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    PiagetPsicologia Gentica e Educao

    Marcus Vincius Da Cunha1

    Resumo: Este captulo apresenta as concepes fundamentais da Epistemologia Gentica de Jean Piaget, to-mando essa teoria como um paradigma

    2. Focalizando temas relativos ao

    desenvolvimento cognitivo e da sociabilidade, o captulo expe a viso de Piaget sobre a educao, discutindo as possibilidades de transposio da teoria piagetiana para a prtica educacional.

    Palavras-Chaves: Piaget. Psicologia Gentica. Prtica Educacional

    O suo Jean Piaget nasceu em Neuchtel em 1896 e morreu em Genebra em 1980. Bi-logo, interessou-se desde jovem por Filosoa, particularmente pelo campo da Epistemologia, em que so elaboradas e discutidas teorias do conhecimento

    Sua projeo nos meios acadmicos deu-se como psiclogo e educador, mas as inda-gaes fundamentais que originaram seu paradigma e nortearam suas pesquisas sempre estiveram prioritariamente vinculadas compreenso do Sujeito Epistmico e no do Sujeito Psicolgico. Embora tenha sido um homem preocupado com as graves questes de sua po-ca, entre elas a educao, o pesquisador genebrino no elaborou um mtodo pedaggico, o que muitos erroneamente julgam existir.

    Um Problema EpistemolgicoUm dos grandes temas da epistemologia saber como se passa de um estado de menor

    conhecimento para um estado de maior conhecimento, de um conhecimento de menor valor para um conhecimento de maior valor. Esse problema, que seduziu o jovem Piaget como seduz a todos os que se envolvem nessa rea, pode ser compreendido com base nas formula-es do lsofo Immanuel Kant.

    Consideremos que alguns conhecimentos s podem ser obtidos por meio do contato direto da pessoa com os dados do mundo emprico. Quando dizemos est chovendo l fora, esta uma armao proveniente da experincia de ter ido l fora e constatado um fato por intermdio dos rgos dos sentidos. Conhecimentos desse tipo so chamados a posteriori, uma vez que resultam de constataes empricas.

    1. Professor Associado da Universidade

    de So Paulo (Ribeiro Preto).

    2. Termo cunhado por Thomas Kuhn

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    Diferentemente, quando armamos que a linha reta o ca-minho mais curto entre dois pontos, expressamos um juzo a prio-ri, pois nada est sendo dito sobre uma linha em particular ou sobre dois pontos especcos. No preciso utilizar a experincia para comprovar tal armao, uma vez que ela universal e necessria: dados dois pontos quaisquer, o caminho mais curto entre eles ser sempre uma linha reta.3

    Os juzos a priori encontram-se tipicamente na geometria, como no exemplo acima mencionado, e tambm nas linguagens da matemtica e da lgica. Quando dizemos que 5 + 2 = 7, no estamos nos referindo a cinco laranjas mais duas laranjas ou a cinco casas mais duas casas. Estamos estabelecendo, isto sim, que cinco unidades de qualquer coisa que seja somadas a duas unidades da mesma coisa resultam em sete. Ao dizer se A = B e B = C, ento A = C, expressamos uma regra de transitividade que se aplica independentemente do que sejam A, B e C.

    Os juzos a priori so gerais, universais, necessrios, no variam de acordo com a subjetividade de quem os formula e nem conforme as condies do ambiente que cerca os fenmenos empricos. Conhecimentos desse tipo so tidos como vlidos justamente por se-rem aplicveis a quaisquer objetos, por serem normativos, por terem valor de regra para o pensamento.

    O problema epistemolgico que despertou a ateno de Piaget diz respeito a como se passa de um tipo de conhecimento a outro, como se transita de um estado, em que a arma-o s possvel mediante a manipulao de laranjas, casas etc., a outro estado, em que os enunciados esto alm disso. O pesquisador genebrino deixou, ento, o terreno estritamente losco e foi buscar resposta para essa indagao na experimentao cientca, tornando-se um pesquisador do desenvolvimento cognitivo da criana.

    Uma Psicologia da IntelignciaNo difcil perceber que o indivduo humano transita, ao longo de sua vida, de um

    estado de menor conhecimento para um estado de maior conhecimento. Pode-se levar uma criana pequena a concluir que 5 + 2 = 7 e que o trajeto mais curto entre dois pontos uma linha reta, mas para isso ser preciso, em um caso, permitir-lhe manipular objetos paliti-nhos de fsforos ou grozinhos de milho e, em outro caso, andar de uma cadeira a outra experimentando vrios trajetos, por exemplo. Anos mais tarde, esse mesmo indivduo tra-balhar mentalmente com esses enunciados, da matemtica e da geometria, como se fossem realidades indiscutveis, sem necessitar dos palitinhos e das cadeiras.

    O que Piaget percebeu que poderia responder quele problema epistemolgico se estudasse o progresso das categorias de conhecimento no decorrer da vida da pessoa, da in-

    3. Esta afirmao vlida

    para o universo concebido

    do ponto de vista da geome-

    tria euclidiana, pois outras

    geometrias, como a elabo-

    rada por Riemann no sculo

    XIX, apresentam vises al-

    ternativas.

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    fncia idade adulta. A psicologia da criana tornou-se assim o seu campo de estudos. Suas pesquisas nessa rea consistiram em compreender as categorias cognitivas desde os seus estados iniciais at as suas manifestaes mais elaboradas, o que o levou a uma teoria sobre o desenvolvimento da inteligncia.

    Dizemos, ento, que a Psicologia de Piaget foi elaborada tendo em vista a construo de sua Epistemologia. O termo Gentico, que adjetiva tanto sua Psicologia quanto sua Epis-temologia, no diz respeito transmisso de caracteres hereditrios, conotao que possui no campo biolgico. Gentico, aqui, refere-se ao modo de abordagem do objeto de estu-do, desde seu estado elementar sua origem, sua gnese at seu estgio mais adiantado, acompanhando cada uma das sucessivas etapas desse percurso. Por adotarem esse mesmo enfoque, outros paradigmas tambm recebem essa adjetivao, sendo a Psicologia de Piaget um deles.

    Os mtodos piagetianos de investigao diferem daqueles que eram e ainda so usualmente empregados por outras correntes de pesquisadores. Ao invs de medir a capaci-dade intelectual das crianas por meio de testes padronizados, muito comuns na Psicologia, Piaget recorreu a um procedimento que cou conhecido como abordagem clnica; uma en-trevista livre em que o pesquisador busca averiguar os fundamentos e processos relativos capacidade cognitiva de seus sujeitos experimentais.

    Os mtodos tradicionais de mensurao da inteligncia, geralmente, trazem questes pr-elaboradas s quais a pessoa deve responder. Dependendo de seu desempenho, dene-se o seu nvel intelectual, comparativamente populao para a qual o teste foi construdo. Costuma-se dizer que os testes de inteligncia fornecem uma boa fotograa, um retrato ins-tantneo da capacidade do indivduo, deixando a desejar no tocante sua dinmica.

    O que Piaget pretendia, em ltima instncia, era vericar os recursos mais ou menos dependentes da experincia que o indivduo necessita para elaborar seu pensamento. Os testes padronizados mostraram-se inteis nesse caso, porque de nada adianta saber o resulta-do, bom ou ruim, obtido por uma criana em questes, digamos, de clculo aritmtico, se no for possvel detectar o que a levou a isso. O mtodo piagetiano de pesquisa no consiste em medir a competncia intelectual, mas sim, em compreender como o indivduo formula suas concepes sobre o mundo que o cerca, como resolve problemas, como explica fenmenos naturais.

