casa tempo 2011

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Casa Tempo foi o tema escolhido pela equipiá 2011 para desenvolver as atividades na Biblioteca Narbal Fontes. Segue publicação realizada pelos Artistas Educadores Flávia Sodré - Música, Juliana Rosa - Artes Visuais, Liliana Olivan - Dança e Sidmar Gomes - Teatro.

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Page 1: Casa Tempo 2011
Page 2: Casa Tempo 2011

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Programa de Iniciação Artística (PIÁ)

Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo

Divisão de Formação

Diretoria

Luciana Schwinden

Coordenação Geral PIÁ

Luciana Schwinden

Coordenação de Linguagens

Amilcar Farina – Música Isabelle Benard – Artes Visuais

Karin Rodrigues – Dança Roger Muniz – Teatro

Equipe PIÁ Narbal Fontes

Coordenação

Liliana Olivan

Arte Educadores

Flávia Sodré Juliana Rosa

Liliana Olivan Sidmar Gomes

Page 3: Casa Tempo 2011

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“Sótão é um porão, só que em cima da casa”.

Piás Narbal Fontes

“... com efeito, quase sem comentário, pode-se opor a racionalidade

do teto à irracionalidade do porão. (...) No porão também

encontraremos utilidades, sem dúvida. Enumerando suas

comodidades, nós o racionalizamos. Mas ele é a princípio o ser

obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas.

Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das

profundezas”.

Gaston Bachelard

Page 4: Casa Tempo 2011

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CASA TEMPO

Empreendemos a viagem e partimos do/ao encontro com a casa.

Como será ou como pode vir a ser?

Viagem que é mergulho.

Múltiplos encontros com a casa propõem percursos diversos.

Experiências, suporte para discutir coisas do trabalho, graus diferentes

da relação com o espaço, num prenúncio de uma relação mais

afinada. Essa experiência (in)fundada está em andamento. Ainda

passamos pela sensação do encontro, aproximação do objeto.

Experiência plena / utopia. Do encontro / aproximação ao

reconhecimento da coisa. Processo do inacabamento

> deslocamento > do > ao encontro > sempre inacabado.

É casa porque acolhe.

Como = pela própria casa

Corpos em encontro da casa.

Corpo em coletivo pela arte e além da arte.

Inter relação entre casa / pessoas /propostas.

Corpo relacionado aos corpos: espaço, memória, fantasia, cantos,

eco, forma conteúdo, matéria, contos, ocupação, residência, luz,

sombra, planta, duração, trânsito, vento, movimento, ilusão,

passagem, acolhimento.

Espaço / luz / formas / são encontros com a casa.

Page 5: Casa Tempo 2011

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A Música da Casa

Percebemos que a casa foi algo que despertou o imaginário

das crianças desde o princípio do processo. Com essa turma,

composta por alunos de 5 a 7 anos, optamos por explorar o infindável

potencial de alimento à criatividade que a casa poderia nos

proporcionar.

Decidimos dividir a casa em partes, e a cada etapa do

processo uma dessas partes nos serviu como tema. Assim, a única

coisa que sabíamos a princípio seria que exploraríamos o chão, as

portas, as janelas, as paredes e o teto.

Das geometrias da arquitetura da casa, praticamente um

verdadeiro mosaico de camadas e mais camadas de anos, reformas

e mais reformas, diferentes mãos e processos de

construção/manutenção, partimos para um processo que pretendia

dar-se pela integração entre a linguagem teatral e a linguagem

musical.

Ao longo desse percurso, sem lugar de chegada previsto, fomos

Page 6: Casa Tempo 2011

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surpreendidos pelo interesse comum da turma pela composição de

temas musicais. Prato cheio ao processo pretendido. O disparador

para a descoberta foi a escolha da utilização de músicas populares

que traziam em suas letras/temas as partes da casa a serem

abordadas, atreladas a jogos tradicionais. Nessa perspectiva

podemos nos lembrar da aula em que uma caça ao tesouro, que

teve como pistas as portas da casa, foi acompanhada da canção

popular:

Page 7: Casa Tempo 2011

6

A porta é uma só,

Porém dois lados há!

Dentro e fora,

Você onde está?

A porta é uma só,

Porém dois lados há!

Eu estou dentro,

E você onde está?

Page 8: Casa Tempo 2011

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Ao cabo da proposta, à frente de uma imponente porta da

casa, as crianças supunham o que poderia haver atrás dela. Após as

suposições, a porta abria-se e de dentro dela saia “a mulher do lado

de dentro” revelando um espaço limitado, sem grandes mistérios,

apenas o local para a localização de um quadro de luz. Pretendemos

com essa proposta a discussão sobre as relações entre o dentro e o

fora, das imprevisões dos espaços fora da gente e dos espaços dentro

da gente.

Após a inicialização musical das crianças, e com a percepção

do desejo da turma para a composição de temas próprios, o processo

desviou seu ponto de partida para a exploração dos

espaços/estruturas da casa como mote para a criação de

composições musicais próprias. Letras musicais e suas melodias foram

criadas a partir da exploração livre de jogos de palavras e diversos

instrumentos musicais.

Não raro, fomos surpreendidos por caminhos que dotaram o

processo de vértices não imaginados, mas muito bem vindos. De

configuração rizomática, esses vértices deram ao percurso riqueza

decorrente da contradição presente em contextos de caos

organizado.

Page 9: Casa Tempo 2011

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Quando chegamos ao momento da exploração das janelas da

casa, por exemplo, distintas e que revelam a poesia de recortes de

uma cidade em constante transformação, fomos tomados pelo

desejo da utilização das mesmas como molduras ao improviso de um

teatro de dedoches. Esquecida a casa por algumas aulas,

mergulhamos na tarefa da confecção dos dedoches, das narrativas

deles decorrentes e na composição de uma música que atrelava

dedos e dedoches. Como último momento dessa parcela do

processo, ocupamos os dois lados das janelas da casa, um pelos

dedoches e seus manipuladores, o outro pelos espectadores que o

assistiram, para compartilharmos os improvisos pensados.

