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8/14/2019 Sabor Do Cerrado
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Alice Mesquita de Castro
O sabor do cerradoCheire, prove, sugue, ame.
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N 13
A
desconhecida culinria do cerrado exi-
ge disposio e nenhum preconceito.Quem se arrisca, no se arrepende.
As rvores tortas, com jeito de que cresce-
ram sem gua em uma das regies semi-ridas doNordeste, podem dar a impresso de que estamosem uma terra seca, rf de vida, cores e sabores.
um engano dos desavisados. A ora do cerra-do, que ocupa 25% do territrio nacional, umadas mais ricas do Brasil. Devido sua localizao
central, o cerrado tem espcimes encontrados namaioria dos biomas brasileiros (Floresta Amaz-nica, Caatinga e Mata Atlntica). Tem uma bio-
diversidade to variada e particular que camoscom vontade de realmente desvendar seus segre-dos. Na culinria, ento, eles so muitos.
No Nordeste, h frutos exticos como agraviola e o umbu. No Sul, a diversidade dasuvas e os marmelos, por exemplo, chamam sem-
pre a ateno. No Norte do Pas, o aa se tornouproduto de exportao de sucesso, tal a pecu-liaridade do seu sabor, textura - e que linda cor.
Nessa rea que ocupa o Brasil central (Gois, To-
cantins, Mato Grosso do Sul, a regio sul de MatoGrosso, o oeste e o norte de Minas Gerais, o oeste
da Bahia e o Distrito Federal), a impresso deque o estranhamento dos leigos sobre as frutaslocais ainda maior. Quem j ouviu falar de pe-
qui, sabe alguma coisa alm de que, se mordidoerrado, ele capaz de fazer um tapete de espi-nhos da sua lngua garganta? Pois . O licor de
pequi j exportado para o Japo. A amndoa do
baru (Baru? Algum sabe o que isso?) objetode desejo na Alemanha.
O Caryocar brasiliense Camb, ou pequizeiro,pode medir at dez metros de altura. Tem frutosde casca esverdeada e polpa amarela. A polpa, a
parte que mais se utiliza na cozinha, a base dospratos mais populares da culinria goiana: o ar-roz com pequi, o frango com pequi e guariroba.
O pequi tem caractersticas nicas. Seu in-
terior repleto de milhares de minsculos espi-nhos e preciso ser muito cuidadoso ao com-lo. preciso raspar sua polpa com os dentes. Se for
mordido, os espinhos colam desagradavelmenteem toda a boca.
Eu sei do que estou falando. Nos anos 80,
durante um almoo na casa de uma amiga, fuiuma das vtimas do poder do pequi. Sim, j ha-viam me dito que era preciso raspar os dentes na
polpa, que no deveria mord-lo, mas, na pr-tica, a coisa ainda mais difcil. Eu achava queestava fazendo tudo certo, quando, de repente,
senti a lngua arder como se houvessem me fei-to beber cido. Da casa da amiga, fui direto paraa cadeira do dentista que passou uma hora e
meia pinando os espinhos um a um com o au-xlio de uma lupa. Senti os efeitos da minha bo-
bagem por ainda mais dois meses. Volta e meia,
acordava com uma sensao estranha na boca.Era ele, o pequi.
H um folclore de que o goiano aprovei-
ta o desconhecimento de quem de fora para se
divertir com os acidentes causados pelo fruto.Goianos adoram acompanhar as reaes s pri-
meiras mordidas. ali que se dene quem enten-de ou no da coisa.
Quem do ramo costuma aconselhar a in-
gesto de uma colher de azeite de oliva nessescasos. O azeite teria a propriedade de amoleceros espinhos, que, assim, podem ser retirados sem
tanto sofrimento para o incauto mordedor.
O pequi presta-se a inmeras preparaes.Uma das mais interessantes o licor feito com
calda de acar e infuso do fruto em lcool decereais.
Mas nem s de pequi vive o cerrado. O
araticum, o buriti, o murici, o caj, a mangaba,a cagaita tambm apresentam teores de vitami-nas do complexo B, tais como as vitaminas B1,
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Pequi. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva
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Buriti. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva
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B2 e PP, equivalentes ou superiores aos encon-
trados em frutas como o abacate, a banana e agoiaba, tradicionalmente consideradas boas fon-tes dessas vitaminas. O Ministrio da Sade tem
estimulado a implementao de programas deeducao alimentar para incentivar o consumode produtos ricos em vitamina A e em outros nu-
trientes. E a esto os frutos do cerrado prontospara serem largamente utilizados.
