o homem”. Quan-do proferi e fundamentei aquelas palavras, recebidas e aplaudidas pelos chefes de Estado ali presentes – inclusive o presidente dos Estados Uni-dos, um Bush menos tenebroso que seu filho George W. – estes acredita-vam dispor ainda de vários séculos para enfrentar o problema. Eu próprio não o via numa data tão próxima como sessenta ou oitenta anos.

Hoje se trata de um perigo realmente iminente e seus efeitos são já visíveis. A temperatura média aumentou 0,8 grau centígrado desde 1980, segundo o Instituto de Estudos Espaciais da NASA. As últimas duas déca-das do século 20 foram as mais quentes em centenas de anos. As tempe-raturas no Alasca, no oeste canadense e no leste da Rússia subiram a um ritmo que duplica a média mundial. O gelo do Ártico está desaparecen-do rapidamente e a região pode experimentar seu primeiro verão com-pletamente livre de gelo no ano 2040. Os efeitos são visíveis nas massas de gelo de mais de 2 Km de altura que se derretem na Groenlândia, nas zonas glaciais da América do Sul, do Equador ao Cabo Horn, fontes fun-damentais de água, e a gigantesca camada de gelo que cobre a exten-sa zona antártida.

As atuais concentrações de dióxido de carbono atingiram o equi-valente a 380 partes por milhão, cifra que supera a geração natural dos últimos 1650.000 anos. O aquecimento está já afetando os sistemas na-turais de todo o mundo. Se isso ocorrer, será devastador para todos os povos.

Desde a Antiguidade, os filósofos e pensadores mais avançados procu-raram a justiça social. Apesar disso, a escravidão física durou legalmen-te até há 129 anos, quando se decretou a abolição da escravatura na co-lônia espanhola de Cuba.

Hoje, os Estados Unidos possuem milhares de armas nucleares que poderiam exterminar várias vezes a população do mundo. São, por sua vez, os maiores produtores e exportadores de todo tipo de armas.

O ritmo acelerado das pesquisas científicas em todas as áreas da pro-dução material e dos serviços, sob a ordem econômica imposta ao mun-do depois da Segunda Guerra Mundial, conduziu a humanidade a uma situação insustentável.

Nosso dever é exigir a verdade. A população de todos os países tem direito de saber os fatores que originam a mudança climática e quais são as possibilidades atuais da ciência para reverter a tendência, se ain-da se dispõe realmente delas.

O povo cubano, especialmente sua magnífica juventude, demonstrou que, ainda em meio a um brutal bloqueio econômico, é possível ultrapas-sar obstáculos inimagináveis.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros. Fidel Castro Ruz

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Assassinatos de jovens indígenas evidenciam a repressão do Estado chileno sobre os povos originários que lutam por reconhecimento e pela recuperação de seus territórios ancestrais.

Carolina Coral

direito à terra

SAntiAgo do ChilE – A morte do jovem mapuche Jaime Facundo Mendonza Collio, da comunidade Requem Pillan de Ercilla, em 12 de agosto desse ano, como consequência de um dis-paro realizado por um policial durante uma mani-festação em defesa de terras indígenas, não foi o primeiro caso de assassinato e repressão por par-te do Estado chileno contra o povo mapuche. Ou-tras vítimas, como Alex Lemun, em 2002; Juan Collihuin, em 2006, e Mathias Catrileo, em 2008, evidenciam que as mortes não são meros casos isolados, mas sim consequência de problemas que se arrastam por mais de 100 anos entre os po-vos originários e o governo nacional. Tais proble-mas continuam sendo intensificados por atos de violência e pela falta de tolerância em relação às múltiplas etnias que constituem o Chile.

Segundo o historiador chileno José Bengoa, a cronologia da história indígena do Chile não é a mesma da história do país. Apesar das seme-lhanças históricas entre todos os povos indíge-

nas da América Latina, também há particularida-des de cada grupo indígena. No caso dos mapuche – povo indígena predominante no Chile e tam-bém existente na Argentina – eles sempre estive-ram predispostos a dialogar com o governo chi-leno. Entretanto, foi o próprio Estado chileno que rompeu com as possibilidades de diálogo, no final do século 19, quando iniciou sua expansão terri-torial. Além disso, não elaborou nenhuma políti-ca de proteção aos indígenas. Pelo contrário, os consideravam como um obstáculo para o desen-volvimento econômico da nação.

Foi nesse período de expansão territorial que os mapuche, por meio dos títulos de Merced - instru-mento criado pelo governo chileno para se apo-derar e controlar terras que não lhe pertenciam - ocorreu um processo abrupto de redução terri-torial dos povos originários, que permaneceram apenas com 5% das atuais províncias de Arauco, Bibio, Malleco e Cautín. No entanto, mesmo com os títulos em mãos, não se assegurou a permanên-cia dos mapuche em suas terras devido à usurpa-ção das terras por parte dos colonizadores estran-geiros e dos próprios chilenos.

Para Bengoa, a origem da pobreza indígena está diretamente ligada a tal redução territorial, pois essas poucas terras se tornaram insuficientes para suprir as necessidades dessa população, im-pedindo a construção de uma vida digna.

Além disso, entre fins do século 19 e princí-pio do século 20, houve um período denominado como “assimilação forçosa”, caracterizado por po-líticas estatais dirigidas aos povos indígenas com o objetivo de transformá-los em cidadãos chile-nos, com base em um conceito de “identidade na-cional homogênea”. Na visão do historiador, esse projeto foi marcado por uma integração frustra-da, porque até hoje os indígenas não estão total-mente inseridos na sociedade chilena.

dissolução de territórioAinda hoje os mapuche vivem sob a ameaça

da dissolução do seu território. Os maiores inimi-gos das terras indígenas são os projetos de inves-timentos privados, entre elas plantações florestais que afetam diretamente as comunidades.

