boiteux, luciana. a reforma da política internacional de drogas virá de baixo para cima

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8/19/2019 BOITEUX, Luciana. a Reforma Da Política Internacional de Drogas Virá de Baixo Para Cima http://slidepdf.com/reader/full/boiteux-luciana-a-reforma-da-politica-internacional-de-drogas-vira-de-baixo 1/4 DOI: http://dx.doi.org/10.18315/argumentum.v7i1.9874 17 Argumentum  , Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 17-20, jan./jun. 2015.  Luciana BOITEUX 1  m seu texto, intitulado Política de drogas na segunda década do novo milênio: reforma ou revolução?, Francisco Inácio Bastos faz uma firme e precisa análise dos movimentos atuais de abertura e reforma da política internacional de drogas, na fronteira entre o proibicio- nismo e seu contraponto: a redução de da- nos, construída a duras penas como uma prática de resistência por atoressociais en- gajados na saúde coletiva e movimentos organizados oriundos das comunidades afetadas pelaepidemia da AIDS na década de 1980. Como destacado, essa política que pretende reduzir os riscos do consumo sem necessariamente exigir a abstinência, cuja estratégia original consistia na troca de se- ringas entre usuários de drogas injetáveis, com muito custo alcançou posteriormente o status atual de políticapública em alguns 1 Doutora em Direito Penal. Professora adjunta da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ, Brasil). Bolsis- ta de Produtividade em Pesquisa nível 2 do CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos (UFRJ, Brasil). Pesqui- sadora associada ao Laboratório de Direitos Huma- nos da UFRJ. Professora do Corpo Permanente do Programa de Pós Graduação em Direito (UFRJ, Bra- sil). Membro do Conselho Consultivo da Rede Brasi- leira de Redução de Danos e Direitos Humanos (REDUC, Brasil) e da Plataforma Brasileira de Polít- ca de Drogas.Pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos sobre Psicoativos (NEIP, Brasil). Membro da Rede Pense Livre e do Colectivo de Estudios Droga y Derecho (CEDD). E-mail: <lucianaboi- [email protected]>.  países na forma de ações em saúde e supor- te social, em contraponto à pura repressão que almeja a interdição do consumo e a produção de determinadas substâncias por meio da ameaça de pena de prisão. Verifica o pesquisador, corretamente, a ver- ticalização da adoção do modelo proibicio- nista de controle de drogas, originado de cima e imposto aos países, que prega a pro- ibição completa de todo o circuito de pro- dução e consumo de certas drogascomo fruto de um movimento geopolítico articu- lado a partir de interesses da ascendente potência norte-americana, à época, em que pese a oposição de países europeus, parti- dários de outra abordagem mais equilibra- da e menos repressiva em relação às dro- gas.Pois esse sistema verticalizado fez com que os estados nacionais abrissem mão de suas escolhas internas democráticas para internalizar e ratificar tratados e criminali- zar em suas leis penais tanto usuários como comerciantes de drogas que passaram à categoria de proscritas. Apesar das grandes diferenças entre os países subscritores dos tratados internacionais de controle de dro- gas, é impressionante verificar o alto grau de harmonização das leis nacionais a esse novo paradigma repressivo, muito distante do que se tem em relação ao sistema inter- nacional de proteção aos direitos humanos, cuja adesão é muito inferior. E DEBATE A reforma da Política Internacional de Drogas virá de baixo para cima International Drug Policy reform will come from the bottom-up

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8/19/2019 BOITEUX, Luciana. a Reforma Da Política Internacional de Drogas Virá de Baixo Para Cima

http://slidepdf.com/reader/full/boiteux-luciana-a-reforma-da-politica-internacional-de-drogas-vira-de-baixo 1/4

DOI: http://dx.doi.org/10.18315/argumentum.v7i1.9874

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Argumentum , Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 17-20, jan./jun. 2015. 