Espontaneamente, uma criança nos interpelou com a seguinte

reflexão: “uma janela também tem o lado de dentro e o lado de

fora”. Sua reflexão foi mote para instaurarmos a discussão de que seja

do lado de dentro ou do lado de fora (enquanto atores, ou

espectadores) a responsabilidade é a mesma, muda-se apenas a

perspectiva do olhar integrado ao espaço. Ou seja, a discussão sobre

a contradição dentro/fora e seu potencial poético foi retomada

Page 10: Casa Tempo 2011

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espontaneamente num momento de distração/desvio dos rumos

retilíneos do percurso. Nesse momento essa discussão veio dotada de

maturidade e profundidade decorrente da decantação de seus

princípios, travados ainda na parcela inicial do processo em que as

portas foram abordadas.

A sensação é a de como se estivéssemos que esquecer por

alguns instantes o mapa de bordo traçado. Desse esquecimento, à

deriva, somos levados para contextos desconhecidos. Em contextos

desconhecidos, involuntariamente nos recordamos com lucidez de

quem somos e onde estamos. O incômodo do desconhecido nos

impele ao mergulho do eu que procura sua identidade. Do percurso

do conhecido ao desconhecido, para novamente estarmos em

contextos conhecidos, mas que já não são os mesmos que os

anteriores, damos organização e unidade a esse caos de pretensão

desorganizada. Quando percebemos, estamos deslocados para

outros cantos, mas novamente ligados aos eixos do outrora.

A cada espaço/estrutura da casa explorado, finalizamos com a

materialização de nossas sensações a partir da proposta da

construção da maquete de uma casa. De porta em porta, janela em

Page 11: Casa Tempo 2011

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janela, piso em piso, canto em canto, na última aula acomodamos a

derradeira telha da cobertura da casa. Foi quando tivemos uma

surpresa: a proposta da construção de uma maquete não pretendeu

em momento algum a reprodução exata da casa da biblioteca, mas

quando findada, percebemos que ela apresentava grandes traços de

semelhança a nossa grande e real inspiradora. De formas estilizadas, a

maquete suscitou em nós, artistas educadores, certo teor das formas

circulares, lúdicas, coloridas e de inspiração direta na natureza do

artista catalão Antoni Gaudí. Ou seja, esse seria um vértice

interessante para o desdobramento do processo findado com o

término do semestre caso sua continuação fosse possível.

Ao cabo desse processo, reiteramos as bases estruturadoras de

uma poética que alia pedagogia e artes, construída ao longo desses

quatro meses pela convivência/integração de quatro artistas

educadores recém conhecidos. Dessa poética podemos destacar os

seguintes aspectos: a integração entre linguagens, a permanência do

caráter inacabado de um processo criativo - por nos entendido como

a exploração e sensibilização para os infindáveis desdobramentos

possíveis em termos de exploração estética e de sentidos da criação

Page 12: Casa Tempo 2011

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artística -, a iniciação artística de crianças por meio da abordagem

das artes pela perspectiva da brincadeira, almejando o encontro de

experiências estéticas que possibilitem a compreensão do mundo por

meio dos sentidos.

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Ao chegarmos à Casa Tempo, Biblioteca Narbal Fontes, fomos

apresentados à casa. Conhecemos a casa da escada ao sótão,

brincamos em todas as partes da casa. De repente, surgem as

indagações... Isso é uma casa ou uma biblioteca? Tem cara de casa!

Quem morou aqui? Parece um castelo mal-assombrado!

Todos queriam saber melhor sobre ela, mas, para descobrirmos

as respostas dessas questões, nada melhor que perguntar para a

própria casa. Continuamos no processo conforme nosso

planejamento inicial, que era de conhecê-la.

Ao andarmos em volta da casa, observamos as distintas árvores,

a roseira, o gramado, a fachada da casa, todo seu visual ao redor, o

telhado de barro vermelho... Tivemos uma sensação de bem-estar...

Parecia uma casa de campo dentro da cidade. Andamos com os pés

descalços no gramado, sentimos o cheiro das plantas, ouvimos o som

dos pássaros e respiramos com um imenso prazer.

Como é o som do lado de fora da casa? A partir dessa

pergunta fizemos exercícios de escuta sonora. Ouçam o som do

vento! Tem um movimento que as folhas das árvores fazem e que

também produz som. De onde vem o vento? Por que ele está fazendo

esse som? Ouçam o canto dos pássaros! Qual a característica do som

de cada um? Mas também ouvimos os automóveis na rua... as

buzinas... as freadas, gente que anda, gente que fala, cachorro que

late, avião que voa...

Ao pararmos por um momento e nos concentrarmos no que

ouvimos, percebemos que o mundo é uma grande orquestra! Mas

como poderíamos registrar esses sons? Por meio de uma partitura, é

claro! Mas você sabe ler partitura? Não? Ah!... Tenho uma idéia!

Porque não criamos uma partitura orgânica? Partitura orgânica? Mas,

o que é isso? Vamos fazer uma pesquisa sonora e escolher três sons,

O Terror que Nosferatu Despertou

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depois colheremos três objetos da natureza que se pareçam com os

três sons que cada um escolheu. Vejam, esse graveto é comprido

como o som da freada do ônibus que parou! Essas quatro sementes

têm a duração de cada piada do canto daquele pássaro! Ouço

passos... talvez essas pedras possam representar os passos, ou quem

sabe, essa folha seca caída no chão possa representar o carro que

passa... mas a folha tem curvas!... Mas o som do motor do carro

passando também tem curvas! Ah, que legal! Vamos unir as frases dos

nossos sons e montar uma orquestra! Mas, quem será o maestro? Vai

você primeiro... depois eu vou.

