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Cachoeira Bahia Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas Carnaval, Cultura e Memória em São Félix-BA MATOS, Daniela1 UFRB-CAHL, Brasil, <[email protected]> SANTOS, Valdelice2 UFRB-CAHL, Brasil, <[email protected]> Resumo: Este trabalho apresenta um estudo sobre a história do carnaval da cidade de São Félix-BA, festa que teve um grande valor cultural para a região do Recôncavo da Bahia, entre os anos 20 e os anos 70 do século XX. Nosso objetivo principal ao investigar a história do carnaval de São Félix é verificar como essa festa popular faz emergir características da cultura do Recôncavo da Bahia, das relações cotidianas entre os moradores da cidade e, também, evidencia relações de poder experimentadas no dia a dia da população. A análise foi empreendida a partir de dois corpus empíricos que se complementam: a) um conjunto de 12 entrevistas realizadas com moradores e foliões de modo que foi possível acessar, a partir desses relatos orais, narrativas de memória que reconstituíram o ambiente e as práticas culturais carnavalescas e b) documentos acessados no Arquivo Público Municipal, como exemplares do Jornal Correio de São Félix e Jornal A Vanguarda e o livro Emeféricos: Efemeridades Sanfelistas. Palavras-Chave: Carnaval, São Félix, Memória, História. Introdução O Brasil é formado pela mistura de povos e costumes diferentes que deram origem a uma cultura com uma diversidade singular. Isso pode ser comprovado nas artes, na música, na culinária, na religião, na arquitetura e nas festas. Por sua vez, a Bahia, assim como sua região do Recôncavo, encontra-se nessa mesma mistura de cultura, de ritmos e de cores, e um exemplo disto é o carnaval. Esta festa, de origem europeia, se caracterizou em solo brasileiro e se apresenta diferentemente em cada região do país. 1 Professora do Centro de Artes, Humanidades CAHL, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Docente permanente do Mestrado em Comunicação da UFRB. Doutora em Comunicação Social pela UFMG. 2 Bacharela em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e graduanda do Curso Superior de Tecnologia em Gestão Pública pela UFRB.

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Cachoeira – Bahia – Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018 www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas

Carnaval, Cultura e Memória em São Félix-BA

MATOS, Daniela1

UFRB-CAHL, Brasil, <[email protected]>

SANTOS, Valdelice2

UFRB-CAHL, Brasil, <[email protected]>

Resumo:

Este trabalho apresenta um estudo sobre a história do carnaval da cidade de São Félix-BA, festa

que teve um grande valor cultural para a região do Recôncavo da Bahia, entre os anos 20 e os anos 70

do século XX. Nosso objetivo principal ao investigar a história do carnaval de São Félix é verificar

como essa festa popular faz emergir características da cultura do Recôncavo da Bahia, das relações

cotidianas entre os moradores da cidade e, também, evidencia relações de poder experimentadas no dia

a dia da população. A análise foi empreendida a partir de dois corpus empíricos que se complementam:

a) um conjunto de 12 entrevistas realizadas com moradores e foliões de modo que foi possível acessar,

a partir desses relatos orais, narrativas de memória que reconstituíram o ambiente e as práticas culturais

carnavalescas e b) documentos acessados no Arquivo Público Municipal, como exemplares do Jornal

Correio de São Félix e Jornal A Vanguarda e o livro Emeféricos: Efemeridades Sanfelistas.

Palavras-Chave: Carnaval, São Félix, Memória, História.

Introdução

O Brasil é formado pela mistura de povos e costumes diferentes que deram origem a

uma cultura com uma diversidade singular. Isso pode ser comprovado nas artes, na música, na

culinária, na religião, na arquitetura e nas festas. Por sua vez, a Bahia, assim como sua região

do Recôncavo, encontra-se nessa mesma mistura de cultura, de ritmos e de cores, e um exemplo

disto é o carnaval. Esta festa, de origem europeia, se caracterizou em solo brasileiro e se

apresenta diferentemente em cada região do país.

