complexidade, interdisciplinaridade e saber ambiental

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  • 8/19/2019 Complexidade, interdisciplinaridade e saber ambiental

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    309Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(2): 309-335, 2011.Disponível em

    Complexidade, interdisciplinaridade e saber ambiental*

    Complexity, interdisciplinarity and environmental knowledge

    Enrique Leff**

    **  Professor da Universidade Nacional Autônoma do México e Coordenador da Rede de Formação

    Ambiental para a América Latina e Caribe do PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio

    Ambiente. E-mail: .

    * Artigo publicado em PHILIPPI JR., Arlindo (Org.). Interdisciplinaridade em ciências ambientais. São Paulo :

    Signus, 2000.

    Resumo: O artigo se propõe a realizar uma re!exão crítica sobre os marcos conceituais e as bases

    epistemológicas da questão ambiental, os quais podem impulsionar uma prática da interdisciplinaridade

    mais aprofundada e bem fundamentada em seus princípios teóricos e metodológicos, orientada ao ma-

    nejo, gestão e apropriação dos recursos ambientais.

    Palavras-chave: Complexidade. Formação ambiental. Interdisciplinaridade. Saber ambiental.

    Abstract: This article proposes to undertake a critical re!ection on the conceptual frameworks and the

    epistemological basis of environmental issues, which can stimulate an interdisciplinary practice that

    is more in-depth and well-grounded in theoretical and methodological principles and is more aimed at

    management and the ownership of environmental resources.

    Keywords: Complexity. Environmental training. Interdisciplinarity. Environmental knowledge.

    Interdisciplinaridade e formação

    ambiental: antecedentes e

    contribuições da América Latina

    A questão ambiental, com a sua com-plexidade, e a interdisciplinaridade emergem

    no último terço do século XX ("nais dos anos

    60 e começo da década de 70) como proble-

    máticas contemporâneas, compartilhando o

    sintoma de uma crise de civilização, de uma

    crise que se manifesta pelo fracionamento do

    conhecimento e pela degradação do ambien-

    te, marcados pelo logocentrismo da ciência

    moderna e pelo transbordamento da econo-

    mização do mundo guiado pela racionalida-

    de tecnológica e pelo livre mercado.A crise ambiental e a crise do saber

    surgem como a acumulação de “externalida-

    des” do desenvolvimento do conhecimento

    e do crescimento econômico. Surgem como

    todo um campo do real negado e do saber

    desconhecido pela modernidade, reclaman-

    do a “internalização” de uma “dimensão am-

    biental” através de um “método interdisci-plinar”, capaz de reintegrar o conhecimento

    para apreender a realidade complexa.

    A Bomba Populacional de PaulEhrlich (1968), o Congresso de Nicesobre Interdisciplinaridade de 1968(APOSTEL et al, 1975), a Teoria Geral

    de Sistemas de BERTALANFFY (1968),

    O  Homem Unidimensional de HerbertMarcuse(1968),  Da Gramatologia, deDerrida (1967),  A Arqueologia do Saber,

    de Michel Foucault(1969), são indicadoresda eclosão até "nais dos anos 60 de uma

    nova consciência ecológica frente ao

    logocentrismo, a racionalidade tecnológica

    DOI: 10.5212/OlharProfr.v.14i2.0007

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    Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(2): 309-335, 2011.Disponível em

    e a crise do crescimento econômico e

    populacional. Em princípios dos anos 70,Nicolás Georgescu Roegen (1971) publica

     A Lei da Entropia e o Processo Econômicoe se difunde mundialmente o estudo do

    Club de Roma, Os Limites do Crescimento(MEADOWS et al, 1972), marcando os

    limites que a natureza impõe à racionalidade

    econômica.

    Com esses antecedentes, a Conferên-

    cia das Nações Unidas sobre o Meio Am-

    biente Humano, celebrada em Estocolmo em

    1972, lança uma cruzada em favor do meioambiente; ao mesmo tempo, porém, reconhe-

    ce que a solução da problemática ambiental

    implica mudanças profundas na organização

    do conhecimento. Dessa forma, propõe-se o

    desenvolvimento de uma educação ambien-

    tal fundada em uma visão holística da reali-

    dade e nos métodos da interdisciplinaridade.

    Assim, em 1975 se estabelece o

    Programa Internacional de Educação

    Ambiental (PIEA), patrocinado pela

    UNESCO e pelo Programa das Nações Unidaspara o Meio Ambiente (PNUMA). Mais tarde,

    na Conferência Intergovernamental sobre

    Educação Ambiental, celebrada em Tbilisi

    em 1977, estabelecem-se as orientações

    gerais da educação ambiental, fundada em

    princípios da interdisciplinaridade como

    método para compreender e restabelecer

    as relações sociedade-natureza (UNESCO,

    1980). O PIEA buscou incorporar uma

    “dimensão ambiental” nas diferentes

    disciplinas, assim como nos métodos deinvestigação e nos conteúdos do ensino

    formal e informal, em Nessa perspectiva,

    reconhece-se que os problemas ambientais

    são sistemas complexos, nos quais intervêm

    processos de diferentes racionalidades,

    ordens de materialidade e escalas espaço-

    temporais. A problemática ambiental é

    o campo privilegiado das inter-relações

    sociedade-natureza, razão pela qual seu

    conhecimento demanda uma abordagem

    holística e um método interdisciplinar quepermitam a integração das ciências da

    natureza e da sociedade; das esferas do ideal

    e do material, da economia, da tecnologia e

    da cultura (UNESCO, 1986).1

    Nessa re!exão epistemológica e me-

    todológica sobre a complexidade e a inter-

    disciplinaridade nas relações sociedade-

    -natureza, tem predominado uma visão

    naturalista, biologista e ecologista (MORIN,

    1973, WILSON, 1975); no campo da educa-

    ção ambiental, a atenção tem se concentradonos problemas de conservação dos recursos

    naturais, na preservação da biodiversidade

    e na solução dos problemas da contamina-

    ção do ambiente. Paulatinamente passou-se

    da noção de ambiente que considera essen-

    cialmente os aspectos biológicos e físicos,

    a uma concepção mais ampla, que dá lugar

    às questões econômicas e sócio-culturais,

    reconhecendo que, se os aspectos biológicos

    e físicos constituem a base natural do am-

    biente humano, as dimensões socio-culturais

    e econômicas de"nem as orientações concei-

    tuais, os instrumentos técnicos e os compor-

    tamentos práticos que permitem ao homem

    compreender e utilizar melhor os recursos da

    biosfera para a satisfação de suas necessida-

    des (UNESCO,1980).

    A partir desses princípios, na América

    Latina ocorreu um forte impulso para a

    re!exão e para a promoção da formação

    ambiental, através de uma série de seminários

    organizados pelo Centro Internacional de

    1 A educação relativa ao ambiente... tem como meta

    permitir ao ser humano compreender a natureza com-

    plexa do ambiente, tal como esta resulta da interação

    de seus aspectos biológicos, físicos, sociais, econômi-

    cos e culturais. Em consequência, deverá oferecer os

    meios para interpretar a interdependência desses diver-

    sos elementos no espaço e no tempo, para favorecer

    uma utilização mais sensata e prudente dos recursos do

    universo para a satisfação das necessidades da humani-

    dade. (UNESCO/UNEP 1985)

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    Formação em Ciências Ambientais (CIFCA)

     – programa conjunto do PNUMA com ogoverno da Espanha que funcionou desde

    1976 até 1983 – e pela Rede de Formação

    Ambiental para América Latina e Caribe,

    do PNUMA, desde seu estabelecimento em

    1981. Esses esforços levaram à organização

    do Primeiro Seminário sobre Universidade

    e Meio Ambiente, organizada pela Rede

    de Formação Ambiental e pelo PIEA em

    Bogotá, em 1985, que estabeleceu as bases

    para o desdobramento de diversos programas

    de investigação e estudo nas universidades

    da região, orientadas pelos princípios da

    “interdisciplinaridade ambiental” (PNUMA,

    1985; PNUMA/ UNESCO, 1988).

    Hoje pode-se identi!car na região daAmérica Latina e Caribe diversos programas“interdisciplinares” de investigação e forma-ção ambiental (PNUMA, 1995), nos quais sedesenvolvem estratégias acadêmicas e expe-riências muito diferentes. Reconhecendo osavanços feitos na investigação e na formaçãoambiental que demandam a interdisciplina-

    ridade como fundamento teórico e guia pe-dagógico, é possível a!rmar que são poucosos programas que trabalham a problemáticaepistemológica e metodológica da interdis-ciplinaridade para fundamentar seus progra-mas de investigação e de estudo2. Mesmo

    2  Existem honrosas exceções e importantescontribuições, como as pesquisas realizadas no Institutode Estudos Ambientais da Universidade Nacional deColômbia; as pesquisas em torno do doutorado emMeio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade

    Federal do Paraná (ZANONI; RAYNAUT, 1994,FLORIANI, 1998) e do Programa de Pós-Graduaçãoem Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo(JACOBI, 1999); as re"exões que fundamentam aspesquisas do Centro de Investigações Ambientais daUniversidade Nacional de Mar del Plata e o mestradoem Gestão Ambiental do Desenvolvimento Urbanonessa Universidade, assim como nas Universidadesde Comahue e Córdoba na Argentina (FERNÁNDES,1999). Além disso, as contribuições à análise dainterdisciplinaridade e à construção e aplicaçãode métodos interdisciplinares de investigação

    que tenham sido abertos espaços de forma-

    ção ambiental (ainda marginais) nas univer-sidades, a interdisciplinaridade se incorpora,na maior parte das vezes, como um princípioque se satisfaz com a multiplicidade de te-mas ambientais introduzidos no currículo.

    A re"exão em torno dos problemas doconhecimento que apresenta a questão am-biental foi orientado para a incorporação deum saber ambiental emergente nos paradig-mas “normais” de conhecimento (das disci-plinas cientí!cas estabelecidas), buscando

    com isso estabelecer bases para uma gestãoracional do ambiente (LEFF et al, 1986). Daconcepção de uma educação ambiental fun-dada na articulação interdisciplinar das ciên-cias naturais e sociais, se avançou para umavisão da complexidade ambiental aberta adiversas interpretações do ambiente e a umdiálogo de saberes. Nessa visão se con"uema fundamentação epistemológica e a via her-menêutica na construção de uma racionali-dade ambiental que é mobilizada por um sa-

    ber ambiental que se inscreve em relaçõesde poder pela apropriação social da naturezae da cultura (LEFF, 1986, 1994b, 2000).