Tudo foi uma grande brincadeira! Imaginem só... Partituras

orgânicas nunca vistas antes, músicos interpretando o que se lia na

partitura e um maestro maluco regendo todo mundo, ora mandava

parar, ora mandava prosseguir... Ouvi uma janela bater sozinha! Será

Page 15: Casa Tempo 2011

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que tem alguém regendo o som dessa casa? Ainda acho essa casa

estranha!

Foi muito bom conhecer o lado de fora, agora vamos entrar e

conhecer o lado de dentro...

Mas, é uma biblioteca! Corredores cheios de livros... Quem

morou aqui gostava mesmo de ler! Olho pra cima e lá está o velho

telhado de barro vermelho. Que sensação estranha... Ao mesmo

tempo em que parece casa mal-assombrada de filme de terror, é

aconchegante! É estranho!

Vejam! O acabamento dessa casa é todo feito de madeira!

Portas de madeira... janelas de madeira... escada de madeira... e o

sótão, gente... é de madeira as paredes e o piso!

Experimentamos tocar em tudo que era de madeira para

explorarmos as diversas possibilidades acústicas que a madeira pode

proporcionar numa produção sonora. Por falar em acústica... embaixo

dessa escada que leva ao sótão, tem uma acústica muito interessante

que reverbera! Mas o que é reverberar? É o som que reflete com

grande intensidade! Será que é a sombra do som?

Aqui tem muita sombra... É sinal que também tem muita luz!

Vamos lá fora observar as sombras... A luz do sol é ótima para refletir

com intensidade fazendo surgir as sombras. Veja a sua sombra! Fique

parada que vou desenhá-la! Faça uma pose! Que legal!

Que cor é a sombra? Preta! Ué!!! Preta?

Com papeis celofanes coloridos fizemos sombras coloridas! Uau!

Eu não sabia que isso era possível! Que sombras poderiam ter cor!

E o som... Tem sombra? Claro que não! Não mesmo? Vamos

brincar de fazer cânone! O que é cânone? São frases musicais que ao

se repetirem, intercalam-se nas diferentes entradas, formando uma

harmonia, mas a prática vai ensinar melhor... Conhecem a música do

Frere Jacke? Então, vamos lá! Vocês desse lado irão cantar a música

toda, repetindo sem parar. E vocês do outro lado, também irão cantar

a música toda e repetirão sem parar, porém vocês devem esperar o

Page 16: Casa Tempo 2011

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primeiro grupo iniciar, e vocês entrarão ao meu sinal. Quando o

primeiro grupo estiver cantando a segunda frase, vocês entrarão

cantando a primeira frase ao mesmo tempo, como se fosse um eco

do primeiro grupo.

Por meio do cânone fizemos refletir os fraseados da música? Sim!

Parece ECO! Podemos dizer então que o cânone e o eco são reflexos

de um som? Eles poderiam ser a sombra do som? ECO! Vamos lá para

cima experimentar o eco do lado de dentro. No banheiro! Eu canto

no banheiro porque parece que estou cantando com um microfone!

Reverbera! Lá embaixo daquela escada que leva ao sótão também

reverbera e dá uma sensação de casa mal-assombrada... Eu já disse...

essa casa é estranha e tem um som estranho... a porta bateu sozinha!

Será que tem fantasmas morando aqui? O que vocês acham de

perguntarmos para a casa? E como ela poderia nos responder?

Bem, vamos pesquisar em

seus livros histórias de terror.

Legal! Encontramos estes livros...

Gostei desse aqui de vampiro!

História aterrorizante! Vocês já

ouviram falar do filme mudo

“Nosferatu”? Não! Não? Então

vamos assistir...

Nossa! Que vampiro

estranho! Ele não fala nada, mas

dá medo! Que tal se fizermos um

filme de terror! Com monstros...

como o “Frankstein”? LEGAL!!!!!

Então vamos construir uns personagens.... Vamos fazer os

monstros! Desenhamos os monstros em tecidos, pintamos, cortamos e

costuramos, mas cada um fez uma parte do corpo sem ver a parte

do outro... um fez as pernas... o outro a cabeça... o outro os braços,

Page 17: Casa Tempo 2011

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etc. Os membros ficaram desproporcionais, mas essa era a ideia!

Afinal, eles eram monstros!

Agora precisamos criar a história (roteiro) com os personagens

que temos. Nós também queremos ser personagens desse filme!

Ótimo! Vocês vão criar a história, escrever o roteiro, filmar, vão ser os

personagens, vão colher sonoplastia para o filme, criar cenário,

figurinos, participando de toda a montagem do filme! No final,

editamos juntos. Vamos selecionar as imagens, colocá-las em

sequência como no roteiro, depois introduzimos toda a sonoplastia

com os sons que colhemos e registramos com gravador e com trechos

de músicas orquestrais de trilha sonora de filmes de terror para dar

sensação de medo. LEGAL!!! Kauê fez uma montagem aterrorizante

no computador! Eu não sei fazer isso! E o Pedro correndo com a

imagem focada nos pés dele ao som de um trecho da trilha sonora

do filme do tubarão! O terror que o Nosferatu despertou terminou com

monstros pendurados nas árvores e corpos representando o terror da

morte no sótão da casa. A produção foi concluída com sucesso,

porém, Kauê chegou no dia da mostra com uma gravação com

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efeito especial para o filme, mas já era tarde para aquele filme que já

estava editado. Compreendemos que o processo ficou inacabado,

pois sempre a arte dará continuidade na vida dessas crianças

fantásticas que trabalharam muito e se surpreenderam, nos

surpreendendo com o que aprendemos juntos!

