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DOUTORAMENTO MESTRADO & ESTUDOS SÉRIE M 2 DANIELLE OSORIO SANTOS A AFFECTIO SOCIETATIS NO DIREITO ROMANO E SEUS REFLEXOS NO DIREITO BRASILEIRO

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DOUTORAMENTO

MESTRADO&ES

TUDO

S

SÉRI

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2

DANIELLE OSORIO SANTOSA AFFECTIO SOCIETATIS NO DIREITO ROMANO

E SEUS REFLEXOS NO DIREITO BRASILEIRO

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EDIÇÃOInstituto Jurídico

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

COORDENAÇÃO EDITORIALInstituto Jurídico

Faculdade de Direito Universidade de Coimbra

CONCEPÇÃO GRÁFICA | INFOGRAFIAAna Paula Silva

Jorge Ribeiro

[email protected]

www.fd.uc.pt/ institutojuridicoPátio da Universidade | 3004-528 Coimbra

ISBN 978-989-8787-33-0

© SETEMBRO 2015

INSTITUTO JURÍDICO | FACULDADE DE DIREITO | UNIVERSIDADE DE COIMBRA

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DANIELLE OSORIO SANTOSA AFFECTIO SOCIETATIS NO DIREITO ROMANO

E SEUS REFLEXOS NO DIREITO BRASILEIRO

Doutoramento

Mestrado

E S T U D O S

&

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A affectio societatis no Direito Romano e seus reflexos no Direito Brasileiro

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A Affectio SocietAtiS no Direito romAno e SeuS reflexoS no Direito BrASileiro

Danielle Osorio Santos

RESUMO: A affectio societatis tem sua origem no Direito Roma-no, onde aparece como um dos requisitos do contrato consen-sual de sociedade. Apresentava peculiaridades próprias, como ser permanente, e algumas consequências para a vida da sociedade como um todo. O mesmo instituto é encontrado hoje do Direi-to Empresarial Brasileiro pois refere-se ao consenso exigido para qualquer negócio jurídico. Discute-se se essa affectio societatis en-contrada hoje no direito brasileiro guarda semelhanças ou dis-semelhanças com a do Direito Romano, e mesmo se subsiste no Direito Brasileiro, bem como a sua importância para a vida da sociedade empresária. Uma parcela da doutrina e da jurisprudên-cia brasileira insiste em defender que, sob a égide do Código Civil de 2002, não se pode mais falar em affectio societatis, tendo sido a mesma substituída pelas noções de boa fé e fim social da empresa. Concluímos que os três são institutos jurídicos diversos, e que por ser expressão do consenso, a affectio societatis subsiste no direito brasileiro como pressuposto de existência da sociedade empresá-ria, tendo-lhe sido agregado valor com a previsão constitucional do direito fundamental à associação. Sua ausência, tal como se dava no direito romano, provoca consequências concretas na re-lação com os sócios, e sua permanência na sociedade. Certo é que as soluções atuais do Direito Brasileiro diferem das do Direito Romano, em função da noção de personalidade jurídica.

DESCRITORES: affectio societatis; sociedade empresária; boa fé; fim social da empresa; pressuposto de existência.

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Affectio SocietAtiS in romAn lAw AnD itS reflexeS in BrAziliAn lAw

Danielle Osorio Santos

ABSTRACT: Affectio societatis has its origin in Roman Law, where it was taken as one of the requisites for the consensual contract of society, bearing its own peculiarities, such as being permanent, and with some particular consequences for the life of society as a whole. The same institute is now found in the Brazilian Corporate Law as it relates to the required consensus for any legal transac-tion. It is discussed whether this affectio societatis found today in Brazilian Law bears similarities or dissimilarities with the Roman’s one, and even if it still remains in Brazilian Law, as well as its im-portance for the life of companies. Some Brazilian doctrine and jurisprudence insists on arguing that under the discipline of the Civil Code of 2002, we can no longer speak of affectio societatis, since it is said to have been replaced by the same notions of good faith and social finality of the company. We conclude that three are different legal institutions, and as an expression of consensus, affectio societatis exists in Brazilian Law as a requirement for the legal existence of the company, and its importance has increased with the constitutional provision of the fundamental right to associa-tion. Its absence, as in Roman Law, causes concrete consequences at the level of the relationship with partners, and its permanence in society. What is certain, however, is that the solutions currently found in Brazilian Law differ from those in Roman Law, based on the notion of legal personality.

KEYWORDS: affectio societatis; business company; good faith; social finality of the company; existence requirement.

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1. Introdução

Com o advento do Código Civil Brasileiro de 2002, a dou-trina tem debatido acerca da subsistência da affectio societatis na dis-ciplina jurídica da sociedade empresária1, dada a omissão legislativa quanto à sua exigência. A discussão nucleia-se na possível substitui-ção da noção de affectio societatis pela noção de fim social da empresa, ou ainda pela noção de boa-fé, consolidada como princípio orienta-dor dos negócios jurídicos.

São institutos um pouco parecidos em sua origem, mas são também diversos em sua aplicação. O fim social está relacionado à atuação da sociedade no mundo exterior, o que torna fácil a sua dis-tinção com relação à affectio societatis que se caracteriza por subjetivis-mo, mas que nem por isso deixa de ter expressão exterior. A boa-fé surge (positivada) no Direito Brasileiro através Código Civil de 2002 (não obstante já existisse, como princípio orientador da atuação da autonomia privada), tomando papel de destaque nos discursos pri-vatistas, porque contemplada com a previsão legislativa2. A boa-fé traduz-se, em termos fundamentais, em honestidade e lealdade3, e,

1 Cf. Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, 33.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, 502, nota 30: “Atualmente, as antigas críticas ao conceito de affectio societatis tem encontrado incremento, afirmando alguns que está substituído pela ideia do “fim social” ou reduzido ao consentimento, elemento natural dos contra-tos, sem que tenha, na sociedade, um característico peculiar”.

2 Art. 422 da Lei 10.406 de 2002 (Código Civil Brasileiro): “Os contra-tantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

3 Cf. Miguel ReAle, A boa fé no Código Civil, em <http://www.miguel-reale.com.br/artigos/boafe.htm>: “Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva. Esta última – vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo – corresponde, fundamen-talmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o

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portanto, não se confunde com o consenso, mesmo que partilhem

de uma dose de subjetivismo.

A par da positivação do princípio da boa-fé, a affectio societatis, segue em sua discrição, quase implícita, mas o anonimato (ocasio-

nado mais das vezes pela indiferença legislativa) não logrou bani-la

dos horizontes do discurso jurídico comercial (discurso teórico e

jurisprudencial), que continua a considerá-la, exigi-la e dar-lhe os

devidos efeitos jurídicos.

A affectio societatis traduz-se em ser a intenção do agente em

realizar um negócio jurídico para constituir com outrem uma socie-

dade, e desenvolverem uma atividade comercial ou industrial.

Está presente um elemento subjetivo, que se objetiva no

momento da sua expressão e em que as partes contraem o negócio4.

E sua essência é consenso, radica na voluntas do contraente. O animus em constituir sociedade, em associar-se a outro para o desenvolvi-

mento de alguma atividade empresária, figura como um dos requisi-

tos para que a sociedade venha mesmo a existir.

convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, “a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tu-telado”. Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de ‘honestidade pública’”.

4 Cf. Caio Mário da Silva PereirA, Instituições de Direito Civil, vol. 1, 20.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, 480: “Para se compreender bem a atuação da vontade do negócio jurídico, não é despiciendo fixar o mecanismo da atividade psíquica. Filho da vontade humana, o negócio jurídico é a mais alta expressão do subjetivismo, se atentarmos em que o ordenamento jurídico reconhece à atividade volitiva do homem o poder criador de efeitos no mundo do direito. É preciso, então, evidenciar de que maneira atua a vontade jurígena”.

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A affectio societatis no Direito Romano e seus reflexos no Direito Brasileiro

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O consentimento é tido como um dos pressupostos de exis-tência de qualquer negócio jurídico5, e, em se tratando de uma so-ciedade empresária, ele é classicamente identificado com o nome de affectio societatis, porque tal voluntas (animus, consensus), está orientada para a produção de determinado efeito jurídico, formando uma es-pécie de consentimento qualificado6.

