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309 Discurso de posse na Academia de Letras da Bahia Joaci Góes A cadeira que passamos a ocupar nesta augusta Academia tem como patrono e ocupantes algumas das figuras maiores da inteligência nacional, nas pessoas de José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, o filólogo Ernesto Carneiro Ribeiro, o historiador Francisco Borges de Barros, o jurista Aloísio de Carvalho Filho, o cientista político Nelson de Souza Sampaio e o meu antecessor imediato, o homem de letras e esteta Pedro Moacir Maia, que nos deixou em 8 de janeiro de 2008. É de evidência palmar que o ciclo de notáveis que ocuparam a cadeira número sete sofre interrupção na solenidade desta noite. A admissão de nossa presença meio a tantas figuras ilustres do passado e do presente, na vida intelectual da Bahia e do Brasil, decorre, para mim, de uma afortunada associação entre a generosidade e o culto à diversidade dos membros desta casa que fazem dela um corte transversal exemplar da inteligência baiana, em múltiplos campos de ação. Nos idos da adolescência acompanhei com encantamento o pensador católico Gustavo Corção, discorrer em seu livro Nas fronteiras da técnica sobre o caráter necessariamente intelectual de todo obrar humano, não havendo razão, segundo sustentava, para a distinção corrente entre trabalho físico e trabalho intelectual. O trabalho do operário, do ourives, do cientista, do escritor, do empresário, do artista ou do filósofo, seria igualmente intelectual,

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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, n. 49, 2010

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Discurso de possena Academia de Letras da Bahia

Joaci Góes

A cadeira que passamos a ocupar nesta augusta Academia temcomo patrono e ocupantes algumas das figuras maiores dainteligência nacional, nas pessoas de José da Silva Lisboa, ovisconde de Cairu, o filólogo Ernesto Carneiro Ribeiro, ohistoriador Francisco Borges de Barros, o jurista Aloísio deCarvalho Filho, o cientista político Nelson de Souza Sampaio e omeu antecessor imediato, o homem de letras e esteta Pedro MoacirMaia, que nos deixou em 8 de janeiro de 2008. É de evidênciapalmar que o ciclo de notáveis que ocuparam a cadeira númerosete sofre interrupção na solenidade desta noite.

A admissão de nossa presença meio a tantas figuras ilustresdo passado e do presente, na vida intelectual da Bahia e do Brasil,decorre, para mim, de uma afortunada associação entre agenerosidade e o culto à diversidade dos membros desta casa quefazem dela um corte transversal exemplar da inteligência baiana,em múltiplos campos de ação.

Nos idos da adolescência acompanhei com encantamento opensador católico Gustavo Corção, discorrer em seu livro Nasfronteiras da técnica sobre o caráter necessariamente intelectual detodo obrar humano, não havendo razão, segundo sustentava, paraa distinção corrente entre trabalho físico e trabalho intelectual. Otrabalho do operário, do ourives, do cientista, do escritor, doempresário, do artista ou do filósofo, seria igualmente intelectual,

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variando, apenas, o modo de aplicação da inteligência e o nível dequalidade da atividade executada.

Aos membros desta Academia que sufragaram nosso nome, aquem nunca terei como ser suficientemente reconhecido,certamente não se aplica a advertência de Ludwig von Mises,luminar da escola de economia de Viena, cada vez maisreconhecido como um dos maiores economistas de todos ostempos – sucessor de Carl Menger e mestre do Nobel FrederickHayek –, ao verberar em A mentalidade capitalista que: “a inútilarrogância dos escritores e dos artistas boêmios considera asatividades dos homens de negócios como pouco intelectuais eenriquecedoras. A verdade é que os empresários e osorganizadores de empresas comerciais demonstram maiorcapacidade intelectual e intuitiva do que o escritor e o pintormédios. A inferioridade de muitos intelectuais se manifestaexatamente no fato de não reconhecerem o quanto de capacidadee raciocínio é necessário para desenvolver e fazer funcionar comsucesso uma empresa comercial.... A corrupção moral, alicenciosidade e a esterilidade intelectual de uma classe depretensos autores e artistas é o preço que a humanidade devepagar a fim de que pioneiros inventivos não sejam impedidos deconcluir seus trabalhos”.

Não terá sido como empresário, apenas, que fomos admitidosnessa confraria de mulheres e homens notáveis. Nossa já longaexperiência empresarial haverá de ter somado ao conjunto dosatributos que compõem nossa modesta biografia, seja comojornalista ou político que não cederam quando o guante daintolerância se abateu sobre a alma da Bahia, emasculando-a, sejacomo articulista e conferencista, seja, ainda, como relator doCódigo do Consumidor, a lei mais popular do País, ou comoautor de alguns ensaios.

Essas pequenas credenciais, suficientes para manter em bomnível minha auto-estima, nem de longe se aproximam do mínimonecessário para emparelhar com meus notáveis antecessores.

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Ainda que não possam ser avaliados para ingresso emacademias, há outros fatores em minha vida largamentecontributivos para a elevação de minha auto-estima. A começarpela qualidade dos pais de quem nasci, João Góes, o velho e bomSeu Gosinho e Mariana, a extraordinária D. Zilu, exemplosincomparáveis de retidão, amor ao trabalho e dedicação à família.Deles absorvi, por síntese osmótica, o exercício do entendimentointuitivo de que integridade é obediência ao que não é exigido, detal modo que se o mundo fosse feito de gente como eles, nãohaveria, então, necessidade do aparato de instituições como apolícia e o Poder Judiciário. Seguiu-se a comunidade de meusirmãos, caldo de cultura simulador e antecipatório das alegrias edores do mundo, comunidade composta pelo primogênito esaudoso Joilson, há seis meses tragado pela gratuita, cruel ecrescente violência das ruas, Jacira, Jéferson, Julival e os gêmeosJoildo e Joilda. Desse núcleo, já considerável, formou-se famílianumerosa de cunhados e sobrinhos que aí estão, para satisfaçãodo outono de minha existência, concorrendo com sua criatividadee trabalho diversificado e fecundo para o progresso de nossa terra.Sinto-me feliz também por ter nascido na fazenda São Bento, nomunicípio de Ipirá, berço, dentre outros homens e mulheresilustres, de Eugênio Gomes, um dos mais sofisticados críticosliterários do País e membro da Academia Brasileira de Letras,bem como do desembargador Carlos Dultra Cintra, com quem aBahia contraiu o débito irresgatável de haver libertado o seu PoderJudiciário da submissão a forças que desnaturaram ecomprometeram sua missão, ao lado de outros magistrados, aquem homenageio na pessoa do irrepreensível Ministro doSuperior Tribunal de Justiça Paulo Furtado, aqui presente napessoa de sua mulher a competente juíza Verônica Furtado.

Em Lídice, companheira querida de toda a vida, encontrei odestino do meu coração, e com ela tive os amados filhos Joaci,que me substitui com a vantagem de muitos corpos na atividadeempresarial e Alex, poeta, cantor e compositor dos melhores.