1 Professora do Centro de Artes, Humanidades – CAHL, da Universidade Federal do Recôncavo da

Bahia. Docente permanente do Mestrado em Comunicação da UFRB. Doutora em Comunicação Social pela

UFMG.

2 Bacharela em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e

graduanda do Curso Superior de Tecnologia em Gestão Pública pela UFRB.

O carnaval pode ser sinônimo de diversão, de reivindicações e de expressão popular.

Em São Félix, cidade situada no Recôncavo da Bahia, esse festejo marcou presença entre os

anos de 1920 e 1970. Os foliões dessa cidade usavam máscaras, serpentinas, confete, fantasias

e outros adereços; brincavam nos bailes em clubes e participavam de desfiles pelas ruas da

cidade, no intuito de se divertir e esquecer os problemas do dia-a-dia.

Hoje essa festa está presente na memória dos antigos foliões que guardam

cuidadosamente a lembrança dos momentos felizes que tiveram nessa celebração ao rei

Momo; já os moradores mais recentes de São Félix, ou aqueles mais jovens, desconhecem a

história desse festejo em épocas remotas. Assim, torna-se essencial pesquisar fatos da

celebração do carnaval em São Félix, que tragam aspectos da relação entre moradores da

cidade e a festa que, por sua vez, fizeram essa festividade ser tão apreciada pela população

sanfelista e de cidades circunvizinhas, anos atrás.

Portanto, nosso objetivo principal, ao investigar a história do carnaval de São Félix,

é verificar como essa festa popular faz emergir características da cultura do Recôncavo da

Bahia, das relações cotidianas entre os moradores da cidade e, também, das relações de poder

experimentadas no dia a dia da população.

Uma vez que essa festividade era muito importante para a cultura local de São Félix,

além de ser um dos principais meio de diversão da cidade na época, viu-se a necessidade de

realizar este trabalho para contribuir para o enriquecimento da história do município e da

história cultural do Recôncavo. Além disso, chamar atenção, principalmente dos jovens, para

as histórias dessa manifestação cultural.

Desde meados dos anos 70, não houve mais realização do carnaval de clube em São

Félix, já o da rua, voltou nos anos de 2015 e 2016, porém com novas características e sem o

brilhantismo do antigo. O retorno do carnaval foi um projeto do então prefeito Eduardo José

de Macedo Júnior, realizado em dois bairros da cidade, Bairro 135 e Varre Estrada, com

animação de charanga, cantores locais e pouquíssima participação popular, mas o projeto

não teve continuidade.

Este artigo é uma releitura do radiodocumentário “Lembranças de outros Carnavais e

Micaretas”3. A análise foi empreendida a partir de um conjunto de 12 entrevistas realizadas

com moradores e foliões que, por meio de narrativas de memória, reconstituíram o ambiente e

3 “Lembranças de outros Carnavais e Micaretas” é um radiodocumentário produzido por Valdelice

Santos, uma das autoras deste artigo, como parte do Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação

Social/Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), intitulado “Alegria, folia e muitas

histórias para contar – resgate histórico do carnaval e micareta de São Félix”, defendido em 2013. Disponível em:

<https://carnavalemicaretadesaofelixbahia.wordpress.com>

as práticas culturais carnavalescas de São Félix; e documentos disponíveis no Arquivo Público

Municipal: Jornal Correio de São Félix (edições de janeiro a março dos anos de 1934 a 1988),

Jornal A Vanguarda (exemplares de fevereiro de 1925 e de março de 1926, únicas edições

encontradas); e o livro Emeféricos: Efemeridades Sanfelistas que serviu para identificar datas

de fundação dos Clubes onde aconteciam os bailes de carnaval.