    A interdisciplinaridade implica assimum processo de inter-relação de processos,conhecimentos e práticas que transborda etranscende o campo da pesquisa e do ensinono que se refere estritamente às disciplinascientí!cas e a suas possíveis articulações.Dessa maneira, o termo interdisciplinaridadevem sendo usado como sinônimo e metáfora

    de toda interconexão e “colaboração” entrediversos campos do conhecimento e dosaber dentro de projetos que envolvem tantoas diferentes disciplinas acadêmicas, comoas práticas não cientí!cas que incluem asinstituições e atores sociais diversos. É

    desenvolvidos na América Latina (FOLLARI,1982;GARCÍA, 1986, 1994; NOVO e LARA, 1997),  quepermeiam e dão suporte a muitos projetos de pesquisae formação ambiental nas universidades da região.

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    comum que diversos centros e organizações

    não-governamentais, dedicados não só àeducação e à formação ambiental comotambém à assessoria e promoção deprojetos de desenvolvimento (regional,social, comunitário), se autodenomineme se assumam como centros de estudosinterdisciplinares (exemplo disso é o ForoLatino-Americano de Ciências Ambientaisna Argentina, ou o Centro de EstudosRegionais Interdisciplinares no Paraguai).

    Neste contexto, a noção de interdis-

    ciplinaridade se aplica tanto a uma práticamultidisciplinar (colaboração de pro!ssionaiscom diferentes formações disciplinares), as-sim como ao diálogo de saberes que funcionaem suas práticas, e que não conduz direta-mente à articulação de conhecimentos disci-plinares, onde o disciplinar pode referir-se àconjugação de diversas visões, habilidades,conhecimentos e saberes dentro de práticasde educação, análise e gestão ambiental, que,de algum modo, implicam diversas “discipli-

    nas”– formas e modalidades de trabalho – ,mas que não se esgotam em uma relação en-tre disciplinas cientí!cas, campo no qual ori-ginalmente se requer a interdisciplinaridadepara enfrentar o fracionamento e a superespe-cialização do conhecimento.

    Essas considerações colocam a neces-sidade de voltar a uma re"exão crítica sobreos marcos conceituais e as bases epistemo-lógicas que podem impulsionar uma práticada interdisciplinaridade mais aprofundada e

    mais bem fundamentada em seus princípiosteóricos e metodológicos, orientada ao ma-nejo, gestão e apropriação dos recursos am-bientais.

    A crise ambiental como problema

    do conhecimento: estratégiasepistemológicas e apropriação de

    saberes

    Hoje se a!rma que, graças à moderni-dade, à Revolução Cientí!ca e ao processode globalização impulsionado pela revolu-ção cibernética e informática, o homem en-tra em uma nova etapa civilizatória: a era doconhecimento. Isso é verdade, porque nuncaantes ele havia construído e transformado o

    mundo com tanta intensidade sobre a basedo conhecimento. Ao mesmo tempo em queo ser humano superexplora recursos e des-gasta ecossistemas para convertê-los em va-lor de troca, “tecnologiza” a vida e coisi!cao mundo. A ciência e a tecnologia se conver-teram na maior força produtiva e destrutivada humanidade.

    Mas essa civilização do conhecimentoé, ao mesmo tempo, a sociedade do desco-nhecimento, da alienação generalizada, da

    deserotização do saber e o desencantamentodo mundo (a sociedade dos poetas mortos;uma sociedades em propósito, sem imagi-nação, sem utopia, sem futuro). Nunca an-tes na História houve tantos seres humanosque desconhecessem tanto e estivessem tãoexcluídos dos processos e das decisões quedeterminam suas condições de existência;nunca antes houve tanta pobreza, tanta gentealienada de suas vidas, tantos saberes subju-gados, tantos seres que perderam o contro-le, a condução e o sentido de sua existência;tantos homens e mulheres desempregados,desenraizados de seus territórios, desapro-priados de suas culturas e de suas identida-des. Nessa civilização supercienti!cada e“hipertecnologizada”, tanto os que dominamcomo os que são dominados, se encontramalienados de seus mundos de vida, em ummundo no qual a incerteza, o risco e o des-controle aumentam proporcionalmente ao

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    aumento dos efeitos de domínio da ciência

    sobre a natureza.O pragmatismo político, que busca re-

    solver as urgências da crise econômica, po-lítica e ecológica pela via de tornar e!cien-tes os processos cientí!cos, tecnológicos eeconômicos, tem acarretado uma crescentedesvalorização do conhecimento. Isso nãosó se re"ete pelos poucos recursos destina-dos à educação, à ciência e à tecnologia namaior parte dos países da América Latina eCaribe; re"ete-se também pela falta de polí-

    ticas de pesquisa interdisciplinar para o de-senvolvimento sustentável, pelo abandonodo propósito de alcançar uma capacidade deauto-determinação cientí!co-tecnológica,pelo esquecimento dos saberes e práticastradicionais de uso sustentável dos recursosnaturais.

    Marx a!rmava que os !lósofos ha-viam se preocupado em entender o mundo eanunciou a hora de transformá-lo. No entan-to, o projeto revolucionário socialista, que

    desmascarou a ideologia burguesa e o dosocialismo utópico – que procurou construirum socialismo cientí!co fundado em ummaterialismo dialético –, não chegou a ques-tionar as formas históricas do conhecimentocomo raiz e causa de exploração da naturezae da submissão das culturas. O conhecimen-to cientí!co continuou sendo a alavanca doprogresso econômico, a pedra de toque paraa construção de um socialismo – inclusivede rosto humano – que permitiria transcen-

    der o mundo da necessidade e abrir o reinoda liberdade e bem-estar para todos. O so-cialismo cientí!co não questionou o vínculodo ser ao conhecimento e sua dominação danatureza. Foram Nietzsche e Heidegger – emais tarde os !lósofos da Escola de Frankfurt

     – que traçaram o per!l de uma crítica radicaldas raízes do pensameno metafísico, da ciên-cia positivista e da racionalidade tecnológicaem sua vontade de universalidade, homoge-

    neidade e unidade do conhecimento, de ob-

     jetivação e coisi!cação do ser, que gerarama atual globalização unidimensional, regidae valorizada pelo modelo econômico: a “so-breconomização” do mundo (LEFF 2000).

    Heidegger formulou a crítica ao con-ceito de verdade como acordo, adequação,correspondência ou re"exo, que fertilizouo terreno da epistemologia desde a Antigui-dade, abrindo a perspectiva hermenêutica ea via interpretativa da verdade. Certamenteo cognitivismo colocou as vias de sentido

    pelas quais o mundo é construído atravésde cosmovisões e imaginários para chegar àcompreensão do mundo como contrução so-cial. A partir daí pode-se interrogar as formasnas quais o conhecimento e a teoria, a lin-guagem e a gramática – e não só a tecnologia

     – constroem o mundo e o real: não apenascomo imagem do mundo, não só como efeitotecnológico, senão como construção de umalegalidade que, legitimada como ciência,gera uma norma de verdade, cujo exemplomais totalitário e globalizador é a racionali-dade econômica3.

    A partir daí, abre-se uma re"exãocrítica sobre os fundamentos e os sentidosdo conhecimento; sobre suas !ssuras eseus fracionamentos; sobre a possibilidadede reintegrar conhecimentos e saberesque, mais além do afã retotalizador dasvisões holísticas e os métodos sistêmicos,abra uma via de reapropriação do mundopela via do saber. É nessa perspectiva quese inscreve, hoje em dia, a re"exão sobre

    uma prática interdisciplinar fundada emum saber ambiental (LEFF, 1986; 2000); apartir dessa perspectiva, possível recuperar/

    3 Heidegger mostra, com justiça, que a de!nição cha-mada ‘tradicional’ da verdade como ‘acordo (corres-pondência, adequação) do conhecimento e da coisa’(que, de fato, é a inversão recente de uma tese teológicaque expressa que o Intelecto divino é o nome da Ver-dade) pressupõe um sentido mais originário... que é olegítimo, o autêntico (só o ouro verdadeiro é ouro; querdizer,o único que mede os valores). (BALIBAR, 1995)

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    atualizar as argumentações expostas no

    início sobre os princípios epistemológicospara a articulação das ciências no campoambiental (LEFF 1981, 1986).

    A necessidade de uma estratégiaepistemológica para a interdisciplinaridadeambiental adquire sentido para enfrentar asideologias teóricas geradas por uma ecolo-gia generalizada e um pragmatismo funcio-nalista, que não só desconhecem o processohistórico de diferenciação, de constituiçãoe especi!cidade das ciências e os saberes,

    como também desconhecem as estratégiasde poder no conhecimento que existem noterreno ambiental4. Essa estratégia conceitu-al em torno da constituição do saber ambien-tal combate os principais efeitos ideológicosdo reducionismo ecologista e do funcionalis-mo sistêmico, a saber:

    a) Pensar o homem como indivíduoe as formações sociais como populaçõesbiológicas inseridas no processo evolutivoda natureza, o que leva a explicar a condu-

    ta humana e a práxis social através de suasdeterminações genéticas ou sua adaptaçãofuncional ao meio (WILSON 1975). As teo-rias sócio-biológicas e ecologistas desconhe-cem a especi!cidade das relações sociais deprodução, as regras de organização culturale as formas de poder político nas quais seinscrevem as estratégias do conhecimento eas formas de uso dos recursos naturais.

    b) Considerar a Ecologia como adisciplina por excelência das interrelações,

    a !m de convertê-la em uma “teoria geralde sistemas”, em uma “ciência das ciências”

    4 Nesse sentido, e seguindo Foucault, a emergência dosaber ambiental estaria manifestando a surpreendentee!cácia da crítica descontínua, particular e local frenteao efeito inibidor das teorias totalitárias e dos paradig-mas globalizadores. Estar-se-ía, assim, testemunhandoa insurreição dos saberes subjugados dos conteúdoshistóricos que foram enterrados e mascarados em umacoerência funcionalista ou em uma sistematização for-mal.. (FOUCAULT, 1980).

    capaz de integrar as diferentes ordens do

    real – e os diferentes processos materiaise simbólicos – como subsistemas de umecossistema global. Assim, a ecologiageneralizada (MORIN 1980) promete umareconstrução da realidade como um todopela integração dos diversos ramos do saberem um processo interdisciplinar, di!cultandoa reconstrução do real histórico a partir daespeci!cidade e da articulação de processosde ordem natural e social: econômicos,ecológicos, tecnológicos e culturais. De

    forma similar, Bookchin (1990) buscaestabelecer uma ecologia social, fundadana !loso!a de um “naturalismo dialético”,capaz de entender a evolução da sociedadefrente à emergência de uma consciênciaecológica ordenadora de uma sociedade eco-comunitária (LEFF).

    c) Fundar a interdisciplinaridade naTeoria Geral de Sistemas (BERTALANFFY,1968) que desconhece a constituiçãoontológica do real no momento de

    estabelecer as inter-relações possíveis entrediferentes ordens de materialidade atravésdos isomor!smos e analogias estruturaisque se con!guram desde a análise formaldos processos estudados, excluindo o valorda diferença e o potencial do heterogêneo5,ignorando o sentido da identidade que secon!gura no saber.