Luciana BOITEUX1 

m seu texto, intitulado Política dedrogas na segunda década do novomilênio: reforma ou revolução?,

Francisco Inácio Bastos faz uma firme e

precisa análise dos movimentos atuais deabertura e reforma da política internacionalde drogas, na fronteira entre o proibicio-nismo e seu contraponto: a redução de da-nos, construída a duras penas como umaprática de resistência por atoressociais en-gajados na saúde coletiva e movimentosorganizados oriundos das comunidadesafetadas pelaepidemia da AIDS na década

de 1980. Como destacado, essa política quepretende reduzir os riscos do consumo semnecessariamente exigir a abstinência, cujaestratégia original consistia na troca de se-ringas entre usuários de drogas injetáveis,com muito custo alcançou posteriormente ostatus atual de políticapública em alguns

1Doutora em Direito Penal. Professora adjunta daFaculdade Nacional de Direito (UFRJ, Brasil). Bolsis-

ta de Produtividade em Pesquisa nível 2 do CNPq.Coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política deDrogas e Direitos Humanos (UFRJ, Brasil). Pesqui-sadora associada ao Laboratório de Direitos Huma-nos da UFRJ. Professora do Corpo Permanente doPrograma de Pós Graduação em Direito (UFRJ, Bra-sil). Membro do Conselho Consultivo da Rede Brasi-leira de Redução de Danos e Direitos Humanos(REDUC, Brasil) e da Plataforma Brasileira de Polít-ca de Drogas.Pesquisadora associada ao Núcleo deEstudos sobre Psicoativos (NEIP, Brasil). Membro da

Rede Pense Livre e do Colectivo de Estudios Drogay Derecho (CEDD). E-mail: <[email protected]>. 

países na forma de ações em saúde e supor-te social, em contraponto à pura repressãoque almeja a interdição do consumo e aprodução de determinadas substâncias pormeio da ameaça de pena de prisão.

Verifica o pesquisador, corretamente, a ver-ticalização da adoção do modelo proibicio-nista de controle de drogas, originado decima e imposto aos países, que prega a pro-ibição completa de todo o circuito de pro-dução e consumo de certas drogascomofruto de um movimento geopolítico articu-lado a partir de interesses da ascendente

potência norte-americana, à época, em quepese a oposição de países europeus, parti-dários de outra abordagem mais equilibra-da e menos repressiva em relação às dro-gas.Pois esse sistema verticalizado fez comque os estados nacionais abrissem mão desuas escolhas internas democráticas parainternalizar e ratificar tratados e criminali-zar em suas leis penais tanto usuários como

comerciantes de drogas que passaram àcategoria de proscritas. Apesar das grandesdiferenças entre os países subscritores dostratados internacionais de controle de dro-gas, é impressionante verificar o alto graude harmonização das leis nacionais a essenovo paradigma repressivo, muito distantedo que se tem em relação ao sistema inter-nacional de proteção aos direitos humanos,

cuja adesão é muito inferior.

E

DEBATE

A reforma da Política Internacional de Drogas virá de baixo para cima

International Drug Policy reform will come from the bottom-up

Page 2: BOITEUX, Luciana. a Reforma Da Política Internacional de Drogas Virá de Baixo Para Cima

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Argumentum , Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 17-20, jan./jun. 2015. 

O fato é que, desde 1912, treze instrumen-tos internacionais relacionados a drogasforam elaborados. Mais recentemente, o

sistema atual é formado por três grandestratados ainda em vigor: a Convenção Úni-ca de 1961, a Convenção sobre Drogas Psi-cotrópicas de 1971 e a Convenção contra oTráfico de Drogas Ilícitas de 1988, as quaisforam ratificadas por cerca de 95% dos paí-ses do mundo, em maior número do que ospaíses membros da ONU.

Como reforço da proibição, o marco da“Guerra às Drogas”, que buscava “um

mundo livre de drogas” em 50 anos, elevoua persecução penal a usuários e traficantesde drogas à categoria bélica, capaz de justi-ficar inclusive intervenções internacionaismilitarizadas, além da atribuição da lógicada segurança interna em ações contra cida-dãos comuns, apenas pelo fato de comercia-lizarem tais substâncias em mercados ilíci-

tos criados justamente pela proibição. Masesta não logrou êxito em reduzir o consumoou a oferta.