Uma das frutas tpicas do cerrado que hoje
comea a ser conhecida a cagaita (Eugenia dy-senterica DC ), parente distante da pitanga. ar-redondada e tem uma cor amarela suave. De na
casca, tem um sabor cido e bastante suculenta,apresentando cerca de 90% de suco em seu inte-rior. Apesar de tantas virtudes, a cagaita deve ser
apreciada com moderao. Em excesso, ela pro-voca um mal-estar semelhante ao da embriaguez.Sem ressaca no dia seguinte. No incrvel?
E o buriti?Em Braslia, a sede do governo do Distrito
Federal recebeu o nome de Palcio do Buriti em
homenagem a essa planta tpica da regio. Suas fo-
lhas, em forma de leque, so brilhantes e enormes.Os frutos so consumidos pela populao, princi-
palmente na forma de sucos e doces caseiros.A polpa fresca ou congelada aproveita-
da para a elaborao de doces, sorvetes, cremes e
compotas. O leo da polpa serve como temperona cozinha e base para se fazer sabo.
J as folhas maduras podem ser aprovei-
tadas na cobertura de casas rsticas do interior
e as folhas novas na confeco de redes, chapuse balaios.
No cerrado brasileiro a estrela do momen-to a castanha do baru, tambm conhecido pordiversos nomes como cumbaru, barujo, coco-fei-
jo e cumarurana.O barueiro produz de 500 a 3.000 frutos
por planta, com tamanho variando de 5 a 7 cm
de comprimento por 3 a 5 cm de dimetro. A cor
da casca, quando maduro, amarronzada, assimcomo a polpa. Cada fruto possui uma amndoade cor marrom, rica em calorias e protenas. Eu
costumo usar o baru em receitas como Doce deLeite com Baru e Pesto de Baru. Seu gosto pa-recido com o do amendoim, mas um pouco mais
suave ao paladar.Os frutos do cerrado sempre nos surpreen-
dem! H algum tempo comprei farinha de jatob
em uma fazenda no interior de Gois. Levei paracasa e deixei armazenada para logo fazer algunspes e biscoitos. Aps alguns dias, um forte chei-
ro se espalhou pela cozinha afastando qualquerpessoa do local. Aprendi que a farinha de jatobprecisa ser guardada na geladeira e por muito
pouco tempo. O odor caracterstico tende a au-mentar com a fermentao natural da farinha. Osmoradores da regio apreciam bastante tanto o
mingau quanto o po de jatob.Da famlia da pinha, ata e fruta-do-conde
o araticum, cuja casca mais dura e o sabor bem
pronunciado.
Quem ainda no provou, no sabe o queest perdendo... Guariroba, no gororoba!
A guariroba uma espcie de palmeira quepode atingir at 20 metros de altura. Suas folhaspodem alcanar at trs metros de comprimento.
O fruto dado em cachos, de colorao verde-amarelada, com uma amndoa branca oleagino-sa comestvel. Ela o principal ingrediente dos
recheios dos saborosssimos empades goianos.
At o nal do sculo 19, a farinha de trigoencontrada no Brasil era importada. Mesmo as-
sim, o empado j era considerado uma iguariabrasileira. A massa original levava farinha de tri-go, banha de porco, sal e ovos. O recheio levava
queo, ovos cozidos, azeitona, pimenta-de-cheiro,carne de porco em pedaos, coxa de frango inteira,pedaos de lingia e guariroba. Todos os ingre-
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Araticum. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva
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dientes eram levados ao fogo para dourar e adqui-rir a consistncia de molho. Assava-se em formasde barro, com 38 centmetros de dimetro.
Naquela poca, ningum ousava engrossara mistura com batata algo que s foi introduzi-do nos modos de preparar o empado na dcada
de 30. Somou-se a ele tambm o tomate. De acor-do com os registros histricos, foi a guarirobaque deu sustncia aos bandeirantes que des-
bravaram Gois. Deve-se a um deles a idia dejuntar a guariroba ao recheio do empado. Alis,guariroba conhecida por palmito amargo, para
car mais sosticado.
Depois de 12 anos, trabalhando, provan-do, comendo, gostando, fazendo propagandadas frutas do cerrado, digo com propriedade: jo-
guem-se na culinria do centro-oeste! Ela aindapouco conhecida, pouco explorada, mas, comoum pas distante, cheia de segredos e surpre-
sas. Eu me arrisco sempre. E, de fato, nunca mearrependo.
Alice Mesquita de CastroProprietria do Restaurante Alice, em Braslia
Baru. Foto: Nivaldo Ferreira da Silva