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Por último, fui premiado com a indizível felicidade do nascimentode Maria Eduarda e Daniel, Duda e Dan, a quem dediquei o meuúltimo livro, A força da vocação, estendendo a dedicatória aospais Jô e Gabriela e a todos que concorrem para o aprimoramentoda educação deles e de todas as crianças do Brasil.

E como classificar o bem que faz a minh’alma a legião dosamigos queridos aqui presentes?

Voltemos, porém, à memória dos meus antecessores na cadeiran° 7, começando pelo patrono.

José da Silva Lisboa, figura notória nos livros de história doBrasil, como o visconde de Cairu, nasceu em Salvador a 16 dejulho de 1756 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro a 20 de agostode 1835, aos setenta e nove anos, portanto. Como a enriquecer amoldura de sua excepcional biografia, ele que conquistou obaronato em 1825, e o viscondado no ano seguinte, aos setentaanos, nasceu na capital do Brasil-colônia e morreu na capital doBrasil-império.

O visconde de Cairu, patrono dos economistas brasileiros, éreconhecido como um dos maiores vultos do Brasil em todos ostempos, tendo se distinguido como economista, historiador,publicista, jurista e político eminente, com acentuada vocaçãopara o exercício das relações humanas de que são testemunho asações diplomáticas que empreendeu com êxito. Segundo Alceude Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, Cairu foi o “verdadeiropatriarca da independência moral e intelectual do Brasil”.

Filho do arquiteto português Henrique da Silva Lisboa e deHelena Nunes de Jesus, aqui fez os estudos preparatórios, comênfase em filosofia, música e piano, como era o padrão da época.

Seguiu para Portugal, aos dezoito anos, onde se graduou emfilosofia e direito aos vinte e dois, em 1778, na Universidade deCoimbra. No mesmo ano de sua formatura, foi nomeadoprofessor assistente das cadeiras de grego e de hebraico do Colégiodas Artes de Coimbra e designado professor de filosofia nacionale moral para a cidade do Salvador, na Bahia, cadeira que regeu

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por 19 anos, paralelamente ao ensino de grego, ao longo de cincoanos. Na sequência de sua formatura, bacharelou-se em cânonespela Universidade de Coimbra, onde concluiu os cursos deFilosofia e Medicina.

Atento ao surgimento das teorias que agitavam o Século XVIII,José da Silva Lisboa, aderiu ao pensamento liberal do pai daeconomia, o escocês Adam Smith, seu contemporâneo, trinta etrês anos mais velho, ainda hoje aclamado como o maior doseconomistas, cujas ideias centrais permanecem atuais.

Na linha da arguição do autor do conceito da mão invisível aguiar a conduta do homo-economicus, o visconde de Cairupregava que um país só progride se seus agentes econômicosdispuserem do máximo de liberdade para acumular riqueza egastar o que ganharem como quiserem.

Sob a inspiração dessa crença, tão logo D. João desembarcouno Brasil em 1808, Cairu pediu-lhe audiência para propor aabertura dos portos brasileiros ao comércio internacional. OVisconde desconhecia que, por razões estratégicas, ditadas pelaguerra contra Napoleão, a corte portuguesa, em sintonia com aInglaterra, sua aliada histórica, já se decidira pela abertura dosportos na denominada “Convenção Secreta de Londres”.

Aos quarenta e cinco anos, em 1801, José da Silva Lisboapublicou, em Portugal, o primeiro de sete volumes de sua obrainaugural sob o caudaloso título de Princípios do Direito Mercantil eLeis da Marinha para uso da mocidade portuguesa, que compreende o seguromarítimo, o câmbio marítimo, as avarias, as letras de câmbio, os contratosmercantes, os tribunais e as causas de comércio. Os outros seis tomosviriam a lume até 1808, quando publicou, também, as Observaçõessobre o comércio franco no Brasil, em dois volumes.

Em sua obra máxima, o tratado Princípios de economia política,primeiro livro do gênero escrito em língua portuguesa, publicadaem 1804, abraçou, pioneiramente as ideias expostas por Smithem A riqueza das nações, sendo, portanto, o primeiro a divulgar osprincípios clássicos da economia liberal. Nessa obra, entre as várias

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causas da infelicidade dos povos, destacou as seguintes: 1) “Acrença de que os metais preciosos constituem a única e verdadeirariqueza dos indivíduos e países”; 2) “A esperança de que serámais seguro e vasto emprego quanto menores forem as trocasinternacionais”; 3) “A opinião de que os Estados são como osjogadores e que um não pode ganhar sem que o outro perca,nem ser rico sem que os mais se empobreçam”; 4) “A persuasãode que a quantidade de trabalho mecânico e penoso e o esforçode viver – e não a inteligência que bem dirige e alivia o trabalhocom auxílio de instrumentos e máquinas e o esforço de melhorara condição e ter gozos da vida – são as principais causas daindústria e riqueza das Nações”.

Aos seus múltiplos títulos como hebraísta, helenista,economista e jurista, o patrono da cadeira que passamos a ocuparera, também, adepto da ortodoxia católica em matéria de política.Nesse mesmo ano escreveu Observações apologéticas acerca da críticaque faz contra Smith o autor das Memórias Políticas sobre as verdadeirasbases da Grandeza das Nações. Nessa obra, Silva Lisboa invectivavaas críticas que então Rodrigues de Brito dirigira ao pai daeconomia, no terceiro volume de sua obra intitulada MemóriasPolíticas.

Quando o Príncipe Regente D. João chegou à Bahia, em 1808,José da Silva Lisboa era funcionário da Mesa de Inspeção daAgricultura e Comércio. A ele os comerciantes de Salvadorincumbiram de redigir e fundamentar as razões pelas quaispleiteavam a suspensão do embargo do comércio com Portugal,então sob ocupação francesa. A Carta Régia de 24 de janeiro de1808 oficializou a medida.

Um mês depois de chegar ao Rio de Janeiro, na comitiva de D.João, José da silva Lisboa foi nomeado desembargador do Paço eda Consciência e Ordens. Quatro meses mais tarde tornou-sedeputado da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas eNavegação do Estado do Brasil. Em 1809 recebeu a incumbênciade organizar um código de comércio. Em 1810 foi agraciado com

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a mercê do hábito de Cristo. Em 1815 foi encarregado das obraspara a impressão. Em 1821 integrou a lista dos membros da juntapara o exame das leis constitucionais e inspetor-geral dosestabelecimentos literários.

Para colaborar no seu propósito de evitar a separação do Brasilde Portugal, Silva Lisboa fundou o jornal O Conciliador do ReinoUnido, onde defendeu os direitos do Príncipe e enfatizou asvantagens da monarquia continental. Ao perceber, porém, airreversível marcha do Brasil pela autonomia política, entregou-se ao combate pela independência, publicando o livro Asreclamações, de grande repercussão, onde expôs suas idéiasindependentistas.

Advogado da centralização do poder, combateu através doseu Rebate brasileiro a Confederação do Equador e o TyphisPernambucano de Frei Caneca, hebdomadário que teve 29 edições,em sua curta vida de sete meses e meio, de dezembro de 1823 aagosto de 1824. É dessa época a publicação do Apelo à honrabrasileira contra a facção Federalista de Pernambuco.