Para Alfredo Segel, editor do informativo Ma-puexpres - site de maior acesso com conteúdos sobre os mapuche – “a indústria florestal tem sido uma das atividades símbolos do ultraneoli-beralismo do Estado chileno, pois seus proprietá-rios são os empresários considerados mais ricos de toda a América Latina”. Atualmente, há 3 mi-lhões de hectares de monocultura de espécies exó-ticas como o pinus e o eucalipto, que são como bombas que sugam a água do solo, prejudicando o meio ambiente, além de substituir os bosques na-tivos, as plantas com propriedades medicinais e a soberania alimentar dessas comunidades.

Os investidores da indústria florestal e suas de-rivações, como a de aquacultura, de criação de gado e da agricultura estão diretamente associa-dos ao mercado financeiro e se dividem em nacio-nais, multinacionais e transnacionais. De acordo com Roberto Morales, diretor da Escola de An-tropologia da Universidade Austral do Chile, tais

A saga do povo Mapuche

Funeral do jovem mapuche Jaime Facundo Mendonza Collio

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grupos também controlam a educação, a saúde, a energia e os meios de comunicação, e são os mes-mos que controlam o aparato público estatal a seu favor e ajudam a implantar políticas repressivas que resultaram nas mortes dos jovens mapuche.

Carta braNCa do goverNo Na avaliação de Segel, o governo da presiden-

te Michelle Bachelet deu carta branca para uma radical expansão do extrativismo nas terras dos povos originários. No entanto, o modo como es-ses recursos serão explorados “diz respeito a to-dos e principalmente às comunidades que fazem parte desse ecossistema”, salienta. Explica, ainda, que a indústria florestal no Chile é representada principalmente por dois grupos econômicos: Mat-te (CMPC) e Angelini (Copec, Arauco y Celco), os quais controlam aproximadamente 70% do solo utilizado para plantações no país e já superam 7 milhões de dólares de fortuna. Além disso, es-tão se expandindo para outras regiões como Peru, Equador, Uruguai, Argentina e Brasil.

Segundo o advogado José Aylwin, diretor do Observatório Cidadão, e filho do ex-presidente Patrício Aylwin, depois que o Chile ratificou o Convênio 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) “para cada projeto realizado em terras indígenas deveria ser aplicado um processo de consulta adequada a tais povos, como forma de compensação pelos danos e maior participação nos benefícios que estes geram, exatamente como se estabelece no direito internacional”.

Aylwin também ressalta que, apesar do histó-rico de demandas negadas aos povos indígenas, a ratificação desse Convênio - firmado sob pres-são de organismos nacionais e internacionais – ajudou a inserir a problemática indígena do país em um cenário internacional, representando um avanço e uma possibilidade de real transforma-ção. Contudo, “ainda assim são insuficientes, pois as políticas públicas ainda são muitas vezes con-traditórias”.

Uma das contradições é a própria Constituição chilena, que distingue a propriedade da terra dos elementos que fazem parte dela. Assim, na maio-ria das vezes, dentro das propriedades indígenas ocorre uma exploração da vegetação e das águas por parte de empresas privadas, gerando um con-flito em permanente expansão.

tradição ao diálogo Apesar de todos os abusos sofridos ao longo

desses anos, a tradição mapuche de dialágo se mantém. No princípio de agosto desse ano, as li-deranças do sul foram a Santiago reivindicar jun-to ao governo a recuperação de seus territórios ancestrais, mas como não foram atendidos, de-cidiram ocupar as terras que tentavam reaver. O ministro Patricio Resende foi enviado a Arauca-nia para fazer um acordo, porém segundo o ad-vogado Aylwin, o representante do governo, além de não ter dialogado com a comunidade, mandou reforçar a estratégia policial, o que terminou pro-vocando a morte de Jaime F. M. Collio.

Até hoje todos os agentes policiais responsá-veis pelas mortes dos mapuche não foram leva-

dos à justiça civil, mas sim julgados pela justiça militar, que, de acordo com José Aylwin “care-ce de imparcialidade e independência necessária para analisar membros das forças armadas, geran-do, consequentemente, um sentimento de indig-nação por parte das comunidades mapuche, que por todos esses anos convivem com a impunida-de”. Além da responsabilização dos agentes do es-tado, o diretor do Observatório Cidadão defende o fim imediato da militarização nas zonas de con-flito, o que para ele é “uma provocação inaceitá-vel para a convivência interétnica”.

direitos fuNdameNtaisDe acordo com Roberto Morales, existem ou-

tros aspectos que estão associados ao reconhe-cimento dos direitos fundamentais dos mapuche como povo, como o exercício efetivo de uma so-berania política, a autodeterminação como nação e um modelo de desenvolvimento econômico ade-quado aos seus princípios coletivos, associativos e de cooperação. Morales acredita que entre as rei-vindicações mapuche são somente atendidas as que não colocam em risco o modelo econômico vigente, o sistema político e o eixo cultural pre-dominante. Segundo ele, no governo de Michelle Bachelet predomina uma postura ambígua, “que de um lado apoia o respeito ao reconhecimento das demandas mapuche, mas não àquelas asso-ciadas aos investimentos públicos, como a criação uma nova legislação, educação diferenciada, es-paços de poder a diferentes grupos, instâncias de comunicação e inclusão das comunidades nas to-madas de decisão”.