Nossa! Nosso filme ficou maravilhoso! Isso é PIÁ!

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A História da Mãe

Ao conhecermos a biblioteca que parece um castelo, que

parece com uma casa mal-assombrada, fizemos o mesmo processo

inicial com a turma de terça-feira de manhã. Depois que passamos

pela pesquisa sonora e falamos da sombra: que tal um teatro de

sombras? Legal! Precisamos de um ambiente bem escuro e luz!

Achamos o local! Aquela saleta abaixo do sótão era perfeita para o

teatro de sombras, mas... que história contaríamos?

Bem, os adolescentes estavam com o tema “terror” a flor da

pele, pois tiveram a mesma inclinação da turma de manhã. Houve

contação de história com sonoplastia – a história da mãe que perde

seu filhinho que a morte veio buscar. Então a mãe segue desesperada

atrás da morte para tentar resgatar seu filho, a ponto de perder seus

olhos num lago, por muito chorar...

As crianças fizeram os personagens da história com papeis

recortados à mão livre, colocaram apoio e brincaram contando

histórias com esses personagens por meio do teatro de sombras.

Era necessário entender melhor o que era sonoplastia... Então

fizemos um corredor sonoro, onde uma pessoa passava com olhos

vendados para sentir o que os sons lhe fazia sentir, levando para outro

lugar visual da mente. Sensações que remetiam a uma percepção

imaginária do tempo e do espaço, por meio da escuta de sons

urbanos e da natureza.

Fizemos uma viagem com Villa Lobos através da música “O

Trenzinho Caipira”. Percebemos a sensação de estarmos no trem,

trilhando entre as colinas que a música instrumental dá... O momento

da partida do trem, da freada, da continuidade e da chegada.

Cantamos e descobrimos que o som tem altura, mas essa altura

não é o volume!... Como assim? Vamos pensar num som grave, num

médio e um som agudo. Por meio de uma partitura gigante de

somente três linhas, indicaremos a primeira linha abaixo representando

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o som mais grave, a do meio, o médio e a superior, o agudo. Os

nossos corpos foram as notas musicais e brincamos de fazer música,

onde nós mesmos éramos a partitura fazendo o som que queríamos

de acordo com a indicação das alturas: grave, médio e agudo.

Lembrei do “Pulsar” de Caetano Veloso, em sua poesia

concreta, fez com que as vogais fossem correspondentes às alturas do

grave, médio e agudo. Então, aprendemos a música “Pulsar” por

meio de um sistema de partitura que Luiz Tatit criou.

Depois de cantarmos, falamos sobre os aspectos das músicas de

terror e exploramos os sons dos instrumentos musicais. Mas,

precisávamos de algo concreto, então surgiu a idéia da turma

expressar aquela história da mãe. Fizemos tipo uma foto-novela.

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Todo o trabalho anterior para aguçar a percepção e a

sensibilidade sonora serviu para o desenvolvimento do processo

criativo.

Desenhamos as cenas da história em um tecido, pintamos com

tinta de tecido, colocamos em sequência, fizemos várias histórias com

as mesmas imagens, mas com sonoplastias diferentes, filmamos e

editamos a última exploração, porém a sensação que me deu foi de

que não havia a história certa para o filme, pois poderia ser qualquer

uma. Ela poderia continuar de outras formas. A imaginação sempre

esteve presente e pronta para mudar, transformando a história em

outra. A sensação é de que a história da mãe dava origem a outras, e

que por isso jamais teria fim.

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O Espaço da Cor

Tudo começou quando descobrimos que um grande baile

aconteceria no sótão da Biblioteca Narbal Fontes às dez horas de

uma quinta-feira ensolarada. Mas, em um evento tão importante, só

poderia entrar quem tivesse convite. Como conseguir os convites?

Bem, nos disseram que eles estavam escondidos em um lugar muito

específico da biblioteca e fomos à procura deles.

Sem mais nem menos, descobrimos que a luz que estava vindo

da janela da antessala estava diferente, iluminando o ambiente com

várias cores. “– Lá estão os convites!” Alguém gritou. Eram quadrados,

transparentes e coloridos. Nossa pele, acho que por causa da luz que

passava pelo convite, ficou colorida também. Foi uma festa!

Experimentamos várias cores no nosso corpo.

Cada um escolheu a cor do seu convite para, enfim, entrarmos

no baile. Lá surgiram princesas, palhaços, reis e cobras que

transformavam todo o espaço-tempo. Olhem só a rainha Bianca!

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E olhem também como a Brenda, o Iago José, o Sidmar, a

Mariana, a Letícia, o Jean, o Gabriel, o Iago Hitomi e o mundo todo

ficavam legais quando a gente olhava através dos convites!

Um tempo depois, caminhando pelo jardim da casa-biblioteca

encontramos máquinas fotográficas incríveis! Elas tinham

enquadramentos engraçados e aproveitamos para tirar muitas fotos

tanto de dentro quanto de fora da casa. Flores, gramas, manchas,

texturas, feições... e escolhemos algumas delas para guardar dentro

da gente. De repente, encontramos assustados um ser de outro

mundo! Ele tinha cabelos rosas, era muito alto e possuía uma capa

preta que o cobria por inteiro. Seu nome: Mago das Cores, aquele

que está em todos os lugares ao mesmo tempo. Ele ofereceu umas

pílulas mágicas que faziam enxergar o mundo por meio de cores

diferentes. “– Nossa! Estou vendo tudo azul! – E eu verde!”. Foi curioso

como essas pílula tiveram um efeito tão rápido. Pensamos então que

poderíamos, agora com as câmeras coloridas, fotografar mais coisas

Page 25: Casa Tempo 2011

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legais. Que surpresa boa! Todas as fotografias registravam um mundo

mais colorido que o normal, sem falar como elas saíram engraçadas.