    5 Lichnerowicz sinaliza as limitações do isomor!smona apreensão de objetos ontológicos diferentes: O ma-

    temático trabalha sempre com um dicionário quaseperfeito e frequentemente identi!ca sem escrúpulosobjetos de natureza diferente quando um ... isomor!s-mo lhe assegura que só estaria dizendo a mesma coisaduas vezes em duas línguas diferentes. O isomor!smotoma o lugar da identidade. O Ser se encontra postoentre parênteses, e é precisamente esta característicanão-ontológica que dá às matemáticas seu poder, sua!delidade e sua polivalência. Podemos tecer uma ma-temática de uma textura arbitrariamente fechada, masa onda ontológica se escorreria necessariamente nelas.(LICHNEROWICZ, 1975).

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    Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(2): 309-335, 2011.Disponível em

    d) Orientar a produção de conheci-

    mentos por um critério de e!cácia e e!ciên-cia na integração de um sistema cientí!co-tecnológico a um sistema social dado, comoum instrumento de controle e de adaptaçãofuncional da natureza e da sociedade atravésda ciência, submetendo a esse propósito opotencial crítico, criativo e transformador doconhecimento. Busca-se desta forma o aco-plamento de um saber holístico e sistêmicosem !ssuras, a um todo social sem divisões.

    e) Confundir as condições teóricas

    para a produção de conhecimentos interdis-ciplinares sobre os processos materiais queconvergem em sistemas socioambientaiscomplexos (interdisciplinaridade teórica),com a aplicação e a integração de um con-

     junto de saberes técnicos e práticos no pro-cesso de planejamento e gestão ambiental(interdisciplinaridade técnica) (LEFF 1981;1986).

    f) Reduzir o estudo das determinaçõesestruturais e dos sistemas de organização de

    diferentes ordens de materialidade do real,a uma energética, a um cálculo dos "uxosde matéria e energia, que, se bem que resultaútil para o !m prático de avaliar o potencialprodutivo e a sustentabilidade dos ecossiste-mas através de diferentes práticas culturais eeconômicas de uso e apropriação da natureza(RAPPAPORT, 1971), não constitui o princí-pio último de conhecimento sobre a organi-zação dos processos ecológicos, econômicose simbólicos; das relações entre a natureza, a

    técnica e a cultura.Contra os efeitos reducionistas – deformalistas, empiristas, ecologistas – dessasabordagens metodológicas a uma pretendidainterdisciplinaridade ambiental, se constro-em os princípios epistemológicos que dão suaespeci!cidade às ciências e às formas de arti-culação da ordem física, biológica, históricae simbólica. Os efeitos combinados dessesprocessos convergem para uma problemáti-

    ca ambiental, mas sua “materialidade” não

    é visível na realidade empírica dos "uxos deenergia do ecossistema, nem na utilidade deseus recursos como objetos de trabalho, nemem sua manifestação como valores de mer-cado. A materialidade desses processos estáde!nida pela especi!cidade do real do qualdão conta os conceitos teóricos de diferentesciências; de um real presente e produtivo (opotencial ecológico, a organização cultural),invisíveis na realidade perceptível do sujeitopsicológico e oculto ao olhar dos paradigmas

    econômicos e tecnológicos dominantes.Essa a!rmação embute de maneira

    implícita uma de!nição do conhecimentocientí!co dentro do campo do saber ambien-tal. As ciências são corpos teóricos que inte-gram conceitos, métodos de experimentaçãoe formas de validação do conhecimento, quepermitem apreender cognoscitivamente a es-truturação e a organização de processos ma-teriais e simbólicos, para entender as leis eas regularidades de seus fenômenos, para es-

    tabelecer os parâmetros e o campo dos pos-síveis eventos nos processos de reproduçãoe transformação do real que constitui seusobjetos cientí!cos especí!cos: processos deprodução, de reprodução e de transformaçãosocial; processos de adaptação-transforma-ção-mutação-biológica; processos de simbo-lização cultural e de signi!cação ideológica.

    Todos esses são processos gerais, masnão redutíveis a uma ordem globalizadora ea um padrão uniforme de medida. Tais pro-

    cessos – de onde emerge a produtividade doreal –, determinam, em seus efeitos práticos,a articulação dos processos econômicos comos processos de conservação, desestrutu-ração, regeneração dos ecossistemas, coma valorização cultural dos recursos, comos processos ideológicos e discursivos nosquais se inscrevem as inovações do conhe-cimento cientí!co, dos meios tecnológicos edos saberes locais, com os processos políti-

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    cos que abrem as possibilidades do acesso e

    apropriação social da natureza. São os efei-tos desses processos materiais e simbólicosque se articulam e se tornam visíveis nospadrões tecnológicos e nas formas particu-lares de organização produtiva; nos circuitosda produção, distribuição e consumo; na or-ganização institucional do poder; na e!cáciados métodos de produção, difusão e aplica-ção do conhecimento; nas atitudes frente àinovação tecnológica e à mudança social;na retórica das práticas discursivas sobre a

    conservação ecológica e o desenvolvimentosustentável.

    A materialidade dos citados processosse forja entre o real do objeto do conheci-mento de suas ciências e a realidade ondeseus efeitos são perceptíveis. Os conceitosteóricos apreendem as causas determinantese os princípios atuantes dessa organização doreal, de onde é possível explicar a dinâmicadestes processos, sua potencialidade e seusefeitos concretos sobre a realidade empíri-

    ca. Essa produção de conhecimentos não seconstitui a partir da simples indução da rea-lidade sensível, pela formalização dos dados“puros” da realidade e dos enunciados sobreos fenômenos observáveis, ou pela “siste-maticidade” das possíveis relações lógicase “matematizáveis” em uma teoria geral desistemas. Nesse sentido, a estratégia episte-mológica proposta para compreender as pos-síveis articulações das ciências no campo dainterdisciplinaridade ambiental, acaba sendooposta ao positivismo lógico e a todo idealis-mo empirista e subjetivista.

    Os princípios anteriores se constroemcomo “postos de vigilância epistemológica”frente às tendências idealistas à dissoluçãodas diferenças nas ordens ontológicas doreal, dos objetos das ciências e das racio-nalidades que organizam os saberes em umcampo unitário do conhecimento; em opo-sição à redução da organização especí!ca

    dos diferentes níveis do real em princípios

    gerais ou supostamente fundamentais de seufuncionamento estrutural – e não só de suagênese histórica ou evolutiva.

    O propósito de uni!cação das ciênciasno positivismo lógico e a busca de suas ho-mologias estruturais na Teoria Geral de Sis-temas, foi conformando uma prática inter-disciplinar que não foge a essa racionalidadecientí!ca que tem “externalizado” o ambien-te e que desconhece o saber ambiental. O ob-

     jetivo uni!cador e reducionista do logocen-

    trismo da ciência moderna surge do desejode encontrar um único princípio organizadorda matéria, como se experimentara uma sin-gular repugnância ao pensar a diferença, adescrever as separações e suas dispersões,a dissociar a forma rea!rmante do idêntico.(FOUCAULT, 1969). Esses sistemas desco-nhecem a especi!cidade conceitual de cadaciência, de onde é possível pensar sua inte-gração com outros campos do conhecimen-to, sua articulação com outros processos ma-

    teriais e sua hibridação com outros saberes.As ciências não vivem num vazioideológico e semântico. Tanto por sua cons-tituição a partir das ideologias teóricas e ascosmovisões do mundo no terreno con"itivodas práticas sociais dos homens, como pelastransformações tecnológicas que se abrem apartir das condições econômicas de aplicaçãodo conhecimento, as ciências estão inseridasem processos discursivos onde se debatemnum processo contraditório de conhecimen-

    to/desconhecimento que mobiliza o “lugarda verdade” (BALIBAR, 1995), de ondederivam sua capacidade “cognoscitiva” eseu potencial transformador da realidade. Aarticulação desses processos de conhecimentocom os processos institucionais, econômicose políticos que condicionam o potencial tec-nológico e a legitimidade ideológica de suasaplicações, está regida pela confrontação deinteresses opostos de classes, grupos sociais,

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    culturas e nações pela apropriação diferen-

    ciada e pelas transformações alternativas danatureza.

    A produção cientí!ca se inscreve nes-sas condições ideológicas, não só porque ocientista, como sujeito da ciência, é, desdesempre, um sujeito ideológico, mas tambémporque suas práticas de produção de conhe-cimento estão estreitamente vinculadas àsideologias teóricas e modeladas no tecido dosaber de onde emergem as ciências, e ondese debatem permanentemente em um proces-

    so interminável de emancipação, de produ-ção e especi!cação de seus conhecimentos.