    Esse mtodo prev a formulao de problemas abertos, chamados provas operatrias, e a solicitao para que a criana os solucione, dando incio a dilogos entre pesquisador e pes-quisado. Ao lidar com crianas muito pequenas, que no podem ser interrogadas por meio da fala, recorre-se a observaes, acompanhadas de meticulosos registros, sobre o modo como elas solucionam problemas no-verbais. Por exemplo, observa-se a atitude do beb diante do brinquedo que cai de suas mos e desaparece de seu campo visual e analisa-se o fato como

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    se fosse a proposio de um problema. A criana vai procurar o brinquedo ou no? Caso o brinquedo seja escondido por um adulto em diversos lugares sucessivamente, a criana capaz de localiz-lo corretamente no ltimo local em que viu o objeto desaparecer ou vai procur-lo no primeiro em que foi ocultado?

    Uma Concepo de EducaoQuando falamos em mtodo piagetiano, estamos nos referindo a uma abordagem de

    pesquisa e no a uma estratgia de trabalho pedaggico, como acabamos de ver. Se qui-sermos buscar alguma analogia nesse terreno, entretanto, no ser difcil perceber que os procedimentos da pesquisa piagetiana inspiram atitudes em sala de aula bastante diferentes daquelas que seriam aprovadas por uma pedagogia tecnicista, voltada para a mensurao de resultados.

    Ao passo que o uso de testes psicolgicos padronizados est mais de acordo com uma viso tecnicista da aprendizagem, a perspectiva piagetiana vai ao encontro de processos pedaggicos em que os alunos so tratados de acordo com suas particularidades cogniti-vas. O que est em causa no o binmio acerto-erro nas atividades escolares, mas sim, o potencial dessas mesmas atividades para promover o progresso intelectual de cada um dos educandos.

    Mas realmente no mbito das teorias do conhecimento que se encontra a maior ani-dade das idias de Piaget com a educao escolar, mais precisamente com uma certa peda-gogia. Seus conceitos epistemolgicos fundamentam-se em concepes da esfera losca, originadas antes mesmo de sua poca, que consistem em considerar o conhecimento como possvel somente quando o Sujeito, aquele que ir conhecer, e o Objeto, aquilo que ser co-nhecido, relacionam-se de uma determinada maneira: o Sujeito age sobre o Objeto.

    Nessa perspectiva, temos, primeiramente, a existncia de algo que impulsiona o Su-jeito Epistmico em direo ao Objeto. Estando em nveis diferentes, como se houvesse um desequilbrio entre eles, o Sujeito naturalmente atrado pelo Objeto, como que para supe-rar o desnvel em que se encontram. O Objeto exerce presso perturbadora sobre o Sujeito, contribuindo para fornecer-lhe motivao interna e criar seu envolvimento pessoal com o Objeto, do que resulta o impulso para a ao. Em segundo lugar, temos a atividade do Sujei-to, que se traduz propriamente em atitudes de busca, desvendamento, pesquisa, enm, ao sobre o Objeto a ser conhecido.

    Ao visualizar essa concepo epistemolgica na sala de aula, compreendemos que o aluno deve ser despertado para a relevncia daquilo que vai ser ensinado. Relevncia pes-soal, imediata e no simplesmente formal. De nada adianta dizer a ele, como fazem muitos professores, que aquele assunto do currculo importante porque ser til mais tarde. Se no houver vnculos desaadores entre o indivduo e a matria de ensino, vnculos que ativem a

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    percepo do desnvel existente entre o aprendiz e o contedo escolar, o educando no ser impulsionado a estudar aquilo.

    No havendo motivao, o aluno deixa de se posicionar de modo ativo diante da ma-tria. O mesmo acontece quando o professor privilegia a passividade da criana e a leva a manter-se quieta, apenas ouvindo, como se o mundo pudesse escoar para dentro de seu c-rebro por meio da audio. Sem vontade e sem iniciativa para desvendar e descobrir, no h conhecimento.

    Observe-se que a esse ltimo processo corresponde uma concepo epistemolgica em que o Objeto inserido no Sujeito, como que depositado ou impresso em sua mente. O professor dita a matria, o aluno faz exerccios de xao do contedo e reproduz os tpicos solicitados na avaliao. O resultado disso no pode ser chamado de conhecimento, embora seja possvel vericar objetivamente que o Sujeito tem o Objeto retido em sua memria quando o estudante obtm uma boa nota na prova, por exemplo.

    Dizemos que esse outro processo no resulta em conhecimento porque ele no produz qualquer modicao no aprendiz. Para haver conhecimento, devemos conceber que o Su-jeito atue para superar o desequilbrio existente entre ele e o Objeto, isto , para colocar-se no nvel em que ainda no est. Por meio da ao que empreende para desvendar o Objeto, o Sujeito sofre mudanas internas, sai do estado atual de menor conhecimento e passa ao estado superior em que domina o Objeto. Essa mudana interna conhecimento, algo que no pode ser assegurado pelo processo em que o Objeto simplesmente depositado na mente do aluno.

    Essa concepo epistemolgica aproxima as idias de Piaget de todas as correntes pe-daggicas que enfatizam a atividade do educando e a estruturao de um ambiente escolar que corresponda s caractersticas pessoais do aluno seus interesses, sua personalidade, seu conhecimento cotidiano. Historicamente, as pesquisas de Piaget vieram endossar os mo-vimentos educacionais renovadores, contrrios ao chamado ensino tradicional verbalista, impositor de restries participao do aluno, centrado no saber supremo do professor. Vol-taremos a esse tema logo mais, aps analisarmos outros tpicos do paradigma piagetiano.

    Assimilao, Acomodao e EquilibraoVejamos, ento, os conceitos piagetianos que traduzem as categorias fundamentais da

    concepo de conhecimento assumida por Piaget, em que o Sujeito age sobre o Objeto. Piaget considerou que o processo de conhecer tem incio com o desequilbrio estabelecido entre Su-jeito e Objeto, porm suas pesquisas no contemplaram os fatores motivacionais, de natureza emocional e afetiva, ali envolvidos. Isto no signica que Piaget os tivesse negado, apenas que, como epistemlogo, concentrou sua ateno nos momentos seguintes do processo.

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    Segundo ele, para conhecer necessrio que Sujeito e Objeto estabeleam uma re-lao que envolve, na verdade, dois processos complementares e, s vezes, simultneos. O primeiro ocorre quando o Sujeito age sobre o Objeto na tentativa de conhec-lo por meio dos referenciais cognitivos que j possui. O Sujeito procura desvendar o Objeto trazendo-o para dentro desses referenciais, chamados esquemas cognitivos, ainda que estes sejam insu-cientes para dominar toda a complexidade do Objeto. A esse processo Piaget deu o nome de assimilao.

    Tomemos o caso em que uma criana j possui a capacidade de pegar alguma coisa, em que os movimentos da mo e dos dedos foram estabelecidos com base em alguma ex-perincia anterior ou mesmo devido ao reexo de preenso, com o qual todos os indivduos nascem. A criana dispe de uma ferramenta cognitiva, ainda que mal desenvolvida, que a capacita a agir sobre qualquer objeto passvel de ser pego por intermdio da mo. Ela pode, ento, assimilar qualquer objeto novo. Esse objeto novo, ainda desconhecido, ultrapassa a capacidade do esquema de pegar que a criana possui. Uma pequena bola, por exemplo, impor certas diculdades, mas ser assimilada, o que basta para dar incio ao processo de conhecer.

    O segundo processo chama-se acomodao e consiste nas modicaes sofridas pelo Sujeito em funo do exerccio assimilador desencadeado. O Sujeito tem, ento, seus esque-mas cognitivos alterados por causa da relao que mantm com o Objeto, o que representa um esforo adaptativo para superar o desnvel existente entre um e outro. Feito isso, chega-se ao estado de equilbrio entre Sujeito e Objeto.

    A criana de nosso exemplo ter que alterar seu esquema cognitivo de pegar, o que envolve novos posicionamentos da musculatura da mo e dos dedos para acomodar-se s ca-ractersticas especcas da bola. Aps algum tempo, dominar o objeto novo, chegando a um ponto de equilbrio com ele. A criana que atinge esse patamar no a mesma que comeou o processo, pois seu conhecimento sobre o mundo outro, maior e mais desenvolvido do que quando ainda no tinha agido sobre a bola.