Todo esse processo de ver por meio de transparências azuis,

verdes, amarelas, vermelhas, laranjas, etc., nos instigou a percorrer

caminhos inesperados como, por exemplo, experiências com a cor-

luz, a cor-sombra, a mistura das cores, a cor-luz, a cor no corpo, a cor-

líquida, salada de cores e outras formas de imersão na cor. Agora, é

continuar o caminho que começamos no PIÁ.

Tudo começou quando descobrimos que um grande baile

aconteceria no sótão da Biblioteca Narbal Fontes, às dez horas de

uma quinta-feira ensolarada. Mas, em um evento tão importante, só

poderia entrar quem tivesse convite. Como conseguir os convites?

Bem, nos disseram que eles estavam escondidos em um lugar muito

específico da biblioteca. Então, fomos à procura deles.

Sem mais nem menos, descobrimos que a luz que vinha da

janela da ante-sala estava diferente, iluminando o ambiente com

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várias cores. “– Lá estão os convites!” Alguém gritou. Eram quadrados,

transparentes e coloridos. Nossa pele, acho que por causa da luz que

passava pelo convite, ficou colorida também. Foi uma festa!

Experimentamos várias cores no nosso corpo. Cada um

escolheu a cor do seu convite para, enfim, entrarmos no baile. Lá

surgiram princesas, palhaços, reis e cobras que transformavam o

espaço-tempo. Olhem só a rainha Bianca!

E olhem também como a Brenda, o Iago José, o Sidmar, a

Mariana, a Letícia, o Jean, o Gabriel, o Iago Hitomi e o mundo todo

ficava legal quando a gente olhava através dos convites!

Um tempo depois, caminhando pelo jardim da casa-biblioteca

encontramos máquinas fotográficas incríveis! Elas tinham

enquadramentos engraçados e aproveitamos para tirar muitas fotos,

tanto de dentro quanto de fora da casa. Flores, gramas, manchas,

texturas, feições... Escolhemos algumas delas para guardar dentro da

gente. De repente, encontramos, assustados, um ser de outro mundo!

Ele tinha cabelos rosa, era muito alto e possuía uma capa preta que o

cobria por inteiro. Seu nome: Mago das Cores, aquele que está em

todos os lugares ao mesmo tempo. Ele ofereceu umas pílulas mágicas

que nos faziam enxergar o mundo por meio de cores diferentes. “–

Nossa! Estou vendo tudo azul! – E eu verde!”.

Foi curioso como essas pílulas tiveram um efeito tão rápido.

Pensamos então que poderíamos, agora com as câmeras coloridas,

fotografar mais coisas legais. Que surpresa boa! Todas as fotografias

registravam um mundo mais colorido que o normal, sem falar como

elas saíram engraçadas. Todo esse processo de ver por meio de

transparências azuis, verdes, amarelas, vermelhas, laranjas etc., nos

instigou a percorrer caminhos inesperados como, por exemplo,

experiências com a corluz, a corsombra, a cor no corpo, a corlíquida,

salada de cores e outras formas de imersão na cor. Agora, é continuar

o caminho que começamos no PIÁ.

Page 27: Casa Tempo 2011

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O Corpo Inacabado: Relato de um Processo Criativo

Todas as turmas partiram, na primeira sessão de trabalho, de

uma atividade que tinha como princípio a exploração e o

reconhecimento da casa. Supúnhamos que por estarmos trabalhando

com crianças as possibilidades e visões de mundo da “casa” seriam

infinitas, e que dessas infinitas possibilidades conseguiríamos perceber

a identidade em formação de cada turma.

O fio colorido, atividade assim denominada pelas crianças, logo

apontou para o interesse da turma de 8 a 10 anos do período tarde

em explorar os diversos casulos e lagartas que enfeitavam a fachada

externa da casa. Atentos a essa solicitação, propusemos uma imersão

no mundo das lagartas, casulos e borboletas.

Logo, traçado o plano de vida de uma borboleta (a princípio

lagarta, depois casulo e, por fim, borboleta), por meio de profunda

observação dos vestígios encontrados pela dissecação de casulos,

movimentação de lagartas, exploração de cores de borboletas,

dentre outros, direcionamos o trabalho para fins artísticos, da

expressão de formas que tocam diretamente os sentidos. Assim,

propusemos a reprodução do ciclo de vida das borboletas com o

corpo em jogo das crianças atuantes, onde diferentes qualidades de

movimento foram identificadas: leve/pesado, lento/rápido,

pequeno/grande, contínuo/não-contínuo. Recorremos aos estudos da

Rudolf Laban e suas qualidades de movimento, e logo as crianças

identificaram a fase lagarta com a qualidade do deslizar, a fase

casulo com a qualidade do empurrar e a fase borboleta com a

qualidade do flutuar. Iniciados no universo de Laban, propusemos em

seguida outras qualidades, já não relacionadas diretamente ao ciclo

de vida da borboleta. Entre elas podemos citar: socar, cortar e

sacudir.

Page 28: Casa Tempo 2011

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Aqui, após uma exploração livre inicial de cada uma das novas

qualidades, desafiamos o grupo a criar improvisos em dupla em que a

proposta era a criação de um diálogo de movimentos

(pergunta/resposta) explorando as qualidades de movimento

experimentadas.

Assim, pequenas partituras improvisadas surgiram repletas de

vida, revelando o corpo individual de cada atuante, bem como sua

apropriação do processo proposto.