Mais tarde foi escolhido, sucessivamente, deputado e senadordo Império. Em 1832 pugnou pela criação de uma universidadeno Rio de Janeiro, fato que só veio a ocorrer quase um séculodepois.

José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, foi ainda um argutohistoriador dos fastos do seu tempo.

Em 1815 publicou as Memórias sobre a vida de Lord Wellington; em1818, as Memórias sobre os benefícios políticos de El-Rey Dom João VI; aolongo da década de 1820 trouxe a lume vários volumes de suainacabada História dos principais sucessos políticos do Império do Brasil.

Nosso patrono o é também da última das vinte cadeiras desócios correspondentes que a Academia Brasileira de Letras crioupara corrigir imperdoáveis omissões quando de sua fundação.

Ernesto Carneiro Ribeiro, fundador, primeiro ocupante dacadeira n° 7 e primeiro presidente da Academia, autor do clássicoSerões Gramaticais, um marco da língua portuguesa, nasceu em 12

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de setembro de 1839, na ilha de Itaparica, e morreu em Salvadorem 13 de novembro de 1920. Observe-se que, além de CarneiroRibeiro, a ilha de Itaparica tem sido um berçário de notáveis, aexemplo do frade franciscano e poeta barroco do século XVIII,o Frei Manuel de Santa Maria, conhecido como Frei Itaparica,o historiador Ubaldo Osório, o romancista Xavier Marques e afigura solar de João Ubaldo Ribeiro, um dos maiores romancistasdo mundo. Isso sem falar em Maria Felipa de Oliveira, valentemulher negra, envolvida na lenda e na aura de grande e polêmicaheroína da Guerra da Independência do Brasil. A crédito desua existência, militam os registros pioneiros de Ubaldo Osório,em sua história sobre A ilha de Itaparica, e de Xavier Marquesque a fez personagem do seu romance Sargento Pedro. De talmodo Ubaldo Osório se impressionou com as façanhasatribuídas a Maria Felipa, que batizou uma filha, mãe de JoãoUbaldo, com o nome de nossa heroína. As personagens Mariada Fé, em Viva o Povo Brasileiro, de Ubaldo, e Rosa Palmeirão,em Mar Morto, de Jorge Amado, certamente se inspiraram emnossa Joana D´Arc.

Carneiro Ribeiro formou-se em Medicina em 1864. Cursou aciência de Hipócrates porque à época não havia escola de Direitona Bahia. Os estudos filológicos, porém, a que se dedicou desdecedo, constituíam sua verdadeira vocação, sendo o magistério aprofissão de toda a sua vida.

Entre seus alunos, além de Francisco Borges de Barros, seusucessor nesta Academia, destacam-se o oceânico Ruy Barbosa,Euclides da Cunha e o virtuoso homem público Rodrigues Lima.O momento mais alto de sua biografia, sem dúvida, foi a polêmicaque sustentou com o mais famoso de seus discípulos, Ruy Barbosa,tendo a língua portuguesa como tema, a partir da redação donovo código civil. Se um dia o Brasil e a língua portuguesa seimpuserem ao mundo, essa discussão histórica, composta d´Asprimeiras impressões, da Réplica e da Tréplica, será reconhecida comoo maior monumento filológico de todos os tempos.

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Francisco Borges de Barros, sucessor do mestre e amigoErnesto Carneiro Ribeiro, não é um nome conhecido do grandepúblico, não obstante o prestígio que desfrutou junto a seus coevose que desfruta, hoje, junto aos estudiosos da nossa história.

Esta figura singular, cuja biografia contribui para aureolar omunicípio de Santo Amaro, também como berço de notáveis,morreu pobre, depois de prolongada moléstia. O longotratamento médico a que se submeteu, bem como as despesasdos seus funerais, foi custeado por amigos e instituições a queserviu com competência e desvelo. Morto pouco antes decompletar 53 anos, dedicou sua vida íntegra ao trabalho e aoestudo, fazendo quase sempre do seu trabalho, como diretor doarquivo público, o objeto dos estudos que tanto enriqueceramnossa historiografia. Destacou-se pelas pesquisas que realizou nasáreas da História, Geografia e Genealogia.

Nascido em 1882, Borges de Barros renunciou às maciezasda aristocracia rural de que era herdeiro por longa tradiçãofamiliar, para graduar-se em direito em 1903, tendo realizadocurso brilhante, ao lado de seu parente ilustre, Moniz Sodré,futuro senador e governador da Bahia, famoso criminalista, autordo clássico As três escolas Penais, leitura obrigatória para osestudantes de direito. Foi dos primeiros a trabalhar pela criaçãoda pinacoteca do Estado, de qualidade reconhecida. Pareciainspirar-se em Leon Tolstoi que recomendava o conhecimentoda própria aldeia, antes de aventurarmo-nos à exploração domundo, de tal modo se dedicava ao estudo da realidade à suavolta. Nessa linha de operosidade, legou-nos extensa bibliografia,parte substancial dela em suas contribuições aos jornais ORegenerador, A Tarde, Gazeta do Povo, A Notícia, Jornal de Notícias,A Cidade e outras publicações. Em 1913 publicou seu primeirolivro O Duque de Caxias na Política do Império, seguindo-se Memóriae História de Ilhéus, em 1914, Anais da Capitania de Ilhéus, em 1915,À Margem dos Assuntos e À Margem da História da Bahia, em 1916.O ano de sua mais copiosa produção foi 1923, com Terras da

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Bahia, Penetração das Terras Baianas, Bandeirantes e Sertanistas eaquele que é, provavelmente, seu magnum opus, o DicionárioGeográfico e Histórico da Bahia.

Publicou ainda Esboço Coreográfico da Bahia; Memória Histórica doMunicípio de Belmonte; J.J. Seabra; O Castelo da Torre de Garcia d´Ávila;Do Amazonas ao Paraná, obra dedicada à excursão política de Seabracomo candidato a vice-presidente da República; Documentos sobrea Independência na Bahia; A Revolução de 1798; Antigas Capitanias daBahia; Povoadores dos Sertões da Bahia; Revolução Republicana de 1817;Revolução dos Farrapos; Recursos Minerais da Bahia; O Comércio da Bahiana Época Colonial; Confederação dos Guerens; Batalha de Pirajá; Sesmariasda Bahia; Primórdios das Sociedades Secretas na Bahia.

Conquistou o prêmio Caminhoá de literatura histórica.Merece destaque, pelo seu caráter afetivo, o estudo que realizou

de seu pago, Patatiba, que ele descreveu como “imensa faixa deterra, que se prolonga do sudoeste ao nordeste do município de Santo Amaro,desde o arraial de São Braz até os engenhos Brejos, Glória, Vitória e Pedra,daí seguindo para o nordeste até as matas seculares que bordam as cabeceirasdos Sergi-mirim e Paraúna”.