Carnaval, cultura e memória

O carnaval chega ao Brasil por volta do século XVI e nessa época era chamado de

Entrudo devido à influência dos portugueses. O Entrudo acontecia de duas formas: uma era a

“familiar” (acontecia no interior das casas), a outra era o entrudo “popular” (saía pelas ruas e

envolvia o povo mais pobre, como os escravos).

Nesta ocasião, se permitia aos escravos o uso de máscaras e de fantasias, além

de comer e beber desbragadamente. No Brasil, o entrudo limitou-se, até

meados do século XIX, a uma festa em que os escravos da Colônia e do

Império saíam correndo pelas ruas, sujando-se uns aos outros com farinha de

trigo e polvilho. As famílias brancas, refugiadas em suas casas, divertiam-se

derramando, pelas janelas, tinas de água suja sobre as pessoas que passavam,

enquanto comiam e bebiam em um clima de quebra consentida da extrema

rigidez patriarcal. Estas comemorações incluíam desfiles com fantasiados,

carros alegóricos e música de fanfarra (VARGAS, 2014, p. 186)

Em 1853, esse tipo de manifestação foi proibida por pressão das classes

dominantes e das autoridades policiais que desejavam impor um novo modelo de festa,

demarcada por influências europeias e acionando ideais de civilidade. Segundo Moura ( 2017,

s/p) “Em dado momento, as elites queriam que a festa que precedia a quaresma se parecesse

com os festejos franceses e italianos, e não com a bagunça associada à festa trazida de Portugal.

[...] Havia um ideal de higienização e civilização da festa que era associada aos costumes

porcos, sujos". Contudo, o autor destaca ainda que a o processo de desaparecimento do Entrudo

para a consolidação desse modelo de Carnaval de Bailes e Máscaras não aconteceu tão

rapidamente, foram algumas décadas entre final do século XIX e início do século XX até que

se consolidasse o novo modelo.

Nesse período de transição, surgiram as festas de clubes e a partir de então, o carnaval

deixa de ser apenas manifestação de rua e torna-se também uma festa organizada por

Digite para introduzir texto

associações. Surgem, então, os bailes dançantes promovidos pela elite do Império, realizados

em clubes e teatros. A passagem do entrudo português para o carnaval de bailes e máscaras

pode ter sido uma ação das elites brasileiras, demarcada intencionalmente para dar um ar de

“superioridade” e “europeização” à festa. “Para fazer frente à barbárie, incongruente com o

mínimo grau de sofisticação demandado àquela época, as elites brasileiras incorporaram os

bailes de máscaras e festas à fantasia da Europa” (OLIVEIRA, 2015, p. 15), com inspiração

estética ditada por Paris, considerada, então, a capital do mundo civilizado. Segundo Arantes

(2013) os primeiros Bailes de Máscaras, também chamados Bailes à Fantasia foram realizados

no Rio de Janeiro.

O primeiro baile carnavalesco aconteceu em 1840, no Hotel de Itália,

localizado no Rio de Janeiro, que anunciava um “baile de máscaras como se

usa na Europa por ocasião do Carnaval”. Os bailes foram se multiplicando e

popularizando, e passaram a ser promovidos também em teatros. Começaram

a surgir os clubes dançantes (ARANTES, 2013, p. 9).

Segundo Cadena (2018), o primeiro baile de mascarado carnavalesco realizado no

Nordeste foi na Associação Comercial da Bahia, em 1844, com exclusividade para associados

e convidados especiais. Assim, pode-se dizer que o carnaval é uma festa que permeia entre o

espaço público e privado. Para brincar nos bailes dos teatros ou dos salões era preciso pagar

ingresso. Já a rua, era a opção para as famílias mais pobres se divertirem. Embora cada um

brincando à sua maneira, com diferentes influências e expressões culturais, não deixou de

realizar a festa no país, tornando-a ser reconhecida internacionalmente.