Nessa altura percebemos certa exaustão por parte das crianças

acerca do tema das borboletas. Então, num dia de sol, apresentamos

diversos tecidos e desafiamos o grupo a transformar o jardim da

biblioteca a partir dos elementos concretos apresentados. Dessa

proposta, surge uma cabana e a discussão sobre o tema das

instalações. A instalação criada foi o mote para a construção

conjunta de uma narrativa improvisada teatralmente logo em

seguida. Castelos, florestas, baú mágico e crianças perdidas

remeteram o grupo novamente ao universo das borboletas, quando

uma das crianças expressou seu ponto de vista sobre a experiência:

“nossa cabana é como o casulo da borboleta”. Nessa sessão de

Page 29: Casa Tempo 2011

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trabalho, mais de uma vez, pudemos perceber o interesse das

crianças pelo universo dos animais, quando introduziram animais na

narrativa criada, ou fizeram referência à cabana como lar para os

mesmos. Esse interesse foi o mote para a próxima proposta.

Propusemos ao grupo a construção de animais por meio da

exploração de canudos de papelão e outros materiais disponíveis

(papel, tinta, canudinhos de refresco, dentre outros). Pela exploração

e integração desses diferentes materiais, surgiram quatro animais:

duas cobras, uma inarticulada e outra, criativamente articulada, um

tigre e uma girafa.

Feitos os animais, observamos os mecanismos de construção dos

mesmos e conversamos sobre a possibilidade limitada de movimento

dos corpos criados, dada a ausência de articulações.

Na sessão seguinte, partimos para outra experiência. Depois de

uma caça ao esqueleto - ossos de uma réplica de esqueleto

escondidos pelos cantos do jardim -, montamos o conjunto completo,

nomeando e observando as principais articulações e seus respectivos

movimentos. Como atividade seguinte, propusemos a construção de

Page 30: Casa Tempo 2011

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bonecos em miniatura, a partir de barbante, canudos de refresco e

palitos de churrasco, que reproduzissem as principais articulações do

corpo humano.

Depois de uma semana, esses bonecos foram retomados. Com

isso pretendemos a observação dos movimentos dos bonecos para

que as crianças travassem uma experimentação individual acerca

das possibilidades de movimentação de suas articulações,

transportando para seus corpos os movimentos realizados com os

bonecos.

Ao final dessa experiência, conversamos sobre a possibilidade

de darmos movimentos e vida a um objeto inarticulado (os animais

feitos anteriormente). Após o consenso geral por parte dos alunos da

possibilidade dessa afirmação, foi proposto ao grupo que pensasse

em uma narrativa integrando os quatro animais (duas cobras, um tigre

e uma girava), improvisando posteriormente essa narrativa por meio

da animação de tais animais inarticulados. Assim, surge a história de

um tigre ingênuo que sempre é convidado pelos demais animais - as

cobras - para uma festa, mas quando chega ao endereço da

comemoração, sempre bate com a cara na porta, pois nunca a festa

é dada. Até que um dia ele recebe o convite de uma girava, mas

receoso de que as situações anteriores se repetissem, ele não aceita.

Contudo, dessa vez a festa era de verdade. Com a imersão na

exploração das articulações do corpo terminamos nosso trimestre de

trabalho.

De início tínhamos como única certeza o desejo de

embarcamos numa viagem que estaria à mercê dos interesses e

experiências dos alunos-atuantes em consonância às práticas

artísticas dos artistas educadores. Da imprevisibilidade do caminho

brotou sensibilidade e criatividade para a continuidade do processo.

O prazer, tanto por parte dos alunos-atuantes quanto por parte dos

artistas educadores, é fruto da interação respeitosa e sensível entre

diferentes experiências, do deslocamento a partir da confiança no

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outro para caminhos desconhecidos, fator que legitima também a

riqueza do trabalho realizado. O processo criativo acima descrito,

mesclado pela integração entre diferentes linguagens artísticas,

objetivou sensibilizar os alunos para as estruturas de seus corpos e a

ampliação e afinamento de suas possibilidades de movimentação.

Torna-se claro o caráter inacabado do processo criativo instaurado,

denunciado pelas diversas possibilidades de desmembramento e

continuidade da proposta apresentada, bem como por sensibilidades

que uma vez despertadas jamais findarão suas leituras e explorações

acerca do mundo.

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Corpo Reflexo

Nossa viagem começou num dia ensolarado com 13 crianças

com idades que variavam entre 8 e 10 anos: Pedro, Ana Paula,

Ericson, Manuela, Ágata, Hosana, Samuel, Saulo, Beatriz, Amanda,

Giulia, Andreza e Paloma. Nesse percurso alguns abandonaram o

navio, outros embarcaram, recebemos os flutuantes, os pontuais, os

eventuais. No último encontro, num outro dia de sol, também

tínhamos 13.

Nosso ponto de partida: da Casa Tempo ao encontro do

desejado inesperado.

A casa encheu nossos olhos e saltamos o elástico, marcamos

caminho como João e Maria, descobrimos a rosa e seu ritmo,

cantamos para as árvores, puxamos o rabicho dos animais,

contornamos a casa e o corpo no papel, brincamos de pique

corrente, entramos, percorremos escadas, chegamos à salinha do

Narbal e tínhamos muitas dúvidas: quem morou ali? Será que o tal

Narbal era o dono da casa? A Ofélia gostava de crianças? Criança é

gente? Finalmente, chegando ao sótão tínhamos um caminho

percorrido materializado: elástico, barbante, rabichos, linha vermelha,

papel e foi preciso ação em grupo, numa coordenada força tarefa

para puxar aquele emaranhado. Coube tudo no baú, que seria

aberto no último encontro.