    O equilbrio a que o indivduo chega com os objetos que o cercam nunca denitivo, uma vez que o mundo est sempre em mudana, lembra Piaget. O equilbrio, ainda que pro-visrio, representa conhecimento, mas logo seguido por novas situaes em que a pessoa novamente desaada, o que d incio a sucessivas assimilaes e acomodaes, mais conhe-cimento, outros desequilbrios e assim por diante.

    Biologia e AmbientePensar a escola por meio dos conceitos piagetianos implica visualizar o trabalho do

    professor como um conjunto de atividades que propiciem o desenvolvimento cognitivo. O professor responsvel por apresentar situaes desaadoras que permitam ao aluno per-

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    ceber o desequilbrio que h entre ele e os contedos das matrias escolares. Alm disso, cabe tambm ao professor organizar um ambiente de aprendizagem que favorea a ao do aprendiz sobre esses mesmos contedos.

    Mais adiante, veremos que essa formulao ainda muito geral, pois a transposio do paradigma piagetiano para a educao escolar pode dar margem a diversas possibilidades de ao pedaggica, inclusive abolir a denio prvia do que deva ser ensinado aos educandos. Por ora, analisemos uma outra questo tratada por Piaget e que tanto preocupa os professo-res: No seria a capacidade intelectual denida hereditariamente? No trabalho cotidiano do professor, essa uma pergunta que sempre vem tona, especialmente quando ele se depara com alunos que apresentam diculdades de aprendizagem. Ser que um ambiente bem or-ganizado no lar ou na escola suciente para que a criana desenvolva competncias cognitivas adequadas?

    Trata-se, aqui, da antiga polmica entre posturas tericas pr-deterministas e ambien-talistas. Os defensores das primeiras armam que a inteligncia um trao que herdamos geneticamente, ao passo que os outros defendem que o ambiente exerce sempre o papel mais importante, por maior que seja o peso dos fatores biolgicos.

    A descrio do processo de conhecer feita por Piaget traz em si a idia de que todos os indivduos conhecem por intermdio dos mesmos processos assimilao e acomoda-o. Para que haja conhecimento preciso que o indivduo estabelea contato ntimo com o contedo a ser aprendido e que se posicione ativamente frente a esse mesmo contedo, o que propiciar mudana em seus esquemas cognitivos. Esse processo ocorre em todos os momentos da vida da pessoa, diferentemente em cada faixa etria, mas independentemente do ambiente social e cultural em que o indivduo esteja inserido.

    Isso no signica que Piaget tenha aderido tese pr-determinista. O que ele arma que todos os seres humanos nascem com um potencial que os habilita a conhecer e que esse potencial o mesmo em todas as pessoas. Se h biologismo nessa armao, ela se deve ao fato de pertencermos todos espcie humana. Desse modo, todos nascemos tambm em condies de percorrer a mesma trajetria de desenvolvimento no tocante capacidade intelectual, do estado em que nosso conhecimento possui menor valor para o estado em que nosso pensamento elabora formulaes lgico-matemticas de maior valor.

    Se determinados indivduos exercitam adequadamente suas potencialidades e percor-rem, integralmente, a linha de desenvolvimento cognitivo para a qual esto biologicamente capacitados, essa uma questo que diz respeito ao ambiente em que vive a pessoa. Condi-es materiais e culturais de vida podero interferir, positiva ou negativamente, nessa traje-tria.

    Assim, Piaget posicionou suas idias sobre o desenvolvimento cognitivo de maneira a considerar tanto os aspectos biolgicos quanto os ambientais. Sem cair no extremismo das

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    teses pr-deterministas, mostrou que o indivduo , de certo modo, programado para inte-ragir com o mundo que o cerca e percorrer o caminho que leva competncia para pensar realidades situadas alm dos dados empricos imediatos. Sem aliar-se aos ambientalistas radicais, Piaget armou que o meio pode ser um fator decisivo na determinao de como o indivduo realiza sua inclinao biolgica.

    A escola um ambiente entre muitos outros que podem favorecer ou prejudicar o desenvolvimento intelectual. Por isso, cabe ao professor acreditar na potencialidade de seus alunos e organizar experincias que lhes possibilitem interagir com os saberes formalizados. A escola faz o papel de abrir caminhos para que a criana e o jovem entrem em contato com o mundo, de modo participativo e construtivo.

    A Teoria do Desenvolvimento CognitivoO desenvolvimento intelectual envolve a passagem do indivduo por quatro grandes

    perodos, vivenciados necessariamente em seqncia, conforme determinao biolgica, como j foi comentado. Cada perodo estabelece alicerces para o seguinte, de modo que as aquisies ocorridas em um constituem pr-condies para o seguinte.

    As pesquisas de Piaget o levaram a separar cada perodo por marcos cronolgicos, mas preciso ressaltar que essas idades demarcatrias so meramente indicativas e no ca-tegricas, como muitas vezes se pensa. Assim, pode-se dizer, por exemplo, que as crianas, em geral, passam do primeiro perodo para o segundo por volta dos 24 meses de vida, mas impossvel armar, sem um exame acurado, quando essa transio est ocorrendo em um determinado indivduo.

    O desenvolvimento, portanto, segue uma linha pr-denida, porm varivel de indiv-duo a indivduo no tocante ao ritmo em que ocorre. Variaes qualitativas tambm podem ocorrer, evidentemente, de uma pessoa a outra. No tocante educao, em particular a esco-lar, tais conceitos so relevantes porque impedem que o paradigma piagetiano seja tomado como um conjunto de formulaes aplicveis a todos os indivduos, indiscriminadamente.

    No se pode armar que determinado aluno j capaz de compreender certos conte-dos apenas com base na informao de que ele j tem oito anos, ou que no adianta ensinar certas coisas a outro, porque este ainda no tem 12 anos. A idade do aluno, como dado iso-lado, no indicador seguro de suas competncias e limitaes intelectuais.

    Se a inteno do professor a de adotar a teoria de desenvolvimento do paradigma pia-getiano, deve saber que ela fornece um quadro da trajetria cognitiva percorrida pelos seres humanos em geral o Sujeito Epistmico. Concluir alguma coisa sobre um aluno especco o Sujeito Psicolgico tarefa que exige domnio das habilidades de pesquisa prescritas pelo paradigma, o que implica treinamento especializado do professor, ambiente escolar ade-quado e certas disposies administrativas favorveis, o que nem sempre fcil encontrar.

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    Em que pese esta diculdade, inerente transposio da Psicologia Gentica de Piaget para a pedagogia, devemos observar que os obstculos mencionados tornam-se menores e superveis quando pensamos nas contribuies trazidas por suas teses prtica educacional. Se o professor tiver em mos um quadro, ainda que meramente indicativo, do desenvolvi-mento intelectual humano, poder ajustar a metodologia de ensino e os contedos das mat-rias escolares s caractersticas de seus alunos, o que trar grandes benefcios ao processo de aprendizagem e ao prprio funcionamento da escola.

    O Universo no RepresentadoA principal caracterstica do primeiro perodo de desenvolvimento, chamado senso-

    rial-motor, a inexistncia de representaes, imagens mentais dos objetos que cercam o indivduo. O conhecimento, nesse caso, constitudo por impresses que chegam ao orga-nismo por meio dos rgos dos sentidos e do aparelho motor. Podemos dizer, ento, que a criana age sobre aquilo que alcana com as mos, aquilo que ouve e v, aquilo que chega sua boca, sem, contudo, formar imagens mentais desses objetos.

    Nesse perodo, predomina o processo de assimilao que comea com o simples exer-ccio dos reexos, isto , com o acionamento de ferramentas inatas que possibilitam criana manter os primeiros contatos com os objetos e traz-los para dentro de seus referenciais cog-nitivos, ainda toscos e mal desenvolvidos. Assim, vo sendo formados esquemas cognitivos. Do reexo de preenso, por exemplo, forma-se um esquema de agarrar. Trata-se de uma mu-dana cognitiva ocasionada pela experincia, o que signica j estar ocorrendo o processo de acomodao, alm da assimilao.