A origem do carnaval é remetida às mais antigas celebrações da humanidade, como as

festas egípcias, romanas e gregas. Com o tempo, ele adquiriu novas características e elementos,

como bloco de rua, trio elétrico, carro alegórico, escola de samba, camarote, abadá, frevo e axé

music, porém outros foram se perdendo, como os bailes dançantes.

Por sua vez, o trio elétrico traz outra forma de dançar e celebrar o carnaval na Bahia,

como pondera Miguez (1996).

As pessoas "pulam" ao som do trio elétrico. O que quer dizer, dançam com

movimentos simples e livres, executando, individualmente, uma coreografia

espontânea e ímpar. Assim, "pula-se" sozinho no trio elétrico, tendo-se como

único parceiro possível ... a multidão que ele arrasta (MIGUEZ, 1996, p. 87).

Com isso, a festa passa a ter mais participação de foliões que se aglomeram pelas ruas,

espaço comum a todos. Contando com esses novos elementos, o carnaval baiano se populariza

entre os séculos XVIII e XIX. A cidade baiana com maior destaque para o carnaval é Salvador,

no entanto outras como Juazeiro, Ilhéus, Porto Seguro, Mata de São João, Barreiras e

Maragogipe também realizam a festividade. No recôncavo, o carnaval maragogipano, com

registro nos fins do século XIX, é um dos que preservam antigos elementos. “Maragojipe ainda

conserva a tradição dos mascarados, pelas formas artesanais de produzir fantasias, de

patrocinar o riso e promover a representação da vida cotidiana” (SANTOS e BARBOSA, 2010,

p. 35).

Conforme Santos e Barbosa (2010) o carnaval representa a inversão e a informalidade.

“Trata-se de manifestação cultural que acontece em dias e espaços definidos, onde pessoas ou

grupos se encontram, com alegria e espontaneidade. A reconfiguração de espaços e a inversão

de valores são elaboradas e definidas, para aquele contexto festivo, lúdico, simbólico” (p. 27).

Logo, é possível perceber que o carnaval está relacionado ao campo das tradições festivas do

país, sobretudo a baiana, e, nesse cenário cultural, ele pode ser considerado como:

[...] o lugar da significação, da representação, da simbolização, da

diversidade. Todas estas categorias estão associadas ao modo como as

pessoas, nas suas práticas, revivem a cada época, já que cada realidade

cultural tem sua lógica e dinâmica própria, em cada sociedade (SANTOS e

BARBOSA, 2010, p. 27).

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o carnaval faz parte da cultura popular

brasileira, entendendo que manifestação cultural e cultura popular são alguns elementos-chave

deste conceito. Vale ressaltar que a cultura popular envolve diversas áreas de conhecimento,

como arte, crenças, hábitos, ideias, linguagem e costumes. Portanto, uma cultura vivencia

épocas, perpassando de geração a geração, como pontua Trigueiro (2005, p. 1),

O homem comemora há centenas de anos os seus ritos de passagem, relembra

as suas datas festivas sagradas, profanas e de agradecimento. São essas

evoluções e evocações que chegam até os dias atuais, que já estão

incorporadas aos nossos calendários de tradição religiosa e festiva. Ao longo

do tempo essas práticas sempre fizeram parte dos processos das

transformações culturais e religiosas da sociedade humana e das suas relações

simbólicas entre a realidade e a ficção, dando origem aos diversos

protagonistas e suas performances nos festejos populares.

Assim, dialogar com o passado para conhecer aspectos relacionados à celebração do

carnaval em épocas distantes, significa recorrer à memória, seja ela documental ou oral. A

memória é uma das formas de conservar e relembrar experiências e informações relacionadas

ao passado. Le Goff (2003) afirma que a memória individual não consegue armazenar todos os

acontecimentos remotos, daí a importância da escrita e das instituições de memória (como

arquivos públicos, por exemplo) para a permanência de uma memória coletiva, visto que esta

é “um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja

busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e

na angústia” (LE GOFF, 2003, p. 469). Logo, entender a história de uma festa popular, por

meio das memórias, ajuda-nos a entender as características de um grupo, uma comunidade e

um lugar.