Borges de Barros foi diretor do Arquivo Público, Inspetor deMonumentos do Estado, presidente da Associação dosfuncionários Públicos, conselheiro interino do Tribunal de Contas,Grão-mestre da Maçonaria local e chefe de gabinete nos doisquatriênios do governo de J.J. Seabra.

A edição de A Tarde de 16 de fevereiro de 1935, ao noticiar osepultamento de Borges de Barros, assinala: “Como dissemosontem, o inditoso escritor morreu paupérrimo, tendo a Maçonaria,de que foi grão-mestre, custeado as despesas dos funerais. Porsua vez, a Associação dos funcionários Públicos teria avocadooutras despesas com a moléstia e tratamento de seu beneméritopresidente”.

Pelo que transparece dos escândalos em turbilhão quediariamente nos indignam, já não há tantos servidores públicoshonrados como antigamente.

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Aloísio de Carvalho Filho, nascido e morto em Salvador, em03 de março de 1901 e 28 de fevereiro de 1970, respectivamente,a princípio eleito para a cadeira 26, permutou-a pela 7 com oMonsenhor Francisco de Paiva Marques, com apoio no argumentode que “as afinidades espirituais que, dada a forma de atividadeintelectual de cada um, os colocam melhor nos lugares quesolicitam”.

Aloísio de Carvalho Filho que já muito antes de sua mortegozava da reputação de ser um dos maiores penalistas brasileiros,foi também, jornalista, advogado e um político ilustre. Deputadofederal de 1934 a 35, foi colhido pela morte na metade do terceiromandato de senador da República, sendo substituído pelo seusuplente, Antônio da Silva Fernandes, personalidade modelarcomo pecuarista inovador e deputado estadual em sucessivaslegislaturas. Em paralelo ao brilho invulgar no cumprimento dequalquer dessas atribuições, o jurisconsulto Aloísio de CarvalhoFilho primava pela exemplaridade de sua postura. Tenho paramim que o rigor comportamental com que Aloísio de CarvalhoFilho vestia sua conduta trazia a subliminar intenção de realçar ocontraste entre seu comportamento pessoal e o de seu famosopai, o jornalista Aloísio de Carvalho, conhecido como Lulu Parola,personalidade singularmente heterodoxapara os costumes dotempo.

À frente do coro das mais respeitáveis vozes que proclamam,à unanimidade, o valor moral e intelectual de Aloísio, recordo-me do carinho, admiração, respeito e vigor apologético com queseu discípulo e substituto na Cátedra de Direito Penal da Faculdadede Direito, Raul Affonso Nogueira Chaves, meu mestre, paraninfoe amigo querido, referia-se ao louvado comentarista do CódigoPenal.

O saudoso mestre Raul Chaves incorporava ao seu rico acervopedagógico a prática de apontar em obras da literatura universal,situações, passagens e personagens típicas do delito sob exame.Dentre muitas, lá estavam as de Shakespeare, Agatha Christie,

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Balzac, Dostoyewisky, Morris West e do nosso Machado de Assis.O estudo da galeria de personagens delinqüentes na obramachadiana era enormemente facilitada pelos trabalhosproduzidos por Aloísio, como Crime e criminosos na obra de Machadode Assis, e o seu delicioso O processo Penal de Capitu, que continuama correr mundo.

Nelson de Souza Sampaio foi o amigo e discípulo querido deAloísio que o substituiu nesta Academia. Amizade e mútuaadmiração iniciadas quando Nelson, ainda cursando os primeirosanos da Faculdade de Direito, saudou, em nome da classe, o mestreAloísio que se ausentaria do magistério, para cumprir mandatode deputado constituinte, como registrou Pedro Moacir Maia,meu eminente antecessor, no seu magnífico discurso de possenesta Casa, estampado no número 48 da Revista da Academia deLetras da Bahia, cujo pleno teor subscrevo e incorporo a estaarenga.

Um pequeno trecho do discurso, então proferido por Nelson,que contava, apenas, dezenove anos, serve para dar a medida dointelectual erudito, culto, refinado e preciso que viria a enriquecera Ciência Política em nosso País: “Queremos que a lei traga em sio sentido dinâmico que lhe permita acompanhar a evolução sempôr em risco a sua estabilidade; a lei que traga em si as forças desua contínua adaptação”. E numa demonstração do espírito detolerância que estava na base da inabalável higidez democráticaque o acompanhou ao túmulo: “Pregamos, sim, o justo equilíbrioentre as forças renovadoras e as forças conservadoras dasociedade, no sentido de uma colaboração recíproca para a criaçãoe a seleção de valores”.

Fui aluno de Ciência Política do professor Nelson Sampaio,no primeiro ano do curso de Direito da Universidade Federal daBahia. Nele, todos admirávamos o scholar, excepcionalmentedotado de pendor para as lides acadêmicas, além do cavalheirode gestos pausados, impecavelmente vestido, dono do tempo, detal modo a lufa-lufa não fazia parte de sua vida.

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Meio a extensa e qualificada bibliografia que nos legou, sendoo excelente Ideologia e ciência política o título mais conhecido,há uma monografia que merece destaque especial. Antes demenciona-la, narrarei sugestivo episódio.

Corriam o ano de 1987 e os trabalhos da Constituinte para aqual me elegera. Encontrava-me jantando, em Brasília, com odeputado Miro Teixeira, quando se aproxima o advogado SauloRamos, então Consultor Geral da República do governo Sarney,com o qual o PMDB baiano começava a se desentender. Feitas asapresentações, Saulo Ramos exclamou: “Bahia! Terra do juristabrasileiro de maior prestígio internacional”. Em lugar dosesperados Augusto Teixeira de Freitas, o Jurisconsulto do Império,Ruy Barbosa ou Orlando Gomes, Saulo arrematou: -Nelson deSouza Sampaio! Fiquei muito surpreso. Nome reconhecido comogrande autoridade em Ciência Política, Nelson não figurava entrenossos maiores juristas. Seguiu-se a explicação de Saulo: “Participeide um congresso de Direito Constitucional em Paris, em que onome do professor Nelson Sampaio foi unanimemente aclamadocomo autor de trabalho definitivo sobre os limites do poder dereforma constitucional. Não sei de outro brasileiro que tenharealizado façanha semelhante para a formação de um dos ramosdo conhecimento jurídico.”

Se, em 1980, não tivesse prevalecido o viés burocrático denossa universidade ao indeferir requerimento de Nelson Sampaiopara dedicar-se em regime de tempo integral, durante, apenas,um ano, à preparação de um tratado, a partir do desenvolvimentode seu conhecido estudo “Prerrogativas do Poder Legislativo”,em lugar de um, possivelmente teríamos dois clássicos de suaautoria de reconhecimento universal.

Sucedendo a Nelson Sampaio, tragicamente desaparecido em20 de dezembro de 1985, Pedro Moacir Maia toma posse dacadeira n° 7 em 10 de março de 1987, sendo saudado peloinesquecível Jorge Calmon Moniz de Bittencourt. Ao chegar aesta Academia, Pedro Moacir juntou-se ao seu querido irmão, já

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acadêmico, e o melhor dos seus amigos, o consagrado contistaCarlos Vasconcelos Maia, de saudosa memória.