    Vale lembrar que a trajetria do desenvolvimento intelectual, aqui descrita, refere-se quela indagao de natureza epistemolgica vista no incio deste captulo, traduzida pelo percurso que leva o indivduo do conhecimento emprico, de menor valor, ao conhecimento abstrato, de maior valor. Assim, o perodo sensorial-motor corresponde ao momento inicial em que a inteligncia encontra-se presa ao plano da experincia imediata. Nesse caso, presa materialidade absoluta, presena fsica dos objetos.

    Os vrios esquemas constitudos nesse perodo so, todos eles, esquemas de ao, pois no envolvem representaes. A criana desenvolve um esquema de olhar, de agarrar, de morder e assim por diante. Com o tempo, esses esquemas vo sendo coordenados, o que permite criana integr-los uns aos outros em determinadas seqncias olhar um objeto, segur-lo com a mo, lev-lo boca e mord-lo.

    Um dos experimentos clssicos de Piaget consiste em observar a atitude da criana quando um brinquedo cai de suas mos e desaparece de seu campo visual. Uma variao pode ser feita colocando-se um anteparo que oculta o brinquedo. O que acontece nessa situ-

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    ao que a criana no procura o objeto desaparecido, mesmo tendo visto seu desapareci-mento por trs de uma almofada, por exemplo.

    A concluso que o brinquedo deixa de existir quando no visto. Isso decorre, ob-viamente, do ponto de vista da criana, para quem a realidade depende das impresses sen-soriais que recebe. Note-se que a inteligncia, nesse perodo do desenvolvimento, sendo limitada experincia sensorial e motora, no capaz de emitir juzos mais abrangentes sobre o mundo, do tipo mesmo os objetos que no vejo existem.

    A inteligncia sensrio-motora permite aplicar os esquemas, ento coordenados, a si-tuaes novas. Uma criana que tenha adquirido o esquema de agarrar e chacoalhar seu travesseiro poder experiment-lo com um brinquedo que faz barulho, o que signica ape-nas a repetio de uma conduta habitual em que os meios, que so os esquemas de agarrar e chacoalhar, no tm relao com os ns no caso, produzir um som.

    Um pouco mais tarde, ainda durante o primeiro perodo, os esquemas cognitivos arti-culam-se dando mostras de serem guiados por alguma intencionalidade. O fato de o universo da criana ser restrito s impresses sensoriais e motoras, nesse momento, impede que ela anteveja o alcance pleno de suas aes, mas j existe alguma distino entre os meios em-pregados e os ns obtidos.

    Trata-se daquilo que Piaget denominou reaes circulares, procedimentos que se repe-tem seguidas vezes. Inicialmente, apenas para fazer durar um espetculo interessante para a criana, como quando agarra um cordo que pende sobre seu bero e o puxa, fazendo balanar um mbile que produz som. Caso seja colocada diante de uma situao nova e des-conhecida, a criana poder aplicar esse procedimento aos objetos que ali se encontram para tentar resolver um problema, ocasio em que novas condutas podem instalar-se.

    Um experimento interessante consiste em colocar uma almofada prxima criana e sobre ela um brinquedo, de modo que este que inacessvel s suas mos. A criana aplica almofada esquemas que j possui, como agarrar e puxar, ocasionando a aproximao do brinquedo. Desse modo, rma-se uma nova conduta, no caso, a chamada conduta do suporte, que consiste em puxar uma plataforma para obter algo que esteja sobre ela. Isto signica que houve acomodao dos esquemas cognitivos, provocada por experimentao ativa. Nas pr-ximas vezes em que estiver diante do mesmo problema, provvel que ela puxe a almofada para alcanar o objeto distante.

    Representao, Linguagem e SocializaoImaginemos uma criana que ainda no domine a conduta do suporte e que, colocada

    diante da almofada com o brinquedo, no aplique mecanicamente esquemas j conhecidos. Essa criana tem uma atitude de meditao, como se raciocinasse para solucionar o problema e, em seguida, apanha a almofada e a puxa para si, obtendo acesso ao brinquedo.

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    O resultado desse outro experimento indica que a criana desenvolveu uma conduta complexa por meio da inveno. Ela inventou um meio totalmente novo para obter determi-nado m, sem precisar empregar a experimentao ativa. Inventar signica combinar es-quemas mentais, o que quer dizer que essa criana est na ltima fase do perodo sensorial-motor, j ingressando no perodo seguinte.

    A caracterstica mais marcante do segundo perodo de desenvolvimento a representa-o, a transformao de esquemas e esquemas combinados de ao em esquemas repre-sentativos. Aquelas competncias intelectuais que, no primeiro perodo, desenvolveram-se como aes, posteriormente, completam-se por meio de correspondentes imagens mentais e simblicas.

    Nesse perodo, ocorre o progresso mais sensvel da linguagem oral. Inicialmente, a criana identica certos objetos, pessoas e aes a palavras pertencentes a um universo muito particular e especco. Seu cachorrinho tot, sua me mam e tomar a mamadeira mam. Com o passar do tempo, porm, comea a empregar palavras que designam catego-rias de objetos, pessoas e aes. Todos os cachorrinhos so cachorros, todas as mames so mes e ingerir qualquer lquido beber.

    No decorrer do segundo perodo, dos dois aos sete anos de idade, aproximadamente, a linguagem vai deixando de ser composta por expresses representativas muito particulares e passa a empregar expresses socialmente convencionadas. Ao passo que tot pertence ao universo do primeiro tipo, cachorro o termo que se convencionou usar, nesta cultura, para identicar uma categoria de objetos os ces. A comunicao, no mais fundamentada no indivduo, passa a ser baseada no grupo social.

    Essa transformao indica uma mudana nos esquemas representativos, que se tornam cada vez mais adaptados ao meio social em que a pessoa vive. Ao longo desse perodo, a criana desenvolve a capacidade para entabular conversas, sempre mais inteligveis, com outras pessoas, sendo possvel trocar pontos de vistas, opinies e impresses de ambas as partes, o que um avano na socializao do indivduo. A linguagem por smbolos, expres-so do vocabulrio caracterstico da criana, torna-se uma linguagem por signos, composta por elementos representativos tpicos de uma cultura.

    Alm de revelar um signicativo progresso na capacidade intelectual de representar o mundo, o desenvolvimento da linguagem mostra tambm o incio da transio do ego-centrismo para a socializao, um processo que, como veremos adiante, no se completa ao trmino desse perodo, por volta de sete anos de idade.

    O Universo ConcretoO perodo que acabamos de ver recebe o nome de pr-operatrio, pois o que o carac-

    teriza a impossibilidade de a criana utilizar seus esquemas representativos para realizar

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    operaes mentais. Uma operao constituda por vrias propriedades, entre as quais est a reversibilidade, muito mencionada por Piaget e demonstrada no experimento da gua co-locada em recipientes de formatos diferentes.

    Imaginemos um tubo no e alto, de um lado, e uma vasilha larga e baixa, de outro. Se enchermos o tubo com gua e em seguida despejarmos seu contedo na vasilha, teremos obviamente a mesma quantidade de lquido nas duas situaes. Dizemos que o resultado dessa operao bvio no s porque vemos a gua saindo de um lugar e indo para outro, mas porque, ao v-la no segundo recipiente, somos capazes de fazer mentalmente a opera-o inversa e compreender, assim, tratar-se da mesma quantidade de lquido que h pouco ocupava o tubo.

    Nessa prova operatria, ser bem sucedida a pessoa cuja capacidade cognitiva dominar a reversibilidade. A criana que se encontra no perodo pr-operatrio confunde a quantida-de de gua, que a mesma nos dois momentos, com o formato dos recipientes. Ela pode res-ponder que h mais lquido no tubo, porque ele mais alto, ou que tem mais gua na vasilha, por causa das dimenses de sua superfcie.