Para celebrar nosso grande encontro só uma festa bem

dançante, com ritmos variados, fantasias, movimentos grandes, que

demonstravam a disposição para a empreitada.

O que chamou a atenção foi o que nossos olhos adultos não

tinham visto: os inúmeros casulos espalhados no jardim: quem nasceu

primeiro: lagarta ou o casulo? Tempo de explorar o miolo da

Biblioteca, por que tantas portas? O que tem atrás de cada uma?

Livros, mais livros, mesas, livros infantis, livros em braile, cadeiras, pia,

vassouras.

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Com certeza é ou era uma casa. E esses casulos? São muitos os

vazios, casas abandonadas. Com certeza, tantos livros nos dizem

muito sobre borboletas e todos se interessam, ciclo natural: lagarta –

casulo – borboleta. É a tal metamorfose. Puxa! Para se transformar é

preciso parar, endurecer para então ficar leve. Processo criativo

natural: metáfora recorrente, a feia lagarta que se transforma na linda

borboleta.

Experimentamos: flutuar como borboletas, andar como lagartas,

empurrar as paredes do casulo, experimentamos asas e voamos

vagarosos ou ligeiros. Nosso espaço tem sons, tem pistas, muitos

instrumentos, muitos movimentos. Como consigo me movimentar com

esse som? Onde está o caxixi? O reco reco?

Experimentamos sons. Umas crianças produzem o som, outras

dançam no ritmo produzido. Criam partituras, viram maestros,

assumem o comando.

Como construir uma cabana? Basta experimentar: algumas

árvores, arbustos, muitos tecidos, cordas, barbantes, elásticos. Faz de

conta que construímos uma cabana mágica no meio da floresta com

direito até o encontro com bruxo, inventamos a história e a

interpretamos. Serve para nos abrigar, piquenique dentro da cabana.

Tudo é mágico, principalmente para quem nunca construiu uma

cabana nem com almofada, em frente da televisão.

O casulo/metáfora/casa encontra a árvore dos desejos.

Quantos sonhos trazem desenhos, cores, interações. Tantos

movimentos novos, sons, possibilidades, impossibilidades. A instalação

é uma ocupação, é intervenção, é estimulo visual, pode ser tátil,

olfativa.

Podemos construir objetos a partir de sucatas variadas. Sim,

gostam muito de construir: elaboram, reelaboram, misturam, recortam,

pintam, colam pás, vassouras, cavalinho de pau, abajur, catapulta,

binóculo, luneta, machado. Pretexto para criar histórias, estabelecer

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interações, criar caminhos, sozinhos ou em grupos. Objetos se

relacionam, abajur deve se entender com a luneta, viram

personagens, inventam histórias, são essenciais. Mas não tem

articulação, movem-se com delicadeza porque tudo é questão de

jeito. Como se mexer sem articulação?

De repente as sombras, tudo vira sombra, corpos e objetos

inarticulados, a sombra é mágica reveste tudo com poesia e certo

distanciamento da realidade.

Momento investigação: muitas pistas para localizar os ossos

espalhados pelo jardim. Onde está o outro pé? Como montar? O que

liga um braço ao tronco? Atlas e livros de anatomia, as crianças se

interessam, lembram os nomes, brincam e montam o esqueleto,

enfeitam, trocam de roupa, criam histórias macabras e argumentos

toscos.

Criam pequenos bonecos articulados feitos em barbante,

canudo, bolas e bolinhas muitas. Experimentam possibilidades no

articular, dobrar articulações, boneco, sombra, projeções,

movimentos. Trazem para seus corpos o movimento do boneco e

transferem para o boneco seus próprios movimentos.

Depois da apreciação de trechos do filme “Tambours Sur La

Digue”, do Théâtre du Soleil, os experimentos se adensaram, se

dividiram entre bonecos e bonequeiros. Quem manipula quem? Os

bonecos são guiados, às vezes esquecem que são bonecos e

demonstram vontade própria.

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Vemos materializar diante dos olhos a partir de um roteiro

simples, escrito pelas crianças, o jogo estabelecido, a apropriação do

espaço, a prontidão criativa, a preocupação cênica. As crianças

trouxeram tudo com elas, só esperavam alguém olhar e ver.

Nossa curta viagem chegou ao fim com a certeza de que não

somos mais os que partiram (AEs e crianças), pois trazemos um novo

olhar, vimos outras paisagens, criamos significados, encontramos um

outro. Para nós fica evidente o caráter inacabado do processo

criativo na medida em que nos nutrimos uns aos outros e

experimentamos com os olhos, os músculos, os ouvidos; enfim, está

impregnado nos nossos corpos.

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O guardador de rebanhos

Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Peso com os olhos e os ouvidos

E com as mãos e os pés e com o nariz e aboca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.

Fernando Pessoa

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Fechar os Olhos para Ver

Desde o início tivemos certeza que nossa reunião com os pais

deveria ter como eixo a proposta de uma vivência e não uma

conversa longa sobre o que é o PIA. Sabíamos intuitivamente (ou

praticamente) que só poderíamos sensibilizá-los para os princípios do

programa de forma lúdica.

Nosso tema gerador para o semestre, definido nas nossas

primeiras reuniões, era Casa Tempo, casa porque o que nos chamou a

atenção desde que chegamos ao equipamento é a construção: um

sobrado com sótão. Quem morou ali, quem olhou por essas janelas,

quanta alegria essa casa já presenciou, quantas mortes? O tempo

está implícito, inscrito, grudado nas paredes.

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Queríamos que os pais conhecessem a casa, explorassem o

ambiente conduzidos pelos filhos.