    As formações ideológicas nas quais sedesenvolvem os métodos da interdisciplina-ridade ambiental tendem a “naturalizar” osprocessos políticos de dominação e a ocultaros processos de reapropriação da naturezaque estabelecem as estratégias dominantesda globalização econômica. Dessa maneira,pretende-se explicar e resolver a problemáti-ca ambiental através de uma visão funcional

    da sociedade, inserida como um subsistemadentro do ecossistema global do planeta,ocultando os interesses em jogo no con"itopela apropriação da natureza na legalidadedos direitos individuais e na unidade do sa-ber sobre uma realidade uniforme.

    Nesse sentido, o saber ambiental abreuma perspectiva de análise da produçãoe de aplicação de conhecimentos comoum processo que compreende condiçõesepistemológicas para as possíveis

    articulações entre ciências e os processos deinternalização do saber ambiental emergentenos árduos núcleos da racionalidadecientí!ca, e a hibridização das ciências com ocampo dos saberes “tradicionais”, popularese locais. A produção “interdisciplinar” deconhecimentos se insere, dessa maneira,no marco das lutas por certa autonomiacultural, pela autogestão dos recursos dascomunidades, pela propriedade das terras

    de uma população; pela produção e pela

    aplicação de certos conhecimentos quepermitam uma apropriação coletiva dosrecursos naturais, uma produção sustentávele uma divisão mais equitativa da riqueza,para satisfazer as necessidades básicas dascomunidades e para melhorar sua qualidadede vida.

    A problemática ambiental induz, as-sim, um processo mais complexo do conhe-cimento e do saber para apreender os pro-cessos materiais que con!guram o campo

    das relações sociedade-natureza. Daí surgemobstáculos epistemológicos (BACHELARD,1938) e motivações para a produção de co-nhecimentos pelo efeito de interesses sociaisopostos, abrindo possibilidades alternativaspara a reorganização produtiva da socieda-de e o aproveitamento sustentável dos re-cursos naturais. As distintas percepções daproblemática ambiental – as causas da crisede recursos, as desigualdades do desenvol-vimento econômico, a distribuição social

    dos custos ecológicos, a nova racionalidadeprodutiva fundada no potencial ambiental decada nação, região, território, população, co-munidade – geram demandas diferenciadasde conhecimentos teóricos e práticos. Des-sa forma, a “crise ecológica” mobiliza umamplo processo de produção, apropriação eutilização de conceitos “ambientais” que sere"ete nas estratégias para o aproveitamentosustentável dos recursos.

    Para poder abordar a questão da inter-

    disciplinaridade e orientar tanto estratégiasde investigação e de formação como políti-cas ambientais e de desenvolvimento susten-tável, deve-se reconhecer os efeitos das polí-ticas econômicas atuais sobre a dinâmica dosecossistemas e sobre as condições de vidadas comunidades. É necessário avaliar ascondições econômicas, políticas, institucio-nais e tecnológicas que determinam a con-servação e recuperação dos recursos de uma

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    Complexidade, interdisciplinaridade e saber ambiental

    Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(2): 309-335, 2011.Disponível em

    região, os estilos de ocupação do território,

    as formas de apropriação e usufruto dos re-cursos naturais e da partilha de suas ri-quezas, assim como o grau e as formasde participação comunitária na gestãosocial de seus recursos e de suas atividadesprodutivas.

    É necessário também estudar os efei-tos da problemática ambiental sobre as trans-formações metodológicas, as transferênciasconceituais e a circulação terminológica en-tre as diferentes disciplinas que fazem parte

    da explicação e diagnóstico das mudançassocioambientais, assim como a forma comoesses paradigmas produzem e assimilamum conceito de meio ou de ambiente e asdiferentes interpretações e discursos sobrea sustentabilidade ambiental e o crescimen-to sustentável. Do estudo de tais mudançasepistêmicas surge a possibilidade de gerarestratégias de conhecimento para orientaruma transformação produtiva fundamentadanos princípios de uma racionalidade ambien-

    tal para o manejo sustentável dos recursos.O saber ambiental está transitando,assim, do desa!o da interdisciplinaridadepara a abertura de um diálogo de saberes.A interdisciplinaridade que coloca acomplexidade ambiental não é aquelade um simples somatório e combinaçãodos paradigmas de conhecimento queconstruíram os compartimentos disciplinaresdas universidades. A interdisciplinaridadeambiental estabelece a transformação dos

    paradigmas estabelecidos do conhecimentopara internalizar um saber ambiental. Naverdade, esse saber ambiental !cou excluídonum processo de extermínio dos saberes“nãocientí!cos” (saberes errantes, ciganos,nômades), no campo de concentração dasexternalidades do sistema econômico-político e cientí!co-tecnológico dominante.Esse saber é mais do que uma “dimensão”internalizável através de uma visão holística

    e uma vontade sistêmica. Não se trata de

    vincular os compartimentos estanques doconhecimento a partir de suas homologiasestruturais, de sistemas formais esvaziadosdos seus referentes ontológicos e dos seussentidos existenciais, de onde derive aessência ontológica dos processos, o ser dascoisas e a identidade dos sujeitos sociais.

    Para lá da interdisciplinaridade enten-dida como a transformação de seus núcleosfortes de racionalidade pela internalizaçãodo saber ambiental (de suas externalidades)

     – para lá da articulação de processos ontoló-gicos –, a complexidade ambiental se abrepara um diálogo de saberes que acarreta umaabertura à inter-relação, ao confronto e aointercâmbio de interesses, em uma relaçãodiametral que vai da solidariedade e comple-mentariedade entre disciplinas, ao antago-nismo de saberes; onde se inter-relacionamprocessos signi!cativos, mais que posiçõescientí!cas, interesses disciplinares e verda-des objetivas.

    Isso signi!ca que os con"itos ambien-tais não serão resolvidos pelo poder cientí!-co da economia ou da ecologia, senão atravésde sentidos existenciais, de valores culturaise de estilos de desenvolvimento diferencia-dos, nos quais a exploração, a conservaçãoou o uso sustentável dos recursos dependemdos signi!cados sociais atribuídos à nature-za. O ambiente não é só um objeto comple-xo a ser controlado por meios mais e!cazes,senão também um co-relato de processos

    signi!cativos que mobilizam os agentes so-ciais para tomar posição frente à posse e aousufruto da natureza. O con"ito ambientalestá marcado por interesses pela apropriaçãoda natureza como fonte de riqueza e suportede práticas produtivas. Nesses processos, osconhecimentos e os saberes jogam um pa-pel instrumental ao potenciar a apropriaçãoeconômica da natureza; mas também jogamcomo saberes que forjam sentidos e que

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     Enrique Leff 

    Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(2): 309-335, 2011.Disponível em

    mobilizam a ação com valores não mercantis

    e para !ns não materiais nem utilitários.A ruptura epistemológica em diferen-

    tes paradigmas do conhecimento, que gera aemergência do saber ambiental e sua possível“internalização”, provém do encontro entreos núcleos de racionalidade das ciências e ocampo do saber ambiental, entendido comoum “espaço de externalidade”. Tal encontroé a confrontação com o real posto à margem,con!nado e excluído, externalizado do nú-cleo conceitual do objeto de conhecimento

    (as condições ecológicas da reprodução docapital e as condições termodinâmicas doprocesso econômico). Mas, por ele mesmo,não se trata da internalização mecânica deuma “dimensão” do conhecimento, de umconjunto de princípios, preceitos, conheci-mentos, métodos e técnicas. Refere-se maisao retorno dos impensáveis, do que só serápensável fazendo atuar a re"exão sobre o jápensado, voltanto sobre os próprios funda-mentos de uma ciência, sobre seus conceitos

    e pressupostos básicos (LEFF, 2000)6

    .O ambiente não é o conceito que de-signa a ruptura de uma ciência ou da articu-lação das ciências existentes. O ambiente éo campo de externalidade das ciências; é oconceito da demarcação frente à “cienti!ci-dade” própria que instaura a modernidade, ologocentrismo que fundamenta as ciênciasem torno de núcleos conceituais que externa-lizam e ignoram o ambiente que condicionaos processos dos quais deve dar conta uma

    ciência; é a disjunção do pensamento uni-dimensional e do conhecimento disciplinar

    6  A “ambientalização” das ciências implica uma re-estruturação epistemológica que, como coloca F.Regnault, é o ponto de retorno aos impensados destaciência que, ao mesmo tempo, é um novo ponto semretorno para esta ciência. (cit. em BALIBAR4 1995).Trata-se de um retorno dos impensados... no sentidode uma produção de conceitos, que permite formularcompletamente a teoria existente e, portanto, exibirseus limites.” (BALIBAR4 1995)

    que se abre para o saber da complexidade

    ambiental.A interdisciplinaridade é uma chama-

    da para a complexidade, a restabelecer asinterdependências e inter-relações entre pro-cessos de diferentes ordens de materialidadee racionalidade, a internalizar as externalida-des (condicionamentos, determinações) dosprocessos excluídos dos núcleos de raciona-lidade que organizam os objetos de conhe-cimento das ciências (de certos processosônticos e objetivos). Nesse sentido, a inter-disciplinaridade é uma busca de “retotaliza-ção” do conhecimento, de “completude” nãoalcançada por um projeto de cienti!cidadeque, na busca de unidade do conhecimento,da objetividade e do controle da natureza,terminou fraturando o corpo do saber e sub-metendo a natureza a seus designios domi-nantes; exterminando a complexidade e sub-

     jugando os saberes “não cientí!cos”, saberesnão ajustáveis às normas paradigmáticas daciência moderna.

    Desde uma visão hermenêutica sobre

    a constituição do conhecimento cientí!co,pode-se compreender o desconhecimentoem que se fundamenta. Assim, a a!rmaçãode que a globalização – regida com base nasleis clarividentes do mercado – é a razãomáxima de governabilidade do mundo, nãopode assegurar a certeza do conhecimentono qual se fundamenta. O que faz é expul-sar do campo da percepção todo possívelquestionamento das causas profundas da cri-se ambiental. Dessa maneira, tal excesso de

    conhecimento segue descarregando-se comoresíduos tóxicos e perigosos na natureza; osinvestimentos de capital se transformam ememissões térmicas que seguem sendo depo-sitadas na natureza, transformando seus ren-dimentos em desastres naturais que castigamos ecossistemas e os povos do mundo (e commaior severidade os países tropicais do Ter-ceiro Mundo e os povos da América Latinae Caribe).