O fato é que esse modelo foi estabelecidosem que nunca se tenha tido um debateracional, científico ou democrático a respei-to, tendo sido seguido de forma acríticapela quase unanimidade dos países do

mundo, que seguiram a normativa interna-cionalnadefinição de quais drogas seriamconsideradas lícitas (tais como álcool e ta-

 baco) e quais seria ilícitas (como maconha,cocaína, heroína e outras). Em sentido nor-mativo, foi uma decisão política, ou seja,algumas das substância que atuam sobre osistema nervoso central ganharam a qualifi-cação de ilícitas mediante a criação de uma

norma proibitiva e penas severas, bem co-mo de medidas absolutamente excepcio-

nais, como a pena de morte, na Indonésia,que recentemente executou um brasileiropor tráfico de drogas, conforme lembrado

por Bastos. Por outro lado, Nutt; King eSaulsbury (2007) contestam as bases nãocientíficas dessa distinção atual, ao analisaros riscos e danos decorrentes do consumo,de forma comparada, de vários tipos dedrogas, não encontrando motivos suficien-tes para essa classificação internacional.

Aliás, a inclusão da cannabis  no rol dassubstâncias ilícitas, na realidade, ocorreuquase por acaso, em 1925, por decisão da IIConferência Internacional sobre Ópio reali-zada em Genebra, que tinha como focoaadoção de medidas de controle sobre o ópioe a coca/cocaína, mas não sobre acannabis ,que não fazia parte da agenda. Contudo,diante da solicitação do delegado do Egitodesua inclusão nesse rol, afirmado que estaseria “tão perigosa como o ópio”, com o

apoio do representante brasileiro, que afir-mou que tal risco era o mesmo no Brasil,onde o uso também seria muito comum,apesar de alguma resistência de alguns paí-ses, como o Reino Unido, decidiu-se incluirtal planta na lista das substâncias extrema-mente perigosas, junto com a cocaína e oópio, sem qualquer elemento que compro-vasse tal afirmação (KENDELL, 2003).

Assim, após quase cem anos dessa decisão,verifica-se que a maconha volta a ser temade discussão a partir de decisões nacionais,como mencionado no texto de Bastos, que

 bem destaca a recente decisão do Uruguaide regular o mercado da cannabis , assimcomo as mudanças legislativas nesse mes-mo sentido realizadas em quatro estados

norte-americanos: Colorado, WashingtonState, Oregon e Alaska, em relação à maco-

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 “ A Reforma da Política Internacional de Drogas virá de baixo para cima” 

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nha recreacional, apesar da proibição per-manecer no nível federal. Deve ser acres-centado, ainda, que a maconha medicinal já

é realidade há alguns anos em 23 estadosnorte-americanos, havendo ainda a expecta-tiva de que mais cinco estados (Nevada,California, Arizona, Maine e Massachu-setts) irão aprovar leis que autorizem aprodução e a venda de maconha para finsrecreativos ainda este ano (STEINMETZ,2015).

Diante dessa realidade, refletindo sobre apergunta proposta por Bastos em seu arti-go: “reforma ou revolução?”, do ponto de

vista internacional, não vejo a curto ou mé-dio prazo alguma possibilidade de reformadas convenções da ONU, por mais relevan-te que seja a realização da UNGASS 2016 ediante da inédita posição internacional depaíses como Colômbia, México e Guatema-la, que pressionaram por sua realização,

diante dos grandes impactos sobre seusterritórios da fracassada política repressiva.

Na reunião da Comissão de Drogas Narcó-ticas (CND) nesse ano de 2015, preparatóriada UNGASS, já se pode perceber que há

 blocos de países bastante articulados para bloquear qualquer mudança, devendo sermencionada a Rússia (país natal do atual

Diretor Geral do UNODC, onde agentesredutores de danos são presos por ajudarpessoas), além de Paquistão, Egito, China eoutros países asiáticos querejeitamqualquerproposta de abertura. A posição mais avan-çada até agora, que parece ter ganhado al-gum apoio mais representativo, é no senti-do de abrir para uma interpretação maisflexível dos tratados (mas sem alterá-los) de

forma a permitir aos países adotarem solu-ções internas, como no caso de Uruguai,

 bem como para aplicar alternativas à prisãode pequenos traficantes, moderando a lei-tura do tratado que impõe a aplicação da

pena privativa de liberdade para crimes detráfico, diante do fenômeno do superencar-ceramento por crimes de drogas verificadoem vários países do mundo, inclusive noBrasil (BOITEUX, 2010). Um dos países hojemais à frente de debates internacionais so-

 bre alternativas à prisão é justamente osEstados Unidos.

