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Bento XVI e Hans Küng Contexto e perspectivas do encontro em Castel Gandolfo Karl-Josef Kuschel

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Bento XVI e Hans KüngContexto e perspectivas do encontro em Castel Gandolfo

Karl-Josef Kuschel

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

ReitorMarcelo Fernandes de Aquino, SJ

Vice-reitorAloysio Bohnen, SJ

Instituto Humanitas Unisinos

Diretor

Inácio Neutzling, SJ

Diretora adjunta

Hiliana Reis

Gerente administrativo

Jacinto Schneider

Cadernos Teologia PúblicaAno III – Nº 21 – 2006

ISSN 1807-0590

Responsável técnica

Cleusa Maria Andreatta

Revisão

Mardilê Friedrich Fabre

Secretaria

Caren Joana Sbabo

Editoração eletrônica

Rafael Tarcísio Forneck

Impressão

Impressos Portão

Editor

Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial

Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos

Prof. MS Dárnis Corbellini – Unisinos

Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos

Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos

MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos

Esp. Susana Rocca – Unisinos

Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos

Conselho científico

Profa. Dra. Edla Eggert – Unisinos – Doutora em Teologia

Prof. Dr. Faustino Teixeira – UFJF-MG – Doutor em Teologia

Prof. Dr. José Roque Junges, SJ – Unisinos – Doutor em Teologia

Prof. Dr. Luiz Carlos Susin – PUCRS – Doutor em Teologia

Profa. Dra. Maria Clara Bingemer – PUC-Rio – Doutora em Teologia

Profa. MS Maria Helena Morra – PUC Minas – Mestre em Teologia

Profa. Dra. Maria Inês de Castro Millen – CES/ITASA-MG – Doutora em Teologia

Prof. Dr. Rudolf Eduard von Sinner – EST-RS – Doutor em Teologia

Universidade do Vale do Rio dos SinosInstituto Humanitas Unisinos

Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS BrasilTel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467

www.unisinos.br/ihu

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Cadernos Teologia Pública

A publicação dos Cadernos Teologia Pública, sob aresponsabilidade do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,quer ser uma contribuição para a relevância pública dateologia na universidade e na sociedade. A teologia públi-ca pretende articular a reflexão teológica em diálogo comas ciências, culturas e religiões de modo interdisciplinar etransdisciplinar. Busca-se, assim, a participação ativa nos

debates que se desdobram na esfera pública da sociedade.Os desafios da vida social, política, econômica e culturalda sociedade, hoje, especialmente, a exclusão socioeco-nômica de imensas camadas da população, no diálogocom as diferentes concepções de mundo e as religiões,constituem o horizonte da teologia pública. Os Cadernosde Teologia Pública se inscrevem nesta perspectiva.

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Bento XVI e Hans Küng.Contexto e perspectivas do encontro em Castel Gandolfo

Karl-Josef Kuschel

Há um ano Joseph Ratzinger exerce sua funçãocomo Papa Bento XVI. A partir do Dia Mundial da Juven-tude, em agosto de 2005, e da publicação de sua primei-ra encíclica, Deus caritas est, em fevereiro de 2006, deli-neiam-se contornos claros do perfil espiritual desse ponti-ficado. Razão suficiente para refletir sobre os desdobra-mentos que ele possa ter. Com esse objetivo, tomo comoponto de partida um “evento” que talvez esclareça traçosfundamentais do pensamento de Joseph Ratzinger, tra-ços significativos o bastante para oferecer possíveis pers-pectivas quanto ao futuro do seu pontificado.

1 O encontro em Castel Gandolfo, em setembrode 2005

No sábado, dia 24 de setembro de 2005, no palá-cio papal de Castel Gandolfo, realizou-se “em atmosferafraternal” – como diz o comunicado publicado por am-bos logo a seguir – um colóquio de várias horas entre oPapa Bento XVI e o professor Hans Küng. Essa notíciasurpreendeu muitas pessoas, a ponto de a repercussãona mídia ter sido extraordinariamente forte. O periódicoalemão Süddeutsche Zeitung, em sua edição de 27 de se-

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tembro, publicou a notícia na primeira página. Na noiteanterior, os alemães haviam sido informados do fato pelonoticiário nacional mais importante da Alemanha, a ARD,na edição das 20 horas.

1.1 Uma surpresa para a opinião pública

As reações transmitidas pela mídia sobre o encon-tro foram controversas. Iam do alívio à estranheza.

Quem reagiu aliviado viu no encontro um sinal, hámuito esperado, de reabilitação fática de Hans Küngcomo um dos católicos proeminentes de seu tempo. Oque o Papa João Paulo II recusara constantemente ao re-ligioso de Tübingen desde sua suspensão da missio cano-nica em dezembro de 1979 – um esclarecimento pessoalou um sinal de reconhecimento – tornou-se repentina-mente possível, até mesmo em “atmosfera amigável”.Germinaram esperanças de uma reversão em relação àsreformas intra-eclesiásticas exigidas por Küng. DeveriaRatzinger, como Papa, manifestar-se realmente de ma-neira diversa daquela que adotara como presidente daCongregação da Fé?