A promulgação da Lei Indígena n° 19.253 pelo Chile, em 1993, foi resultado de pressões externas e internas e uma tentativa de incluir os mapuche. De acordo com Elba Soto, doutora em educação, “no momento de sua elaboração, o governo chile-no permitiu aos indígenas que propusessem seus próprios termos”. Contudo, na prática, como ela constatou em entrevistas com lideranças indíge-nas, “o reconhecimento como nação indígena foi excluído, e também muitas propostas dessa lei não correspondem aos objetivos deles”.

luta para além dos CoNflitosO estudante de História da Universidade do

Chile, Líber Osorio – filho de mapuche – susten-ta que outro elemento fundamental para a consti-tuição da nação mapuche é o idioma, pois é atra-vés dele que a cultura é difundida. Ele explica que o Chile é um dos únicos países da América La-tina que não se reconhece como um povo mes-tiço, por isso enfatiza que a luta está para além dos conflitos territoriais. A poeta mapuche Mari-bel Mora revela com saudosismo e muito orgu-lho que sua avó - dirigente de uma comunidade mapuche – sempre lhe dizia: “faças o que fizeres, nunca te esqueças que és mapuche”. Apesar dis-so, aos poucos a família de Maribel foi incorpo-rando o espanhol e deixando de falar o idioma mapugundun – língua originária dos mapuche – o que, para ela, foi um dos grandes crimes come-tidos pelo Estado chileno.

Tanto a família de Líber como a de Maribel fa-

zem parte de um processo de migração no qual muitos mapuche saíram dos campos do sul do país para o centro de Santiago, desvinculando-se da estrutura comunitária, aprofundando a de-sagregação das unidades familiares e vendendo sua força de trabalho na cidade. Desse modo, mu-tilaram não somente sua língua como sua cultu-ra, através de um processo denominado por mui-tos especialistas de “chilenização”.

O professor mapuche José Ancan, da Univer-sidade do Chile, destaca que apesar das deman-das comuns dos mapuche, existe dentro do pró-prio povo uma diversidade de discursos, assim como em qualquer outra cultura. Inclusive, atual-mente 70% da população mapuche vive nas zo-nas urbanas, devido às reduções de terra e ao gra-ve empobrecimento das zonas rurais. O professor relata, ainda, que depois que foram morar na ca-pital, muitos começaram a negar suas origens por medo da discriminação, chegando a trocar o so-brenome para serem aceitos socialmente e negan-do-se a manter o idioma original mesmo em es-paços privados.

resgate da ideNtidadePatricia Lienlaf, que é dirigente da Organiza-

ção Meli Wixan Mapu, conta que apenas ingres-sou na entidade quando começou a se autorreco-nhecer como mapuche, o que levou muitos anos para acontecer. A organização existe desde o co-meço da década de 90, e trabalha com o resgate da identidade mapuche, principalmente nos espa-ços urbanos, pois considera que os indígenas que vivem na capital devem ser incorporados ao pro-cesso de liberação do povo, assim como os que estão no sul do Chile, lugar de origem de todos eles. A organização tenta integrar todas as rea-lidades do povo mapuche e, para a difundir es-sas diversas expressões, se utiliza de um site que, mais do que informar sobre os acontecimentos recentes, faz conhecer suas opiniões, além de mo-bilizar e coordenar atividades públicas durante todo o ano, como por exemplo, os protestos e ma-nifestações que ocorreram em Santiago em torno da morte de Collio. Outro veículo de manifestação e divulgação de opiniões mapuche é o já citado Mapuexpress. Alfredo explica que este jornal ele-trônico é realizado apenas com trabalho voluntá-rio e, além de produzir seus próprios conteúdos, se nutre também de informação de outras redes nacionais e mundiais, faz campanhas e denúncias a favor dos direitos dos povos indígenas e tem uma tribuna permanente para dar voz às comu-nidades e organizações. Por meio de todos esses mecanismos o editor revela que essas informa-ções têm uma imensa amplificação e ressonân-cia em outras redes, “o que para ele é fundamen-tal, já que a imagem dos mapuche é o resultado de políticas de negação de identidade. Muitos in-dígenas sentem a carga desses estereótipos dia-riamente alimentados pelos meios de comunica-ção chilenos”.

Carolina Coral é jornalista e atualmente faz Mestrado em Estudos Culturais Latinos-americanos, na Universidade do Chile.

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Tatiana Merlino

é noite de jogo do Brasil. São cerca de 20h no bar Zé Batidão, bairro de Piraporinha, zona sul de São Paulo. Faz frio, e, aos pou-

cos, as mesas de plástico vermelhas espalhadas pelo salão vão sendo ocupadas por dezenas de pessoas. São metalúrgicos, taxistas, motoboys, secretárias, professores, vigilantes, lanterninhas, encanadores, que moram nas redondezas do bar e em outras que-bradas da cidade. A razão do encontro dessa gen-te é a literatura. Há seis anos, o bar sedia o Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa, que acontece religiosamente todas as quartas-fei-ras, das 21h às 23h.

Por entre as mesas apinhadas de jovens, velhos e crianças, garçons equilibram-se com tigelas de

escondidinho de carne-seca, especialidade da casa. No período que antecede o início do sarau, a músi-ca rola solta. Às 21h em ponto, o poeta Sérgio Vaz, idealizador do projeto que reúne artistas da perife-ria, pede a atenção. Feitas as apresentações, todos cantam, em coro: “Povo lindo, povo inteligente...Uhh, Coperifa, uhh, coperifa!”.