    Isto ocorre porque o pensamento da criana ainda no tem suciente mobilidade para reverter a operao realizada. Numa analogia, dizemos que seu pensamento funciona como uma mquina fotogrca que registra duas situaes distintas a gua no tubo no e alto, e a gua na vasilha baixa e larga , e no como uma lmadora que permite reverso das cenas gravadas.

    Ao trmino do perodo pr-operatrio, por volta de sete anos de idade, a criana j in-tui operaes. Ela capaz de exibir reversibilidade de pensamento na prova operatria acima descrita, por exemplo, mas diante de outra prova, que exige a mesma competncia cognitiva, pode falhar. Isso signica que ela est em vias de ingressar no terceiro perodo, cuja caracte-rstica essencial o desenvolvimento da capacidade de realizar operaes.

    Nesse novo perodo, que vai dos sete aos doze anos, aproximadamente, o pensamento da criana ganha a maleabilidade que no possua, sendo capaz de operar mentalmente com esquemas de ao que at o momento eram apenas representados. Com base nas aquisies sensoriais e motoras do primeiro perodo, a criana consegue percorrer um trajeto dentro de sua casa. Mais tarde, descreve o trajeto percorrido, dada capacidade de formar a imagem mental de suas aes, capacidade esta adquirida no segundo perodo. Nesse perodo, j con-segue elaborar, mentalmente, o trajeto inverso, do ponto nal ao ponto de incio.

    Ao longo do tempo, as operaes vo sendo articuladas como realidades necessrias. Diante de uma prova operatria como a do lquido que ui de um recipiente para outro, a criana arma com total certeza o seu resultado, chegando mesmo a suspeitar de que se trata de alguma brincadeira de mau gosto, alis que esteja sendo feita com ela. Mais ainda, a

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    criana torna-se capaz de compreender uma operao independentemente de esta ser reali-zada na sua frente.

    Isto quer dizer que o desenvolvimento do indivduo j est bastante adiantado, se o compararmos com a incapacidade do beb para ir alm do universo empiricamente dado. Entretanto, as operaes mentais que podem ser realizadas nesse momento ainda possuem um carter concreto, isto , precisam j ter feito parte da experincia emprica do indivduo. Advm disso, a denominao desse terceiro perodo de operatrio-concreto.

    O carter concreto das operaes signica que os esquemas cognitivos do indivduo so ferramentas de assimilao que, ainda, dependem de dados empricos. Estes dados no precisam estar imediatamente presentes, acessveis aos rgos dos sentidos, mas devem j ter estado em algum momento anterior, possibilitando a formao de esquemas representa-tivos. Do ponto de vista epistemolgico, as ferramentas cognitivas ainda no funcionam em nveis tais que permitam conhecimentos de valor normativo.

    A Psicologia Gentica na EscolaConforme j foi assinalado, sob a perspectiva do paradigma piagetiano a educao

    deve contribuir para desenvolver as competncias cognitivas do educando. Tendo em vista o que cada perodo de desenvolvimento requer, a tarefa do professor inclui organizar ativi-dades que viabilizem o progresso intelectual de seus alunos nas diferentes etapas da escola-rizao.

    Na condio de paradigma cientco, a Psicologia Gentica no se dedica a instruir os educadores sobre a elaborao dessas atividades. Para serem tomadas como Psicologia da Educao, as idias de Piaget necessitam ser transpostas para o terreno da prtica peda-ggica, o que exige seu aproveitamento em estudos e pesquisas que elaborem metodologias especcas a serem aplicadas situao escolar o que no possvel analisar detidamente neste livro.

    No plano mais geral, no entanto, podemos dizer que o paradigma piagetiano sugere, para as etapas pr-escolares, que todo o empenho deva ser voltado para possibilitar o percur-so do pensamento pr-operatrio ao pensamento operatrio-concreto. O dilema entre alfabe-tizar ou no a criana nessa fase, por exemplo, no deve ser resolvido de modo padronizado, quer armativamente, quer negativamente, mas sim mediante avaliao de cada aluno, em particular. Alfabetizar, bem como ensinar operaes aritmticas, algo possvel de ser feito com crianas que j dominam certas habilidades cognitivas, concluso a que no se chega tomando-se, exclusivamente, a idade cronolgica de cada uma.

    O mesmo princpio deve ser seguido pelo professor que trabalha com crianas na faixa etria de sete a doze anos que, geralmente, cursam o primeiro ciclo do ensino fundamental.

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    Nessa etapa da escolaridade, o que se requer que o indivduo progrida nas habilidades operatrio-concretas de pensamento. Um ensino que valorize excessivamente a transmisso de contedos formalizados pode incorrer no equvoco de faz-lo por meio de formulaes puramente verbais, algo que a criana, em geral, ainda no domina.

    Nesse perodo operatrio-concreto, como j foi dito, o indivduo s opera mentalmente com dados que j tenham feito parte de sua experincia e que possam ser mentalmente ma-nipulados. Uma informao, como as caravelas de Cabral atravessaram o Oceano Atlntico em 1500, pode perfeitamente ser compreendida se o professor tomar o cuidado de oferecer referenciais concretos para a criana uma gravura que represente a embarcao mencio-nada e outros materiais que lhe permitam visualizar o que um oceano e entender o marco cronolgico empregado na frase, por exemplo.

    Caso contrrio, o aluno pode decorar a informao e repeti-la quando solicitado, mas isto no ser conhecimento de fato se ele no tiver contato concreto com os vrios compo-nentes da orao. Se o professor no empregar procedimentos didticos adequados s limita-es do pensamento, o processo de ensinar e aprender restringe-se verbalizao, audio e reproduo de contedos. Os limites so sempre dados pelo desenvolvimento da criana, que nesse momento s capaz de operar com realidades representadas desde que estas este-jam ancoradas em referenciais concretos.

    Fazer abstraes, formular hipteses, desenvolver raciocnios lgico-matemticos, por exemplo, so habilidades ainda no adquiridas no perodo operatrio-concreto. A criana capaz de entender uma formulao genrica como se A = B e B = C, ento A = C somente quando substitumos estes termos por objetos que ela conhea. Ela pode, a partir da, passar do concreto para o formal, evidentemente, mas isto no signica que seu pensamento j tenha compreendido essa formulao lgica como necessria. As expresses lgico-matemticas ainda no constituem regras para o pensamento.

    O Universo FormalEntre os 12 e os 16 anos de idade, aproximadamente, o indivduo vivencia o desen-

    volvimento do quarto perodo, chamado operatrio-formal. Sua principal caracterstica a transformao dos esquemas cognitivos at ento organizados, capazes de realizar opera-es concretas, em esquemas que operam com base em realidades apenas imaginadas como possveis.

    Observe-se que desde o incio estamos tratando de aes do Sujeito sobre o Objeto, aes em que os processos de assimilao, acomodao e equilibrao acabam por tornar o indivduo mais adaptado ao mundo que o cerca. Trata-se de uma adaptao ativa, como j vimos, pois na concepo piagetiana no existe o indivduo como mero receptculo de inu-

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    ncias ambientais. A trajetria do desenvolvimento elaborada por Piaget traduz o percurso que capacita o indivduo a compreender melhor a realidade que o cerca para poder participar de sua transformao.

    Essa capacidade de adaptao ativa atinge seu pice no ltimo perodo de desenvolvi-mento cognitivo. Esse o ponto mais alto da trajetria, pois a competncia para pensar na esfera de um universo formal isto , no limitado ao existente dota o indivduo de maior competncia para entender o mundo e contribuir para sua mudana.

    De fato, na esfera do desenvolvimento intelectual do indivduo, podemos vericar que o pensamento formal permite uma compreenso superior da realidade. Sabemos que no primeiro perodo o universo da criana limita-se s impresses sensoriais e motoras. Ela capaz de pegar um brinquedo, empurr-lo para um determinado lugar e pux-lo de volta, por exemplo, mas disto no resulta nenhuma representao mental. H progressos cognitivos nesse perodo, evidentemente, mas eles traduzem uma interao ainda precria com o mun-do, mesmo no tocante aos fenmenos fsicos.