Com estranheza reagiram os que até então consi-deravam inconciliáveis as concepções de Hans Küng e deJoseph Ratzinger sobre a Igreja e o mundo. Não é Küng o

crítico mais atroz do “sistema romano”? Não fez ele, du-rante anos e publicamente, severas críticas aos represen-tantes deste sistema, sobretudo os membros da Cúria, eem especial Joseph Ratzinger, como então presidentedos “oficiais da Inquisição”? Ora, diriam alguns, se umaconversa como essa acontece tão inesperadamente, serápossível levá-la a sério? Afinal – anunciava o comunicado– havia um acordo prévio entre os dois interlocutorespara excluir questões “doutrinárias” controversas...Assim, o que ocorreu em Castel Gandolfo teria sido ape-nas um episódio a mais da costumeira diplomacia papal,que recepciona grandes personalidades de todo o tipo,mesmo radicais ou estranhas, sejam elas do mundo dapolítica ou do esporte, do jornalismo ou da cultura.

1.2 Dissenso mantido

O encontro entre Hans Küng e Joseph Ratzingernão foi bem compreendido em seu cerne. Esse “evento”não é apropriado para alimentar esperanças por uma re-forma da estrutura interna da Igreja Católica, uma vezque efetivamente os desideratos de reforma, anunciadospor Hans Küng, ou mesmo questões dogmáticas, como ado primado e da infalibilidade do Papa (os dois dogmaspapais do Concílio Vaticano I), não eram objeto do coló-

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quio. Não podiam ser. Ambos, então, conduziram a con-versação conscientes de diferenças básicas e permanen-tes, especialmente na apreciação da necessidade de re-formas estruturais intra-eclesiásticas. Küng jogara aqui,de saída, com cartas abertas. Na correspondência queenviara ao novo Papa, com o pedido de uma conversaentre ambos, seguia anexa a Carta aberta aos cardeais,publicada tanto na revista Der Spiegel como em LaStampa, em abril de 2005, antes do último conclave, naqual Küng apresenta, com muita nitidez, um projetoabrangente e concreto de reformas para a Igreja Católica.

Assim, os resultados concretos do encontro deCastel Gandolfo são realmente espantosos. Interpretá-loscomo tais não significa recalcar as diferenças na aprecia-ção da política eclesiástica interna, tampouco ignorar,sem consideração pelas vítimas, a questão do poder noâmbito interno da Igreja. O que se pretende, sim, é no-mear com sobriedade os pontos específicos nos quais,apesar de tudo, ficam claras algumas convergências nopensamento de Joseph Ratzinger e Hans Küng. Sem dú-vida, essas convergências precisam ser vistas no contextoglobal das teologias de Küng e Ratzinger, bastante diver-

sificadas. Caberia conferir aqui os trabalhos de HermannHäring sobre ambas as teologias1, cuja estrutura interna,por sua complexidade, não pode ser abordada neste mo-mento. Restrinjo-me aqui a uma análise de fundo dosdois campos de conversação claramente delineados, queestiveram no centro do encontro de Castel Gandolfo epareceram ser passíveis de consenso: “o ethos mundial eo diálogo entre a razão das ciências naturais e a razão dafé cristã”. Cito primeiramente o documento completo,antes de interpretá-lo e delinear aspectos de fundo e pers-pectivas futuras:

O professor Küng constatou que o projeto de um ethosmundial não se trata de uma construção intelectualabstrata. Ao invés disso, enfocam-se os valores moraisnos quais há convergência entre as grandes religiões domundo, apesar de todas as diferenças entre elas, e osquais, com base em sua sensatez convincente, podemapresentar-se como parâmetros válidos também à razãosecular. O Papa avaliou positivamente o esforço do pro-fessor Küng no sentido de contribuir, no diálogo das reli-giões e no encontro com a razão secular, para um reco-nhecimento renovado dos valores morais essenciais dahumanidade. Ele constatou que a opção por uma cons-

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1 H. Häring, Hans Küng. Grenzen durchbrechen [Romper fronteiras], Mainz, 1998; Idem. Theologie und Ideologie bei Joseph Ratzinger. Düsseldorf,2001. H. Häring – K.-J. Kuschel, Hans Küng. Neue Horizonte des Denkens und Gluabens [Hans Küng. Novos horizontes do pensamento e da fé],Munique, 1993. W. Jens – K.-J. Kuschel. Dialog mit Hans Küng. Munique, 1996.

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ciência renovada dos valores básicos da vida humanatambém expressa um interesse essencial de seu pontifi-cado. Da mesma forma, o Papa reforçou seu apoio aosesforços do professor Küng, no sentido de dar nova vidaao diálogo entre a fé e as ciências naturais e de valorizar,em sua racionalidade e necessidade, a questão da posi-ção de Deus diante do pensamento das ciências natu-rais. De sua parte, o professor Küng expressou seu apoioaos esforços do Papa pelo diálogo das religiões, bemcomo pelo encontro com os diferentes grupos sociais domundo moderno.

2 Aspectos de fundo

Em 1990, Hans Küng publicou seu escrito progra-mático Projekt Weltethos [port.: Projeto de Ética Mundial,Ed. Paulinas, 1990] e desde então não se pode ignorar adiscussão interdisciplinar e internacional sobre o objetivocentral desse “projeto”2. Ele foi alvo de muitas interpreta-ções errôneas. Por isso, para os que entenderam e assu-miram essa agenda de um ethos mundial, é muito impor-tante que Küng, no texto elaborado pelo Papa, com a

anuência do primeiro, tenha podido corrigir percepçõeserrôneas do seu Projeto de Ética Mundial.