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    Complexidade, interdisciplinaridade e saber ambiental

    Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(2): 309-335, 2011.Disponível em

    O processo de globalização econô-

    mica organiza rituais para venerar o deus--mercado, para pedir-lhe maiores colheitasde crescimento sustentável, sem considerarque é esse crescimento econômico, regidopelas leis do mercado e por uma racionali-dade do lucro de curto prazo (leis humanassujeitas ao poder entre humanos), que pro-duz os ritmos crescentes de extração e trans-formação de recursos naturais, de matériae energia sujeita às leis da entropia. É issoque se manifesta no aquecimento global do

    planeta, ocasionando os ritmos atípicos e ex-tremos de altas e baixas temperaturas, os fu-racões e ciclones, os incêndios !orestais dosúltimos anos que tornaram inoperantes as

    práticas tradicionais de uso do solo e do fogo

    (que estão convertendo a desgraça humana

    e o desastre ambiental em oportunidades de

    negócio para a recuperação ecológica, tão

    demandada nos programas globais de desen-

    volvimento “limpo”).

    Para salvar os problemas que colocam

    a interdisciplinaridade como processo de re-composição do saber fracionado, se postula

    a transdisciplina como sua solução "nal: um

    conhecimento holístico e integrador, sem

    falhas nem vazios; um conhecimento reuni-

    "cador que transcende o propósito de esta-

    belecer pontes interdisciplinares entre ilhotas

    cientí"cas isoladas. No entanto, a transdisci-

    plinaridade não é a constituição de uma su-

    per-disciplina (ecologia, termodinâmica) que

    transbordaria o campo das possíveis conexões

    entre disciplinas para estabelecer um paradig-

    ma onicompreensivo. A transdisciplinar não

    poderá constituir-se em uma meta-discipli-

    na, senão em um processo de reconstrução

    do saber que transcenda a divisão e a con-

    "guração disciplinar do conhecimento em

    compartimentos estanques. A trans-disciplina

    é o processo mobilizador de um conhecimento

    apressado, ao qual se fecharam as vias da com-

    plexidade; é o encontro do conhecimento iso-

    lado com sua externalidade, com sua “alteri-

    dade”, que abre as comportas do saber parairrigar novos territórios do ser; para que, em

    sua eterna recorrência, os conhecimentos

    se reencontrem com os saberes subjugados

    (naufragados) em novos horizontes de racio-

    nalidade.

    A transdisciplinaridade é o questiona-

    mento do logocentrismo e da con"guração

    paradigmática do conhecimento, do qual

    erradicou da ciência normal todo saber não

    cientí"co como externo e estranho, como

    patológico, como “não conhecimento”; é atransgressão da disciplinaridade, do saber

    codi"cado para apreeender, “coisi"car”, ob-

     jetivar o real. A transdisciplina está no saberambiental, como essa falta de conhecimen-

    to que anima a produção de novos conheci-

    mentos; está na hibridização entre ciências,

    tecnologias e saberes; está no diálogo inter-

    -cultural; é o saber que sabe que não pode

    saber tudo, que sabe que está movido por

    seu não-saber, pelo desejo de saber. A trans-

    disciplinar leva, assim, à desconstrução doconhecimento disciplinar e abre as vias para

    uma hibridização e diálogo de saberes no

    campo da complexidade ambiental.

    Pensamento da complexidade,

    métodos interdisciplinares e diálogo

    de saberes 

    Havendo sobrevoado a problemática

    da interdisciplinaridade, será possível agorauma maior aproximação no discernimento

    de suas estratégias epistemológico-metodo-

    lógicas frente à complexidade ambiental.

    A interdisciplinaridade tem sido de"-

    nida como uma estratégia que busca a união

    de diferentes disciplinas para tratar um pro-

    blema comum. Nesse caso, pode-se enten-

    der como um procedimento metodológico

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    relacionado com o processo de “!nalização

    das ciências”, que, como resultado de teralcançado um estado de “maturidade”, de-veria levá-las a redirecionar seu potencialaplicativo para a demanda social de conheci-mentos (BÖHME et al, 1976, PRIGOGINEe STENGERS, 1979, JOLLIVET, 1992),internalizando uma exigência de “reintegra-ção” e “retotalização”. É neste sentido quediversas disciplinas podem repartir tarefasde pesquisa sem se afastar de seus conceitose métodos, para contribuir em um projeto ou

    em uma problemática comum. Esses proces-sos, que correspondem ao que se denominauma interdisciplinaridade técnica, integramuma série de ciências e tecnologias aplicadascomo uma divisão do trabalho intelectual,cientí!co e técnico, tanto nos processos deprodução, como em um conjunto de projetossociais.

    No entanto, o problema da interdis-ciplinaridade no conhecimento teórico con-tinua sendo um problema manifesto e não

    resolvido. A crítica pós-moderna ao logo-centrismo da ciência implica um problemade desconstrução e reconstrução do modelodominante de cienti!cidade paradigmáticacomo pré-requisito para poder traduzir osprincípios da complexidade ambiental empolíticas cientí!cas e educativas explícitasem campos nos quais seguem predominandoos esquemas institucionais da universidadenapoleônica e da ciência moderna.

    A formação ambiental – a construção

    do saber, dos métodos e dos projetos depesquisa e de formação interdisciplinares – está sendo impulsionada por indivíduos(alguns dos quais trabalham em equipes depesquisa) vinculados às universidades e aoscentros nacionais de pesquisa cientí!ca, mascujo interesse e paixão para transgredir osparadigmas disciplinares e para ultrapassaras fronteiras do conhecimento, nãoresponde a uma política cientí!ca ou uma

    política universitária. Aqui se manifesta

    um discurso proto-interdisciplinar sobre acomplexidade emergente; e esse discursoé bastante citado em um número crescentede publicações, livros e teses. As menções aApostel (1975), a morin (1977, 1980, 1986,1993), a PRIGOGINE (1979, 1984, 1997),a GARCÍA (1986, 1994), a FUNTOWICZe RAVETZ (1993, 1994) poderão seraumentadas. Mas isto não implica que setraduza em projetos de pesquisa e ensinoque incorporem o propósito e levem a um

    resultado de interdisciplinaridade. Poiso propósito da interdisciplinaridade nãoconseguiu estabelecer um campo virtualentre os centros duros dos conhecimentosdisciplinares constituídos em paradigmas,dentro dos quais se “faz ciência” e se fazuma carreira dentro das ciências. Tampoucose resolve em um curriculum ampliado noqual se quer fazer caber todos os nomesdas ciências, de seus antecedentes edescendentes, de suas ciências básicas e suasrami!cações especializadas.

    A interdisciplinaridade ambiental im-plica a reconstrução dos objetos de conheci-mento pela internalização dos campos ônti-cos desconhecidos e desalojados, dos saberessubjugados e postos à margem, mas que in-tervêm na determinação dos processos queestuda uma ciência. Em consequência, não épossível – ou não deveria ser possível – ensi-nar e praticar uma economia como disciplinaque pretende explicar os processos de pro-dução, se essa disciplina não introduz dentroda racionalidade econômica suas condiçõesde sustentabilidade. E isso não se conseguecom complexos diagramas de "uxos, retro-alimentações de processos e interconexõesentre “coisas” (as relações entre economiae ecologia, entre natureza e sociedade, entrepopulação, tecnologia e recursos). A funda-ção do conhecimento interdisciplinar em ge-ral – e especialmente no campo ambiental–,

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    Complexidade, interdisciplinaridade e saber ambiental

    Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(2): 309-335, 2011.Disponível em

    implica um rompimento epistemológico que

    funda uma nova ciência ou um novo campodo conhecimento.

    O ambiente é um objeto complexo,onde se con!guram entes híbridos, feitos denatureza, tecnologia e texto (HARAWAY,1991, 1997; ESCOBAR, 1999, LEFF, 2000);que implica múltiplos processos materiaise simbólicos, diversas ordens ontológicas,formas de organização e racionalidadesde caráter “não linear”, de diferentesescalas e níveis (do local ao global) que,

    em sua conjugação, geram sinergias enovidades; o ambiente é um real solidárioda complexidade, da diversidade, da“generatividade” e da criatividade. Mas, aomesmo tempo, o ambiente é um pensamentocomplexo e um saber, que interage com oambiente como “real complexo”. Por ele, acomplexidade ambiental emergente implicao encontro do real em vias de complexãocom uma “complexidade re"exiva”, com umpensamento que não é um “desenvolvimento”da “generatividade” ecológica, senãode processos de ressigni!cação do real,geradores de novas identidades em tornodo saber (FUNTOWICZ, RAVETZ, 1994;LEFF, 1998; FUNTOWICZ e DE MARCHI,2000; LEFF, 2000).

    A complexidade ambiental reclamaa participação de especialistas que trazempontos de vista diferentes e complementaressobre um problema e uma realidade – a visãoe a sensibilidade do ecólogo, do edafólogo,do geógrafo, do agrônomo, do geomorfólogoem relação ao “ambiente físico”; doeconomista, do sociólogo, do antropólogoe do historiador em relação ao “ambientesocial”. No entanto, a interdisciplinaridadenão só implica a integração dessas disciplinasgenéricas; dentro de cada campo temático sedesenvolvem “escolas de pensamento”, comdiferentes princípios teóricos, metodológicose ideológicos, com posições diferenciadas

    que criam obstáculos ou favorecem o

    diálogo interdisciplinar pelas simpatias eantagonismos entre os portadores dessesinteresses disciplinares.

    Pelo anterior, o saber ambiental, quedemanda a complexidade ambiental, não secompleta com a análise sistêmica das inter-relações entre processos e níveis de organi-zação, com a imbricação de suas múltiplascausalidades, sinergias e retroalimentações;pela combinação de todos esses conheci-mentos e especialidades sobre os diferen-

    tes processos que integram o ambiente, quebuscam retotalizá-lo com um conhecimentoholístico gerado por um método interdisci-plinar. Não se trata simplesmente de unir oque tem sido desunido pelo desenvolvimentodas ciências, como postulam tantas aborda-gens interdisciplinares dessa problemática7.O saber ambiental não nega nem minimizaa importância das abordagens interdiscipli-nares para pensar e diagnosticar problemasambientais complexos. Mas a!rma que as

    causas profundas da crise ambiental – e suasmanifestações nas diferentes “problemáticasambientais” – remetem a um questionamen-to da racionalidade que as gera e à constru-ção de uma nova racionalidade.