Filho caçula do comerciante Manoel de Almeida Maia eAsterolina Vasconcelos Maia, Pedro Moacir nasceu em Salvador,a 27 de junho de 1929. Órfão de mãe em plena infância, a avó e atia Zeca dividiram com seu pai a tarefa de cria-lo e educa-lo.Ingressou na escola de Direito, em atenção às solicitações paternas,abandonando-a dois anos depois de frequenta-la, para graduar-se em línguas neolatinas e letras, em 1956, pela Faculdade deFilosofia Ciências e Letras da Universidade Federal da Bahia, ondemais tarde ensinaria Literatura Portuguesa, paralelamente aoensino de Português, entre 1957 e 1960, no Colégio Estadual daBahia, onde cursou o secundário. Entre 1959 e 1960, publicouartigos no Jornal da Bahia, sob a rubrica comum de “Livros erevistas de arte”. Dedicou toda sua existência fecunda aos laboresintelectuais vinculados à educação e à cultura em geral, comoprofessor, contista, crítico literário, cronista, tradutor e historiadorda arte. No exercício desse variado mister, encontrou o leito desua verdadeira vocação.

Iniciou sua atividade magisterial pelo Colégio Estadual daBahia, o mesmo velho Central de Abílio César Borges, CarneiroRibeiro, Castro Alves, Rui Barbosa e de tantas personalidadesilustres que integram a história da Bahia contemporânea em suasmúltiplas dimensões, algumas delas integrantes desta Academia emuitas outras presentes a esta solenidade. Foi aí que tive a honrade ser seu aluno, integrando uma de suas primeiras turmas.

Logo depois ocupou a secretaria do Instituto de EstudosPortugueses da faculdade em que se formou, daí seguindo paralecionar no Senegal, na Faculté de Lettres et Sciences Humaines,da Université de Dakar, de janeiro de 1961 a julho de 1970,encarregando-se, paralelamente, dos assuntos culturais daEmbaixada do Brasil naquele país africano, entre 1964 e 1970.

Suas atividades em Dakar incluíam conferências, a publicaçãode artigos e a organização e montagem de exposições diversas

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sobre assuntos brasileiros, na Universidade e em outras instituiçõessenegalesas.

Fazendo coro com o regozijo expresso pelo reitor EdgardSantos por havê-lo recomendado ao professor Pierre Nardin,diretor da Faculdade de Letras e Ciências Humanas daUniversidade de Dakar, que logo reconheceu o grande valor dojovem mestre brasileiro, o jornalista Márcio Moreira Alvespublicou na revista Visão, em 14 de setembro de 1962, artigo sobo título “O magricela de Dacar” em que exaltou a atuação dePedro Moacir no continente africano, conforme reproduzido pelaA Tarde, em março de 2008. Moreira Alves dá testemunho dainteligência e do empenho diuturno de Pedro Moacir empromover as coisas brasileiras, fazendo de sua sala um mostruáriode fotos, de artes plásticas e de livros, entre os quais centenas deobras dos principais romancistas, poetas e sociólogos brasileiros.Moreira Alves, o mesmo que em 1968, como deputado federal,deu a justificativa que os militares queriam para editar o AI 5, aoconcitar as jovens brasileiras a não namorarem os integrantes dasforças armadas, nem comparecerem às festas do sete de setembro,destacou a indignação de Pedro Moacir contra quatro dos seisoutros brasileiros que também lá se encontravam, por gazetear otrabalho e dar vazão a velhos preconceitos, inclusive raciais.

Observou Moreira Alves que Pedro Moacir fazia do campusda própria universidade onde residia, “um escritório depropaganda unitário e móvel”.

Da África, o difusor maior do significado histórico e valorestético de nossa azulejaria migrou para a embaixada do Brasil naArgentina, onde respondeu de 1970 a 1976 como diretor do Centrode Estudos Brasileiros, ensinou português, deu cursos diversos sobreas artes no Brasil, organizou e montou exposições de variadatemática, particularmente de autores argentinos e brasileiros. Éoportuno destacar os cursos que ofereceu, sobre a literatura doNordeste brasileiro, para graduados no Instituto de Letras daFacultad de Letras de la Universidad de Buenos Aires, as

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conferências que proferiu sobre arte e literatura brasileiras, bemcomo cursos sobre o nosso Modernismo e sobre Castro Alves.

Completou Pedro Moacir seu périplo diplomático-cultural naAmérica Latina como diretor do Centro de Estudos Brasileirosda Embaixada do Brasil, em Santiago do Chile, entre setembrode 1976 e dezembro de 1981, onde, além de ensinar português,deu vários cursos, como “Algunos momentos o aspectos del arteem Brasil”, no Departamento de História da Universidade doChile, em 1978; “Cristianismo y Barroco”, na Facultad de Teologiade la Universidad Católica de Chile, em 1980, repetindo-o em1981. A exemplo do que fizera em Buenos Aires, organizou emontou diversas exposições de artistas ou temas brasileiros echilenos, deu entrevistas, escreveu artigos e proferiu conferênciaspara difundir a cultura brasileira.

Foram, portanto, vinte anos de vida no exterior, dedicados aatividades como professor, conferencista, tradutor, curador deexposições e organizador de seminários e congressos. Foi membroda College Art Association of América, da American Society forHispanic Art and Historical Studies, da Tile Heritage Foundation,dos Estados Unidos e da Tiles and Architectural Ceramics Societyda Inglaterra. Foi condecorado pelos governos do Brasil, Senegal,Argentina, Chile e Portugal.

Acrescido dessa rica bagagem, Pedro Moacir retornou aSalvador, querido torrão natal, onde assumiu a direção do Museude Arte Sacra, aí permanecendo de 1982 a 1989, e reassumiu omagistério no Instituto de Letras, até sua aposentadoria.

Foi no momento do retorno que se deu o acontecimento maiorde sua vida: a realização do grande e velho amor com a desdesempre eleita do seu coração, Celeste Aída Galeão, mulherexemplar pela beleza, inteligência, caráter, erudição, a mais dereconhecida pela sua qualificada germanofilia. Para merecer esteencontro definitivo de sua´lma, Pedro Moacir esperou vinte eum anos, sete a mais do que Jacob serviu a Labão para merecerRaquel, serrana bela.

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A atividade intelectual de Pedro Moacir à frente do Museu deArte Sacra, mais uma vez, evidenciou-se intensa. Já a partir de1982, aí organizou encontros, conferências, cursos diversos comoum sobre “A arte paleocristã”, exposições, lançamentos de livrose discos, concertos ao vivo. Instituiu o (novo) Livro do Tombodo acervo artístico do Museu, além da fototeca completa dessasmesmas obras de arte.

Esta figura exemplar de nossas letras, a exemplo de Freud, emlugar de fazer da publicação de livros seu objetivo principal,preferiu entregar-se à produção de textos específicos, sob a formade artigos, destinados a publicações especializadas – livros, revistasou jornais-, com marcante presença no caderno cultural de ATarde, nos últimos vinte e cinco anos da vida.