À vista disso, a memória de um povo representa um pedaço da história de um

determinado lugar, permitindo que as manifestações culturais locais, sobrevivam ao tempo. Em

se tratando de uma festividade, como o carnaval - objeto desse estudo -, podemos compreender

como os processos de transmissão de conhecimento permitem identificar laços de

solidariedade, de identidade e de sentido de pertencimento de um povo com o local em que

vive.

Carnaval em São Félix e o registro de sua temporalidade

São Félix é um pequeno município do Recôncavo da Bahia, localizado a 110 km da

capital do Estado. Banhado pelo Rio Paraguaçu, seu crescimento está ligado ao ciclo da cana

de açúcar e, posteriormente, à indústria fumageira. Possui uma história profundamente ligada

às manifestações culturais como: bumba meu boi; pastoril; quadrilha junina; queima de

Judas; samba de roda; terno do Barricão; e terno do Mandu.

Os registros históricos, coletados a partir de material impresso localizado no Arquivo

Público de São Félix e de relatos orais obtidos da pesquisa de campo, indicam que o carnaval

de São Félix aconteceu entre 1920 e 1970. Nesse período, os foliões usavam máscaras,

serpentina, fantasias e outros adereços; brincavam principalmente nos bailes em clubes e,

algumas vezes, em desfiles por ruas da cidade.

Tudo leva a crer que o carnaval tenha começado em São Félix na década de 1920. De

acordo com o Jornal “A Vanguarda”, a primeira festa de carnaval aconteceu em fevereiro de

1926 no Clube da Associação Atlética. Conforme o seguinte trecho publicado no referido

Jornal, “Na segunda-feira gorda, São Félix, vai assistir a uma das mais encantadoras festas

que já se realizaram nesta cidade. É o Baile do Club Allemão promovido por uma comissão

diamantes de grandes destaques de nossa sociedade […] São sem conta o numero de

phantasia em confecção para essa encantadora festa de elegancia, que vai ficar registrada no

mundanismo de São Félix como uma das suas melhores datas”. (O BAILE, 1926, p.1).

Com esse breve registro, percebemos que a concepção da “elegância” é relevante para

demarcar e caracterizar a festa que surge na cidade e dialoga com o contexto mais amplo,

como já mencionado, de uma tentativa de trazer ideais de “civilidade” e “europeização” para

os carnavais brasileiros. O lugar da elegância também pode ser lido como o lugar da elite,

nesse sentido.

Quanto ao período de declínio dessa festa, identifica-se a partir de 1970 e, mais

precisamente, o ano de 1975. A última matéria jornalística encontrada no Arquivo Público

sobre o Carnaval de São Félix foi publicada em 8/02/75 e menciona que os dirigentes do

Clube Floresta fizeram um “esforço” para atender aos “adeptos de Momo” e em seguida

também menciona que a Associação Atlética, outro importante Clube na histórica desse

Carnaval, resolveu “quase de improviso” reabrir seus salões. Os trechos estão destacados

abaixo e se relacionados a matérias publicadas em 1972, 1973 e 1974 demonstram já um

declínio desse modelo de festa carnavalesca.

O corpo dirigente do Floresta F.C no esforço de atender aos adeptos do Momo e

prosseguir na tradição de realizar o melhor carnaval popular da cidade, decidiu

franqueiar seus salões aos associados, simpatisantes e famílias para os festejos

carnavalescos nos dias 9 e 11 do corrente, efetuando vibrantes bailes a fantasia, nos

horários das 21 horas, até às 4 da madrugada. O Dendê que sempre animou a cidade

com suas festas enfrentou o embalo momesco para a fervura da folia, será outra

confirmação, de que carnaval mesmo, animado, agitado e vibrante é no clube Floresta

mesmo. Alerta, pois, foliões! (FLORESTA, 1975b, p.1) (sublinhado nosso).