2.1 Percepções errôneas negadas

Com o Projeto de Ética Mundial realmente, não setrata de uma “construção intelectual abstrata”, o que sópoderia significar a tentativa de postular valores acima ouao lado das religiões – na tênue atmosfera da abstraçãointelectual – que então seriam afirmados como suposta-mente universais e infligidos às religiões. Essa percepçãoé claramente refutada pela constatação de que, segundoesse projeto, “são enfocados valores morais, aos quaisas grandes religiões do mundo convergem, apesar de to-das as diferenças”. Esta foi realmente, desde o início, aautocompreensão do Projeto de Ética Mundial. Ele nãose concebeu como tentativa de eliminar de alguma for-ma, como pátina envelhecida, as religiões concretas eempiricamente existentes (com suas doutrinas, ritos emandamentos diversificados) e então propagar “valoreshumanos” (se possível ainda com base em uma “nature-za” humana imutável). Também não se pretendia, com

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2 Primeiras repercussões in: H. Küng; K.J. Kuschel (org.). Wissenschaft und Weltethos [Ciência e ethos mundial]. Munique, 1998; Bibliografia para odebate do Etos Mundial, p. 493-511. H. Küng (org.). Dokument zum Weltethos [Documentos para o ethos mundial]. Munique, 2002.

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base nas diversas religiões, misturar uma espécie de “co-quetel” ético, ou destilar delas algo como um minimalis-mo ético com o qual qualquer um pudesse estar deacordo.

Programaticamente, já se afirma no prefácio dodocumento-chave do Projeto de Ética Mundial, a Decla-ração do Parlamento das Religiões Mundiais, consignadana cidade de Chicago, em 1993: “Uma ética mundialpretende, não obstante todas as diferenças, salientar oque as religiões do mundo já têm em comum no que serefere ao comportamento humano, valores éticos e con-vicções morais básicas.” Em outras palavras: o Projeto deÉtica Mundial não reduz as religiões a um minimalismoético, antes, porém, “realça o mínimo do que, na ética decada uma delas, já há de comum com as demais religiõesdo mundo. Ele não se dirige contra ninguém, contudopermite a todos, tanto crentes como não-crentes, apropri-arem-se desse conteúdo ético e agirem em conformidadecom ele”. Note-se a expressão “o que já há de comum”.

Com isso afirmam-se duas coisas: essa ética co-mum não é abstraída, porém apontada empiricamenteem cada uma das religiões. Pode-se contatá-la agoramesmo, ela já está presente. Assim, por meio de investi-gações comparativas entre as religiões, é possível consta-tá-la concretamente nas fontes de cada religião. Um

exemplo: a Regra de Ouro. Ela se encontra nas fontestextuais clássicas das grandes religiões e éticas, de Confú-cio a Kant.

2.2. Sobre a relação razão – fé segundo a Fides et Ratio

Um segundo aspecto é igualmente importante.Orientar-se segundo o ethos, segundo essa ética comum,une de saída os crentes e os não-crentes. Não se propagaum exclusivismo de pessoas religiosas contra não-religio-sas, porém indica-se um consenso inter-religioso existen-te, que se torna convite a que se compartilhe esse ethosconcreto com pessoas sem vínculo religioso. O objetivoprincipal do Projeto não é separação, e sim participação.Por isso, na segunda metade da frase antes citada no co-municado de Castel Gandolfo, afirma-se apropriada-mente: “Ao invés disso, enfocam-se os valores moraisnos quais há convergência entre as grandes religiões domundo, apesar de todas as diferenças entre elas, e osquais, com base em sua sensatez convincente, podemapresentar-se como parâmetros válidos também à razãosecular.”

É notável, nessa formulação, a expressão “razãosecular”. Note-se a escolha singular dos termos que, semqualquer desqualificação, parece atribuir grande impor-

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tância à razão religiosamente não-orientada. Reconhe-cem-se três aspectos:

• também se reconhece “racionalidade” no pen-samento arreligioso;

• também ao pensamento arreligioso podem re-velar-se valores religioso-morais dotados de“sensatez convincente”;

• também para o pensamento arreligioso há parâ-metros válidos, que podem estar em conformi-dade com valores religioso-morais; podem es-tar, mas não necessariamente estão.

É notável, ademais, o constante paralelismo entre“razão da fé cristã” e “razão secular”, já que esse parale-lismo impede valorizações divisionistas na relação entrerazão e fé. Ambas, tanto a fé cristã como o pensamentosecular, têm sua própria racionalidade. Ambas encon-tram-se, de início, fundamentalmente lado a lado nomesmo nível. Com isso se supera uma desqualificação re-cíproca entre razão e fé, igualmente caracterizada comofatal para a história da modernidade. Bem entendida, noentanto, a fé cristã não deve desqualificar o pensamentosecular como “ateu”, e a “razão secular” não pode consi-derar a fé cristã como irracional.

Como pano de fundo desse paralelismo conceitualentre “razão da fé cristã” – razão secular” temos um dos

mais notáveis documentos da era de João Paulo II, quese deve essencialmente à formulação reflexiva de JosephRatzinger: a encíclica Fides et Ratio, de setembro de1998. Aqui se expressam pensamentos essenciais sobre o“drama da separação entre fé e razão” e sobre o “interes-se da Igreja pela filosofia” e os “efeitos correlatos entre te-ologia e filosofia”.