    A construção de uma racionalidadeambiental demanda também a interdisci-plinaridade, mas não só como um métodointegrador do existente, senão como umaperspectiva transformadora dos paradigmasatuais do conhecimento, da abertura à hibri-

    dização das ciências, das tecnologias e dossaberes populares. Nesse sentido, a raciona-lidade ambiental estabelece bases materiaise princípios conceituais para a construção de

    7  Os componentes do ambiente, inicialmentedissociados numa abordagem de pensamento queconduziu à instauração do recorte disciplinar, devemser de novo considerados hoje em seu conjunto, istoé, em função das múltiplas interações que os une.(ZANONI e RAYNAUT, 1994).

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    Olhar de professor, Ponta Grossa, 14(2): 309-335, 2011.Disponível em

    uma nova economia fundada no potencial

    ambiental que produz a sinergia dos pro-cessos ecológicos, tecnológicos e culturais(LEFF34,39). A interdisciplinaridade apa-rece, assim, como processo produtor de no-vos conhecimentos. Esse é o signi!cado queatribui Canguilhem (1977) quando entendea interdisciplinaridade como o processo que,através da intervenção de diversas discipli-nas, funda ou refunda um objeto de conhe-cimento.

    A interdisciplinaridade não é só uma

    prática teórico-metodológica, senão umconjunto de práticas sociais que intervêmna construção do ambiente como um realcomplexo. A interdisciplinaridade ambientaltem sido de!nida como o campo de relaçõesentre natureza e sociedade, entre ciênciasnaturais e ciências sociais (JOLLIVET,1992). No entanto, o campo da complexidadeambiental não pode circunscrever-se aodas relações entre ciências. Se a questãoambiental demanda uma ressigni!cação

    do mundo e a reapropriação da natureza, apartir de um questionamento das formas deconhecimento e apropriação que produz aciência moderna, ela signi!ca uma revisãode suas formas de conhecimento e suaabertura para outras formas “não cientí!cas”de compreensão do mundo, das relaçõesdo homem com a natureza. Quer dizer, nãose trata somente da integração natureza-sociedade por meio da inter-relação dasciências, senão da abertura para um diálogode saberes, para a hibridização entre ciências,tecnologias e saberes, para a produção denovos paradigmas de apreensão do real ecomunicação entre saberes, do encontroentre a epistemologia e a hermenêutica(VATTIMO,1992, CARVALHO, 2000,LEFF, 2000).

    A interdisciplinaridade extendedessa maneira seu campo de intervenção“entre disciplinas cientí!cas” para abarcar

    todo contato, intercâmbio, interrelação e

    articulação entre paradigmas, disciplinas,saberes e práticas. No entanto, para efeitosde compreensão e praticabilidade dessesprocessos, é necessário diferenciá-los, poiscada um deles envolve diferentes estratégiasde produção teórica, de abordagem dosproblemas complexos, de investigaçãoparticipativa e de construção coletiva deconhecimentos através do intercâmbio desaberes, assim como da hibridização desabedorias e conhecimentos, cosmovisões e

    paradigmas cientí!cos.Nesse sentido, os con"itos ambien-

    tais que estão na raíz da problemática am-biental, e que implicam visões e interessesdiferenciados, nos quais se inscrevem dife-rentes formas de saber e estratégias de poderno saber, não poderão anular-se, segurar-see reintegrar-se dentro do campo próprio dasciências; por mais que estas contribuam paraa clari!cação e solução destes problemas,sua compreensão demanda uma abertura do

    cerco das ciência para um diálogo de saberes(LEFF, 1998)8.

    8  Nesse sentido, pode-se concordar em que deve-seevitar cair na ilusão de que ‘mais ciências humanas’colocadas a serviço de um procedimento holísticopara a análise dos fenômenos do ambiente e o desen-volvimento, seriam suscetíveis de dar aos atores umaabordagem uni!cada dos fatos - que se tornaria o fun-damento cientí!co de um consenso ou o instrumentoda manipulação do real. Não se trata de atribuir ao so-cial um cientismo ampliado para substituir ao que vematuando, até o presente, sobre bases exclusivamente

    técnicas. Deve-se estar prevenido contra a tentação‘totalitária’ que buscaria no enfoque holístico suas jus-ti!cativas cientí!cas. De qualquer maneira, a tentativade assim proceder estaria destinada ao fracasso, umavez que os con"itos de identidade, os confrontos de va-lores, as contradições de interesses formam a própriamatéria, da qual se alimentam os processos sociais.(ZANONI e RAYNAUT, 1994). É nesse contexto queFuntowics e Marchi(1999) colocam os princípios éti-cos e pragmáticos de uma “ciência pós-normal” comoum campo de conhecimento para apreender a comple-xidade re"exiva como o espaço onde o que está em

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    Dessa maneira, haverá que distinguir

    os processos interdisciplinares da hibridiza-ção de conhecimentos e o diálogo de sabe-res, restringindo o conceito de interdiscipli-naridade ao tratamento do trabalho no queconcerne às relações entre disciplinas cien-tí!cas constituídas dentro de paradigmascientí!cos, em sentido kuhniano (KUHN,1962). Quer dizer, se bem que a interdisci-plinaridade como mot d´ordre e método paraver e promover processos de integração ecolaboração entre campos heterogêneos de

    conhecimento produz a estratégias hetero-doxas de investigação, o sentido da interdis-ciplinaridade deveria limitar-se a denotar osprocedimentos e objetivos intercientí!cos da“ciência normal”, que se remete a suas pos-sibilidades de inter-relacionar processos ede articular conhecimentos a partir de seusmétodos de investigação e suas óticas disci-plinares dentro de seus próprios paradigmascientí!cos. A interdisciplinaridade terá quepermitir desembaraçar e compreender osprocessos que implica um diálogo de sabe-res, assim como as hibridizações entre ciên-cia, tecnologia e saberes que se manifestamno campo do conhecimento para a apropria-ção e transformação da natureza.

    Interdisciplinaridade e articulação de

    ciências no campo ambiental

    A problemática ambiental gerou

    na América Latina uma re"exão sobrea articulação das ciências para a gestãoambiental, abrindo o campo de uma

     jogo são valores e interesses que transbordam a capaci-dade de mediação e compreensão das ciências. É nessecampo dos saberes situados e localizados, nos quais ascomunidades, através de suas práticas, geram formasdiferenciadas e especí!cas de relação e conhecimentouniversal, sem perder, no processo, sua autonomia eseu sentido. (ESCOBAR, 1997)

    interdisciplinaridade teórica. Tal proposta

    epistemológica estabelecia a reconstituiçãode objetos de conhecimento para internalizaro saber ambiental complexo, tudo mais alémda vinculação entre duas ou mais disciplinascon"uentes em uma problemática ambiental(LEFF et al, 1986).

    A articulação da produção teórica –orientada para os propósitos de alcançar asustentabilidade do processo de desenvolvi-mento através das práticas sociais de produ-ção e transformação da natureza –, transcen-

    de os alcances de um princípio metodológicopara a reintegração dos conhecimentos exis-tentes. A luta social pela reapropriação danatureza e do conhecimento está incidindona produção teórica, assim como na inova-ção tecnológica com suas aplicações sociaise produtivas para a exploração e o aproveita-mento sustentável da natureza.

    A luta política pelo conhecimento é umdebate para dissolver a representação imagi-nária da ciência como um processo neutro no

    qual o conhecimento se desenvolve como re-sultado de uma lógica interna conduzida pelaação metodológica de sujeitos autoconscien-tes frente a uma realidade objetiva. Nessavisão positivista, as esferas de materialidadedo real se dissolvem na “platitude” da reali-dade empírica e na constituição da lógica eda matemática em sujeito universal do co-nhecimento. Por sua parte, as perspectivasbiologistas sobre o conhecimento têm colo-cado a emergência de uma consciência eco-

    lógica, onde o sujeito do saber aparece comotodo organismo biológico que internaliza etransforma seu meio ambiente. De forma pa-ralela, tem aparecido uma série de teorias emetodologias que buscam a reintegração doconhecimento e de suas aplicações técnicas(a Teoria Geral de Sistemas).

    O projeto positivista de uni!cação dasciências faz frente à crítica do logocentrismo

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    da ciência moderna e seus impactos no am-

    biente, assim como à inevitável e necessáriaintervenção dos saberes não cientí!cos nagestão ambiental. No entanto, a problemáti-ca da “articulação das ciências para a gestãoambiental” deve concentrar-se na análise desuas relações possíveis a partir das condiçõesque impõe a própria estrutura paradigmáticadas ciências, de onde derivam os obstácu-los epistemológicos à complementaridadee retotalização do campo do conhecimento,assim como suas possíveis relações interdis-

    ciplinares.A necessidade de uma articulação

    cientí!ca só se justi!ca se existem proces-sos materiais que, não podendo ser apreen-didos a partir dos conhecimentos elabora-dos por uma só das ciências em seu estadoatual, aparecem como regiões do real ondecon"uem os efeitos de duas ou mais ordensde materialidade, objeto de diferentes ciên-cias. Essa articulação cientí!ca não pode serpensada como uma fusão dos objetos teó-

    ricos das ciências – os que constituem suaespeci!cidade teórica de onde derivam seuefeito de conhecimento –, senão como umasobre-determinação ou uma interdetermina-ção dos processos materiais dos quais as ci-ências produzem um efeito de conhecimentoem seus respectivos campos teóricos.