A matéria prossegue,

Segundo informes, a direção da Associação Atlética de São Félix, decidiu figurar

no prestito de Momo, realizando 3 animados bailes carnavalescos, nos dias 8, 9 e

10 inclusive infantil. Mesmo de improviso quasi, o velho clube, respeitando

gloriosa tradição, abrirá seus salões para a sociedade e associados, figurando

assim no entusiasmo do fervor carnavalesco. (FLORESTA, 1975b, p.1).

Importante destacar que desde 1969 iniciou-se a realização da micareta de São Félix4

trazendo novos formatos para a festa, em um período diferente daquele determinado pelo

calendário para o carnaval e contando, conforme registra o Correio de São Félix em matéria de

15 /02/1975, com o apoio do poder público municipal para a nova festividade. Aspecto também

diferente das festas de carnaval, que eram organizadas e financiadas de modo particular pelos

Clubes e aqueles que podiam pagar pelos ingressos.

Como festejo popular, o carnaval, foi quase ignorado pela população. Fantasias na

maioria infantis apareciam nas ruas, preenchendo velho costume de homenagear

Momo. Balda de vida e animação a festança carnavalesca, foi adiada para realização

da Micareta, quando a principal patrocinadora será a Prefeitura, segundo informes do

prefeito sr. Eduardo José de Macedo (FLORESTA, 1975a, p.3).

4 A micareta, realizada entre 1960 a 1990, em São Félix era patrocinada pela Prefeitura e os moradores

organizavam os blocos. Concentrava-se no Porto da cidade e animada por trios elétricos como Destaque, Brilhaê

e Tapajós ao som de muito axé music. A última edição aconteceu em maio de 1996.

Os Bailes e seus foliões

O Carnaval de São Félix tinha nos Bailes realizados em Clubes e Associações seu

principal atrativo. A festa era realizada entre cinco e três dias antecedentes a quarta-feira de

Cinzas, com bailes dançantes, oferecidos aos adeptos e associados dos clubes, animados por

grupos como Jazz Continental, Cuba Jazz e Filarmônica União Sanfelista e ainda por foliões

fantasiados que cantavam e dançavam ao som de marchinhas.

O primeiro aconteceu no Clube da Atlética, que se localizava na Avenida Salvador

Pinto, o Clube Floresta, que fica na Rua Manuel Vitorino, também promoveu vários bailes. O

Clube da Leste – ou Ferroviário, com sede na Ladeira da Misericórdia, realizou em um ano.

Cada Clube tinha sua rainha, que era escolhida através de concurso, os jurados eram os

diretores e sócios dos clubes. Os jornais de circulação local divulgavam o concurso, a exemplo

do Correio de São Félix, fundado em 1934. O baile que escolhia a rainha era denominado

“Grito de carnaval”.

O concurso realizado para a escolha da rainha e princesas também atraia moradores de

cidades vizinhas. “Como alegre e ruidez manifestação ao deus Mômo, realizará hoje á noite,

em seus salões, a Associação Atlética, sobretudo baile á fantasia, o qual, como nas épocas

anteriores, merecerá as simpatias do alto mundo social das cidades vizinhas” (GRITO, 1954,

p. 1).

Conforme já mencionado, a festa era promovida pelos sócios dos clubes e os bailes

eram pagos. A população só participava em maior número quando o carnaval saia pelas ruas.