Dona Edith, senhora negra de cabelos brancos, é a primeira a declamar seus versos. Amparada por uma moça mais jovem, descobrimos, depois, que dona Edith é cega. Durante a noite de 9 de setem-bro, 50 pessoas apresentaram-se no sarau. Uns mais tímidos, outros mais ousados. “Essa é a primeira vez dele (ou dela) aqui”, são anunciados alguns, sob aplausos da platéia.

Poeta dos escravosUm dos poetas veteranos da Cooperifa é Elber

Ladislau, de 33 anos. Negro, sorriso largo, mais de 1,90. Frequenta o sarau há oito anos. Antes disso, já escrevia, “mas não acreditava que haveria um lugar onde poderia mostrar minha crítica ao siste-ma”, explica. Na infância, Elber gostava de litera-tura, mas não de escola. O desinteresse cresceu ain-da mais quando uma professora puxou sua orelha por ele ter se negado a cantar. “Isso interferiu na minha vida. Foi um trauma”. Elber largou a esco-la. Muitos anos depois, já adulto, trabalhando com dedetização de caixas d’água em prédios de bairros da classe média paulistana, achou livros no lixo. “Eram obras de Cruz e Souza, Alphonsus Guimaraes e Castro Alves”. Por motivos mais que óbvios, este último o marcou. Quando perdeu o emprego, pas-sava o dia decorando os poemas do “poeta dos es-cravos”, em especial “Navio Negreiro”.

Incentivado pelos livros, voltou a estudar, ma-triculando-se num curso supletivo. Na mesma épo-ca, foi apresentado à Cooperifa por um amigo. Des-de então, suas noites de quarta-feira são marcadas pela poesia. “Foi uma das melhores coisas da minha vida. Aqui, um aprende com o outro. E fazendo po-esia eu não morro conformado”, conta o poeta, que trabalha como atendente na Pinacoteca do Estado.

Fundada em 2001 por Sérgio Vaz e Marco Pezão, a Cooperifa é uma das principais iniciativas cultu-rais da periferia de São Paulo, onde, em geral, o Es-tado só se faz presente por meio da força. “Na peri-

Antes carentes de cultura, regiões pobres de São Paulo vivem período de efervescência com saraus, bibliotecas, mostras de cinema e oficinas de hip hop Fotos Jesus Carlos

A Tropicália da Periferia

A biblioteca Exodus, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, foi montada em um antigo local de venda de drogas

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feria, o único lugar que a gente tem para receber as pessoas é o bar. Por isso, transformamos o bar em centro cultural. Foi aí que surgiu o sarau da Coope-rifa”, conta Sérgio. Durante um ano e meio, os sa-raus ocorreram no bar Garajão, em Taboão da Ser-ra. No primeiro encontro, havia 17 pessoas, sendo que quatro delas eram esposas de poetas. “Mas foi crescendo, virando um quilombo cultural. As pes-soas vinham de outros lugares para conhecer. Era gente que guardava seus escritos e começou a achar sentido para aquilo que estava na gaveta. Elas nos assistiam, e começaram a pensar: ‘É tão simples as-sim? Então vou fazer também’”.

revolta canalizadaInspirado na Semana de Arte Moderna de 1922,

o sarau é resultado da teimosia de Vaz. “Todo mun-do sabe que na periferia não tem cinema, teatro, museu. A gente resolveu parar de reclamar e fa-zer”, conta. “Ela não é pioneira, mas tem o mérito de acordar outros movimentos e poetas”, explica.

Ele conta que, no começo do projeto, as poesias eram de revolta, protesto, desabafo. “Mas, com o tempo, as pessoas foram construindo a poesia, e a poesia foi reconstruindo a pessoa”. No entanto, as-sinala que o protesto é natural, “porque a periferia é onde moram os negros, os excluídos, os brancos fo-didos. É onde mora o pobre, e a partir do momento que você começa a ler, passa a ver as coisas que po-deria ter. Como não tem, fica mais revoltado. Só que agora essa revolta é canalizada”. Prova disso é que mais de 50 livros já foram lançados no sarau.

O maior mérito da iniciativa, acredita Vaz, é fa-zer pela comunidade e amar a periferia. “Eu sou de uma época que a gente queria mudar da periferia, que a gente tinha que mentir que não morava aqui para arrumar emprego. Os bairros eram sataniza-dos”. Hoje, as coisas mudaram, garante o poeta de 45 anos. “Agora a gente quer mudar a periferia”.

libertaçãoEm 2003, a Cooperifa mudou-se para o bar de

José Cláudio Rosa, o Zé Batidão. Na infância de Sérgio, seu pai fora dono do estabelecimento. O poeta trabalhou lá por 12 anos atrás do balcão e servindo mesas. “Aqui era minha senzala, e hoje é o que me liberta“, revela. “Na periferia, a literatu-ra nunca foi uma arte porque é uma arte da elite. A gente é iletrado, não frequenta nenhuma aca-demia, não faz parte de nenhum grupo literário, muito pelo contrário. Além de todos os precon-ceitos, agora tem o preconceito linguístico: ‘essa gente feia com palavra bonita na boca’. Então, in-comoda um pouco, mas, e daí, quem pode proibir o povo de ler e escrever? Para quem a gente tem que pedir autorização? Academia brasileira de le-tras, PUC, USP?”, ironiza.

A iniciativa deu tão certo que rendeu novos fru-tos. “Somos um movimento de poesia, mas há pes-soas que fazem teatro, cinema, artes plásticas, dan-ça, então apresentamos as coisas aqui”. Além do sarau, que hoje reúne entre 300 a 400 pessoas por noite, há, a cada 15 dias, o ‘Cinema na Laje’, espaço alternativo para exibição de filmes e documentários

de todas as partes do Brasil e do mundo, e que acon-tece literalmente na laje, no “andar de cima” do bar, com pipoca de graça. Lá, já houve mostras de cine-ma nordestino e africano. A ideia é dar vazão a mais um movimento artístico que surgiu na periferia, que é o cinema. “A molecada está fazendo curtas metra-gens, documentários. Acho que a Cooperifa fez as pessoas sentirem: ‘eu sou possível, e vou tentar fa-zer isso’”, explica o idealizador do projeto.