A sociedade remonta mais tardiamente ao Direito Romano (como quase a totalidade do direito privado moderno encontra aí seu berço). Importa compreender como, então, surgiu o elemento consenso no contrato de sociedade, e, a partir dessa compreensão, traçar um paralelo com o instituto atualmente existente na disciplina jurídica da empresa no atual Direito Brasileiro.

2. A societas no Direito Romano

É voltando nosso olhar ao Direito Romano que encontramos o surgimento do elemento consenso como elemento do contrato. Talvez não tenha surgido já pronto e acabado como o conhecemos hoje (como aliás, surge toda novidade no mundo jurídico), mas terá sido seu primeiro embrião. Não obstante a doutrina entenda que a sociedade terá surgido no direito medieval7 (com as corporações de

5 Caio Mário da Silva PereirA, Instituições de Direito Civil, 482.6 Cf. Georges RiPert, Traité élémentaire de droit commercial, 9.ª ed., Paris:

Librarie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1977, 474: “Le consentement des contractants doit porter sur la nature du contrat. Les jurisconsultes romains, pour distinguer l’indivision de la société, disaient que les associés doivent avoir l’affectio societatis (Dig., 172 fr. 32). L’expression a été conservée et certains auteurs ont voulu y voir la dénomination d’un caractère particulier du consentement […]. A la verité, il n’y a pas là um caractère particulier du consentement. Tout se ramène à dire, comme le disait d’ailleurs le droit romain impérial, qu’il faut l’animus contra-hendae societatis. On pourrait en dire autant pour tous les contrats: le consentement doit être donné en connaissance de la nature du contrat conclu”.

7 Ressaltamos que o direito medieval concebeu originalmente não o di-reito comercial, ou a sociedade comercial; mas a sua originalidade está em ter desenvolvido uma teoria da personalidade jurídica que encontra grande relevância

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ofício e com o comércio marítimo), tomamos a liberdade de passar

ao largo desse importante antecedente histórico para situar a affectio societatis lá nas suas fontes, no Direito Romano.

Há uma discussão doutrinária acerca da origem do contrato

de sociedade, porém, há também uma certa tendência a pacificar-

-se o entendimento de que ela teria nascido (evoluído a partir desse

instituto agrário) de um consórcio entre os filhos de um pater para

continuar a administração e exploração de seus bens. Era o consor-tium ercto non cito, que resultava naturalmente da morte de um paterfa-milias e que assim instaurava uma comunhão entre os seus herdeiros,

uma associação entre eles, em função de um patrimônio comum e

da destinação econômica a conceder-lhe; porém, a par destas carac-

terísticas, aquela que sobressai e que tem obrigado estudiosos do

direito romano a enquadrar esse consórcio entre os antecedentes da

societas é justamente o seu aspecto pessoal8. A despeito da presença

desse aspecto pessoal, não encontramos aqui, ainda, o consenso,

pois era o que se chama um condomínio necessário (natural)9.

no campo empresarial, por sua possibilidade de limitação da responsabilidade e mesmo os institutos de preservação da empresa, autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus sócios. Para mais detalhes: Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, 1, 456-459.

8 Cf. Mario TAlAmAncA, La ‘societas’. Corso di lezioni di diritto romano. Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 2012, 26: “Questo prevalere dell’aspetto personale nella determinazaione della disciplina del consortium ercto non cito avvicina indubbia-mente questa figura alla societas classica, sotto il profilo dell’esser entrambi feno-mini associativi, pur in condizioni e presupposti e con regime tutt’affatto diversi. E quest’ultima considerazione può spiegare soddisfacentemente l’accostamento, che si riscontra in giuristi repubblicani e classici (Gaio, Q. Mucio Scevola), fra societas e consortium”.

9 GAiuS III, 154b: “itaque inter omnes homines naturali ratione consistit” (“ela existe, pois, por razão natural, entre quaisquer homens” - tradução livre do Pro-fessor Doutor António Alberto Vieira Cura, regente da disciplina de Direito Ro-mano do Mestrado Científico na Universidade de Coimbra 2014/2015, a quem se credita as demais traduções dos fragmentos históricos em diante avocadas).

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Desse consórcio necessário ter-se-ia evoluído para um con-sortium voluntarium em que os parentes (agnati) de um falecido sem filhos, e sem deixar testamento, poderiam ocupar-se da administra-ção de seus bens. Note-se que, após a Lei das XII Tábuas, esses her-deiros poderiam fazer uso da actio familiae eriscundae para promover a divisão da herança10, e se não o faziam era porque tinham o animus de continuar no consórcio11. Temos, portanto, para além do caráter pessoal do consortium ercto non cito, o consensus12.

O embrião do contrato de sociedade, porém, encontra-se em um instituto regulado pelo ius gentium: a societas omnium bonorum13, que era uma sociedade universal, com característica de fraternidade (porque os socii visavam instituir um consórcio semelhante àquele

10 D.17,2,31: “Ut sit pro socio actio, societatem intercedere oportet: nec enim sufficit rem esse communem, nisi societas intercedit. Communiter autem res agi potest etiam citra societa-tem, ut puta cum non affectione societatis incidimus in communionem, ut evenit in re duobus le-gata, item si a duobus simul empta res sit, aut si hereditas vel donatio communiter nobis obvenit, aut si a duobus separatim emimus partes eorum non socii futuri.” (“Para que tenha lugar a actio pro socio é preciso que haja uma sociedade; não basta que a coisa seja co-mum, se não houver sociedade. Também pode fazer-se alguma coisa em comum sem que haja sociedade, por exemplo, quando nos encontramos em comunhão sem intenção de sermos sócios, como acontece quando a mesma coisa foi legada a duas pessoas ou uma coisa foi comprada simultaneamente por duas pessoas, ou se recebemos uma herança ou uma doação em comum; ou se compramos sepa-radamente as partes de dois proprietários sem o ânimo de nos fazermos sócios”).

11 Cf. Vincenzo ArAnGio-ruiz, La società in diritto romano, Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1950, 14: “Certo essi trovavano aperte davanti a sè due vie: quella della divisione, alla quale la legge stessa, come si è visto, offriva il mezzo giudiziario, actio familiae erciscundae; e quello della certa legis actio di cui parla il nuovo frammento di Gaio, e mediante la quale potevano stringersi in consorzio ercto non cito”.

12 D.17,2,37: “Plane si hi, qui sociis heredes exstiterint, animum inierint societatis in ea hereditate, novo consensu quod postea gesserint efficitur ut in pro socio actionem deducatur.” (“Claro que, se aqueles que ficaram como herdeiros dos sócios tiverem tido a in-tenção de constituir uma sociedade em relação à herança, com o novo consenso consegue-se que o que foi gerido depois se compreenda na actio pro socio”).

13 Cf. A. Santos JuSto, Direito Privado Romano – II (Direito das Obrigações), 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011, 75.

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familiar, mas admitiam a participação de terceiros14, para além dos filiifamilias). Universalidade porque os socii contribuíam com todos os seus bens para a sociedade, presentes e futuros, e sobre eles havia uma copropriedade15.

Note-se que, até aqui, existiam as características de persona-lidade e consensualidade, mas aquilo que hoje identificamos como traço distintivo de uma sociedade comercial, entre os outros tipos associativos, o caráter especulativo, ainda não se encontra presente; este será localizado na societas quaestus, em que os socii uniam-se em função de sua atividade econômica ou profissional. Dividia-se em societas alicuius negotiationis, constituída para algumas operações espe-cíficas, e societas unius rei, constituída para execução de uma determi-nada atividade.

Portanto, o direito romano clássico conheceu dois tipos de societas, a societas omnium bonorum e a societas quaestus, e é naquele pri-meiro tipo que encontramos o consenso, enquanto esse segundo tipo nos empresta a noção de atividade comercial. A doutrina, ma-joritariamente, entende, com base em Gaius III, 154b (“sed ea quidem societas, de qua loquimur, id est, quae nudo consensu contrahitur, iuris gentium est; itaque inter omnes homines naturali ratione consistit”16), tenham origem naquele mesmo consortium ercto non cito17.

14 Cf. Vincenzo ArAnGio-ruiz, La società in diritto romano, 11: “se altri vole-vano costituire un consorzio analogo a quello naturalmente creato fra gli heredes sui dalla morte del padre comune (eandem habere societatem), potevano raggiungere que-sto risultato (id consequi) compiendo davanti al pretore un’apposita (certa) legis actio”.