De acordo com matéria publicada no Jornal Correio de São Félix “Nesta cidade, não tem havido

festejos de Mômo, caracteristicamente popular. As comemorações carnavalescas teem sido de

iniciativa parcialmente privada, ficando restrita aos clubs ou bailes privados” (CARNAVAL

NA, 1948, p. 1). O relato oral do Sr. Raimundo Silva reforça essa característica,

Todo mundo brincava o carnaval. Era uma festa pra todo mundo, mas nos bailes, ia

mais pessoas que tinham mais condições, não podia ir todo mundo. Só ia mesmo

pessoas que tivessem condições de participar da festa, porque era pago. Tinha na

Associação Atlética de São Félix e no Floresta Futebol Clube. Eu participei no

Floresta, eu gostava mais do baile do Floresta. No carnaval de rua vinha muita gente

de fora, de Cruz das Almas, de Cachoeira. Eu me lembro da época que saía no porto,

na Avenida Salvador Pinto (SILVA, 2013)

Há outros registros, contudo, que amenizam essa percepção, Luiz Gonzaga Dias na

matéria Carnaval e Mascarados, publicada no Jornal Correio de São Félix em 1953, afirma que

a festa era esperada o ano inteiro pelos moradores da cidade, que esqueciam o preconceito e as

diferenças e iam atrás de diversão: “As máscaras tumultuam de envoltas com as fantasias mais

ricas e imaginativas. Nas ruas. Nos clubes, Boaites e cassinos. Mascarada entre nuvens de

perfumes, chaves de confete; botes entrecruzados de serpentinas” (DIAS, 1953, p. 1). Nesse

texto, há uma tentativa de ampliação de experiência dos moradores da cidade com a festa para

além dos clubes e seus associados. O registro fotográfico abaixo, datado de 1951, apresenta

um momento dessa ação carnavalesca de rua.

Carnaval nas ruas de São Félix, 1951

Fonte: Dilermando Lemos

Ainda assim, na maior parte dos registros coletados, reforça-se a característica dos

bailes e salões dedicado à uma parte da sociedade sanfelista. “Na Associação Atlética prepara-

se para brindar os associados, adeptos e a sociedade sanfelixta, com o brilhantismo e sucesso

costumeiros dos seus bailes os quais serão efetuados durante os três dias dedicados a Momo,

havendo ainda dois bailes infantis dedicados aos filhos dos socios do club” (O CARNAVAL,

1946, p. 01). O relato oral de Davi Novaes reforça a percepção, “Em 1957, em 58, 59, 60 e 61

era um carnaval maravilhoso. Eu gostava do carnaval daqui porque não era tão tumultuoso

quanto carnaval de Salvador. A brincadeira na rua pouca, em Cachoeira o número era maior, a

festa era lá na Praça 25. Aqui tinha a festa era no Clube Floresta e na Associação Atlética”

(NOVAIS, 2013).

Diante dessa caracterização mais evidente nos cabe refletir sobre quem eram esses

sócios, e dar visibilidade as principais interdições que existiam cotidianamente e continuam a

operar nas festas de carnaval. A participação da comunidade negra nos bailes de clubes, por

exemplo. Fato este bem ilustrado pela fala de Davi Novais: “O Floresta era um clube que

entrava todo mundo e lá na Associação era escolhido. Lá até tinha privilégio de qualidade.

Preto lá, só se fosse um médico como o Doutor Carlos pra ir pra lá porque se fosse preto e não

tivesse nada, existia dificuldade”. A partir do relato podemos afirmar que a participação da

população negra estava restrita aos integrantes das atrações musicais, como o grupo Cuba Jazz

que animava muitos bailes e era formado, em sua maioria, por homens negros.

Já os registros jornalísticos da década de 1970 trazem de volta essa dimensão da rua

para a vivência carnavalesca de São Félix, nesse momento a experiência da micareta – com a

inclusão de trios elétricos – já era forte e as transformações do carnaval de rua de Salvador5

também compõe esse novo contexto.

O encontro marcado pelo Rei Momo com povo sanfelixta, recebeu merecida acolhida

da população que saiu às ruas e frequentou os clubes. O prefeito sr. Antônio Carlos

Lobo Maia, deu notável impulso às manifestações populares, ornamentando a praça

Inácio Tosta, de forma original aparatosa, instalado farta iluminação à cores, e pondo

à disposição dos foliões um pequeno trio elétrico que fez maravilhas (CARNAVAL,

1972, p.2).