Há, ainda, o prêmio Cooperifa, concedido às pessoas que “direta ou indiretamente ajudam a pe-riferia a se transformar num lugar melhor”. Outra iniciativa é a “poesia no ar”, que acontece em abril. Cerca de 500 pessoas juntas soltam, simultanea-mente, poesias dentro de balões de gás. A Coope-rifa também instituiu o “ajoelhaço”, momento em que os homens se ajoelham para pedir desculpas pe-las faltas cometidas com suas esposas. Já durante a “chuva de livros”, recém inaugurada, distribuiu 500 livros para a comunidade. O projeto ainda leva o sa-rau para escolas e jovens da Fundação Casa.

bossa novaPor essas e outras, Vaz afirma: “pelo menos na

zona sul, que é onde eu trabalho, estamos vivendo uma efervescência muito grande. Hoje estamos vi-vendo a nossa Tropicália, nossa Primavera de Pra-ga, a nossa Bossa Nova”. Tal ebulição cultural fez com que a “a bússola mudasse e a classe média se voltasse para cá com outros olhos. A gente tam-bém tem cultura, e não somos contra, somos a fa-vor da periferia, do negro, do pobre, do excluído, não é um movimento de ódio. A periferia faz par-te do Brasil, quer queiram ou não. É isso que que-remos dizer”.

A valorização periférica levada a cabo pela Co-operifa inspirou muitos outros produtores de cul-tura de outras quebradas e periferias de São Pau-lo. Hoje, há inúmeras iniciativas semelhantes, como saraus, bibliotecas comunitárias, trabalhos em ví-deo, grupos com oficina de literatura, teatro, dan-ça, hip hop. “Pode parecer arrogância, mas hoje há um sarau em Minas inspirado na cooperifa, o “Co-letivoz”. Em Porto Alegre, há o “Sarau do Bezerra”, Metalúrgicos, taxistas, motoboys, secretárias, lanterninhas e encanadores participam dos encontros no bar Zé Batidão

Vaz fundou o sarau da Cooperifa, uma das principais iniciativas culturais da periferia de São Paulo

“Todo mundo sabe que na periferia não tem cinema, teatro, museu. A gente resolveu parar de reclamar e fazer”,

afirma o poeta Sérgio Vaz

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em Diadema, há o “Sarau do Povo” Qual a dificul-dade de montar um sarau hoje? Em qual periferia não tem bar hoje?”, brinca. A inspiração da Coope-rifa também vem do movimento hip hop. “Foi ele que acordou a favela, defende a valorização da que-brada, das pessoas da quebrada, do negro, do bran-co pobre, trabalhador”.

versos laPidadosOutro dos participantes que teve sua autoestima

elevada foi Edimauro Teixeira de Almeida, conheci-do como Cocão. Aos 30 anos, o metalúrgico, rapper e poeta frequenta o sarau há seis anos. “No começo, eu tive medo. Ví os caras falando um bagulhos lou-cos, e não declamei nenhum poema. Fui chegando no sapatinho, devagarzinho. Aqui tem que chegar na humildade, até ter os primeiros convites para ir declamar”, confessa.

Segundo ele, desde que começou a ir ao sarau,

tom verde, boné e óculos, Wilsão caminha pela rua Adoasto de Godoy e acena para os vizinhos. Todos o conhecem. Ele coordena o projeto Periferia Ativa, que conta com uma biblioteca comunitária, a Exo-dus, um espaço para oficinas artísticas e a Periferia Digital, onde há aulas de computação.

O trecho da rua que leva à biblioteca indica que ali houve uma mudança. As casas são todas coloridas, grafitadas. Para chegar à sede do projeto, caminha-se por uma estreita viela também toda grafitada, onde há entradas para casas, um beco aqui, uma escada ali, cenário típico de uma favela. Ao chegar na bibliote-ca, nos deparamos com um ambiente iluminado e com estantes brancas que em nada se parece com o que já foi ali antes, um local de venda de drogas.

Idealizado pelo poeta e rapper Ferréz, também morador do Capão Redondo, o projeto da bibliote-ca surgiu em 2000, durante a comemoração de ani-versário da favela, na festa 100% favela, que reúne, anualmente, de 10 a 15 mil pessoas. “Festa acaba, e a gente queria algo permanente”, conta Wilsão, que integra o conjunto de rap Negredo, cujos quatro inte-grantes são coordenadores do projeto. Ferréz e Mano Brown, do grupo Racionais Mcs, levaram livros e fo-ram atrás de doações. “Como o povo não lê, a gente fez questão que fossem livros novos”. Assim, surgiu a Exodus, batizada com esse nome por Brown.