15 Cf. Marigrazia BiAnchini, Studi sulla societas, Milano: Giuffrè Editore, 1967. p. 34: “Nella societas omnium bonorum, i beni dei singoli soci si comunica-no immediatamente, fluiscono spontaneamente dall’uno all’altro”.

16 “A sociedade de que falamos, quer dizer, a que se contrai por simples consentimento, procede, na verdade, do direito das gentes; ela existe, pois, por razão natural, entre quaisquer homens”.

17 Existe divergência doutrinária quanto a essa questão. Para tanto, con-ferir, especialmente Mario TAlAmAncA, La ‘societas’. Corso di lezioni di diritto romano, 8; e Marigrazia BiAnchini, Studi sulla societas, 13.

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A affectio societatis no Direito Romano e seus reflexos no Direito Brasileiro

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É nessas sociedades que buscamos os antecedentes histó-ricos do que os romanos tinham por contrato de sociedade. Eles incluíam a sociedade entre um dos quatro contratos consensuais existentes: compra e venda, mandato, locação e sociedade, onde cada uma tinha uma função econômico-social específica.

3. O consenso no sistema contratual romano

O Direito Romano, em matéria contratual, regia-se pelo princípio da tipicidade; existiam, portanto, quatro tipos contratuais com base no consenso18 (para além daqueles reais, verbais e literais): a compra e venda, o mandato, a locação e a sociedade. Eram con-tratos que tinham por elementos o consentimento, a capacidade e o objeto. O consentimento – o que mais nos importa aqui – é a livre vontade de contratar, com a finalidade de desenvolver a atividade objetiva a que se ligava aquele contrato.

No contrato de compra e venda, também consensual, a von-tade das partes era a transação em relação a uma coisa (res), a fim de modificar a propriedade sobre a coisa, a vontade expressa naquele negócio era direcionada nesse sentido.

Assim como no mandato, a vontade era uma vontade espe-cífica: constituir alguém em poder de agir por outrem. No contrato de sociedade, esse consenso adquiriu o nome de affectio societatis, a significar vontade de constituir sociedade19.

18 Cf. António Alberto Vieira CurA, Direito Romano e História do Direito Português (casos práticos resolvidos e textos), 2.ª ed. (reimpressão), Coimbra: Coimbra Editora, 2013, 47: “O consensus consistia no acordo de vontades dos sócios (socii) no sentido de, conjuntamente, contribuírem com determinadas coisas ou trabalho para a realização de um fim útil comum. Era suficiente para a perfeição do con-trato, já que a sociedade era um contrato consensual – que, aliás, só se mantinha enquanto os sócios mantivessem esse acordo. ”. Ainda nesse sentido, o conceito de A. Santos JuSto, Direito Privado Romano 13, 73: “consensus é o acordo de vontades dos socii de porem em comum determinadas res ou de dirigirem o seu trabalho (operae) para a realização de um fim comum útil”.

19 Cf. José CretelA Jr., Curso de Direito Romano, 21.ª ed. Rio de Janeiro:

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Começamos então a identificar aqui o consenso, posto que incluída a societas dentro da categoria de contratos consensuais, pres-supondo um animus específico na sua constituição. Affectio societatis, portanto, é essa vontade de constituir sociedade20, para o desenvolvi-mento de uma atividade econômico-social relacionada ao comércio.

A sua relevância do Direito Romano era a sua existência como um dos elementos do contrato de sociedade, e um elemen-to permanente, deveria durar enquanto durasse a sociedade21, e

Forense, 1998, 280. Vale a referência à legislação justinianeia em que é o consenso que vai diferenciar a societas do consortium: D.17,2,31: “Ut sit pro socio actio, societatem intercedere oportet: nec enim sufficit rem esse communem, nisi societas intercedit. Communiter autem res agi potest etiam citra societatem, ut puta cum non affectione societatis incidimus in communionem, ut evenit in re duobus legata, item si a duobus simul empta res sit, aut si heredi-tas vel donatio communiter nobis obvenit, aut si a duobus separatim emimus partes eorum non socii futuri” (“Para que tenha lugar a actio pro socio é preciso que haja uma socie-dade; não basta que a coisa seja comum, se não houver sociedade. Também pode fazer-se alguma coisa em comum sem que haja sociedade, por exemplo, quando nos encontramos em comunhão sem intenção de sermos sócios, como acontece quando a mesma coisa foi legada a duas pessoas ou uma coisa foi comprada si-multaneamente por duas pessoas, ou se recebemos uma herança ou uma doação em comum; ou se compramos separadamente as partes de dois proprietários sem o ânimo de nos fazermos sócios”) e D.17,2,32: “Nam cum tractatu habito societas coita est, pro socio actio est, cum sine tractatu in re ipsa et negotio, communiter gestum videtur,” (“Porque quando é constituída uma sociedade mediante acordo existe a actio pro socio e quando se produz sem acordo entende-se que há gestão comum, por ra-zão de compropriedade ou do próprio negócio”).

20 Importa destacar que no direito romano, o contrato de sociedade não implicava na constituição de uma pessoa jurídica diversa dos sócios, mas implica-va em propriedade solidária sobre os bens destinados ao exercício do comércio. Por isso, quando nos referimos aqui à societas do direito romano, não se pode inferir que seja uma pessoa jurídica, mas sim o contrato, ou a comunhão, como se prefira. Conforme vemos em A. Santos JuSto, Direito Privado Romano, 13, 77: “O contrato de sociedade não cria uma pessoa jurídica distinta dos socii” e em José Carlos Moreira AlveS, Direito Romano, 14.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, 138: “Os romanos, nesse período [pré-clássico], entendiam que, quando um patrimô-nio pertencia a várias pessoas, o titular dele não era uma entidade abstrata – a corporação -, mas sim, os diferentes indivíduos que constituíam o conjunto, cada um titular de parcela dos bens”.

21 GAIUS III,151: “Manet autem societas eo usque, donec in eodem sensu perseve-rant; at cum aliquis renuntiaverit societati, societas solvitur. (…).” (“A sociedade permane-

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A affectio societatis no Direito Romano e seus reflexos no Direito Brasileiro

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quando se extinguisse, deveria também ser extinto o contrato de sociedade. A affectio societatis deveria ser permanente, enquanto du-rasse o contrato.

3.1. A relevância da affectio societatis na societas

Para o direito romano, a affectio societatis deveria estar presen-te no momento da realização do contrato, e deveria estar presen-te, como referimos, durante toda a sua execução. Era um consenso permanente, pelo que, quando faltasse a affectio societatis, extinguia-se o contrato, “dissolvendo-se” a sociedade. A ausência do consenso, poderia ser expressa (quando uma das partes não desejasse mais continuar vinculada ao contrato) ou presumida, nos casos em que o indivíduo por algum motivo tinha o seu estado pessoal afetado, seja por capitis deminutio ou por insolvência22.

a) Quem se vincula ao contrato

Os romanos entendiam que, por aplicação desse instituto, estaria vinculado ao contrato somente aquele que com ele consen-tiu, e entre aqueles que mutuamente consentem entre si, D.17,2,19: “Qui admittitur socius, ei tantum socius est qui admisit, et recte: cum enim societas consensu contrahatur, socius mihi esse non potest quem ego socium esse nolui. Quid ergo si socius meus eum admisit? Ei soli socius est.” e D.17,2,20: “(Nam socii mei socius meus socius non est)”23.

ce enquanto todos ‘os sócios’ estão de acordo ‘em serem sócios’; pelo contrário, quando algum deles renuncia à sociedade, esta dissolve-se (…)”).

22 D.17,2,4,1: “Dissociamur renuntiatione morte capitis minutione et egestate” (“Deixamos de ser sócios por renúncia, por morte, por diminuição da capacidade ou por insolvência”).

23 “O que é admitido como sócio, só é sócio em relação ao que o admitiu, e com razão, pois, como a sociedade é contraída pelo consentimento, não pode ser meu sócio o que eu não quis que o fosse. Que acontece se o meu sócio o ad-

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b) Dissolução do contrato

Como acima dito, a ausência de affectio societatis acarretava a dissolução do contrato de sociedade24; mesmo que estivesse presen-te no início, se em algum momento ela deixasse de existir, deveria desaguar em sua dissolução25. Não somente quando o sócio deixasse de ter sua vontade objetivamente orientada nesse sentido, entendia--se que – com base nessa doutrina de ausência da voluntas – incluía--se a morte do sócio26 ou a capitis deminutio 27 (cujo tratamento era

mitiu? É sócio só em relação a ele. ” (D.17,2,19) e “Porque o sócio do meu sócio não é meu sócio” (D.17,2,20).