Sem dúvida, uma análise detalhada desta encíclicacertamente também faria aparecerem aspectos questioná-veis. Afirmações sobre o papel do Magistério da Igreja (n.49-56) no conflito entre teologia e filosofia são seguramen-te problemáticas, já que deixam de fazer uma autocríticadesse “magistério”. O principal objetivo, porém, desse tex-to doutrinário merece reconhecimento. Sua orientação éque “fé e filosofia devem readquirir a profunda unidadeque as capacita, sob um respeito recíproco da autonomiade cada uma, ser fiéis à própria essência” (n. 48). Aindamais explicitamente numa outra passagem:

A Revelação, com os seus conteúdos, jamais poderá re-primir a razão em suas descobertas e em sua legítimaautonomia; inversamente, no entanto, a razão não po-derá alçar-se a uma validade absoluta e exclusiva, nemjamais perder sua capacidade de deixar-se questionar ede questionar... A filosofia será o solo para o encontroentre as culturas e a fé cristã, o lugar do entendimentoentre crentes e não-crentes (n. 79).

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Tal maneira de pensar é fundamental quando sefala de “razão da fé cristã” e de “razão secular” no comu-nicado de Castel Gandolfo. E tal meneira de pensar é si-multaneamente realista e reveladora de perspectivas fu-turas. No mundo do terceiro milênio, vivem realmente,lado a lado, pessoas religiosas e arreligiosas; e só podemfazê-lo pacificamente caso compartilhem uma certa or-dem de valores e ideais. Somente um modelo reciproca-mente crítico de convergência entre fé e razão podepôr-se realmente a serviço do bem-estar humano. Porisso, as frases subseqüentes do comunicado não apenasvalorizam o esforço de Hans Küng de “contribuir para umreconhecimento renovado dos valores morais essenciaisda humanidade”, tanto no “diálogo das religiões”, bemcomo “no encontro com a razão secular”, mas tambémsinalizam que o Papa assumiu pessoalmente esse “esfor-ço”. Lê-se que o “empenho por uma consciência renova-da dos valores portadores da vida humana” também se-ria um “objetivo essencial de seu pontificado”.

2.3 O Discurso de 2004 de Ratzinger em Munique

Para os conhecedores da trajetória de Joseph Rat-zinger isso em absoluto não surpreende. Basta ler seu li-vro Werte im Zeichen des Umbruchs. Die Herausforde-

rungen der Zukunft bestehen [Valores sob o signo da rup-tura. Persistem os desafios do futuro], de 2005. Aí se en-contram formuladas, capítulo após capítulo, em estágiomenos ou mais completo, as figuras de pensamento men-cionadas de forma rápida no comunicado. Quer se tratede “bases morais pré-políticas de um Estado livre”, de“princípios morais em sociedades democráticas” ou de“fundamentos espirituais” da identidade da Europa, háem toda a parte um esforço de Joseph Ratzinger no senti-do de fundamentar o “significado de valores religiosos eéticos” diante da pluralidade fática de religiões e ideolo-gias em uma sociedade mundial una. Até ao nível dasformulações, poderiam apontar-se convergências compublicações de Hans Küng, como Uma ética global para apolítica e a economia mundiais (Ed. Vozes, 1999), Globa-le Unternehmen – globales Ethos. Der globale Markt er-fordert neue Standards und eine globale Rahmenord-nung [Empresas globais – ética global. O mercado globalrequer novos padrões e novos parâmetros ordenadores](2001), ou finalmente Friedenspolitik. Ethische Grundla-gen internationaler Beziehungen [Política da paz. Funda-mentos éticos das relações internacionais] (2003).

Eis aí a razão objetiva mais profunda para que, doponto de vista da política eclesiástica, não se tome por“dispensável” o encontro desses dois pensadores com-

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prometidos com a política eclesiástica. Na verdade, o en-contro de ambos vem atualizar esses resultados objetivos,como expressão de uma convergência no pensamentoque se delineava há mais tempo – em face da necessida-de de um entendimento intercultural e inter-religioso so-bre fundamentos éticos em uma sociedade mundial una.

Isso se expressa principalmente no discurso pro-gramático que Joseph Ratzinger, ainda como cardeal,pronunciou em presença do filósofo Jürgen Habermasem 19 de janeiro de 2004, na Academia Católica Bávarade Munique. Os dois relatórios elaborados naquela oca-sião estão disponíveis no volume Jürgen Habermas – Jo-seph Ratzinger. Dialektik der Säkularisierung. Über Ver-nunft und Religion [Jürgen Habermas – Joseph Ratzin-ger. Dialética da secularização. Sobre Razão e Religião](Freiburg/Br., 2005). Consideremos com exatidão o flu-xo central das considerações de Ratzinger.

Ponto de partida de todas as reflexões é um diag-nóstico do desenvolvimento histórico contemporâneo.Principalmente dois fatores – a formação de uma socie-dade mundial, na qual progressivamente todos depen-dem uns dos outros, e as possibilidades humanas no âm-bito do fazer e destruir, historicamente sem precedentes –exigem uma resposta à seguinte questão: “De que modoas culturas em confronto podem encontrar fundamentos

éticos que possam conduzir sua convivência ao caminhocorreto e construir uma estrutura comum, juridicamenteresponsável, de sujeição e ordenamento do poder?” Ma-nifestamente, já na segunda seção de seu discurso emMunique, Ratzinger se refere ao Projeto de Ética Mundialde Küng: “Que o Projeto de Ética Mundial, proposto porHans Küng, encontre tal adesão, mostra em todo o casoque a questão está posta.” É verdade que, naquele mo-mento, em concordância com Robert Spaemann, Ratzin-ger ainda manifesta reservas. Mas ao tomar consciênciado problema ele sinaliza uma base comum com Küng,como ponto de partida: no processo histórico mundial doencontro e na interpenetração de culturas, “certezas éti-cas” estariam amplamente rompidas. A pergunta sobre oque seria “o Bem” estaria sem resposta, uma vez que a“ciência” de hoje não poderia mais fornecer uma cons-ciência ética renovada desse tipo. Ao contrário.