Logo depois, o grupo resolveu expandir o proje-to, montando, assim, o espaço chamado de “área 2”, em cima da biblioteca, onde se chega por uma es-cada externa, com vista panorâmica para a favela. Lá acontecem cursos de break, aula de MC, grafite e DJ. Há, ainda, a Periferia Digital, projeto através do qual meninos e meninas aprendem a mexer no computador e navegar na internet. Por vir, estão a brinquedoteca e um estúdio de música, que será to-cado por Mano Brown.

aPoio financeiro

É evidente que não é fácil manter tais iniciati-vas, sobretudo sem apoio financeiro. “A arrecada-ção é toda feita em festas juninas, de fim de ano, bingo aqui, bingo ali”, explica Wilsão. Segundo ele, nunca aceitaram dinheiro do tráfico, porque, “se aceitássemos, eles iam querer mandar aqui, iam se sentir nossos donos”. Apesar das dificuldades, o ra-pper de 30 anos nunca pensou em desistir, porque “se não fosse a gente, não ia ter nada aqui”, afirma, contando que a biblioteca mais próxima da favela está no bairro vizinho do Campo Limpo. Apenas há pouco tempo o projeto passou a receber apoio fi-nanceiro da organização não governamental Ruca.

No espaço, há, ainda, aulas de literatura mi-nistradas por Ferréz, que também dá palestras de conscientização sobre o mal que as drogas fazem à saúde, “dizendo coisas como a maconha deixa o cara mais lerdo. A gente pede porque estamos numa guerra: ou trazemos o moleque para cá ou o tráfico pega. Estamos em confronto, pegamos um pouco e o trafico pega também”, explica Wilsão.

O grupo também organiza periodicamente o projeto Periferia Ativa Show, quando juntam as aulas e montam uma apresentação de 45 minutos. Também está previsto um show, ainda sem data, no Sesc. “Porque não adianta nada os moleques apren-derem coisas e não terem onde se apresentar”.

seu grupo de rap, o “Versão Popular”, tomou uma nova forma. “Assumimos de verdade a identidade do rap, porque a gente começa a fazer rap e acha que é para falar só de crime. Aqui, ele cresceu: Nele, cabe um universo de palavras. Meus versos foram lapidados, me tornei poeta”.

Cocäo, que hoje faz parte da “família Cooperi-fa”, grupo de pessoas que organizam as noites de quarta e tocam os projetos paralelos do sarau, afir-ma que hoje assume com orgulho sua origem. “An-tes, a gente negava”. De acordo com ele, até “minha família viu os frutos disso, eu era muito fechado, ti-nha muita revolta”.

Periferia ativaNão muito longe do pólo cultural da Pirapori-

nha, Wilson Lopes dos Santos, o Wilsão, nos espera na frente de sua loja, na favela Godoy, Capão Re-dondo, também na zona sul. De conjunto de mole-

Na favela Godoy, além da biblioteca, há cursos de break, grafite, DJ, literatura e cursos de computacão

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Tatiana Merlino é [email protected]

Nas noites de quarta-feira, o sarau da Cooperifa reúne de 300 a 400 pessoas

Maconha e farinha

Questionado sobre o que mudou na comunida-de desde que o projeto chegou, Wilsão afirma que “o moleque que tinha quatro anos quando começa-mos, hoje sabe o mal da maconha, da farinha, res-peita a mãe e o pai”. Além disso, fica com a auto-estima elevada, “porque ele vem aqui, lê um livro, escuta uma música, aprende alguma coisa”. “É um projeto para mudar a comunidade”, define.

A iniciativa também está ajudando a desmisti-ficar a ideia de que na favela só tem bandido, acre-dita o rapper. “A maioria aqui é trabalhador”. A região, que engloba a favela Godoy, Vila Fundão, Grinsul, Vale das Virtudes e Jardim Rosana, é tida como muito violenta, e “área de risco”: lojas e res-taurantes, por exemplo, não fazem entregas por ali. “Habibs não entrega, pizza também não, nem Ca-sas Bahia”. Mas, o cenário está mudando, garante Wilsão. “Depois do projeto, mudou muito. Faz cinco anos que não morre ninguém aqui. A não ser que a polícia mate. Ontem mesmo ela veio dar tiro aqui”. Aliás, “eles já invadiram a biblioteca três vezes, com criança e tudo”. Apesar disso, depois do projeto, as relações com a polícia também ficaram mais ame-nas. “Quando eles chegam, não é mais aquele corre corre. A gente conversa, troca ideia”.

divulgação cultural

Outra iniciativa periférica relevante é realizada nas favelas Jardim Panorama e Real Parque, no va-lorizado bairro do Morumbi, região sudoeste da ca-pital paulista. Ali, em 2004, um grupo de jovens amantes do hip hop, que frequentavam a “casa do hip hop” em Diadema, começou a organizar ofici-nas de dança e de MC para os moradores das duas favelas. Logo depois, em 2005, durante um even-to, lançaram um manifesto cultural, que, entre seus princípios, defendia a valorização e divulgação dos grupos culturais existentes ali, como rap, capoeira, samba e as tradições do povo indígena Pankararu, que vive ali também. “Nosso engajamento maior es-

tava na luta de sermos protagonistas da nossa pró-pria história”, explica Karina Santos, uma das inte-grantes do grupo.

O primeiro trabalho em vídeo ocorreu na épo-ca da construção do ultra luxuoso shopping Cida-de Jardim, que ameaçava de despejo as famílias que viviam no Jardim Panorama há mais de 30 anos. In-titulado “Rolê de quebrada”, o vídeodocumentário deu voz aos moradores para expressarem suas pre-ocupações em relação ao empreendimento. “A ideia era mobilizar os moradores e descobrirmos coisas juntos”, relata a moça de 22 anos.

O processo foi “bruto, ameaçador”, comenta Ka-rina, filha de um pedreiro que construiu muitos dos prédios do entorno, mas que hoje “não pode nem passar na frente. Aquela era nossa casa. Eu morava no Jardim Panorama”.