24 D.17,2,63,10. “Societas solvitur ex personis, ex rebus, ex voluntate, ex actione. Ideoque sive homines sive res sive voluntas sive actio interierit, distrahi videtur societas. Intereunt autem homines quidem maxima aut media capitis deminutione aut morte: res vero, cum aut nullae relinquantur aut condicionem mutaverint, neque enim eius rei quae iam nulla sit quis-quam socius est neque eius quae consecrata publicatave sit. Voluntate distrahitur societas renun-tiatione.” (“A sociedade dissolve-se em razão das pessoas, das coisas, da vontade e da acção; e por isso, se tiverem desaparecido as pessoas, as coisas, a vontade ou a acção, a sociedade considera-se extinta. As pessoas desaparecem por diminuição máxima ou média da capacidade (= perda da liberdade ou da cidadania) ou por morte; as coisas, quando não fica nenhuma ou tiverem mudado a sua condição, pois ninguém pode ser sócio em relação a uma coisa que não existe, nem de uma coisa que tenha sido declarada sagrada ou pública; pela vontade dissolve-se a so-ciedade mediante renúncia”).

25 Cf. Vincenzo ArAnGio-ruiz, La società in diritto romano, 11, p. 64: “per quanto riguarda la societas il consenso non va considerato soltanto come l’instan-taneo incontro di un polo positivo e di un negativo, onde si accende la scintilla dell’obbligazione, ma anche un’intenzione comune permanente, la cui cessazione porterebbe con sè l’estinzione del contratto”.

26 GAiuS III,152: “Solvitur adhuc societas etiam morte socii, quia qui societatem contrahit, certam personam sibi eligit.” (“A sociedade também se dissolve por morte de um sócio, pois quem constitui uma sociedade escolhe uma certa pessoa”). Com a morte do sócio, os seus herdeiros podiam constituir uma nova sociedade, mas era um novo contrato – ainda que com base no primeiro – e era necessário um novo consenso. Cf. Salvatore PuGliAtti, “Societas”, em Novissimo Digesto Italiano, vol. XVII, 3.ª ed, 512, e D.17,2,37: “Plane si hi, qui sociis heredes exstiterint, animum inierint societatis in ea hereditate, novo consensu quod postea gesserint efficitur ut in pro socio actionem deducatur.” (Claro que, se aqueles que ficaram como herdeiros dos sócios tiverem tido a intenção de constituir uma sociedade em relação à herança, com o novo consenso consegue-se que o que foi gerido depois se compreenda na actio pro socio”).

27 GAiuS III,153: “Dicitur etiam capitis deminutione solvi societatem, quia civili

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similar ao caso de morte de sócio28).A extinção do contrato abrangia o contrato por inteiro, e

não somente em relação a um sócio. Com efeito, o contrato de so-ciedade não constituía uma pessoa jurídica diferente da pessoa dos sócios; antes pelo contrário, o contrato era um negócio jurídico que envolvia um determinado número de atores, e, na falta do requisito consenso, extinguia-se por inteiro.

c) Actio pro socio

Quando houvesse dificuldades entre os sócios na extinção do contrato, quando um dos sócios não cumpria suas obrigações (nascidas do contrato de sociedade), era-lhes oferecida a possibili-dade de exercício dessa ação. A actio pro socio29 era uma ação do sócio, mas que lhe impunha uma série de sanções, o que a caracterizava como sendo uma ação infamante30.

ratione capitis deminutio morti coaequatur; sed utique si adhuc consentiant in societatem, nova videtur incipere societas.” (Diz-se que também a diminuição de capacidade dissolve a sociedade, porque, por uma razão tirada do direito civil, a diminuição da capa-cidade equivale à morte; mas, se ainda agora há acordo para permanecerem em sociedade, considera-se que se forma uma nova sociedade).

28 Cf. CretelA Jr., op.cit. 19. p. 281: “Assim, a morte natual de cada um dos sócios acarreta a extinção da sociedade. Não é preciso, porém a morte: basta a capitis deminutio ou a desgraça total, como conseqüência de uma venditio bonorum”.

29 Vincenzo ArAnGio-ruiz, La società in diritto romano,11, p. 174: “l’actio pro socio, che vuol dire puramente e semplicemente ‘azione istituita a beneficio del socio’”.

30 Cf. A. Santos JuSto, Direito Privado Romano, 13, 79: “Com a extinção da societas, o condomínio dissolvia-se e seguir-se-ia a liquidação e divisão dos bens sociais através da actio communi dividundo. Para cumprimento das obrigações assu-midas no contrato de sociedade, cada sócio gozava da actio pro socio que dava lugar a um iudicium bonae fidei; por isso, o iudex devia apreciar todas as relações entre o demandante e o demandado, sem descurar a interdependência das suas obriga-ções. Ademais, o socius condenado incorria na declaração de infamia, mas gozava do beneficium competentiae: a condenação não podia superar o limite determinado pelas suas possibilidades patrimoniais”.

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4. Affectio societatis no Direito Brasileiro

A disciplina jurídica do Direito Empresarial Brasileiro en-controu no Código Civil de 2002 uma nova abordagem em relação ao regime anterior, disciplinado pelo Código Comercial de 1850. Por força deste último, o direito privado dividia-se entre direito civil geral e direito comercial. O novo código fez a reunificação do di-reito privado incluindo o direito empresarial junto com os demais ramos do direito civil, como desdobramento natural dos direitos das obrigações, tal como se dava no direito romano31.

O atual Direito Brasileiro inclui o tratamento das sociedades empresárias no Código Civil, e trata de sua constituição, distinguin-do os dois momentos. Mas a sociedade se constitui, via de regra, por meio de um contrato – à exceção da sociedade anônima que o faz por meio de estatuto32.

Venceu o entendimento que apesar de não conseguir incluir esse contrato de sociedade entre os contratos bilaterais comuns, o contrato de sociedade é um contrato especial, porque plurilateral33,

31 Cf. as diretrizes fundamentais orientadoras da elaboração do Código Civil Brasileiro de 2002, anunciadas no ponto 4, alínea “b” em: Novo Código Civil, Exposição de Motivos e Texto Sancionado, Brasília: Senado Federal, 2005 p. 25.

32 Cf. Modesto CArvAlhoSA, Comentários ao Código Civil: parte especial: do direito de empresa (arts. 1.052 a 1.195), vol. 13 (coord. Antônio Junqueira de Azeve-do). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 54: “Essa nova sistematização da matéria socie-tária no Código Civil de 2002, segundo revela o autor do projeto que resultou no texto final da lei, deve-se ao reconhecimento da sociedade como forma jurídica pela qual se constitui a empresa (ao lado da figura do empresário individual), bem como ao reconhecimento de algumas características que distinguem o contrato de sociedade dos demais contratos, quais sejam: (i) o elemento da affectio societatis acresce-se ao intuitu pecuniae, formando o que se chama de intuitu personae, que estaria presente mesmo nas sociedades anônimas, ainda que de forma atenuada, em que não se prescinde saber quem são os acionistas ou os grandes responsáveis pela sociedade”.

33 Cf. Fabio Ulhôa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, 6.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, 380: “O contrato social, por sua vez, exemplifica o tipo dos plurilaterais. Nele, dois ou mais sócios assumem, cada um perante todos os

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pois não tem dois polos distintos com vontades a se oporem, mas várias partes (duas ou mais) em que as vontades convergem para um fim comum.

Affectio societatis constitui-se no desejo que os sócios têm em desenvolver uma atividade empresária, por meio da constituição de sociedade com outra (s) pessoa (s); não há, no conceito, diferença entre o Direito Romano e o Direito Brasileiro. Ousamos mesmo a dizer que até o caráter permanente da affectio societatis está presente, já que, como veremos, a sua ausência pode ensejar o direito a denúncia da sociedade por justa causa, ou o direito de liquidação das quotas.

Não há, no entanto, na legislação brasileira uma referência explícita a esse instituto, o que se dá por meio de construção doutri-nária. A sociedade constitui-se por meio do contrato social, e esse, sendo um negócio jurídico como todo outro34, requer o consenso como pressuposto de existência.