O que então poderia garantir um “ethos universal-mente vinculante”? – pergunta Ratzinger. A democracia?Por que não? O Direito não submeteu o poder no decur-so da história dos Estados constitucionais modernos? Eas declarações de direitos humanos modernas, não sãoelas expressão visível de que existe, contudo, algo comouma ordem jurídica universal? Ocorre no entanto – assimobjetou Ratzinger – que também o direito necessita dos

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fundamentos éticos. A referência ao “princípio democrá-tico da maioria” não é suficiente por si só. E por que não?Também “maiorias podem ser cegas e injustas”! E acres-centa: embora existam declarações de direitos humanosde vários tipos, interculturalmente eles são hoje entendi-dos de maneira diversificada. “O Islã definiu um catálogopróprio dos direitos humanos, divergente do ocidental.Hoje, a China organiza-se segundo uma forma culturalsurgida no Ocidente, o marxismo; no entanto, questionase os direitos humanos não seriam uma invenção tipica-mente ocidental que se deveria contestar.” Disso decorreque mesmo um simples apelo aos “direitos humanos”não fornece qualquer base ética confiável.

A isso se acrescentam “novas formas de poder enovas questões sobre seu controle”. Hoje a humanidadeestá menos ameaçada pelas bombas das superpotênciasdo que pelas pequenas bombas de terroristas. Ademais,por um terrorismo que é “nutrido por um fanatismo reli-gioso”. A religião mostra o seu lado patológico-patogêni-co, de modo que Ratzinger propõe a pergunta: “A reli-gião não deve ser colocada sob a tutela da razão e ser cui-dadosamente delimitada?” A razão seria, então, a basevinculante para todos? Não, porque as hodiernas possibi-lidades de métodos biocientíficos de produção e reprodu-ção também fazem emergir “dúvidas na confiabilidade

da razão”. “A tentação de agora finalmente construir-se overdadeiro homem, a tentação de experimentar com se-res humanos, a tentação de encarar o ser humano comolixo e eliminá-lo, não é nenhum fantasma de moralistasinimigos do progresso.” A questão se agrava, portanto: setanto a religião como a razão secular podem tornar-seimoralmente irracionais, de onde, então, conquistar uma“evidência ética eficaz” na “sociedade mundial” una emque vivemos, “com seus mecanismos de poder e suas for-ças descontroladas”?

Justamente na tradição católica foi normal aceitaruma base segura para o Bem e para o Mal no “direito na-tural”. E esta não é, tanto antes como agora, a solução?Não podem todos os humanos, tanto religiosos comonão-religiosos, estar de acordo com isso? Também esse“instrumento”, segundo Ratzinger, “se teria desgasta-do”, de modo que ele pessoalmente se manteria distan-te de uma referência ao “direito natural”, pois sua idéiapressuporia “um conceito de natureza, no qual naturezae razão se acoplam”, sendo a própria natureza “racio-nal”. Essa visão da natureza, contudo, “se teria desman-telado” com a vitória da teoria evolucionista. A naturezacomo tal não seria racional, mesmo que nela houvessecondutas racionais.

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Não obstante, Ratzinger quer ater-se a um “últimoelemento do direito natural” e por isso retorna, mais umavez, aos direitos humanos. Eles não seriam compreensí-veis sem o pressuposto de que o ser humano como tal,simplesmente por pertencer à própria espécie, é sujeitodos direitos, e seu self traz em si mesmo, portanto, valorese normas que precisam ser encontrados, mas não inven-tados. Disso decorrem para Ratzinger dois aspectos: pri-meiro, “talvez a doutrina sobre direitos humanos devesseser hoje complementada por uma doutrina dos devereshumanos e dos limites do homem”; segundo, “tal com-plementação deveria hoje ser exposta e adota ‘intercultu-ralmente’”. “Para os cristãos, tratar-se-ia da criação e doCriador; no mundo indiano, o correspondente seria oconceito do ‘Dharma’, da normatividade interna do ser;na tradição chinesa, a idéia da ordem e do céu”.

Ratzinger atinge, desse modo, o ponto decisivo desua argumentação. Caso se trate de buscar uma “baseética comum” para a sociedade mundial única, entãoisso, caso realmente ocorra, só pode ser obtido de formaintercultural e inter-religiosa. Tradições éticas dos espa-ços culturais, por exemplo, do Islã, do hinduísmo, mastambém da África, devem ser postos lado a lado com atradição européia. Sem dúvida, a comparação intercultu-ral e inter-religiosa tem conseqüências: para a “razão se-

cular” e para a “razão da fé cristã”. Ratzinger vê isso comclareza. Quem se dispõe a ter em consideração as tradi-ções ético-religiosas de toda a humanidade deve contarcom um questionamento da racionalidade ocidental ecom a possibilidade de se pôr em questão a “pretensãouniversal da revelação cristã”. Ambas as formas de in-terpretação do mundo, surgidas na Europa, já não po-dem hoje sustentar uma pretensão de universalidade.Pretensões de universalidade só podem sustentar-sequando se pensa universalmente. Em linguagem ética:quando se podem demonstrar elementos de um ethoshumano universal.