    O problema da articulação entre ciên-cias não se refere às aplicações técnicas dosaber para resolver problemas práticos, nemàs relações de um objeto cientí!co com ou-

    tros objetos empíricos. A articulação cientí!-ca é um problema alheio às aplicações técni-cas e ideológicas das ciências e diz respeitosó a alguns casos de uma problemática trans-cientí!ca e intra-cientí!ca, da qual pode-seindicar as seguintes formas possíveis nocampo ambiental:

    a) A importação de conceitosprovenientes de outras ciências para

    serem trabalhados e transformados pelas

    necessidades internas do desenvolvimentodo conhecimento da ciência importadora.Exemplo disso é o processo de importaçãodas teorias da termodinâmica e da ecologiaao campo da economia, para reformularos conceitos de produção sustentável naeconomia ecológica (GEORGESCU-ROEGEN ,1971; COSTANZA, 1989;DALY, 1991; NAREDO, VALERO, 1999).De forma análoga, a construção de umanova racionalidade produtiva tem implicado

    a reformulação de conceitos da economia(valor, recurso, desenvolvimento das forçasprodutivas, apropriação cultural) sobre a basede uma “aplicação” de teorias e conceitosda cultura, da ecologia e da tecnologia –produtividade ecológica, produtividadeeco-tecnológica, produtividade cultural;ecossistema-recurso, taxas ecológicas deexploração e uso de recursos, signi!cadocultural da natureza, etc. – (LEFF, 1994).Esse seria um caso de trans-cienti!cidadeteórica sem articulação cientí!ca.

    b) A construção de categorias e con-ceitos integradores, onde podem ser articu-lados os conceitos de diferentes ciências.Dessa forma, a categoria de racionalidadeambiental articula as racionalidades teóricas,instrumental e prática onde con"uem os co-nhecimentos, saberes e comportamentos quecon!guram o campo complexo do saber e daação ambiental (LEFF, 1998). Por sua parte,o conceito de produtividade eco-tecnológicaarticula processos de diferentes ordens dematerialidade, onde se integram as relaçõessociais de produção com as práticas produ-tivas, jurídicas, políticas e ideológicas nasque se integram processos de ordem ecoló-gica, tecnológica e cultural. Essa articulaçãoconceitual implica, por sua vez, a integraçãode processos diferentes na construção de umnovo paradigma econômico, como um objetode conhecimento cientí!co “interdisciplinar”.

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    Assim, a produtividade sustentável aparece

    como a síntese de processos naturais, so-ciais, culturais e tecnológicos, cognitivos eidenti!cáveis, que estabelecem os processossinergéticos de um sistema produtivo am-biental complexo (LEFF, 1994).

    c) A con"uência dos efeitos de dois oumais processos materiais, objeto de diferen-tes disciplinas, em um fenômeno empírico –um sistema ambiental complexo –, que, aonão pertencer ao objeto de conhecimento denenhuma de suas ciência, não implica a in-

    clusão dos efeitos de um processo em outronem a articulação dos conceitos de suas ciên-cias. Este seria o fundamento teórico de uma problemática intercientí!ca, mas que nãoimplica um processo de articulação teórica.Um exemplo disso são os estudos demográ-!cos ou de fecundidade. As taxas de repro-dução, assim como as características físicase psicológicas da população, são o objetode diferentes disciplinas. Nesses fenômenosconvergem os efeitos de diversos processos

    determinados pela estrutura genética de umapopulação, por suas condições de adaptaçãobiológica ao meio, pela demanda de força detrabalho que produz a dinâmica econômica,e pelo desejo de reprodução vinculado às for-mações do inconsciente, processos que são oobjeto da biologia, da economia política e dapsicanálise. Vários temas das etno-ciênciassão relacionados com esses processos inter-disciplinares, nos quais a articulação contri-bui para desenvolver um campo mais com-plexo da demogra!a ou da etno-botância,mas não as estabelece como objetos cientí-!cos complexos (ver mais adiante o caso dabiologia e da etno-botânica.)

    d) A articulação dos efeitos de pro-cessos materiais, objeto de uma ou maisciências, sobre processos que são objetode outra ciência, o que implica uma deter-minação de processos externos que, se bemque não são absorvidos conceitualmente

    pela ciência afetada e não modi!cam o seu

    objeto de conhecimento, condicionam emtal grau os processos que analisa, que estessó podem entender-se como uma sobre de-terminação ou uma articulação dos efeitosdos processos objeto dessas ciências. Váriosproblemas da articulação natureza-sociedadeexempli!cam tal caso. A evolução e a suces-são dos ecossistemas naturais são objeto dabiologia e da ecologia; mas os processosde transformação dos ecossistemas não de-pendem tão-somente das leis biológicas da

    evolução, senão que são afetados e sobrede-terminados pela apropriação cultural e eco-nômica dos recursos naturais. A racionalida-de econômica não pode integrar-se no objetoda ecologia. Por ele, o estudo da transforma-ção dos ecossistemas implica a articulaçãodos efeitos do modo de produção sobre osefeitos naturais e biológicos provenientesda estrutura funcional de cada ecossistema.Esse é um caso de sobredeterminação naarticulação cientí!ca. Outro caso de arti-

    culação é o da organização cultural das for-mações sócioeconômicas “não capitalistas”,objeto da antropologia e da etnologia. Nessecaso, articulam-se os efeitos do idioma, daorganização dos ecossistemas que habitame das estruturas sociais que constituem, naexplicação de suas práticas produtivas e ide-ológicas. É um caso de codeterminação múl-tipla no processo de articulação.

    Seguindo esses tipos de intercienti!-cidade, pode-se a!rmar que, para que exista

    articulação entre ciências em um sentido for-te, é necessário que a materialidade de certonível não seja mero apoio, pressuposição oucondição dos processos de outra ciência – porexemplo, o ser biológico do homem comosuporte dos processos de trabalho ou de seusprocessos simbólicos –, a não ser que suas es-truturas materiais tenham efeitos determinan-tes nos processos em que se articulam – por

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    exemplo, os efeitos do modo de produção

    sobre os processos ecológicos, dos processosde signi!cação nas formações ideológicas ena constituição de identidades. As estruturasbiológicas, neuroniais e lingüísticas, que sãocondição da história, não se transformamcom as mudanças históricas (ao menos nãode forma imediata); mas a história sobrede-termina os efeitos de suas estruturas: as for-mas simbólicas e discursivas em torno dasformas de apropriação da natureza; a trans-formação ecossistêmica como efeito da acu-

    mulação de capital.A articulação das ciências não se limi-

    ta, então, a uma prática teórica consistentena importação de conceitos e paradigmas, oua uma aplicação de objetos teóricos de umcampo do conhecimento ao outro. Os objetosteóricos de cada ciência lhe dão sua especi-!cidade e são intransferíveis, inaplicáveis.A articulação de ordens de materialidade doreal – o que autoriza a pensar em uma arti-culação das ciências –, não surge dos pres-

    supostos que explicam a gênese evolutivae a emergência de novos níveis do real – aemergência da organização biológica a partirde suas bases físicas, ou da ordem simbólicae cultural como epifenômeno da ordem vital;tampouco se fundamenta nas impossíveisrelações de constituição de uma ciência emoutra. A articulação das ciências se dá comouma articulação dos efeitos dos processosmateriais dos quais elas dão conta atravésde seus objetos de conhecimento. A neces-sidade de apreender esses processos em suaespeci!cidade é o que obriga a reelaborar osconceitos teóricos de cada ciência e a produ-zir novos conceitos a partir do trabalho teó-rico sobre os conceitos importados de outrasciências, transformação que é mobilizadapelo sentido do saber ambiental externaliza-do pelas ciências. Isso leva a colocar a inter-disciplinaridade ambiental, num sentido for-te, como o processo de “colaboração” entre

    ciências que leva à fundação ou refundação

    do objeto teórico de diversas ciências, pro-blematizadas pelo saber ambiental externoa seus paradigmas de conhecimento. O queleva, ao mesmo tempo, a questionar em quesentido o ambiente, ou os sistemas ambien-tais complexos, poderia ser considerado “ob-

     jetos cientí!cos interdisciplinares”.

    Ressalte-se, de entrada, que a inte-gração de conhecimentos e a con"uência dediversos saberes nas diversas problemáticassocioambientais, não constituem só por esse

    fato objetos cientí!cos interdisciplinares. Namaioria dos casos, tampouco se tem dadoespaço para um trabalho teórico interdisci-plinar, se está de!nido o processo interdisci-plinar como o intercâmbio de conhecimentosque resulta em uma transformação dos para-digmas teóricos das disciplinas envolvidas;ou seja, em uma “revolução dentro de seuobjeto” de conhecimento, ou até numa “trocade escala do objeto de estudo por uma novaforma de interrogá-lo” (CANGUILHEM,

    1977).A interdisciplinaridade ambiental –entendida como a construção de um novoobjeto cientí!co a partir da colaboração dediversas disciplinas, e não só como o trata-mento comum de uma temática – é um pro-cesso que tem sido consumado em poucoscasos da história das ciências. São casos nãogeneralizáveis para deduzir deles uma meto-dologia aplicável para produzir efeitos simi-lares em outros campos do conhecimento e

    da pesquisa cientí!ca. Assim, especi!cada aproblemática interdisciplinar no campo dasrelações teóricas da produção de conheci-mentos – e não de suas aplicações práticas –,ela não deve confundir-se com a contribui-ção de um conjunto de conhecimentos nemcom os diferentes saberes, técnicas e instru-mentos que possibilitam diversas práticas depesquisa e intervenção sobre o ambiente.

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    A história das ciências da vida ofere-

    ce um exemplo de interdisciplinaridade teó-rica no processo de reconstrução do objetocientí!co da biologia como a ruptura e re-formulação do objeto teórico da biologia, aoconhecimento sobre a estrutura e as funçõesda matéria vivente. É assim que, a partir daconstrução do modelo de um cristal de DNA,foi possível a conjunção progressiva e co-ordenada dos resultados de várias discipli-nas biológicas com os da genética formal. A citologia, a microbiologia e a bioquímica

     para começ ar. Mas essa conjunção não foifecunda a não ser na medida em que a justa posição dos resultados comandava a refun-dição das relações entre as disciplinas queos tinham proporcionado9.