Observamos, na constituição da sociedade, as coincidências entre o atual Direito Brasileiro e o Direito Romano, no que toca à exigência de affectio societatis. O consenso é claramente necessário na formação do contrato social. E apesar de o Direito Brasileiro não conhecer essa formulação de um consenso permanente, como a sociedade por tempo indeterminado contempla um contrato de execução continuada, caso uma das partes não queira mais tomar parte no negócio, a ela é facultado deixar a sociedade, por força do princípio da livre associação - aqui também “vigente”35 - pelo qual

outros, obrigações relacionadas à exploração conjunta de atividade econômica. Passa, reflexivamente, a titularizar os direitos correspondentes a tais obrigações, também cada um perante os demais partícipes do ato”.

34 Cf. Modesto CArvAlhoSA, Comentários ao Código Civil, 32, p. 55-56: “É claro que, tratando-se de negócio jurídico, está o contrato de sociedade sujeito aos requisitos de sua validade em geral (art.104 do Código Civil de 2002)”.

35 Modesto CArvAlhoSA, Comentários ao Código Civil, 82: “O princípio constitucional da livre associação, assim como, mais especificamente, o da liber-

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todos são livres para associar-se, mas também não são obrigados a permanecerem associados se assim não o desejarem.

Como afirmávamos, a affectio societatis é um pressuposto de existência da sociedade empresária, e, portanto, está ligada ao pla-no de validade36 da mesma; a ausência de affectio societatis resulta em dissolução da sociedade, e não em sua declaração de inexistência, o que decorre em ter como válidos os atos praticados pela sociedade até a sua dissolução.

De fato, a affectio societatis como uma forma especial de con-sentimento37 não tem previsão legal38; porém, como forma de con-sentimento, pode ser encontrada dentro dos próprios requisitos de validade de um contrato comum, tendo em conta que a constituição de uma sociedade se dá por meio de contrato plurilateral que res-peita os requisitos do direito civil geral, dentro os quais o consenso.

A correta noção do instituto da affectio societatis terá reflexos ainda em alguns outros âmbitos da vida da sociedade; leia-se, es-pecialmente, na transmissão de quotas (inter vivos39 ou causa mortis40)

dade de associar-se ou de permanecer associado, devem ser compreendidos em um contexto amplo, cuja aplicação recai tanto sobre as associações como sobre as sociedades, sejam elas públicas ou privadas, civis ou comerciais”

36 Cf. Caio Mário da Silva PereirA, Instituições de direito civil, 477 “E tão re-levante é o papel da vontade na etiologia do negócio jurídico, que se procura iden-tificar a sua própria idéia conceitual com a declaração de vontade, constituindo-se desta forma a sua definição”.

37 Fabio Ulhôa Coelho, Curso de Direito Comercial, 33, 390.38 Tão somente podemos inferir do “Art. 981. Celebram contrato de

sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resul-tados”. Uma espécie de consentimento orientado para este fim.

39 “Art. 1.057. Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social”.

40 “Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo:I - se o contrato dispuser diferentemente;

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para além da dissolução da sociedade (parcial ou total)41. As causas de dissolução avençadas pelos incisos I a IV do art.

1033 são consideradas causas ex voluntate42. Fora essas hipóteses de dis-solução, há ainda uma dissolução parcial no caso de denúncia da so-ciedade, em relação a um sócio, prevista no art. 1029 do código civil.

O Direito Brasileiro, doutrinariamente entende o caso de transmissão de quotas (inter vivos ou causa mortis) e o caso de denún-cia da sociedade em relação a um sócio como sendo hipóteses de dissolução parcial da sociedade. Cuidamos de cada uma dessas hi-póteses de forma isolada, e então passamos à análise das hipóteses de dissolução total.

4.1. Na cessão de quotas

Importa ainda uma referência à distinção que se faz entre sociedades de pessoas e de capitais. A primeira seria aquela socie-dade em que a figura do sócio é mais importante no vínculo socie-tário. Os sócios querem unir-se em função de suas características pessoais e, portanto, querem formar sociedade com aquela pessoa, e não outra. Em uma sociedade de capitais, a figura do sócio e suas características pessoais não são tão importantes quanto o aporte de

II - se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade;III - se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio

falecido”.41 Cf. Modesto CArvAlhoSA, Comentários ao Código Civil, 32, 355: “Assim,

poderá o contrato social dispor que no caso de morte de algum dos sócios seus herdeiros serão admitidos na sociedade, não havendo nesse caso liquidação da quota do falecido. Pode, por outro lado, o contrato social de caráter marcada-mente personalista determinar a dissolução total da sociedade em razão da morte de um sócio em especial ou de qualquer deles, caso em que ocorrerá a liquidação total e não apenas da quota do falecido. E, por fim, a despeito de inexistência de previsão contratual de admissão dos herdeiros do pré-morto na sociedade, po-dem os sócios remanescentes, por ocasião do falecimento, entrar em acordo com os herdeiros para admitir seu ingresso na sociedade em substituição ao falecido”.

42 Modesto CArvAlhoSA, Comentários ao Código Civil, 32, 333.

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capital que elas irão investir. Importa não quem estará figurando no quadro societário, mas a realização do capital necessário ao desen-volvimento da atividade empresária43.

A cessão de quotas, especialmente na sociedade por respon-sabilidade limitada (tipo societário mais comum quando se trata de sociedade de pessoas) vai encontrar na legislação a possibilidade de não aceitação por parte dos sócios, que poderão rejeitar a entrada de novo sócio, ou herdeiro na sociedade, com a liquidação daquelas quotas e seu pagamento ao sócio dissidente. Essa é uma solução que pode ser prevista no contrato social, em sua omissão, a lei dispõe a necessidade de consentimento dos sócios na aceitação da transmis-são da quota44.

No caso de transmissão das quotas por causa mortis, o art. 1.028 do Código Civil Brasileiro dispõe pela liquidação de sua res-pectiva quota; porém, em seus incisos faculta que os sócios dispo-nham pela aceitação dos herdeiros, ou prevejam diferentemente no contrato social.

Existe ainda a opção de que a dissolução parcial da sociedade, em relação a um sócio, seja causa mortis ou denúncia por justa causa.

43 Cf. Fabio Ulhôa Coelho, Curso de Direito Comercial, 33, p. 23: “Evi-dentemente, não existe sociedade sem a presença desses dois elementos (sócio e capital), de forma que a classificação aqui examinada diz respeito à prevalência de um deles sobre o outro. Quer dizer, em algumas sociedades, a realização do objeto social depende fundamentalmente dos atributos individuais dos sócios, ao passo que, em outras, essa realização não depende das características subjetivas dos sócios. Nas primeiras, a pessoa do sócio é mais importante que a contri-buição material que este dá para a sociedade; nas últimas, opera-se o inverso: as aptidões, a personalidade e o caráter do sócio são irrelevantes para o sucesso ou insucesso da empresa explorada pela sociedade.” Ainda em Modesto CArvAlhoSA, Comentários ao Código Civil, 32, 34 “A classificação das sociedades entre sociedades de pessoas e sociedades de capitais, apesar de criticada por alguns autores, continua a ser mencionada e adotada para distinguir as sociedades conforme sejam constituídas em função do intuitu personae ou do intuitu pecuniae”.

44 Art. 1.003 do Código Civil Brasileiro.

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Nesses casos, fica claro que há uma liberação do vínculo societário daquele sócio unicamente e a sociedade não se extingue, porque se constitui em uma pessoa jurídica diferente dos sócios e em função do princípio da preservação da empresa45.

Aqui precisamos destacar que a solução do Direito Romano não é semelhante à nossa46, porque, como acima já discutimos, o Direito Romano não conheceu a sistematização da personalidade jurídica para as sociedades, tal como o Direito Brasileiro, que com o contrato social e seu registro no órgão competente prevê a criação de uma pessoa diferente da pessoa dos sócios, que adquire autono-mia no mundo jurídico. Portanto, no Direito Romano, na ausência de um sócio era extinto o contrato, e aos que desejassem continuar no desenvolvimento da atividade em conjunto, era obrigatória a re-alização de um novo contrato.