2.4 Convergências Ratzinger-Küng

Essa reconstrução do discurso de Ratzinger emMunique mostra notáveis paralelos, e mesmo convergên-cias com o pensamento de Hans Küng e de sua obra pro-gramática Projeto de Ética Mundial, do ano de 1990. Épossível precisar essas convergências em três pontos:

1) A sociedade de um mundo uno, que emerge nodecurso da globalização econômica, acelera processos deunificação, não só no âmbito de organizações mundiais,do direito mundial e da política interna mundial, mastambém processos de busca por um padrão ético co-

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mum. O mundo único requer o ethos único. Entretanto,o ethos único só se adquire mediante uma pesquisa inter-cultural e inter-religiosa de seus fundamentos. Essa exi-gência por interculturalidade, com o objetivo de uma uni-versalização de padrões éticos, é um desafio singularpara a cultura ocidental, que com a “razão secular” e a“razão da fé cristã” produziu dois modelos predominan-tes de interpretação do mundo.

2) O que Joseph Ratzinger formula em seu discur-so de Munique encontra paralelo na análise de paradig-mas de Hans Küng. Em seu livro O cristianismo. Essênciae história [Das Christentum. Wesen und Geschichte], de1994, Küng já propusera uma crítica diferenciada da mo-dernidade eurocêntrica. Ratzinger conclui sua fala emMunique com a frase programática, que também tem seuparalelo nos escritos de Hans Küng:

É importante para ambos os grandes componentes dacultura ocidental que eles também se dediquem a umouvir, a uma relação verdadeiramente mútua com essasculturas. É importante incluí-los na tentativa de umacorrelação polifônica, na qual eles mesmos se abram àcomplementaridade essencial da razão e da fé, de modo

que possa crescer um processo universal de purificação,no qual, enfim, os valores e as normas essenciais, de al-gum modo conhecidos ou pressentidos por todos os hu-manos, possam conquistar nova luminescência, demodo que “aquilo que mantém o mundo coeso”3 possaalcançar novamente uma força eficaz.

Essa última frase contém duas importantes especi-ficações: atualmente a “razão secular” e a “razão da fécristã” só podem conquistar plausibilidade e poder deconvencimento numa “correlação polifônica” com filoso-fias e religiões não-européias. Se elas se dispuserem aessa “correlação polifônica”, então poderá surgir algocomo um “processo universal de purificação” da razão eda fé, em cujo decurso “os valores e normas essenciais,de algum modo conhecidos ou pressentidos por todos oshumanos” podem conquistar novo convencimento. Tudoserve ao objetivo de que na humanidade unida “aquiloque mantém o mundo coeso” adquira nova eficácia.Enfatizemos uma vez mais, com expressões-chave, os as-pectos elaborados por Ratzinger: correlação polifônicaentre razão e fé, purificação recíproca da fé e da razão,conscientização dos “valores e normas essenciais” co-

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3 Alusão ao Fausto de Goethe, em que a personagem principal anseia justamente por entender o elemento que dá coesão e integridade ao mundo,ou seja, “was die Welt zusammenhält”.

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nhecidos ou pressentidos por todos os humanos. E seuobjetivo: um ordenamento de valores e normas que“mantenha o mundo coeso”.

3) Há convergência, também, na solicitação deRatzinger de que se complemente a “doutrina dos direi-tos humanos com uma doutrina dos deveres humanos edos limites do ser humano”. Hans Küng antecipara argu-mentos como esse ao manifestar-se em favor do InterAction Council, que na época estava sob a condução doex-chanceler alemão Helmut Schmidt. Ele é o autor deuma Declaração universal dos deveres humanos, procla-mada pelo Inter Action Council4. Nesse contexto, Küngfundamentou teoricamente a indissolúvel conexão entredireitos humanos e deveres humanos e a defendeu de crí-ticos, especialmente no volume Dokumentation zumWeltethos (2002), editado por ele.

3 Sinalizações do futuro

De que maneira se poderiam traduzir na práticado pontificado de Joseph Ratzinger tais princípios de

uma busca por padrões éticos universais? Afinal, a exi-gência por uma correlação polifônica entre fé e razão epor uma universalização de “valores e normas essen-ciais” já havia sido analisada pelo atual Papa, em seustextos teóricos anteriores ao papado. Há bem um anoque Bento XVI está no poder. Dois acontecimentos já per-mitem conhecer um pouco melhor o perfil espiritual deseu pontificado: o Dia Mundial da Juventude, de Colô-nia, em agosto de 2005, e a encíclica Deus caritas est, pu-blicada em fevereiro de 2006.

3.1 O “Dia Mundial da Juventude” de 2005, em Colônia

Sabidamente, o Dia Mundial da Juventude não éinvenção de Joseph Ratzinger. Ele foi o grande objetivode João Paulo II, e a comemoração em Colônia foi mar-cadamente a concretização de um legado seu. Bento XVI,todavia, aproveitou a oportunidade de maneira brilhan-te, também para si. Seu primeiro aparecimento ante opúblico mundial foi um sucesso. O evento como tal en-controu ressonância positiva em todo o mundo, por vá-rias razões:

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4 Em português, a “Declaração dos deveres da humanidade” está publicada e comentada em um mesmo volume com a “Declaração de ética mundial”:Küng, H.; Schmidt, H. Uma ética mundial e responsabilidades globais: duas declarações. São Paulo: Loyola, 2001.

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1) A Igreja Católica tornou-se publicamente visívelcomo entidade que, agora como antes, congrega tam-bém muitos jovens e como entidade religiosa que engajasocialmente. Isso foi considerado importante por muitosparticipantes e observadores, por se dar em uma épocade profunda perda de orientação e de erosão das culturasfundadas em uma herança religiosa cristã, como nuncaantes na história, especificamente em muitos países atéaqui marcados por essa tradição.