Sua produção como editor-amador compreende dezessetelivros, e cerca de cento e vinte plaquettes, sob a marca EdiçãoDinamene, entre 1949 e 1981, fim do seu périplo no exterior.

Entre 1982 e 2005, a partir de quando sua saúde começou adeclinar, produziu cinco livros sobre artes na Bahia.

A fotografia, como arte, integrava o amplo leque de seusinteresses intelectuais, de que é exemplo a grande quantidade delivros, estatuetas e quadros sobre o assunto que enriqueciam seuhabitat estético.

Em 1987, sob o patrocínio de importante organização bancária,editou o melhor trabalho existente sobre o Museu de Arte Sacra,com textos e fotos que enchem os olhos e esclarecem o significadodos seus altares, pinturas e afrescos, lápides tumulares, azulejaria,esculturas, crucifixos, calvários, ourivesaria e prataria, utensíliosreligiosos, móveis e diferentes ângulos de sua exuberantearquitetura.

São de 1990 seus textos sobre “Os cinco sentidos, os trabalhos dosmeses e as quatro partes do mundo em painéis de azulejos, no Convento deSão Francisco em Salvador”. Data de 1995 o livro Adoração dos Pastorese dos Magos em Painéis de Azulejos.

Em 2002, publicou Vistas e festas lisboetas em azulejos na Bahia,em que faz um estudo completo da azulejaria inspirada no tema

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do título, encontradiça na Ordem Terceira de São Francisco, seuclaustro e seu consistório.

Muito no estilo de sua vocação de infatigável caçador demanifestações estéticas, participou, em 2003, da reedição do livroAzulejos – Reitoria da Universidade Federal da Bahia, como editor eautor das legendas explicativas da azulejaria daquele paláciouniversitário.

Membro altamente participativo da vida da ALB, como seusegundo-secretário, no biênio 1989/90, e primeiro-secretário embiênios seguintes, organizou exposições de livros raros e/ouilustrados de autores como Jorge Amado (1985), Manuel Bandeira(1986), Castro Alves (1986) e Machado de Assis (1989). Ainda nasede da ALB, proferiu conferências sobre obras e autoresbrasileiros, tendo, igualmente, organizado e escrito textos paracatálogos de diversas exposições.

Graças à vitoriosa iniciativa do poeta Fernando da Rocha Peres,autor do prefácio, veio a lume, postumamente, em maio de 2008,o livro Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinosBenjamin de Garay e Raúl Navarro, com introdução, ensaios e notasde Pedro Moacir, que adquiriu essa correspondência quandoexercia o cargo de adido cultural na embaixada brasileira naArgentina. Impresso na Ufba, foi lançado aqui mesmo, nestaAcademia. Prova adicional de seu gosto requintado é o preitodedicado a dois vasos sang-de-boeuf, em porcelana rubra, de suapropriedade, reputados seu bem mais valioso, conformetestemunho de Celeste Aída Galeão, que escreveu a orelha,companheira e musa nos derradeiros 25 anos de uma existênciadedicada à fruição dos valores e prazeres da estética.

Pedro Moacir deixou alguns trabalhos inéditos, como umaAntologia comentada de Manuel Botelho de Oliveira, O Movimento Cadernoda Bahia (1948-1952) e O tema da natividade em azulejos portugueses naBahia.

Consoante seu desejo, sua biblioteca foi doada ao Mosteirode São Bento.

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Meio à rica galeria de vultos das artes cujas obras reverenciava,Pedro Moacir nutria especial admiração pelos artistas plásticosaustríacos Gustav Klimt e Egon Schiele que, à exceção do talento,nada tinham em comum. Enquanto Klimt exaltava a beleza dedelicadas e frágeis figuras humanas, Schiele dilacerava tragicamenteas figuras de suas construções pictóricas.

Produto de sua infatigável vocação de esteta, as artesanaisedições Dinamene tiveram tiragens limitadas, de acesso restrito aamigos e colecionadores, dentre os quais o empresário e seuadmirador José Mindlin, o mais famoso bibliófilo brasileiro, queafirmou serem elas “pequenos primores gráficos que celebram asupranacionalidade da poesia”.

José Mindlin recorda, no caderno cultural de A Tarde de 29 demarço de 2008, em memória de Pedro Moacir, os trinta anos deamizade com ele, amizade construída a partir do interesse comumsobre o livro, seu conteúdo e formatos gráficos: “Nossosencontros, tanto em Salvador como em São Paulo, sempre foramfonte de prazer, agradáveis, estimulantes. Admirava-o de longadata, como excelente artista gráfico e polivalente homem decultura. O amor aos livros é um poderoso fator de uniãoespiritual; e ele nos uniu desde o longínquo primeiro encontro.Antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente, admirava suasplaquetas avulsas da Dinamene, caprichosamente impressas,sempre em tipo uniforme, com que divulgou poesias preferidasde Bandeira, Drumond e João Cabral, entre outros... A existênciade Pedro Moacir foi profícua para o meio cultural brasileiro evai fazer muita falta a nós, seus amigos, e ao desenvolvimentoda sensibilidade baiana”. Entre os amigos referidos por Mindlinencontravam-se o médico memorialista Pedro Nava e o críticobaiano Wilson Rocha.

O historiador e acadêmico Waldir Freitas Oliveira, ao ensejoda morte de Pedro Moacir, observou: “Que posso dizer dele,senão que sempre o considerei um dos mais sérios intelectuais daminha geração? Não fazia alardes do seu vasto conhecimento.

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Não era de falar muito. Mas como sabia das coisas! Poucos eramos assuntos sobre os quais não tivesse opinião formada.”

Segundo a consagradora expressão de Carlos Drummond deAndrade na conhecida crônica escrita no já remoto 1973, sob otítulo “Dinamene e seu anjo músico”, as edições Dinamene seriam“ourivesaria gráfica”. Advertiu, ainda, Drummond: “Bibliófilos,já sei que estais excitadíssimos, de gula e olhos acesos. As tiragenssão limitadíssimas, e eu preveni que Maia não vende”... .. “Comoum príncipe, oferece as edições aos amigos do verbo, que sãotambém seus amigos”.

A escritora austríaca Glória Kaiser, no seu discurso de possecomo Membro Correspondente Estrangeira desta Academia, emmaio de 2006, disse que “os ensaios de Pedro Moacir Maia sobreazulejos são preciosos e conduzem nosso olhar para obras muitoespeciais da cultura lusitana. Além disso, os textos escritos peloprofessor Pedro Moacir são obras de arte que podem ser lidas erelidas com prazer. Cada uma de suas frases é carregada de sentidoprofundo e de poesia. Trazem-me à lembrança um ensaiomaravilhoso sobre Antônio Vieira e Christina da Suécia.”

Mas é com a opinião da psicanalista Urânia Maria Tourinhoque mais me identifico, ao arrematar em feliz síntese: “Para mim,Pedro foi um professor da beleza”.