45 Princípio outrora implícito a significar como vemos em Fabio Ulhôa Coelho, Manual de Direito Comercial: Direito de Empresa, 23.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, 31: “no princípio da preservação da empresa, construído pelo moderno Direito Comercial, o valor básico prestigiado é o da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade), em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste” e consagrado (positivado) na Lei 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas), art. 47 in verbis: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

46 D.17,2,65,9: “Morte unius societas dissolvitur, etsi consensu omnium coita sit, plures vero supersint, nisi in coeunda societate aliter convenerit. Nec heres socii succedit: sed quod ex re communi postea quaesitum est, item dolus et culpa in eo quod ex ante gesto pendet tam ab herede quam heredi praestandum est.” (“A morte de um dos sócios dissolve a socieda-de, ainda que tenha sido constituída pelo consenso de todos e sobrevivam vários, salvo se ao ser contraída se tivesse convencionado de outro modo”).

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4.2. Denúncia da sociedade por justa causa

O Código Civil47 prevê, tal como o Direito Romano, a pos-sibilidade da denúncia da sociedade por justa causa48. Essa é um direito titulado pelo sócio que não deseja mais participar da so-ciedade, mas também não quer lançar mão da cessão de quotas, porque simplesmente entende que por justa causa tem direito a retirar-se dela.

Ainda pode haver denúncia da sociedade em relação a um sócio - consoante art. 1.030 do Código Civil - pelos demais, quando apresente uma justa causa que os faça entender que aquele deve ser retirado da sociedade; nessa justa causa podemos incluir a quebra da affectio societatis.

47 “Art. 1.029 (Código Civil Brasileiro). Além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo inde-terminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa”. Semelhante solução encontra-se na Lei 6.404/76, que disciplina a Sociedade por Ações, e - em uma manifestação clara de respeito à vontade do acionista, mesmo que em sede de uma sociedade de capitais – confere ao acionista o direito de retirar-se da sociedade: “Art. 109. Nem o estatuto social nem a assembléia-geral poderão privar o acionista dos direitos de: [I a IV – omissis]; V - retirar-se da so-ciedade nos casos previstos nesta Lei. ”, e: “Art. 137. A aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX do art. 136 dá ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor das suas ações (art. 45), observadas as seguintes normas: (...)”.

48 Cf. Modesto CArvAlhoSA, Comentários ao Código Civil, 32, p. 357 “Será justa causa para a denúncia unilateral da sociedade por prazo determinado pelo sócio o inadimplemento de obrigações sociais por parte de qualquer dos demais, que se agrave o suficiente para resultar na quebra da ‘affectio societatis’, rompendo o equilíbrio da relação sinalagmática do contrato plurilateral de sociedade.[...] É, portanto, necessário que haja um motivo relevante e irreconciliável para que possa o juiz permitir seu afastamento da sociedade, com a dissolução parcial desta e o pagamento de seus haveres. Esse motivo pode ser resumido na quebra da ‘affectio societatis’, sem a qual se inviabiliza a continuidade das atividades sociais”.

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4.3. Dissolução total da sociedade

O Código Civil Brasileiro prevê a dissolução da sociedade por diversos motivos49, dentre os quais destacamos dois, posto que diretamente ligados ao elemento consenso (objeto de nossa análise): o consenso unânime dos sócios, e a deliberação por sua maioria ab-soluta. O que essas duas hipóteses têm em comum (além do fato de serem na prática idênticas) é resultarem da perda da affectio societatis. Essa também era a solução dada pelo Direito Romano50.

Uma terceira hipótese de dissolução total por vontade dos sócios é encontrada no parágrafo único do art. 1.029 do referido di-ploma, que trata da denúncia por justa causa e possibilita aos demais sócios optarem pela dissolução total da sociedade após sua denúncia em relação a um sócio.

5. O tratamento da affectio societatis na jurisprudência brasileira

Expomos alguns julgados que tratam do tema, principal-mente do Superior Tribunal de Justiça, órgão incumbido de jul-gar, em última instância, os recursos de todos os tribunais cíveis brasileiros, na matéria.

49 “Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer:I - o vencimento do prazo de duração, salvo se, vencido este e sem

oposição de sócio, não entrar a sociedade em liquidação, caso em que se pror-rogará por tempo indeterminado;

II - o consenso unânime dos sócios;III - a deliberação dos sócios, por maioria absoluta, na sociedade de

prazo indeterminado;IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento

e oitenta dias;V - a extinção, na forma da lei, de autorização para funcionar”.50 D.17,2,65,3: “Diximus dissensu solvi societatem: hoc ita est, si omnes dissentiunt [...]”.

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5.1. A falta de rigor dos arestos

É inegável que existe grande confusão a este respeito, o que fica explícito em julgados como este, onde a affectio societatis, de con-senso que é, passa a ser confundida com a desavença entre os sócios:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇAO DE ANULAÇAO DE ALTE-RAÇAO DE CONTRATO SOCIAL QUE EXCLUIU SÓCIA MINORITÁRIA. DESAPARECIMENTO DA “AFFECTIO SO-CIETATIS “. ACÓRDAO. NULIDADE NAO CONFIGURADA. SENTENÇA. FUNDAMENTAÇAO APOIADA EM REPORTA-GEM EXTRA-AUTOS. EMBASAMENTO TAMBÉM EM PRO-VA COLHIDA EM AUDIÊNCIA. CPC, ARTS. 165, 458, II, 535, II E 131. SÚMULA N. 7-STJ. I. Não se configura vício no acórdão se o mesmo enfrentou as questões controvertidas, apenas com conclu-sões desfavoráveis à pretensão da parte autora. II. Conquanto referi-da, na fundamentação da sentença, reportagem publicada em revista semanal de grande circulação, cujo teor não consta dos autos, não padece de nulidade a decisão, por ofensa ao art. 131 do Código de Ritos, se a mesma serviu-se daquela apenas para corroborar a prova restante, colhida no curso da ação, onde ficou demonstrado o desapareci-mento da “affectio societatis”, pela pública e irremediável desavença entre os sócios da empresa, a não permitir a permanência da minoritária afastada. III.”A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso es-pecial”- Súmula n. 7-STJ. IV. Recurso especial não conhecido”. REsp 302.271/RJ, Rel. Ministro Aldir Passarinho Júnior, Quarta Turma, DJ 4/3/2002. (grifo nosso)

Neste julgado, a affectio societatis é desprezada a ponto de não ser considerada como justa causa para a dissolução da sociedade. Embora concorde com o resultado do julgado, a justa causa não é causa para a dissolução, mas de exclusão do sócio; importa observar de perto o voto da relatora para perceber que não é por força de um adequado tratamento do instituto que se chegou a esse resultado

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acertado (posto que se apoia em doutrina que visa extirpar a affectio societatis e privilegia o “fim social da empresa”)51. Transcrevemos a ementa e parte do voto:

“EXCLUSÃO. SÓCIO. QUEBRA. AFFECTIO SOCIETATIS. A Turma negou provimento ao recurso especial por entender que, no pedido de dissolução parcial de sociedade por cotas de responsabili-dade limitada, a alegação de quebra da affectio societatis não é suficiente para a exclusão de sócios. De acordo com a Min. Relatora, deve ser demonstrada a justa causa, ou seja, os motivos que ocasionaram essa quebra, comprovando-se o inadimplemento do dever de colaboração social e especificando-se os atos que teriam prejudicado a consecução do fim social da sociedade empresária. REsp 1.129.222-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28/6/2011. Info 479.” No voto da relatora: “Conforme deixa claro o acórdão recorrido, não se trata a presente de simples ação de dissolução de sociedade: os au-tores pretendem a exclusão dos réus do quadro societário da empre-sa. Para tanto, aduzem que houve perda da affectio societatis. E, segun-do o entendimento do tribunal de origem, a perda da affectio societatis autorizaria apenas a retirada dos autores, não a exclusão dos réus. Essa última, para ser deferida, exigiria a prova do descumprimento das obrigações sociais ou, pelo menos, de quem deu causa à quebra da affectio societatis. Sendo a sociedade em comento uma sociedade de pessoas, o liame originário da relação contratual que constitui a so-ciedade é ligação de cunho pessoal – a affectio societatis. Decorre desse tipo de relação que os sócios guardam entre originário da relação contratual que constitui a sociedade é ligação de cunho pessoal – a affectio societatis. Decorre desse tipo de relação que os sócios guardam entre si vínculos que extrapolam o mero interesse de empreender, transbordando para aspectos outros como confiança, afinidades etc. Essa ligação é um dos elementos essenciais do contrato de sociedade

51 Nomeadamente, de Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França e de Marcelo Vieira von Adameck, a que não tivemos acesso senão por via indireta. Ousamos, porém, entender o fim social da empresa como um princípio que rege o direito societário, enquanto a affectio societatis enquadra-se como pressuposto do negócio jurídico que embasa a sociedade.