2) A Igreja Católica ganhou visiblidade como Igre-ja mundial. Em uma época de globalização sem prece-dentes, tanto dos mercados, como dos meios de comuni-cação e da infra-estrutura turística, isso é mais importantedo que nunca. A globalização meramente econômica ob-tém, assim, um contrapeso religioso e eclesiástico. A reli-gião, concebida positivamente, pode ser entendida e atuarcomo energia espiritual geradora de unidade que abran-ge nações, culturas e povos inteiros. Em vista dos perigosde uma redução econômica da globalização, uma macro-organização como a Igreja Católica, globalmente organi-zada há séculos, pode desenvolver uma vez mais, e demaneira bem diversa, o seu potencial espiritual e ético, ecom isso trazer à cena, de modo bem diverso, suas expe-riências positivas em prol de correções e aprofundamen-

tos: tudo isso no sentido de uma espiritualização e mora-lização da consciência global. Paz mundial e justiça mun-dial são interdependentes!

3) Na concorrência global das religiões e ideolo-gias, a Igreja Católica tornou visível a identidade do cristia-nismo, também num velho continente como a Europa. AIgreja ganha perfil em uma situação mundial caracteriza-da por um duplo movimento: a decadência das grandesideologias do século XX, como o fascismo e o socialismo;e o renascimento das forças vinculadoras em muitas reli-giões da Terra. Palavras-chave: revitalização do Islãcomo fator de política mundial; revigoramento do confu-cionismo numa China que está a caminho do poder eco-nômico mundial, com irradiação para toda a Ásia. Emum contexto global como esse – de vácuo pós-ideológi-co, de um lado, e de nova confrontação com macroalter-nativas religiosas, de outro – a demonstração pública daenergia espiritual do cristianismo perante cristãos emtodo o mundo constitui fator importante na geração deidentidade. E nesse sentido a identidade cristã de BentoXVI não foi apresentada em categorias de confrontaçãomissionária, mas sim segundo categorias de dialogicida-de. Identidade não exclui dialogicidade, mas a inclui.

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3.2 Apelo ao diálogo com judeus e muçulmanos

Isso também se tornou nítido nos pronunciamen-tos de Bento XVI que tiveram significado fundamentalpara a compreensão inter-religiosa: no dia 19 de agosto,na Sinagoga em Colônia, e no dia 20 de agosto, duranteo encontro com “representantes de comunidades muçul-manas”. Perante seus ouvintes, homens e mulheres, ju-deus, Bento XVI lembrou que o Concílio Vaticano II, comsua declaração Nostra Aetate, “abrira novas perspectivasnas relações judaico-cristãs”, que ora se caracterizam “pordiálogo e parceria”. A Igreja Católica se empenharia por“tolerância, respeito, amizade e paz entre todos os povos,culturas e religiões”. Muita coisa se fizera “para melhorar eaprofundar a relação entre judeus e cristãos”. Ele estariaexpressamente disposto a “estimular um diálogo sincero econfiável entre judeus e cristãos”. Literalmente:

Somente assim será possível chegar a uma interpreta-ção, aceita por ambos os lados, de questões históricasainda polêmicas e sobretudo fazer progressos na avalia-ção teológica da relação entre judaísmo e cristianismo.Sinceramente, não se pode tratar neste diálogo de igno-rar ou banalizar as diferenças subsistentes. Além disso,devemos respeitar-nos e amar-nos reciprocamente emespecial naquilo que, com base em nossa mais profundaconvicção de fé, nos diferencia uns dos outros.

De maneira semelhante, o Papa também se mani-festou diante de representantes de comunidades islâmi-cas, abordando diretamente o problema do terrorismo.Também no caso do Islã, ele vislumbra as diretrizes doConcílio Vaticano II, que marcam época. Ele cita da de-claração Nostra Aetate o parágrafo n.º 3 sobre a fé dosmuçulmanos. E conclui sua curta alocução com as se-guintes frases:

Essas palavras do Concílio Vaticano II permanecempara nós como a Magna Carta do diálogo convosco,queridos amigos muçulmanos, e eu me alegro que vósnos falastes com o mesmo espírito, confirmando essasintenções. Vós, caros amigos, representais algumas co-munidades muçulmanas que existem nesta terra, naqual eu nasci, estudei e passei uma grande parte da mi-nha vida. Precisamente por isso foi meu desejo encon-trar-vos. Vós conduzis os fiéis do Islã e os educais na fémuçulmana. A doutrina é o meio de transmissão de re-presentações e convicções. A palavra é o caminho prin-cipal na educação do espírito. Por isso, vós carregaisuma grande responsabilidade na educação das subse-qüentes gerações. Estou grato por ouvir em que espíritovós preservais esta responsabilidade. Nós – cristãos emuçulmanos – devemos, em comum, posicionar-nosante os numerosos desafios que nossa época nos im-põe. Não há lugar para apatia e inatividade e, menosainda, para partidarismos e sectarismos. Não podemos

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abrir espaço para o temor e o pessimismo. Devemos an-tes cultivar otimismo e esperança. O diálogo inter-religiosoentre cristãos e muçulmanos não pode ser reduzido auma decisão sazonal. De fato, ele é uma necessidade vi-tal, da qual depende o nosso futuro.