    No segundo perodo, como vimos, j h representao de aes, mas a pouca male-abilidade do pensamento impede que o indivduo compreenda, por exemplo, a reversibili-dade dessas mesmas aes, o que signica uma capacidade limitada de entender o mundo circundante. As aquisies operatrias do terceiro perodo so signicativas, porm nada se compara ao momento em que a lgica torna-se uma regra para o pensamento e a experincia emprica deixa de ser necessria para a resoluo de problemas.

    O universo concreto, at ento hegemnico, nalmente superado no decorrer do perodo operatrio-formal. As operaes assumem carter proposicional, permitindo ao in-divduo raciocinar de maneira totalmente abstrata e elaborar mentalmente hipteses, ou seja, possibilidades sobre eventos ainda no ocorridos. Integra suas possibilidades de pensamento at mesmo aquilo que ele no acredita que possa existir.

    Nessa fase, comum o jovem imaginar sociedades alternativas, sistemas loscos perfeitos e caminhos prossionais ainda no percorridos. Abre-se, para a pessoa, todo um horizonte novo de perspectivas de vida e de transformao, de si mesmo e do mundo, reali-dades que ela comea a dominar por meio de recursos intelectuais mais avanados.

    Embora no tenha dedicado suas pesquisas temtica dos afetos, Piaget chegou a dizer que as angstias desse momento, a chamada crise da adolescncia, so determinadas pelo futuro, ao contrrio do que pensava Freud, para quem essa problemtica era decorrente do retorno de desejos reprimidos na infncia como j vimos no primeiro captulo deste livro. Ao visualizar o futuro, sem ter meios para realiz-lo, o jovem, muitas vezes, revolta-se contra autoridades e situaes estabelecidas.

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    Na escola, esse o momento em que os contedos das matrias podem, nalmen-te, ser apresentados de modo verbal, sem necessidade de parmetros concretos para serem compreendidos. As noes matemticas podem ser vistas por meio de frmulas abstratas, demonstradas to somente por intermdio de smbolos genricos, como x, y, z. O racioc-nio hipottico-dedutivo, necessrio ao entendimento dos procedimentos cientcos, torna-se possvel mesmo sem a demonstrao emprica correspondente.

    Se por um lado, o trabalho do professor parece assim facilitado, por outro, preciso ressaltar a necessidade de denir de que modo os contedos das matrias escolares devem ser apresentados. A seqncia ideal dos conhecimentos formalizados, respeitadas as pecu-liaridades do desenvolvimento de cada aluno no decorrer do perodo operatrio-formal, um tema que abre inmeras frentes de pesquisa para os estudiosos que buscam transportar o paradigma piagetiano para a prtica pedaggica.

    Devemos ressaltar que os resultados dessas investigaes no so importantes apenas para o desenvolvimento intelectual dos educandos expresso que adquire conotao muito estreita para alguns pedagogos. O trabalho de adequao dos contedos escolares refere-se ao desenvolvimento intelectual, sim, mas preciso ver que, por seu intermdio, a escola auxilia na construo de ferramentas cognitivas fundamentais para a insero ativa do in-divduo na sociedade em que vive, para que ele possa compreender os processos sociais e polticos em que est envolvido e, assim, contribuir para seu aperfeioamento.

    Vale lembrar, ainda, que no decorrer desse perodo, e no logo no incio, que o indi-vduo adquire as competncias do pensamento formal. Trata-se de uma longa transio que, idealmente, ocorre durante os anos da adolescncia. Assim, entre a quinta srie do ensino fundamental e as primeiras do ensino mdio, o professor deve atentar para a gradativa in-sero de contedos que exigem tais competncias, podendo trabalhar justamente para que a mencionada transio acontea da melhor maneira possvel.

    A Teoria da SociabilidadeA trajetria do desenvolvimento intelectual, do pensamento sensorial-motor s ope-

    raes formais, acompanhada pelo desenvolvimento da sociabilidade do indivduo. Esse tpico do paradigma, usualmente menos comentado que os demais, fundamental porque acrescenta relevantes contribuies a uma Psicologia da Educao inspirada na psicognese piagetiana. Por seu intermdio, podemos entender com maior clareza a viso educacional e social de Piaget.

    Segundo a concepo de Piaget, todas as crianas vivenciam uma fase inicial em que so incapazes de distinguir o seu eu dos objetos e pessoas circundantes algo semelhante ao que vimos na teoria freudiana, no primeiro captulo deste livro. Logo nos primeiros meses de vida, entretanto, comea a formar-se a percepo do eu, o que d incio de fato ao pro-

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    cesso de socializao. O primeiro momento desse processo traz o predomnio absoluto do eu, quando todo o universo objetos, pessoas, fenmenos fsicos etc. compreendido pela criana com base em seu ponto de vista exclusivo, como se tudo girasse em torno dela, o que Piaget denominou egocentrismo.

    O percurso da sociabilidade a passagem desse estado egocntrico, em que o indiv-duo compreende o mundo exclusivamente com base em seus pontos de vista particulares, a um estado de plena socializao, em que a pessoa interage com a realidade que a cerca se-gundo categorias de julgamento elaboradas coletivamente. No incio, as aes da criana so conduzidas por esquemas sensrio-motores e destinadas satisfao unicamente individual, ao passo que, mais tarde, so aes reetidas, pensadas e articuladas por meio de parmetros do grupo social.

    Esse momento nal atingido no decorrer do perodo das operaes formais, teori-camente entre 12 e 16 anos, e consiste na aquisio da capacidade de cooperao com os outros. Ao lembrar que esse o perodo em que o pensamento torna-se capaz de elaborar formulaes abstratas sobre a realidade, compreendemos que tal progresso intelectual s se torna possvel por intermdio da descentrao do indivduo, isto , pelo desenvolvimento da competncia para enxergar as coisas por meio de vrios e diversos ngulos, sob pontos de vista que ultrapassam o eu.

    Assim, Piaget mostrou que o desenvolvimento cognitivo e o da sociabilidade cons-tituem um mesmo processo, cujo pice a adaptao ativa do indivduo ao mundo, o que ocorre no estabelecimento de relaes com a realidade material e social. A interao do Sujeito com o Objeto e com outros Sujeitos a nica fonte do verdadeiro conhecimento e do pleno desenvolvimento psicolgico, o que quer dizer partilhar competncias cognitivas, em condies de igualdade com o grupo social, para compreender, objetivamente, a realidade.

    O ponto mais alto do desenvolvimento da sociabilidade tambm o da personalidade atributo usualmente visto como exclusivamente individual. A personalidade encontra-se verdadeiramente estruturada quando se d a plena integrao do indivduo coletividade. Para pensar, o indivduo emprega parmetros que superam a viso egocentrada, chegando ao estado em que as normas construdas coletivamente norteiam seus julgamentos morais. Esse estado chama-se autonomia e no traduz sujeio pura e simples do individual ao social, como pode parecer. Logo mais, voltaremos a esse tpico quando analisarmos a concepo de sociedade adotada por Piaget.

    Egocentrismo, Coao e JustiaConforme assinalamos em seo anterior, entre dois e sete anos de idade, o egocen-

    trismo da criana vai sendo, aos poucos, superado. Os progressos da fala socializada so indcios desse processo, mas o centramento no eu ainda prevalece at o nal do perodo. Para

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    melhor compreender o processo de socializao, Piaget analisou o relacionamento da criana com as normas vigentes no grupo social a que pertence e concluiu que, no decorrer desse tempo, o indivduo passa por dois estados marcantes.

    No primeiro estado, a criana incapaz de apreender as regras existentes, como se o universo social fosse, para ela, um universo sem normas. Nesse estado de anomia, isto , de desconhecimento das regras, a participao da criana em uma brincadeira qualquer ou em um jogo infantil, por exemplo, no conduzida pela dinmica prpria da atividade, social-mente elaborada, mas sim, pelo prazer individual. Enquanto est no perodo sensorial-motor, esse prazer exclusivamente fsico, ao passo que, no perodo pr-operatrio, a satisfao advm do manejo dos instrumentos simblicos que comeam a ser adquiridos.