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e, quando ela não se mostra mais presente, de maneira a prejudicar a continuidade da própria sociedade, porque impossibilita a conse-cução do fim social, admitia-se a sua dissolução com fundamento no art. 336, I , do Código Comercial. Essa dissolução não necessa-riamente será total, preferindo-se, aliás, que ela ocorra apenas em relação a algum ou alguns dos sócios, a fim de que a sociedade tenha continuidade com relação aos remanescentes. Trata-se do princípio da preservação da empresa. Assim, a dissolução parcial da sociedade, fundada na perda da affectio societatis, no sistema do Código Comer-cial, poderia ocorrer por intermédio do exercício do direito de retira-da ou pela exclusão de um dos sócios. Observe-se, contudo, que, na segunda hipótese, por se tratar de ato de extrema gravidade, exigia-se não apenas a alegação de rompimento da affectio societatis, mas a demonstração de uma justa causa, ou seja, de alguma violação grave dos deveres sociais, imputável ao sócio, que tenha acabado por gerar esse rompimento e, consequentemente, que justificasse a exclusão. [...] Observe-se, conforme esclarecido no item V, que, para a exclusão de sócio, não basta mera constatação da perda de affectio societatis. Faz-se necessária a demonstração da justa causa, ou seja, de um motivo relevante que justifique esse ato extremo. A perda da affectio societatis é apenas a consequência de um ou mais atos nocivos à consecução dos fins sociais da empresa, praticados por aquele que se pretende excluir, os quais devem ser demonstra-

dos” (grifo nosso)52.

Aqui vemos o respeito à affectio societatis em sede de Socie-dade Anônima, ainda que se trate de vínculo de capital e não de pessoas, que pode ser sentido nos seguintes julgados53:

52 Vide nota 48, para o entendimento de Modesto Carvalhosa, sobre o tema. E também Georges RiPert, Traité élémentaire de droit commercial, 6, 516: “La mésintelligence entre les associés est le motif le plus curieux: et c’est à propos de ce motif que l’on rappelle les idées d’affectio societatis et de jus fraternitatis. La mésintelligence n’est une cause de dissolution que si elle rend impossible la colaboration”. A nos indicar que a desavença entre os sócios é indício de rompimento do consenso, e que essa que-bra da affectio societatis é em si causa bastante de justa causa para fins de dissolução parcial da sociedade, e não o seu indício (a desavença).

53 Vide ainda o que aduzimos em nota 47 acima, bem como no entendi-mento de Carvalhosa explicitado na nota 32.

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“DIREITO SOCIETÁRIO E EMPRESARIAL. SOCIEDADE ANÔNIMA DE CAPITAL FECHADO EM QUE PREPON-DERA A AFFECTIO SOCIETATIS. DISSOLUÇÃO PARCIAL. EXCLUSÃO DE ACIONISTAS. CONFIGURAÇÃO DE JUS-TA CAUSA. POSSIBILIDADE.APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE. ART. 257 DO RISTJ E SÚMULA 456 DO STF. 1. O instituto da dissolução parcial erigiu-se baseado nas sociedades con-tratuais e personalistas, como alternativa à dissolução total e, portan-to, como medida mais consentânea ao princípio da preservação da sociedade e sua função social, contudo a complexa realidade das relações negociais hodiernas potencializa a extensão do referido instituto às sociedades “circunstancialmente” anônimas, ou seja, àquelas que, em virtude de cláusu-las estatutárias restritivas à livre circulação das ações, ostentam caráter familiar ou fechado, onde as qualidades pessoais dos sócios adquirem relevância para o desenvolvimento das atividades sociais (“affectio societatis”). (Precedente: EREsp 111.294/PR, Segunda Seção, Rel. Ministro Castro Filho, DJ 10/09/2007) 2. É bem de ver que a dissolução parcial e a exclusão de sócio são fenômenos diversos, cabendo destacar, no caso vertente, o seguinte aspecto: na primeira, pretende o sócio dissidente a sua retirada da sociedade, bastando-lhe a comprovação da quebra da “af-fectio societatis”; na segunda, a pretensão é de excluir outros sócios, em decorrência de grave inadimplemento dos deveres essenciais, co-locando em risco a continuidade da própria atividade social.3. Em outras palavras, a exclusão é medida extrema que visa à eficiência da atividade empresarial, para o que se torna necessário expurgar o sócio que gera prejuízo ou a possibilidade de prejuízo grave ao exercício da empresa, sendo imprescindível a comprovação do justo motivo. 4. omissis. 5. Caracterizada a sociedade anônima como fechada e per-sonalista, o que tem o condão de propiciar a sua dissolução parcial – fenômeno até recentemente vinculado às sociedades de pessoas -, é de se entender também pela possibilidade de aplicação das regras atinentes à exclusão de sócios das sociedades regidas pelo Código Civil, máxime diante da previsão contida no art. 1.089 do CC: “A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código.” REsp 917.531-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 17/11/2011. DJe 01/02/2012 (grifo nosso).

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“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. QUESTÕES PRELIMINA-RES. SUBSTABELECIMENTO. RENÚNCIA DO ADVOGADO SUBSTABELECENTE. CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO SUBSTABELECIDO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO. MORTE DE UM DOS RÉUS. AUSÊNCIA DE HABILITAÇÃO DOS SU-CESSORES. NULIDADE DOS ATOS PRATICADOS APÓS O ÓBITO. DESCABIMENTO. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. MÉRITO. DIREITO COMER-CIAL. SOCIEDADE ANÔNIMA. GRUPO FAMILIAR. INEXIS-TÊNCIA DE LUCROS E DISTRIBUIÇÃO DE DIVIDENDOS HÁ VÁRIOS ANOS. QUEBRA DA AFFECTIO SOCIETATIS. DISSOLUÇÃO PARCIAL. POSSIBILIDADE. I - Omissis. II – Omissis. III - É inquestionável que as sociedades anônimas são so-ciedades de capital (intuito pecuniae), próprio às grandes empresas, em que a pessoa dos sócios não têm papel preponderante. Contudo, a realidade da economia brasileira revela a existência, em sua grande maioria, de sociedades anônimas de médio e pequeno porte, em re-gra, de capital fechado, que concentram na pessoa de seus sócios um de seus elementos preponderantes, como sói acontecer com as socie-dades ditas familiares, cujas ações circulam entre os seus membros, e que são, por isso, constituídas intuito personae. Nelas, o fator do-minante em sua formação é a afinidade e identificação pessoal entre os acionistas, marcadas pela confiança mútua. Em tais circunstâncias, muitas vezes, o que se tem, na prática, é uma sociedade limitada tra-vestida de sociedade anônima, sendo, por conseguinte, equivocado querer generalizar as sociedades anônimas em um único grupo, com características rígidas e bem definidas. Em casos que tais, porquanto reconhecida a existência da affectio societatis como fator preponderante na constituição da empresa, não pode tal circunstância ser desconsiderada por ocasião de sua dissolução. Do contrário, e de que é exemplo a hipótese em tela, a ruptura da affectio societatis representa verdadeiro impedimento a que a companhia continue a realizar o seu fim, com a obtenção de lucros e distribuição de dividendos, em consonância com o artigo 206, II, “b”, da Lei nº 6.404/76, já que dificilmente pode prosperar uma sociedade em que a confiança, a harmonia, a fidelidade e o res-peito mútuo entre os seus sócios tenham sido rompidos. A regra da

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dissolução total, nessas hipóteses, em nada aproveitaria aos valores sociais envolvidos, no que diz respeito à preservação de empregos, arrecadação de tributos e desenvolvimento econômico do país. À luz de tais razões, o rigorismo legislativo deve ceder lugar ao princípio da preservação da empresa, preocupação, inclusive, da nova Lei de Fa-lências - Lei nº 11.101/05, que substituiu o Decreto-lei nº 7.661/45, então vigente, devendo-se permitir, pois, a dissolução parcial, com a retirada dos sócios dissidentes, após a apuração de seus haveres em função do valor real do ativo e passivo. A solução é a que melhor concilia o interesse individual dos acionistas retirantes com o princí-pio da preservação da sociedade e sua utilidade social, para evitar a descontinuidade da empresa, que poderá prosseguir com os sócios remanescentes. Embargos de divergência improvidos, após rejeita-das as preliminares.” EREsp 111294 / PR. Ministro Castro Filho. Segunda Seção. Data do Julgamento: 28/06/2006. DJ 10/09/2007, p. 183 (grifo nosso).