Por sentirem na própria pele, o tema da habita-ção foi o mote dos outros sete vídeos realizados pe-los jovens do Favela Atitude. “Aprendemos a olhar as coisas de outra forma. Sentimos a pressão da eli-te para remover as favelas. E descobrimos que não estamos em qualquer lugar”. O grupo também se aproximou de movimentos que lutam por moradia, e hoje também mantém relações com o MST.

histórias da coMunidade

As oficinas, que no início eram realizadas na própria rua, ganharam uma sede quando receberam apoio do projeto Vai. (Programa da Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo, VAI-Valorização de Iniciativas Culturais) “Aí sim pudemos comprar equipamentos para continuar nosso trabalho”. O es-paço oferece oficinas de sapateado, inclusão digital, dança, teatro, MC, alfabetização de adultos, além de organizar exibição de vídeos e filmes. Os primei-ros vídeos também foram realizados “na raça”, com equipamentos emprestados, e editados “ora na casa de um, ora na casa de outro”. O Favela Atitude tam-

bém produz um jornal bimensal comunitário, tem conteúdo focado na questão da moradia.

Para Karina, recém-formada em pedagogia, o Favela Atitude ajudou no crescimento pessoal dos integrantes e daqueles que participam do projeto. “Nossa visão de mundo ampliou, passamos a acre-ditar no nosso próprio fazer e descobrimos que, se tivermos organização e objetivos, conseguimos”.

De dois em dois meses, o grupo organiza o “Ma-nifesto Cultural”, uma grande apresentação de mú-sica, grafite, grupos de rap, batalhas de dança, apre-sentação de vídeos etc. Recebem também grupos de outras quebradas, como Piraporinha, Capão Re-dondo e Paraisópolis. O que vem dificultando o tra-balho dos realizadores do manifesto é a intimida-ção da polícia, que tem o hábito de jogar bombas quando o pessoal da favela organiza festas. “Des-de o começo da Operação Saturação, no começo do ano, em Paraisópolis, a situação piorou aqui tam-bém”, relata a jovem. Segundo ela, ali vivem “quase uma guerra. Mas tudo fica por debaixo dos panos. A gente não é lixo para ser tratado desse jeito”.

O Favela Atitude mantém relações de proximi-dade com outros grupos de periferia, como a Coo-perifa e o pessoal do grupo de hip hop Força Ativa, que mantém a Biblioteca Comunitária Solano Trin-dade, em Embu. “Há muitos espaços de resistên-cia importantes em São Paulo, onde são feitas boas discussões e há desejo de mudar”, defende Karina. Para ela, questões difíceis de serem tratadas “são mais fáceis de serem resolvidas por meio da cultu-ra”. Para a jovem, o maior desafio de todos esses coletivos “é trabalhar em rede, criar uma ação em rede, um grupo grande, que lute pelas nossas coi-sas, do nosso jeito”, resume.

Desde 2000, o rapper Wilsão pilota o projeto Periferia Ativa

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Bautista Será ouvido pela Dilma e Haroldo?

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Eu acho a expressão Pré-Sal antipopular. O que vem além ou aquém do sal? O povo não entende isso, portanto é enrolado e enganado. O nome correto deveria ser o “petróleo brasileiro do mar”: PBM.

Se alguma coisa boa fiz eu na vida, foi ter escrito em 2002 um livro sobre o petróleo, em parceria com Bautista Vidal, chamado Petrobras – Um Clarão Na História, como antítese ao melancólico apagão ener-gético da era FHC, a época do maior entreguismo na história do Brasil, em que se cogitou mudar o nome da Petrobras para Petrobrax.

A superestrutura cultural da colônia sa-bota os verdadeiros gênios nacionais – Glauber Ro-cha, Darcy Ribeiro, Marcelo Guimarães, e agora Bau-tista Vidal, que conhece todas as formas de energia: vegetal (biomassa), fóssil (carvão mineral e petró-leo), nuclear. Professor de termodinâmica, mais do que isso, ele mentalizou e dirigiu o programa Pró-Ál-cool, a primeira alternativa do esgotamento do pe-tróleo, durante o governo Geisel. E, para os imbecis e

pérfidos detratores, esse teria sido o seu pecado capi-tal, isto é, ter participado como cientista do governo militar. Por isso não foi chamado para integrar, dirigir ou assessorar a política energética dos governos civis. O verdadeiro motivo é que Bautista Vidal é um cien-tista nacionalista e anti-imperialista na área da tec-nologia e energia. E isso é imperdoável para o poder entreguista, que o mantém no ostracismo.

Bautista Vidal figura na lista negra do poder imperialista mundial desde a época de Kissinger, que foi um dos principais adversários do Pró-Álcool.

Aqueles que dominam não o fazem porque sabem mais, na maioria das vezes sabem menos. Não é o co-nhecimento científico a força motriz da história, to-davia estupidez é fazer da ignorância ou da desinfor-mação a virtude da política pública, principalmente na área da energia.

O petróleo descoberto no fundo do mar foi uma façanha dos ex-alunos de Bautista Vidal. Esse petró-leo estará no âmago da economia e da política na

próxima década. Se isso for bem mentalizado e bem divulgado, o PSDB – qualquer que seja o candidato – estará eleitoralmente no arame com a seguinte di-dática: eis aí o estrago que FHC fez ao vender 40% das ações da Petrobras para os norte-americanos. Eis o desastre que representou o tucano enterro da era Vargas: desnacionalizou a Petrobras nas mãos dos acionistas estrangeiros.

A situação em que emergia a Petrobras nos anos 50, por mais conturbada que tivesse sido, não se compara com a dramática situação de hoje, marcada pela escassez e ocaso do combustível fóssil em esca-la mundial. Do ponto de vista geopolítico, as últimas décadas mostram que os conflitos armados estão re-lacionados com a disputa para distribuir a escassez do petróleo, sem o qual as sociedades industriais, so-bretudo as avançadas, entram em crise.