Quando a festa tomava as ruas da pequena São Félix era chamado “Cordão da Vitória”.

Era nesse momento que os foliões se divertiam pelas ruas ao som de charangas, com suas

máscaras e fantasias. “Contrariando a inércia aparente, o carnaval alvoroçou os arraiais da

alegria, e botou pra quebrar nas ruas, enchendo a cidade de batuques, blocos, trio elétrico e

foliões durante três dias” (CARNAVAL, 1974, p. 1).

Mesmo sendo uma das principais diversões da comunidade sanfelixta na época, a festa

deixou de realizada na década de 1970. Com a saída de alguns organizadores da cidade e a

morte de outros, a festa perdeu fôlego, pois os demais sócios não tiveram condições financeiras

para prosseguir com o festejo. O último registro do carnaval encontrado no Correio de São

Félix foi do ano de 1975, no Clube Floresta.

Considerações Finais

A construção desta pesquisa proporcionou uma análise sobre os festejos carnavalescos

na cidade de São Félix, durante o século XX. Notamos que o carnaval é um reflexo da mistura

de diversas manifestações da identidade cultural do país, e, em São Félix, a festa movimentou

os principais clubes e pontos da cidade com muita vibração dos foliões. Hoje essa festa está

presente apenas na memória de quem viveu aquela época.

5 O Trio Elétrico, criado por volta de 1951 por Dodô e Osmar, representa a consagração do carnaval de rua de

Salvador, desde então, atrai multidões, tanto anônimas quanto artistas e personalidades, empolgadas com o som

e a magia da diversão pagã. Entre a década de 1960 e 1970, os trios elétricos migraram também para outros

carnavais da Bahia, inclusive para o Recôncavo.

O carnaval era realizado de duas formas: tinha a de iniciativa popular quando saia pelas

ruas arrastando os foliões; e a privada quando acontecia dentro dos clubes. Porém, na privada

é possível perceber que as relações de poder são manifestadas nitidamente, o preconceito, por

exemplo, era bem presente, tanto pela classe social, quanto pela questão racial, o pobre e preto

não era bem visto nos festejos, era uma festa de elite, em que as pessoas mais importantes da

cidade marcavam presença. Característica típica das classes mais ricas da sociedade brasileira,

que se ancorava em um modelo civilizatório eurocêntrico, com marcas do racismo que

caracteriza a sociedade da época, e persiste até hoje. Essa divisão entre público e privado ainda

perdura nos carnavais atuais do país, a exemplo do carnaval de Salvador, há diferença entre

folião que brinca na pipoca e o que está no camarote.

Apesar das contradições presentes, essa festa que mistura tradições africanas, indígenas

e europeias e traz a ideia de inverter a ordem moral da vida burguesa e instaurar ritos profanos,

deixou um legado significativo para história sanfelista e da região. As brincadeiras, danças e

ritmos, por exemplo, se mesclaram e se transformaram em um legado cultural que compõe a

identidade do recôncavo.

Os relatos estudados, tanto dos jornais quanto orais, deixam claro como essa festa foi

importante para a cultura da região, e como há pouco conhecimento sistematizado sobre o

Carnval em(de) São Félix. Desse modo, a pesquisa busca contribuir para a história cultural da

região a partir da organização de dados, informações, documentos, relatos orais que constituem

a memória de uma importante prática cultural que foi realizada durante, pelo menos 50 anos

pela população sanfelixta.

Referências

ALMEIDA, Júlio Ramos. Efemeridades Sanfelixtas: Um pouco da vida de minha

Terra. São Félix, 1953.

ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. 14. ed. São Paulo:

Brasiliense, 2006.

CADENA, Nelson. Carnaval da Bahia no século XIX: Dos salões para a rua, 2018.

Disponível em: http://blogs.ibahia.com/a/blogs/memoriasdabahia/2018/02/21/carnaval-da-

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