Dinamene foi a pranteada amante chinesa de Luís Vaz deCamões que naufragou com ele na viagem que o transportavapara ser julgado em Goa pelos delitos administrativos que teriacometido em Macau, onde se encontrava. Segundo a lenda, entresalvar os manuscritos dos Lusíadas ou a amante, Camões preferiua literatura. Atormentado pelo remorso de sua Escolha de Sofia,passou a dedicar o melhor do seu estro a cantar a desditosa amada.

A esse conjunto de manifestações públicas, apropriadamentelaudatórias de Pedro Moacir, gostaria de acrescentar algumasmemórias do tempo em que dele fui aluno em 1958, no ColégioCentral, no curso de literatura que deu aos que concorreriam aovestibular daquele ano.

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A admiração que provocava em seus alunos o então jovemprofessor, formado há, apenas, dois anos, era unânime, peladidática, pela capacidade de despertar genuíno interesse pelo temaexposto, pela espontânea camaradagem da convivência e,sobretudo, pela enorme sensibilidade para identificar o belo emcontextos triviais ou incomuns. Intuitivamente, Pedro Moacirorientava o seu magistério pelo reconhecimento da supremaciada compreensão sobre o aprendizado papagueado, irrefletido,consoante a distinção piagetiana entre o simples aprender e ocompreender profundo.

Registre-se que o Central regurgitava de animação cultural,com a presença de jovens talentosos que logo despontariam paraas letras e as artes, como João Ubaldo Ribeiro, Glauber Rocha,Raymundo Pinto, Raimundo Laranjeira, Ciro Matos, AntônioGuerra Lima, João Carlos Teixeira Gomes, Hélio Contreiras,Glauber e Anecy Rocha, Fernando da Rocha Peres, Affonso MantaAlves Dias e muito mais. A Jogralesca e a geração Mapa saíramdessa tropa de elite que enchia as paredes do Central com muraisque abrigavam suas criações, sob a forma de crônicas, artigos epoesias.

Recordo-me de um verso de Iracy Celestino em que ela falavado sofrimento pelo contraste entre seu abatimento emocional“enquanto a natureza arrebenta lá fora em gargalhadas de sol”.No dia seguinte, o seu namorado e depois marido Joca escrevia:“Que os teus ouvidos sejam como esponjas às minhas palavrasmolhadas de amor”.

Pedro Moacir vibrava com a atmosfera intelectual do velhoCentral. Em uma aluna do primeiro ano, Ana Maria, Pedropespegou o apelido de Capitu, que permanece até hoje, referindo-se sucessivas vezes a ela para explicar o que Machado de Assisqueria dizer quando se referia aos olhos de ressaca de sua maisfamosa personagem.

De outra feita, amigavelmente questionado no dia seguinte àeleição, pelo seu voto de Minerva, da miss Primavera do Central,

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argumentou: “Entendo que vocês prefeririam aquela garotamorena, dotada de curvas generosas, no que teriam razão se ascandidatas desfilassem nuas. Como desfilaram vestidas, nãopodemos excluir do julgamento o todo formado pela beleza docorpo, o vestuário e suas cores, incluindo as meias, os sapatos, openteado, os adereços, o modo de andar, a dicção, o conteúdo daconversa e o modo de falar. O sentido de beleza que se devevalorizar não pode estar dissociado da harmonia do conjunto”.Ali se manifestava, naquele pequeno episódio, na plenitude desua vocação primeira, o refinado esteta que seria por toda vida.

O jovem poeta Affonso Manta, então com dezessete anos,que dividia comigo a tarefa de editar o mural “O Alvorada”, memostrava, diariamente suas criações poéticas. Ao ler algumaspoesias de Affonso, a meu pedido, Pedro Moacir concluiu que ogaroto de Poções era um bom poeta. Elogiou particularmenteuma em que Affonso inquiria à mãe e ao mundo onde ficara oseu segredo, aquele momento mágico e indefinível que molda odestino dos homens. E, às tantas, Affonso indagava, “Onde ficoumeu segredo, minha mãe, onde ficou? Será que ficou no monte,nas cercanias, na fonte? Será que ficou no sino, no sino do velhoJacó? Jacó Sineiro era velho, morreu de triste, coitado, era quembatia o sino nas festas do povoado. Com seu jornal de notícias,estridente e galhofeiro, celebrava casamento de Janeiro até Janeiro.E quanto noiva feliz Jacó não levou no sino, quanto velho, quantavelha, quanto corpo de menino. Um dia a notícia veio e espalhou-se pelo outeiro. Quem bateu o sino velho que enterrou JacóSineiro?”

Inspirado na sensibilidade de Pedro Moacir e em homenagema ele, Affonso escreveu em nosso “O Alvorada” estes versos:

“A beleza, poeta, existe na aparência das coisas mais sutis, dasbrisas mais caladas, existe no mistério incluso da inocência, nodespudor das rosas desfolhadas”.

Em outra oportunidade, quando se falava dos grandesromancistas vivos, veio à baila o nome de William Somerset

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Maugham, à época com 84 anos de idade, cujo romance ServidãoHumana, figurava desde 1915, ano de sua publicação, como umadas obras mais aplaudidas do século XX. Para estupefação geral,Pedro Moacir, serenamente, como sempre, disse que à exceçãode alguns contos integrantes do livro Contos dos mares do sul, tudoo mais produzido por Maugham não passava de bem compostasub-literatura. Muitos anos decorridos daquela que me pareceuuma afirmação pretensiosa, tomei conhecimento de que odiagnóstico literário de Pedro Moacir passou a ser o conceitoassentado por parcela ponderável da crítica revisionista da obrado famoso escritor inglês nascido em Paris.

Personalidade avessa aos extremos, Pedro Moacir eramoderado no aplauso como na crítica. Amante de uma boa piada,sorria, no entanto, com a discrição dos pudorosos. Não obstantesua circunspecção, certa vez, ao falar da poesia brasileira do SéculoXIX, com a expressão revestida da habitual seriedadedescontraída, disse que o pernambucano (Antonio Peregrino)Maciel Monteiro (1804-1868), médico, político, diplomata e poetabissexto, considerado o introdutor da sensualidade e do lirismoerótico em nossa poesia, discípulo de Lamartine e Victor Hugo,autor do conhecido soneto “formosa, qual pincel em tela fina”,apesar do caráter circunstancial de sua poesia, era muito invejadopelo sucesso que fazia com as mulheres, a ponto de Silvio Romeroter dito dele que “trazia as mãos calosas de arribar saias de seda”.

Senhoras e senhores acadêmicos, senhoras e senhoresconvidados:

Consciente do muito que tenho a fazer, para reduzir a distânciaabissal que me separa dos vultos ilustres que me antecederamnesta cadeira de n° 7, assumo nesta noite, tão grata aos meussentimentos, o solene compromisso de fazer dela o púlpito paracontinuar defendendo, com ênfase crescente, o significado daeducação para a redenção dos povos, a nossa redenção.