Por outro lado, em relação à descriminali-zação dos usuários, eu entendo que os pró-prios tratados já preveem essa possibilida-de (vide o art. 3.2 da Convenção de 1961que estabelece que a obrigação contida emseu texto de criminalizar a conduta de usu-ários está sujeita a uma “cláusula de salva-guarda” que garante o reconhecimento de

direitos constitucionais e princípios geraisde sua lei interna (BOITEUX; CHERNI-

CHARO; ALVES, 2014) e, assim, já permiteaos Estados uma amplitude maior na esco-lha, não sendo necessária a mudança dasconvenções para que os países deixem decriminalizar a posse de drogas para usopessoal.

Aliás, a questão da descriminalização dousuário, em vias de ser julgada pelo Su-

premo Tribunal Federal, opção já reconhe-cida nas convenções, é realidade emváriospaíses tais como: Uruguai, Espanha, Itália,Argentina e Colômbia (PEREZ CORREA;YOUNGERS, 2014), dentre outros, sem ha-ver oposição aos tratados dos quais sãosubscritores. Espera-se que o Brasil faça omesmo, eis que a Lei nº 11.343/2006, apesarde seus avanços, ainda manteve o usuário

submetido a um controle penal, mesmo

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Argumentum , Vitória (ES), v. 7, n.1, p. 17-20, jan./jun. 2015. 

sem a possibilidade de aplicação de penasrestritivas da liberdade em seu art. 28.

Diante de tudo o que aqui foi dito, apesarde não ter grandes expectativas nesse mo-mento em relação a grandes mudanças dapolítica internacional de drogas, uma arenade difícil abertura, entendo que a partir davanguarda do Uruguai e do sucesso atéagora da regulação da cannabis nos EUA, é

 bastante provável que outros países bus-quem alternativas, incentivados por essasexperiências exitosas. A reforma, ou a revo-lução, portanto, deve vir de baixo. A ONUque se cuide.

Referências

BOITEUX, Luciana. Drogas y prisión: larepresión contra las drogas y el aumento dela población penitenciaria en Brasil. In:METAAL, Pien; YOUNGERS, Coletta (Eds).Sistemas sobrecargados: leyes de drogas ycárceles en América Latina. Amsterdam:TNI, Washington: WOLA, 2010. p. 30-39.

BOITEUX, Luciana; CHERNICHARO, Lu-ciana; ALVES, Camila Souza. HumanRights and DrugConventions: searching-forhumanitarianreason in druglaws. In:LABATE, Beatriz Caiuby; CAVNAR, Clan-

cy. Prohibition, religious freedom andhuman rights: regulatingtraditionaldruguse. Heidelberg: Spring, 2014. p. 1-23.

KENDELL, R. Cannabis condemned: theproscription of indian hemp. Addiction ,London, n. 98, p. 143-151, 2003.

NUTT, David; KING, Leslie A.; SAULS-

BURY, William.Development of a rationalscale to assess the harm of drugs of poten-

tial misuse. Lancet , London, n. 369, p. 1047–

1053, 2007.

PEREZ CORREA, Catalina, YOUNGERS,Coletta (Ed.). En busca de los derechos:usuarios de drogas y las respuestas estata-les en América Latina. México:CEDD/CIDE, 2014.

STEINMETZ, Katy. These five states couldlegalize marijuana in 2016. Time , NewYork, 17 Mar. 2015. Disponível em:<http://time.com/3748075/marijuana-legalization-2016/>. Acesso em: 17 mar.2015.