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IDEIAS DE BOTEQUIMRenato Pompeu

Um belo presente: o livro VidaVícioVirtude, organizado pelo pesquisador Adauto Novaes, publicado em conjunto pela Edito-ra Senac São Paulo e pelas Edições Sesc SP. Os autores dos ensaios são Mario Vitor Santos, Adauto Novaes, Marilena Chauí, Francis Wol-ff, Marcelo Perine, Marcelo Coelho, Franklin Leopoldo e Silva, Renato Lessa, Maria Rita Kehl, Eugênio Bucci, Michel Deguy, Renato Janine Ri-beiro e Ruwen Ogien. A idéia geral é que, com a derrocada do comu-nismo, o mundo globalizado fi cou sem valores éticos – à humanidade apenas restou o valor de troca das mercadorias em geral, inclusive os corações e mentes de cada pessoa. Os artigos que mais sentem esse va-zio de valores são caracteristicamente de mulheres: a fi lósofa Marile-na Chauí e a psicanalista Maria Rita Kehl. Mas em geral todos os arti-gos são interessantes.

Outro presente igualmente belo: a obra Uma história da mú-sica popular brasileira – Das origens à modernidade, lançada pela Edi-tora 34 e de autoria do pesquisador Jairo Severiano. São 500 alentadas páginas, cobrindo o período desde 1770 até os dias de hoje. Um trecho: “O primeiro nome a entrar para a história da nossa música popular é o do poeta, compositor e cantor Domingos Caldas Barbosa, no fi nal do século 18. Naturalmente, houve compositores anônimos que o prece-deram, além de conhecidos como o baiano Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno (1633-1696), o padre Lourenço Ribeiro (1648-1724), rival de Gregório, e o malogrado Antônio José da Silva, o Judeu (1705-1739), queimado aos 34 anos numa fogueira da Inquisição, em Lisboa”. Tanta tradição tem a música popular brasileira, cujo primeiro expoente, Caldas Barbosa, era fi lho de um funcionário público português e de uma

escrava angolana alforriada – ca-racteristicamente a nossa música popular já nasceu mestiça.

Desfi lam nas páginas do livro fi guras como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Noel Rosa, Carmen Miranda, Ary Barroso, Caymmi, Luiz Gonzaga, João Gilberto, Tom Jobim, Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, os tropicalistas, a Jovem Guarda, os roqueiros, os cantores sertanejos, o funk, Zeca Pagodi-nho. Digno de nota é que o livro reconhece as contribuições docu-mentais do jornalista e escritor José Ramos Tinhorão, importante pesquisador normalmente ataca-do por achar que, a partir da se-

gunda metade do século 20, a mercantilização levou a uma “degeneração” da MPB.

Também alentado – 590 páginas – é o volume A ascensão do ‘resto’ – Os desa-fios ao Ocidente de economias com industrialização tardia, da pesquisadora americana Alice H. Amsden, do famoso Instituto de Tecnologia do Massachuset-ts, Editora Unesp. Lembrando que, na tradição dos países de língua in-glesa, a América Latina não faz parte do Ocidente, para eles composto apenas dos Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental, o livro se des-taca por notar que, “após um século de lutas”, emergiram países indus-trializados fora do Ocidente: além do caso anteriormente bem estuda-do do Japão, a pesquisadora menciona Argentina, Brasil, Chile e México, Turquia, Índia, China, Coreia, Taiwan, Malaísia, Indonésia e Tailândia. Amsden nota particularmente que há duas variedades nesse “resto”: os integracionistas que, como o México e a Argentina, dependem do inves-timento estrangeiro e pouco desenvolvem autonomamentte as tecnolo-gias, e os independentes, como a China, Índia, Coreia e Taiwan, em que predominam as empresas de capital nacional e o “intenso investimento em capacidade tecnológica”. O Brasil está num estágio intermediário – por enquanto está incluído nos integracionistas, mas tem a ambição de se tornar independente.

Já os educadores, um dos públicos preferenciais da Caros Amigos, vão sentir um interesse especial pelo livro Escola e leitura – Ve-lha crise, novas alternativas, organizado pelas suas famosas colegas Regi-na Zilberman e Tânia M.K. Rösing e editado pela Global em conjunto com a ALB, dentro da Coleção Leitura e Formação. Há artigos de Ezequiel The-odoro da Silva, Graça Paulino, José Luís Jo-bim, José Luiz Fiorin, Maria Cristina Casti-lho Costa, Maria da Gloria Bordini, Marisa Lajolo, Miguel Rettenhaier, Rildo Cosson.

O tema central é como conseguir incu-tir o hábito da leitura nos jovens alunos, nas difíceis condições atuais de crise na educação.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amare-la, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

EMBRULHADAS PARA PRESENTE, Maria Rita Kehl e Marilena Chauí

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Votar para presidente, expressar a sua opinião sem medo, manifestar posições políticas contrárias ao governo, entrar e sair do país livremente. O que hoje parece tão simples e natural marcou toda uma geração que sofreu com a repressão num passado não distante.

Conhecer a luta do povo brasileiro para recuperar a democracia é a melhor forma de impedir que erros do passado se repitam no futuro.

Foto de greve dos metalúrgicos do ABC (1979-1980). Arquivo público do Estado de São Paulo.

Se você tem informações ou documentos sobre o período de 1964 a 1985, acesse www.memoriasreveladas.gov.br.O sigilo de sua identidade é garantido.

Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.

Conheça um Brasil onde a democraciaera um sonho e sonhar era proibido.

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