    Quando em situao de grupo, a criana brinca para si, joga para si, sem se importar com os companheiros, como se cada um estivesse praticando uma atividade diferente. O dilogo entre crianas costuma ser um monlogo coletivo, uma pseudoconversa em que o interlocutor parece ser o outro, mas realmente no . O egocentrismo impede que o indivduo estabelea interaes que permitam a troca de impresses sobre as coisas, devendo prevale-cer, exclusivamente, o seu ponto de vista.

    No segundo estado, a criana enxerga as ordens dos mais velhos como leis imutveis, como obrigaes morais, quadro que Piaget chamou de respeito unilateral e realismo moral. Os conceitos morais, sobre o certo e o errado, so vistos pelo indivduo como exteriores a ele, ao que se d o nome de heteronomia. Ao participar de uma brincadeira ou um jogo, a criana submete-se s regras, sendo incapaz de question-las. As regras so imperativas, como se no fossem o que realmente so, isto , meras convenes estabelecidas por uma pessoa ou comunidade em um certo momento histrico para um determinado m.

    As mesmas consideraes feitas a propsito do desenvolvimento cognitivo valem para a sociabilidade. O paradigma piagetiano concebe a existncia de uma propenso biolgica para atingir o estgio nal em que o indivduo torna-se melhor adaptado realidade, mas no nega a inuncia das condies ambientais nesse processo. Assim, embora todas as pessoas estejam aptas a atingir o ponto considerado mais elevado da socializao, as instituies educacionais, notadamente a famlia e a escola, podem interferir ocasionando o insucesso de algumas.

    Vejamos o caso em que pais ou professores assumem atitudes de coao criana, imposies que, pela fora da autoridade, exigem obedincia cega. O resultado desse proce-dimento to comum alimentar a tendncia natural da criana ao respeito unilateral, o que refora o egocentrismo infantil e diculta a socializao. Observe-se que a idia piagetiana de socializao diz respeito a um estado em que o indivduo participa ativamente e perce-be-se como participante da elaborao das regras que comandam a vida social.

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    No caso em que h coao, a criana pode at mascarar seu comportamento para aten-der s ordens adultas, mas no consegue internalizar noes sobre o certo e o errado, uma vez que as normas so mantidas exteriores a ela. Seus julgamentos morais no avanam na direo desejvel, rumo autonomia, o que diculta o desenvolvimento da noo de justia.

    Tomemos o exemplo em que a seguinte questo proposta a uma criana: quem mere-ce maior castigo, a pessoa que disse uma mentira facilmente identicvel como vi um ca-chorro do tamanho de um cavalo ou a pessoa que alega estar com dor de cabea para no ir escola? Para ns, o primeiro caso resultante, apenas, de uma analogia, no constituindo propriamente uma mentira, ao passo que o segundo , de fato, um artifcio moralmente con-denvel. A criana, no entanto, poder considerar menos grave a alegao da dor de cabea, uma vez que a falsidade no pode ser ali descoberta.

    Esse exemplo mostra que a idia de justia pode estar dominada pela exterioridade da regra e pela noo de responsabilidade objetiva, por valores impostos arbitrariamente pelo adulto e no por uma moral internalizada. Para a criana, ca valendo a regra em si errado mentir e no a intencionalidade da ao, o que a leva a compreender que s o ato passvel de ser desmentido merece castigo. Como conseqncia, atitudes delituosas podem ser cometidas, desde que no sejam vistas pelo adulto, o que reete a ausncia de parmetros internos de julgamento.

    A Cooperao na EscolaNas relaes cotidianas praticamente impossvel que o adulto no utilize o recurso

    da imposio de sua vontade, seja no contexto familiar, seja escolar, mas a teoria de Piaget chama a ateno para os cuidados a serem tomados quanto ao uso da autoridade. Estamos falando aqui da autoridade empregada sem critrio, como instrumento que impede a criana de perceber as razes pelas quais deve proceder de uma maneira e no de outra.

    No se trata de advogar que a famlia e a escola devam abandonar o estabelecimento de limites para as atitudes da criana. Ocorre que se os limites forem apresentados como frutos da vontade inquestionvel dos mais velhos, eles podem levar ao reforo da heteronomia e do respeito unilateral, dicultando a percepo de que a escolha entre o certo e o errado no deve submeter-se a julgamento externo, mas sim, a critrios internalizados pela pessoa. Mais ainda, ca obscurecida a percepo de que as regras so convenes criadas para facilitar a vida social em determinadas circunstncias e que podem, assim, ser mudadas, dependendo da vontade coletiva.

    Somente em torno dos sete anos de idade, a criana comea a adquirir capacidade para entender dessa maneira o mundo das normas, congurando-se, ento, o segundo momento do processo socializador. Dali por diante, j possvel incentivar cada vez mais as atividades de trabalho cooperativo, razo pela qual Piaget foi partidrio do trabalho em grupos na esco-

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    la. Para ele, prejudicial o ambiente escolar em que a criana permanea em atitude passiva e solitria, como depositria dos saberes adultos, mera reprodutora daquilo que ouve, sem poder exercitar o contato social com seus pares.

    Alm dos motivos j apontados em outra seo deste livro, compreende-se porque Pia-get posicionou-se contrariamente ao ensino tradicional. A aplicao dos velhos moldes edu-cacionais s eciente para produzir pessoas incapazes de compreender a realidade segundo pontos de vista que no sejam os seus pessoas egocntricas e no cooperativas, portanto, o que se reete no tipo de sociedade que iro contribuir para formar.

    O marco dos sete anos de idade no implica que as etapas pr-escolares abandonem o trabalho em equipes. O professor deve sempre incentivar atitudes grupais cooperativas, mas precisa estar ciente de que o egocentrismo ento predominante impede que esse exerccio al-cance plenos resultados. Ao longo das primeiras sries do ensino fundamental, com crianas de idade por volta de 12 anos, essas prticas vo sendo cada vez mais efetivas, ajudando de-cisivamente o progresso da sociabilidade infantil. Em geral, aps a quinta srie e no ensino mdio que temos o perodo mais frtil da socializao.

    Genericamente, pode-se dizer que a cooperao, como recurso pedaggico, coloca em prtica a tese piagetiana de que no conhecimento aquilo que o educando adquire passiva-mente e, mais ainda, que impossvel conhecer um objeto qualquer por meio de um nico ponto de vista. O trabalho em equipes permite que os alunos atuem sobre os saberes a se-rem aprendidos, pesquisem, busquem novas fontes de informao, levantem dados sobre os contedos escolares e, principalmente, faam tudo isso trocando idias, uns com os outros, trabalhando cooperativamente na construo do conhecimento.

    Dilemas ConstrutivistasConforme j foi armado aqui, embora no tenha elaborado um mtodo pedaggico,

    Piaget vinculou sua Psicologia Gentica a idias de renovao educacional. A transposio de seu paradigma para a educao escolar foi feita, em um primeiro momento, pelo prprio Piaget e por vrios autores, no corpo do movimento conhecido como Escola Nova, processo que ocorreu tambm no Brasil a partir da dcada de 1930.

    O que integra todas as iniciativas de apropriao desse paradigma pelos educadores a concepo de conhecimento inerente a ele. A epistemologia piagetiana permite que a escola considere o educando como sujeito ativo e construtor de seu prprio saber, o que vai ao encontro de todas as pedagogias que valorizam a autonomia, a liberdade e o autogoverno como caractersticas a serem incentivadas no estudante.

    As teses piagetianas, no entanto, tm contribudo para concepes educacionais muitas vezes divergentes, embora reunidas sob os mesmos princpios gerais. Sabemos que, atual-

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    mente, o construtivismo a corrente pedaggica responsvel pela grande projeo das idias de Piaget, mas sob essa denominao abrigam-se duas grandes vertentes de pensamento, as quais originam, por sua vez, diversas possibilidades de prticas pedaggicas. Essas vertentes so o construtivismo radical e o desajuste timo, conforme denominao do pesquisador espanhol Csar Coll.