    Existem muitos exemplos de estudosinterdisciplinares nos quais concorrem espe-cialidades provenientes de diferentes cam-pos cientí!cos. Um caso ilustrativo é o daetno-botânica, onde intervem a ecologia paraexplicar as condições naturais de produção e

    regeneração do meio vegetal; as disciplinas

    9 Certamente, esta refundição interdisciplinar não te-ria sido possível sem a assimilação transdisciplinar dateoria da informação e da cibernética ao campo da bio-logia, assim como por uma série de avanços da experi-mentação cientí!ca e do instrumental de investigação.Sem o estudo das estruturas cristalinas por difração dosraios-x, sem a microscopia eletrônica, sem o empregode radioisótopos, teria sido impossível empreender oconjunto de pesquisas que permitiram, no !nal, locali-zar nas macromoléculas do ácido desoxirribonucléicoa função conservadora e a função inovadora da heran-

    ça... Este novo objeto da biologia situa-se na interseçãodas técnicas de macroextração e de microdissecção, daálgebra combinatória, do cálculo estatístico, da ópticaeletrônica, da química das enzimas. Mas o novo objetobiológico tem por correlato uma nova biologia, umabiologia nascida do trabalho que foi engendrado a seuobjeto... A constituição deste novo objeto de biologia(aparece como) um objeto poli-cientí!co ou inter--cientí!co (entendido não como) um objeto tratadoem comum por diversas disciplinas, senão (como) umobjeto construído expressamente como efeito de suacolaboração. (CANGUILHEM, 1977).

    etnológicas (etno-tecnologia, etno-ecologia

    e etno-lingüística), para explicar o proces-so cultural de aproveitamento dos recursosdo meio; a antropologia ecológica, para darconta do condicionamento ecológico sobrea organização social e produtiva das cultu-ras; a antropologia estrutural, para explicaro sistema de representações de uma culturasobre seu meio e, portanto, a signi!cação deseus vegetais; as disciplinas históricas, paraexplicar os processos de transculturação queafetam as práticas produtivas e a utilização

    dos recursos dos povos; en!m, a históriaeconômica recente e a análise do sistemaeconômico dominante, para dar conta dasdeterminações que impõem as condições devalorização e exploração dos recursos sobreas práticas tradicionais de reconhecimento eaproveitamento de seu ambiente10.

    No entanto, se bem que a etno-botâni-ca delimite uma problemática no espaço daspossíveis relações entre ecologia, cultura,história e economia, ela resulta em um pro-

    cesso interdisciplinar menos “forte” do queo da biologia genética, tanto que seu objetoconstitui-se como um campo de aplicação dediferentes ciências nas quais não se estabe-lece uma transformação de seus objetos deconhecimento.

    Vê-se o quanto distante desses princí-pios da interdisciplinaridade cientí!ca está oprojeto constituído pela colaboração de umassupostas “ciências ambientais”, projeto en-carregado de analisar o campo generalizado

    das relações sociedade-natureza. A própriahistória das ciências tem mostrado a impos-sível generalização dos objetos cientí!cos e

    10  BARRAU, J.  L’ethnobotanique au carrefour dessciences naturelles et des sciences humaines, Bull.Soc. Bot. Fr., n. 118, p. 242, 1971. e LEFF, E.Ethnobotanics and anthropology as tools for a culturalconservation strategy. In: MCNEEDY, J. A.; PITT, D.(Eds.). Culture and conservation. Worcester: Billingand Sons, 1985.

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    dos campos de produção de conhecimentos,

    assim como a aplicação de um método tota-lizador e geral (o materialismo dialético ou oestruturalismo genético). Por sua vez, a pro-blemática ambiental tem colocado em evi-dência a posição de externalidade e exclusãode um conjunto de disciplinas na explicaçãoe resolução dos problemas ambientais, as-sim como os obstáculos que os paradigmascientí!cos apresentam para reorientar suaspreocupações teóricas, seus instrumentos deanálise e seus métodos de pesquisa para um

    objetivo comum constituído pelo meio am-biente.

    O ambiental aparece como um campode problematização do conhecimento, queinduz um processo desigual de “internaliza-ção” de certos princípios, valores e saberes“ambientais” dentro dos paradigmas tradi-cionais das ciências. Tal processo tende agerar especialidades ou disciplinas ambien-tais, métodos de análise e diagnóstico, as-sim como novos instrumentos práticos para

    normatizar e regular o processo de desenvol-vimento econômico sobre bases ambientais.No entanto, essa orientação “interdiscipli-nar” para objetivos ambientais não autorizaa constituição de um novo objeto cientí!co

     – o ambiente – como domínio generalizadodas relações sociedade-natureza.

    Podemos, inclusive, identi!car umconjunto de temas e problemáticas ambien-tais que se apresentam como problemascontraparadigmáticos, no sentido de que

    encontram as vias fechadas para a comple-mentaridade interdisciplinar. Exemplos des-ses encontram-se na “confrontação” entreeconomia e ecologia, onde a racionalidadeeconômica de curto prazo impede internali-zar as temporalidades e os ciclos ecológicosque asseguram a renovação da natureza e asustentabilidade do desenvolvimento. Assimmesmo, temas como o da qualidade de vidase apresentam como problemas ambientais

    antiparadigmáticos, no sentido de que suas

    próprias características implicam racionali-dades e valores que estão fora dos princípiosde quanti!cação, de objetividade, de univer-salidade, de unidade e de medição que pre-tendem as ciências “normais”.

    Não é fácil, porém, abandonar a ten-dência de pensar o ambiente como um cam-po de atração e convergência do conheci-mento, de submissão das ciências frente aum propósito integrador. O meio tem sido,a!nal de contas, uma rede de relações capaz

    de captar todo saber em busca de seu objeto;ele dá forma onde se dissolve o excedente desaber que transborda do conhecimento cien-tí!co abrindo o campo do saber ambiental.

    Da interdisciplinaridade ao diálogo de

    saberes 

    A problemática ambiental tem trans-bordado o campo dos paradigmas cientí!cos

    e do conhecimento disciplinar. Por um lado,a problemática ambiental é conseqüênciadas formas de conhecimento do mundo, daobjetivação da realidade e o domínio da na-tureza através da imposição de um logos, deuma razão na qual não só os valores têm sidomarginalizados e subjugados, como tambémtêm sobrexplorado a natureza e o homem emum afã dominador e produtivista. Em con-seqüência, a sustentabilidade não será um!m alcançável através de uma reintegração

    interdisciplinar do conhecimento como fun-damento de uma gestão cientí!ca do desen-volvimento, e menos ainda de uma “econo-mização” e mercantilização da natureza.

    A abertura do cerco epistemológicodas ciências ao diálogo de saberes na comple-xidade ambiental não responde a uma vonta-de anarquizante para "exibilizar e relativizaro conhecimento (FEYERABEND, 1982);

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    não é um desconhecimento e um abandono

    do poder do conhecimento de onde geramas ciências. O reconhecimento do saber am-biental !ca, assim, externalizado, e a gestãoambiental implica a con"uência e a aplica-ção de saberes que transbordam o campo doconhecimento cientí!co. É o convencimentode que não será possível resolver a crise am-biental mediante uma administração cientí-!ca da natureza, já que toda intervenção eapropriação da natureza implica estratégiasde poder no saber (LEFF, 1998). É, por sua

    vez, a certeza de que a gestão ambiental nãoserá alcançável pela atomização e autonomiados saberes locais; que a geração de capa-cidades locais está se dando através de umahibridização dos conhecimentos cientí!co-tecnológicos e dos saberes práticos “tradicio-nais”. A natureza é administrada, explorada,conservada, transformada, através de formasde valorização e de signi!cação que provêmda cultura. O que está em jogo nas estratégiasde poder em torno da conservação ecológica

    no processo de globalização é a confronta-ção da via marcada pela apropriação cientí-!ca e a valorização mercantil (os direitos depropriedade intelectual e econômica), frenteaos diversos signi!cados culturais atribuídosà natureza. A gestão ambiental num regimedemocrático implica uma gestão participati-va da população no processo de produção.A encruzilhada pela sustentabilidade é umadisputa pela natureza e uma controvérsia pe-los sentidos alternativos do desenvolvimen-

    to sustentável. Ela faz com que a sustenta-bilidade tenha como condição inevitável aparticipação dos atores locais, de sociedadesrurais e comunidades indígenas, a partir deculturas, seus saberes e suas identidades.

    Nessa perspectiva, a interdisciplinari-dade ambiental transborda o campo cientí!-co, acadêmico e disciplinar do conhecimentoformal certi!cado, e se abre a um diálogo de

    saberes, onde se dá o encontro do conheci-

    mento codi!cado das ciências com os sabe-res codi!cados pela cultura. A abertura parao diálogo de saberes não só é uma herme-nêutica que multiplica as interpretações e ossentidos do conhecimento; não é uma tecno-logia que multiplica os campos aplicativosdo conhecimento. É o caminho de uma inter-disciplinaridade marcada pelo propósito deretotalização sistêmica do conhecimento, aum saber marcado pela diversidade de sabe-res e pela diferenciação dos sentidos do ser.

    O saber ambiental é externo ao co-nhecimento objetivante que impulsionacoisi!cação do mundo; mas também tomadistância do diálogo introspectivo que falacom seus próprios fantasmas, que incita aliberação íntima do sujeito. É um saber queleva a ressigni!car os sentidos existenciais ea recon!gurar identidades individuais e co-letivas e, ao mesmo tempo, a reconstruir omundo objetivo, a realidade que é produzidapelo saber.

    A complexidade ambiental irrompeneste momento, marcando a ruptura damodernidade e a pós-modernidade. Aprópria modernidade, em seu afã uni!cador,universalizante e homogeneizador, vaigerando em suas rupturas sua aberturaà diferença; vai forjando o germe daheterogeneidade, das diversas ordens e dosdistintos tempos. É nesse processo no qualas racionalidades articuladas, que fundam ese reforçam para gerar o regime globalizante

    da modernidade, dão lugar em seu seio àemergência do modernismo na arte, comouma tendência que procura desprendimentoda tradição e uma revolução permanenteda novidade (que leva à multiplicaçãodas modas e do consumo), da democraciaque busca a igualdade, enfrentando ashierarquias de uma sociedade estrati!cada enormalizada e que, ao mesmo tempo, reforçaa emancipação pessoal do