O primeiro passo consiste em assoalhar a denúncia docontinuado declínio do prestígio cultural e político de nossa terra,

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nas últimas décadas, em compasso com a queda da qualidade doensino no estado. As sucessivas avaliações do MEC vêmapontando a Bahia como detentora de um dos mais baixosrendimentos educacionais no Brasil. Consectário inelutável dessepanorama desolador é a própria Universidade Federal da Bahiaque caiu de uma das primeiras posições, quando a cursei, para o37° lugar entre as universidades brasileiras.

Quero observar que nunca uma Faculdade de Direito reuniu,a um só tempo, em qualquer lugar ou época, no Brasil, uma plêiadede professores com a qualidade dos mestres do meu tempo, donosso tempo, a exemplo de Orlando Gomes de quem no correnteano a Bahia e o Brasil cultos celebram o centenário de nascimento.Temos aqui, nesta noite, os dois remanescentes daquele time denotáveis, os professores e queridos amigos Edson O´Dwyer eLuis Viana Neto.

O pior de tudo é que estamos em baixa, na qualidade e naquantidade, já que à exceção da Universidade Federal doRecôncavo, em implantação, contamos, apenas, com a UFBA,ao tempo em que estados como Pernambuco e Minas Gerais,contam, respectivamente, com 3 e 7 universidades federais. Aprestação jurisdicional em nossa terra vem de ser consideradapelo CNJ como a de mais baixo desempenho entre as vinte esete unidades da Federação. A segurança em nosso estado saiudo plano da preocupação para um clima de alarme permanentee geral, de tal modo se agigantam o crime e a violência em suasmais torpes e cruéis modalidades. Enquanto não formos capazesde dar conseqüência ao entendimento de que fora da educaçãonão há solução possível para os males que nos afligem, e de quea educação é o caminho mais curto entre a pobreza e aprosperidade, a barbárie em que nos encontramos e o patamarde civilidade que almejamos, seremos, desgraçadamente,condenados a conviver com o inquietante cisma social queameaça e compromete quando não destrói nossa paz individuale coletiva.

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Já em 1989, no discurso de posse na cadeira 15, João CarlosTeixeira Gomes, o Joca, romancista, crítico literário, grande poetamaior e um dos mais talentosos jornalistas brasileiros,denunciando nossa perda de prestígio cultural, observava que “asinstituições de cultura da Bahia têm uma responsabilidade muitogrande. Vivemos numa terra apontada como centro culturalimportante em todo o país, mas há muitos anos não temos sabidojustificar essa fama. Tudo nos falta. Não temos editoras, rarassão as revistas especializadas, entre as quais merecem louvor a daEmpresa Gráfica da Bahia e a da Fundação Casa de Jorge Amado,as bibliotecas enfrentam dificuldades para preservar e atualizarseu acervo. Nossa vida cultural é fragmentária e dispersa, comsuas manifestações tratadas como se fossem algo de supérfluo,mero luxo ou adorno de civilização.”

Decorridos vinte anos do diagnóstico de Joca, o cenário parao livro e o escritor no Brasil, em geral, e na Bahia, em particular,se afigura ainda mais difícil, como se depreende da inteligenteanálise da excepcional poeta Myriam Fraga no seu discurso desaudação ao ingresso de Evelina Hoisel nesta Academia:

“Frente aos surpreendentes avanços das artes ditas industriais,no seio de uma sociedade que parecia mais disposta a privilegiaras manifestações culturais protagonizadas através do espetáculo,alicerçando assim uma postura que conduzia à festa, àcarnavalização, às manifestações coletivas, o livro, comoinstrumento tradicional de veiculação de literatura, parecia estarcada vez mais condenado à marginalidade e à exclusão.

Protagonistas do solitário ato de recriar o mundo através dosilêncio, aos escritores caberia apenas o lado escuro do palco.”

É oportuno lembrar que das três maiores fontes de poder – aforça, a riqueza e o conhecimento –, a força predominou dosprimórdios da história até o início da Revolução Industrial, a partirde quando o dinheiro assumiu a supremacia como a principalfonte de poder, liderando até o começo da década de 1970. Desdeentão, o conhecimento desbancou a força e o dinheiro como o

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centro do poder. Hoje, como nunca, em função do conhecimento,os ricos, pessoas, empresas e povos, podem ser os pobres deamanhã e vice-versa.

A baixa prioridade atribuída na prática à educação pública,em gritante conflito com os discursos eleitoreiros, como o meiomais confiável para vencermos nossas crescentes desigualdades,a corrupção e a violência, caracteriza fenômeno merecedor dediagnóstico no campo da psiquiatria social, uma vez que insistimosna perseguição de resultados diferenciados a partir das mesmascausas, atitude característica dos portadores de doenças mentais.

Todas as pessoas esclarecidas sabem, no Brasil e no mundo,que nesta quadra da história em que vivemos, o conhecimento é,acima da força e das riquezas materiais, a principal fonte de poder,dos indivíduos e dos povos, como nos ensinam países como oJapão, a Coréia do Sul e todos os países europeus. As exceçõessão Estados Unidos e Noruega que têm feito uso inteligente desuas riquezas naturais, particularmente o petróleo, ao aplicaremos recursos delas originados no desenvolvimento de sua infra-estrutura física e educacional, entendida a educação como oamálgama de conhecimento e valores éticos e morais.

Ao partilhar com moderado entusiasmo das prometidasriquezas do pré-sal, atento para a experiência histórica que adverteque as riquezas naturais podem ser uma maldição, a exemplo dospaíses do Oriente Médio e da vizinha Venezuela que nada,absolutamente nada, conseguem produzir, além do óleo que jorrado sub-solo. Exauridas as reservas ou condenado o petróleo àobsolescência, o que restará desses povos infelizes será umamultidão errante e esfomeada a clamar por abrigo e esmolasinternacionais.

Atuar na contramão desta verdade universal constitui, sim,caso que reclama ajuda da psiquiatria social.

Senhoras e senhores,Menos de dois lustros separam esta augusta Casa do seu

centenário. “Servir à Pátria, honrando as letras”, este o nosso

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comando supremo. Penso que serviremos com vigor redobradoa esses dois elevados valores, se fizermos da educação o objetivomaior de nossa ação coletiva. Até porque o processo educacionalexige atenção permanente, o que significa dizer que sua boacondução depende da compreensão e da sensibilidade de cadaum dos sucessivos e passageiros governos. A Academia de Letrasda Bahia é uma instituição comprometida com a perenidade. Adocemente ilusória imortalidade dos seus membros será alcançadana medida do significado de suas obras para a construção sólidado presente e do futuro. E nada há que possa competir com ocompromisso com a educação como meio para alcança-la. Aíentão, a Academia poderia passar a incluir, como prática, na lápidetumular de cada um dos seus saudosos membros, a iniciar-se pelade Pedro Moacir Maia, que dedicou toda a sua vida a educação, oimortal verso de Horácio” “Exegi monumentum aere perenius”.“Eu construí um monumento mais duradouro do que o bronze”.

Discurso do acadêmico Joaci Góes, proferida na Academia de Letras da Bahia,no dia 24 de setembro de 2009, ao tomar posse na cadeira nº 7.