    A primeira considera que no cabe escola planejar, antecipadamente, aquilo que a criana vai aprender. No deve haver currculo, portanto, pois todo conhecimento advm da livre atividade do educando. Quem conduz o processo de ensino o aluno, cando o profes-sor incumbido de organizar condies para que essa atividade acontea de modo espontneo. Nesse caso, o processo de avaliao incide exclusivamente sobre o desenvolvimento cogniti-vo da criana, podendo ser usadas as provas operatrias piagetianas para isso.

    Ao desprezar o valor dos contedos das matrias escolares, o construtivismo radical comumente criticado por colocar em plano secundrio todo o saber desenvolvido pela huma-nidade ao longo de sua histria e, mais ainda, por acreditar que a criana pode elaborar, es-pontaneamente, os conhecimentos bem como conceitos e juzos morais de que necessita para integrar-se socialmente. Ao invs de ser um processo socializador destinado a integrar o indivduo na sociedade, a educao torna-se um procedimento psicologizante.

    A segunda vertente, igualmente construtivista e inspirada em Piaget, busca escapar dessa crtica tomando os saberes formalizados como instrumentos para promover o desen-volvimento cognitivo da criana. Diferencia-se da anterior por empregar os tpicos da pro-gramao de ensino como recursos para evidenciar o desequilbrio em termos piagetianos entre o aluno e o objeto a ser conhecido.

    Um minucioso trabalho de seleo e ordenamento dos tpicos das matrias faz-se ne-cessrio para que os conhecimentos a serem ensinados no estejam no mesmo nvel das aquisies j feitas pelo aluno, o que no despertaria sua motivao. Esses conhecimentos no podem estar, tambm, em nvel to acima que superem as possibilidades inerentes s estruturas cognitivas j adquiridas. Vem da a denominao de desajuste timo dada a essa tendncia.

    Ambas as vertentes so construtivistas por adotarem a concepo piagetiana de co-nhecimento, mas pode-se notar que originam modos bastante diferentes de organizao do trabalho escolar. Se considerarmos as nalidades sociais e polticas que sempre fazem parte da escola, vericamos que as duas situam-se em posies igualmente distintas. Ao passo que a inclinao no-diretivista do construtivismo radical impede a previso de metas educacio-nais, a vertente do desajuste timo contempla a possibilidade de planejar o tipo de indivduo que a educao escolar almeja obter.

    No se trata, claro, de um planejamento moda tecnicista como vimos no captulo anterior deste livro , mas a opo por trabalhar com os contedos permite certos nortea-

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    mentos quanto aos ns sociais e polticos a serem atingidos. O aprendiz, nesse caso, constri seu prprio conhecimento, uma vez que se relaciona livremente com os objetos dispostos no ambiente escolar, contudo o simples fato de esses objetos serem denidos pelo professor j exibe a tendncia, fraca porm reconhecvel, a um certo diretivismo o que no acontece na vertente construtivista radical.

    Essas vertentes apresentam, para o professor, um dilema que transcende o mbito estritamente cientco, pois o paradigma piagetiano mostra-se sucientemente amplo para conter modelos educacionais divergentes. O dilema em questo no diz respeito s concep-es originrias do paradigma, propriamente ditas, mas ao modo como os educadores as transportam para a realidade social e cultural, norteados pelos projetos, esperanas e crenas que possuem nesse campo.

    Educao e SociedadeO professor interessado em utilizar a Psicologia Gentica como ferramenta prossional

    deve estar ciente no apenas das contribuies cientcas desse paradigma. As implicaes e os dilemas trazidos pelas teses piagetianas manifestam-se claramente quando se pretende utiliz-las na edicao de um sistema educacional comprometido com a obteno de uma nova ordem social.

    Ao reetir sobre esses temas, Piaget posicionou-se rmemente a favor de uma socie-dade em que pessoas iguais debatam livremente suas idias e denam regras morais pela via do consenso, o que exclui o emprego da coero de uns sobre outros. O estgio mais desen-volvido da sociabilidade individual reete justamente essa concepo, conforme j vimos, e no traduz submisso pura e simples da pessoa aos ditames do grupo. assim porque, para Piaget, indivduo e coletividade constroem-se mutuamente em ambiente democrtico.

    Como organizar o ambiente escolar para favorecer o mximo desenvolvimento inte-lectual e social de todos, eis a questo a ser resolvida pelos educadores. A grande tarefa da educao, atualmente, parece ser a de encontrar o equilbrio ideal entre liberdade e controle. Para tanto, o programa de ensino deve atuar como base na espontaneidade plena e absoluta do esprito infantil ou por meio de contedos escolares que traduzam a experincia humana acumulada, sem, no entanto, imprimir verdades prontas e acabadas na mente do estudante, moda do ensino tradicional.

    Os defensores da primeira via dizem que a construo do indivduo e da sociedade no pode ser limitada de forma alguma, ou no ser uma construo de fato. Nessa perspectiva, deve-se respeitar integralmente as decises das crianas e dos jovens, bem como a moral resultante de sua interao com a realidade. Nesse pensamento, reside a crena em um senso de justia inerente ao ser humano e na liberdade como mtodo para traz-lo tona.

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    Os que alinham com a segunda alternativa temem que a liberalidade sem regras possa dar margem a caminhos indesejveis e assumem o risco de nortear a relao entre a criana e o mundo. Acreditam que ao organizar os contedos escolares com olhos crticos, o educador pode evitar que erros cometidos pela humanidade no passado sejam repetidos. preciso, en-to, conduzir, ainda que de forma branda, o conhecimento a ser adquirido pelos estudantes.

    Por m, a viso piagetiana pode ser interpretada como ideologia, uma vez que apresenta um mundo cooperativo e consensual, enquanto a ordem so-cial conhecida por ns caminha a passos largos para o conito generaliza-do entre os segmentos que a compem. Visto desse modo, Piaget no faz mais do que ocultar as mazelas do sistema excludente e autoritrio em que vivemos, o que serviria para perpetu-lo. Ou talvez, sua concepo no passe de uma iluso sociolgica, reexo de um universo idealizado que jamais existiu, nem existir.

    Mas Piaget tambm pode ser compreendido como o epistemlogo que elaborou ins-trumentos tericos para incentivar a luta dos educadores, e de todos os cidados, por uma sociedade e uma escola mais justas e igualitrias. Nesta direo, suas idias tornam-se um legado para todos os que acreditam na possibilidade de uma educao escolar transformado-ra, que propicie liberdade de pensamento e ao para todas as crianas e jovens, e contribua para a construo de um novo mundo no futuro.

    Originalmente publicado em:CUNHA, M.V. Psicologia da Educao. Rio de Janeiro: Editora Lampari-

    na, 2008. ISBN-13: 9788598271507. (sic)

    BibliografiaCOLL, C. O construtivismo na sala de aula. So Paulo : tica, 1999

    MACEDO, L. Ensaios construtivistas. So Paulo : Casa do Psiclogo, 1994.

    PIAGET, J Para onde vai a educao? Rio de Janeiro : J. Olympio : UNESCO, 1974

    ______A construo do real na criana. Rio de Janeiro : Zahar, 1975

    ______A formao do smbolo na criana :imitao, jogo e sonho, imagem e representao. Rio de Ja-neiro : Zahar, 1975

    ______ O nascimento da inteligncia na criana. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

    ______O Julgamento moral na criana. So Paulo : Mestre Jou, 1977.

    ______A Epistemologia gentica; Sabedoria e iluses da losoa; Problemas de psicologia gentica. So Paulo : Abril Cultural, 1983.

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    vdeo da TV Cultura

    texto em anexo

    Formao Geral Educao, Cultura e DesenvolvimentoBloco1 Mdulo 2 Disciplina 8

    Psicologia da Educao