Os pais foram chegando com suas expectativas, sua pressa

indisfarçável, alguma curiosidade. Os acolhemos com as

apresentações indispensáveis e solicitamos que vendassem os olhos,

pais e filhos. Nossa proposta era subir o primeiro lance de escada,

guiados pelos sons de alguns instrumentos musicais. Quando

chegaram à salinha que antecede a escada que dá acesso ao

sótão, pedimos que as crianças tirassem a venda e conduzissem os

pais ao sótão. Lá deveriam ficar nos cantos enquanto os pais

procuravam os filhos ainda de olhos vendados. Nesse ínterim os pais

deveriam se sensibilizar para os odores, os sons, as texturas, os olhos

poderiam se abrir quando encontrassem os filhos.

Disponibilizamos alguns materiais: voil cru, voil vinho, TNT de

cores variadas, diversos lenços coloridos, elásticos, barbantes, tesoura,

abajur.

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Nossa proposta: construir uma(s) cabana(s), junto com as

crianças, utilizando aquele material. Criaram paredes e teto de

tecidos, varais de lenços, chão colorido. De repente, a surpresa: um

tecido claro de voil, esticado virou uma tela com a projeção da luz de

um abajur, estava criado uma espécie de teatro de sombras. Os pais

foram lembrando-se das sombras feitas com as mãos, as crianças

mergulharam na brincadeira, foram para detrás da tela e o jogo

continuou.

As projeções foram ocupando o espaço. Visivelmente nos

encantamos todos: pais, AEs e crianças. O momento foi mágico, puro

processo criativo e, como tal, potente, inacabado, fluente.

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Vamos Brincar de Quê?

“Ludicidade: a brincadeira como forma legítima

de se relacionar, de ser e estar no mundo, na sua

espontaneidade e significação. Reconhecer a

bagunça, a alegria, o jogo e a fantasia como

aspectos desse princípio.” 1

“Quando se está na idade de imaginar, não se sabe dizer como e por que se imagina. Quando se

pode dizer como se imagina, já não se imagina. Seria preciso, então, desamadurecer.”

Gaston Bachelard

Nas nossas conversas piantes, o termo brincar é essencial,

delicado, controverso, envolto em sutilezas, cheio de ressalvas: “não é

brincar por brincar”, “não é qualquer brincadeira”, “quem propõe a

brincadeira?“, “a brincadeira como experiência estética”, “como

convencer os pais que não é apenas brincadeira?” e infinitas outras

aspas.

Quando falamos de brincar queremos enfatizar o caráter lúdico

que propomos e insistimos nos nossos encontros, o que nos conduz à

tensão e à incerteza. A tensão da dúvida de estarmos realmente

prontos para ouvir, sentir, elaborar com o outro AE e propor à criança

a coisa/processo criativo, e a incerteza de que tudo isso nos conduzirá

a uma experiência estética/processo interessante e significativo. A

grande pergunta a cada encontro: “dará certo?”.

O brincar é atividade livre e descontraída, neste sentido distante

da proposta da educação convencional. Talvez por isso mesmo

capaz de absorver totalmente o brincante de maneira intensa e total.

1 Primeiro princípio do PIÁ, redigido pela equipe de 2010.

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Nem por isso é atitude/procedimento distante de regras e

organização.

A proposta é séria: queremos brincar. Perseguimos, como arte

educadores, guardar a qualidade de divertimento no aprendizado,

queremos intimidade entre o saber e o sabor (viva a etimologia);

brincamos e brindamos o prazer da construção de conhecimento, o

sabor do saber.

É preciso lembrar: queremos nos afastar de uma abordagem

tecnicista da arte, de um mero desenvolvimento de técnicas e

atividades que tenham como objetivo desenvolver “habilidades

motoras”, “resgatar auto estima”, “criar apresentações” e outros

conceitos afins, ao mesmo tempo não queremos afirmar

categoricamente que tais procedimentos precisam, necessariamente,

estar distantes das nossas aulas.

Propomos e experimentamos uma maneira de ver o mundo,

queremos pensar o mundo pelos olhos da arte e descobrir em cada

grupo o caminho para tecer experiências. Na verdade, percebemos

que existe algo potente como um raio de luz que une nossas

aspirações, e pode nos tirar da escuridão fundamental, mas quando

colocamos no papel tudo é tão fugaz.

Brincamos porque nos sentimos pertencendo, não brincamos

com qualquer pessoa, brincamos onde não conhecemos, brincamos

do que queremos, brincamos interagindo com os outros e não porque

nos obrigam, a brincadeira é livre e espontânea e também

aprendida. O AE tem também a função de propor e acolher a

proposta da criança/jovem, ressignificar a brincadeira.

Parece estar claro para nós, piantes, ou pelo menos para a

maioria de nós, a importância da brincadeira para o desenvolvimento

e envolvimento das crianças/jovens. Comprovamos no exercício do

nosso fazer diário que por meio do brincar propomos um modo de

conhecer o mundo, de conhecer e criar cultura, de interagir entre

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pares, de trabalhar afetos e desafetos, de construir um tipo de olhar

para e pela realidade.

A medida que a faixa etária aumenta, a coisa brincar se

complica e se elucida porque não é apenas a brincadeira de

criança, o brincar é no caso uma forma de acontecer, das coisas

rolarem. Quer seja jogo ou brincadeira, é imaterial, ultrapassa os limites

da realidade física, é diversão, envolve ritual.

Utilizar o termo brincar com pré adolescentes, ou seja, na faixa

etária dos “piantes” de 11 a 14 anos, causa estranheza e desconforto

entre eles. Querem adentrar no mundo adulto, popularmente

conhecido como “mundo sério”. Intuem, que estão numa linha de

passagem e têm quase certeza que do outro lado não pode haver

brincadeira. Parece complicado porque a coisa que esses jovens

menos querem é brincar. Será?

“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou adulto

fluem de sua liberdade de criação.”

Winnicot

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