A affectio societatis se mostra como o principal argumen-to na necessidade de aceitação por parte dos sócios, em caso de transmissão das quotas:

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRA-TO CUMULADA COM PERDAS E DANOS. EXTENSÃO DA OBRIGAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS CON-TRATUAIS. REEXAME DE PROVAS. SÚMULAS NºS 5 E 7/STJ. AFFECTIO SOCIETATIS. RUPTURA. INEXEQUIBILI-DADE DO CONTRATO SOCIAL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INGRESSO EM SOCIEDADE LIMITADA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL. NÃO CABIMENTO. 1. Em ação de rescisão de con-trato cumulada com perdas e danos, o acórdão recorrido considerou que as obrigações cumpridas pela recorrida, nos termos do contrato preliminar, autorizavam sua inclusão no quadro societário da empre-sa da qual são sócios os recorrentes. Assim, determinou a alteração do contrato social a fim de incluí-la como sócia com base nas re-gras processuais que asseguram a concessão de tutela específica para

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o cumprimento da obrigação de fazer. 2. Omissis. 3. Em contrato preliminar destinado a ingresso em quadro de sociedade limitada, a discussão passa pela affectio societatis, que constitui elemento sub-jetivo característico e impulsionador da sociedade, relacionado à con-vergência de interesses de seus sócios para alcançar o objeto definido no contrato social. A ausência desse requisito pode tornar inexequível o fim social. Inteligência dos arts. 1.399, inciso III, do Código Civil de 1916 ou 1.034, inciso II, do Código Civil de 2002, conforme o caso. 4. Apresenta--se incabível provimento jurisdicional específico que determine o ingresso compulsório de sócio quando ausente a affectio societatis, motivo pelo qual se impõe a reforma do acórdão recorrido para decretar a resolução do contrato, a fim de que se resolva a questão em perdas e danos. Recurso especial provido em parte. Sentença restabelecida” REsp 1192726 / SC. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma. Data do Julgamento: 17/03/2015. DJe 20/03/2015 (grifo nosso).

“PROCESSO CIVIL. DIREITO EMPRESARIAL. RECURSO ES-PECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 NÃO CONFIGURADA. SO-CIEDADE LIMITADA. CESSÃO DE QUOTAS A TERCEIRO ESTRANHO AO QUADRO SOCIAL. OMISSÃO DO CONTRA-TO SOCIAL. ART. 1.057 DO CC. DIREITO DE OPOSIÇÃO. 1. A cessão de quotas sociais em uma sociedade por responsabilidade limitada deve observar regras específicas, previstas no art. 1.057 do CC, em cujo caput há permissão para que o contrato social franqueie tam-bém a terceiros não sócios o livre ingresso na sociedade - aproximan-do-se, assim, das sociedades de capitais – ou imponha condições e restrições de toda ordem à admissão do novo sócio, priorizando o elemento humano como fator de aglutinação na formação do ente social. De uma forma ou de outra, a previsão contratual em sentido diverso prevalece sobre o aludido preceito legal. 2. Quando o instru-mento de contrato social silenciar total ou parcialmente - embora a redação do art. 1.057 do CC não seja suficientemente clara -, é possível, desmembrando as suas normas, conceber a existência de duas regras distintas: (i) a livre cessão aos sócios; e (ii) a possibilidade de cessão a terceiros estranhos ao quadro social, desde que não haja a oposição de titulares de mais de 25% do capital social. 3. No caso, a validade do negócio jurídico vê-se comprometida pela opo-

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sição expressa de cerca de 67% do quadro social, sendo certo que o contrato social apresenta omissão quanto aos critérios a serem ob-servados para a implementação da cessão de posição societária, limi-tando-se a mencionar a possibilidade dessa operação na hipótese do não exercício do direito de preferência pelos sócios remanescentes. 4. Outrossim, consta da Cláusula Sétima que a comunicação da inten-ção de alienação das quotas aos demais sócios far-se-ia acompanhar de “outros dados que entender úteis” (fl. 674). Desse modo, causa certa estranheza o fato de os sócios remanescentes terem perquirido aos cedentes a qualificação dos cessionários e eles terem se recusado a fornecer, sob a mera alegação de que o contrato não os obrigava a tanto. Afinal, o pedido de esclarecimento consubstanciado na indicação do interessado na aquisição das quotas sociais, conquanto não fosse expressamente previsto no contrato social, era medida previsível e salutar, cujo escopo precípuo era justamente a preservação da affectio societatis e, em última instância, da ética, transparência e boa-fé objetiva, elementos que devem nortear as relações interpessoais tanto externa quanto interna corporis. 5. Recurso espe-cial provido. Prejudicadas as demais questões suscitadas.” REsp 1309188 / SP. Ministro Luis Felipe. Quarta Turma. Data do Julga-mento: 24/04/2014. DJe 15/08/2014 (grifo nosso).

5.2. Affectio societatis e boa fé

A referência à boa-fé no último julgado, obriga-nos a fazer uma referência a esse instituto, pois um dos grandes motivos que leva ao esvaziamento hoje da affectio societatis é a sua confusão com a boa fé, que, hoje consagrada como princípio de direito privado, é um princípio orientador dos contratos.

Também o Direito Romano conheceu a boa fé, no âm-bito dos chamados iudicia bonae fidei, e alguns chegaram a incluir o contrato de sociedade entre os contratos de boa fé, a par de ser contrato consensual54. São classificações diversas, e, portanto,

54 Cf., por ex., A. Santos JuSto, Direito Privado Romano, 13, 27, 73 e 79; José Carlos Moreira AlveS, Direito Romano, 477, 515 e 531; e António Alberto

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institutos diversos, embora guardem em comum a característica eminentemente subjetiva.

O consenso, porém, será exteriorizado com a manifestação de vontade aposta em contrato, e objetivado em outras circuns-tâncias. A boa fé permanecerá na consciência subjetiva e somente poderá ser percebida conforme o comportamento dos sócios, no decorrer da vida da sociedade e irá expressar-se em conduta ética, transparente e leal para com os sócios, a sociedade e terceiros.

6. Conclusão

Apesar de todos os contratos consensuais terem como pres-suposto de validade um elemento relacionado ao consenso, a affec-tio societatis é e deve continuar a ser uma espécie de consentimento qualificado, pois é ela que irá promover a diferenciação entre aque-les que ingressam em uma sociedade com animus de desenvolver uma atividade empresária e aqueles que ingressam em sociedade (e, portanto, com consenso) mas que não pretendem desenvolver uma atividade empresária suportando perdas e auferindo lucros, mas apenas “emprestam” seu nome, e personalidade para evitar a uni-pessoalidade da sociedade.

É inegável que no tratamento dos regimes de cessão de quotas, dissolução da sociedade (parcial e total) e denúncia da sociedade por (ou em relação a) um sócio, sentem-se os efeitos da presença ou ausência de affectio societatis, que, malgrado as confusões que o pensamento jurídico brasileiro nos tem proporcionado nessa seara, não pode ser (e nem foi) substituída pela noção de fim social, mas com ela se compõe, bem como com a noção de boa-fé, cada um

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em sua zona de atuação. E o que demonstramos ao longo deste trabalho é que o Di-

reito Romano conheceu esses assuntos, e cunhou as soluções que hoje utilizamos, o que nos leva a acreditar que o que nos falta, en-quanto juristas brasileiros, é a correta delimitação dos campos de cada um dos institutos aqui referenciados. O caminho traçado entre o Direito Romano, com o surgimento das sociedades, o tratamento jurídico dado a elas, e aí incluído o surgimento da affectio societatis demonstra em que de fato consiste esse instituto e assim podemos voltar a tratá-la com a devida acuidade de forma a evitar o seu esva-ziamento, e com isso as confusões que encontramos atualmente no debate e na realização do direito nessa seara.

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