3.3 A primeira encíclica

Em fevereiro de 2006, Bento XVI publicou sua pri-meira encíclica, ansiosamente esperada. Ela traz o títuloDeus caritas est. É verdade que o texto não se relacionadiretamente com o diálogo inter-religioso e intercultural;quer antes ser uma auto-reflexão e um autocompromen-timento elementar da Igreja Católica com o ethos doAmor. Entretanto, esse ethos do Amor não é apenas umethos interno para cristãos, mas abrange universalmentetodos os seres humanos. “A força do cristianismo ultra-passa consideravelmente os limites da fé cristã”, lê-se noparágrafo 31. Um pensamento essencial, que logo a se-guir se torna mais preciso:

Além disso, o amor praticado ao próximo não pode serum meio para aquilo que hoje se designa como proseli-tismo. O amor é gratuito, ele não é praticado para, comisso, alcançar outros objetivos (...). Quem atua caritati-vamente em nome da Igreja jamais tentará impor aooutro a fé da Igreja. Ele sabe que o amor em sua pureza

e despretenciosidade é o melhor testemunho paraaquele Deus, no qual cremos e que nos impele aoamor”. (n. 31c).

Neste texto não cabe discutir essa encíclica. Masvale dizer: quem tomar o documento ao pé da letra nãodeixará de perceber as conclusões que advertem tambémas práticas de diversos grupos no âmbito interno da Igre-ja. Hans Küng fez isso à sua maneira, sinalizando que,apesar de todas as convergências nos territórios do pen-samento e do diálogo, importantes para a sociedademundial, ele mantém coerentemente os seus desideratosde uma reforma intra-eclesiástica, bem como sua posiçãoem favor das vítimas de uma postura insensível e autori-tária no interior da Igreja. Em seu posicionamento em re-lação à primeira encíclica, Küng sinaliza que, com BentoXVI, tanto antes como agora, ele nutre expectativas emvista de “conseqüências para as estruturas eclesiásticas eas regulamentações jurídicas”. Ele espera deste Papa“uma segunda encíclica, não sobre o amor de Deus e deJesus Cristo e sobre o agir caritativo da Igreja e de suasorganizações, porém sobre as estruturas da justiça naprópria Igreja institucional e sobre o trato amoroso comtodos os diversos grupos”: “com os homens e as mulhe-res que usam meios de prevenção; com os separados enovamente casados; com os sacerdotes segregados por

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causa do celibato; com as vozes críticas dentro da Igreja;com os ministros protestantes e anglicanos, a quem se re-cusa a validade das celebrações da Eucaristia. ”

Os resultados do encontro de Castel Gandolfo sãoimportantes também para o conjunto da Igreja. Eles di-zem respeito a uma problemática objetiva, em direção àqual ambos se mobilizaram de modo diversificado emseus respectivos percursos de vida e pensamento. E issosignifica:

• busca de um padrão ético universal na socieda-de mundial una;

• correção dialógica recíproca e complementari-dade entre “razão secular” e “razão da fé cristã”,para impedir ou atenuar as patologias da razãoe da fé;

• esforço por uma melhor compreensão recíprocaentre pessoas de diferentes religiões e com dife-rentes vínculos em suas visões de mundo, numa“correlação polifônica” entre a fé e a razão;

• fé cristã comum como fundamento de tudo,concretizada num ethos do amor. Esse amor deDeus a todos os seres humanos é a mais pro-funda legitimação e motivação para um esfor-ço por melhor compreensão e solidariedaderecíprocas.

Joseph Ratzinger tem agora, como Papa, possibili-dades únicas de marcar o cenário religioso e políticomundial. Supostamente, suas marcas serão diferentesdas de seu predecessor; caso se levem a sério seus escri-tos teóricos, no entanto, essas marcas deverão orien-tar-se pela questão que ele mesmo designou como a “demaior urgência”: “De que modo as culturas, em seu en-contro, poderão descobrir fundamentos éticos que con-duzam sua convivência ao caminho correto e de quemodo poderão construir uma nova estrutura comum e ju-ridicamente responsável para a delimitação e ordena-mento do poder”. O ano de 2006, mais nitidamente doque antes, há de esclarecer para onde nos conduz estepontificado.

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O Prof. Dr. Dr. honoris causa Karl-Josef Kuschel leciona Teologia da Cultura e do DiálogoInter-religioso na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen. É vice-presi-dente da Fundação Weltethos [Ética mundial].

Algumas publicações do autor

Jesus im Spiegel der Weltliteratur. Eine Jahrhundertbilanz in Texten und Einführungen [Imagens de Jesus na literaturamundial. Textos e informações introdutórias para um século em perspectiva], Düsseldorf, 1999;Streit um Abraham. Was Juden, Christen und Musline trennt – und was sie eint [Conflito sobre Abraão. O que separa ju-deus, cristãos e muçulmanos - e o que os une], Düsseldorf, 2001 – Edição em espanhol: Discordia en la casa de Abra-

han. Lo que separa y lo que une a judíos, cristianos e musulmanes. Estella (Navarra): Verbo divino, 1996;Gottes grausamer Spass? Heinrich Heines Leben mit der Katastrophe [Gracejo tétrico de Deus? A vida de Heinrich Hei-ne com a catástrofe], Düsseldorf, 2002;Jud, Christ und Muselmann vereinigt? Lessings “Nathan der Weise” [Judeu, cristão e muçulmano unidos? “Natã, o sá-bio”, de Lessing], Düsseldorf, 2004;Das Weihnachten der Dichter. Grosse Texte von Thomas Mann bis Reiner Kunze [O Natal dos poetas. Grandes textosde Thomas Mann até Reiner Kunze], Düsseldorf, 2004.