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AS RELAÇÕES ENTRE MEMÓRIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA NA OBRA DE CLARICE LISPECTOR: UMA FONTE PARA A TEORIA DA HISTÓRIA Camila dos Santos da Costa 1 João Pedro da Silveira Guimarães 2 Universidade Católica de Petrópolis [email protected] [email protected] O livro A Hora da Estrelade Clarice Lispector, publicado em 1977, relata de maneira intimista a história do narrador personagem Rodrigo S.M entrelaçada com a história de vida da personagem alagoana Macabéa. O narrador, um dia, ao encontrar uma nordestina na rua com uma realidade tão diferente da dele, inspirou-se a escrever uma narrativa sobre a existência dessa personagem peculiar. No decorrer da escrita, Rodrigo S.M voltou-se para suas questões mais íntimas, inclusive refletindo sobre o próprio ato de escrever. A história contada sobre Macabéa iniciou-se relatando a morte de sua tia, que cuidou dela após a morte de seus pais. Com isso, a protagonista mudou- se para o Rio de Janeiro para exercer a profissão de datilógrafa que a tia lhe arranjara. A alagoana passou a morar na rua Acre, em um apartamento com quatro mulheres que trabalhavam nas Lojas Americanas. Sentia orgulho em exercer a profissão de datilógrafa, porque, de alguma forma, estava inserida em alguma função na sociedade. Em seu cotidiano na cidade do Rio de Janeiro, Macabéa conheceu um jovem rapaz nordestino chamado Olímpico, que, ao contrário da personagem, tinha muitas ambições na vida. Os dois iniciaram um relacionamento em que estavam juntos para sanar a solidão, porquanto ambos eram tão diferentes, já que a moça não tinha muita expectativa para o futuro e não tinha consciência da própria existência. Por isso, o relacionamento logo terminou e, assim, Olímpico trocou a personagem por Glória, colega datilógrafa de Macabéa. No transcorrer do enredo, Glória incentivou a 1 Licencianda de História – Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Contato: 2 Formado em Letras pela Universidade Católica de Petrópolis. Pós-graduando em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil. Licenciando em História pela UCP. Contato: [email protected]

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AS RELAÇÕES ENTRE MEMÓRIA E CONSCIÊNCIA HISTÓRICA NA OBRA

DE CLARICE LISPECTOR: UMA FONTE PARA A TEORIA DA HISTÓRIA

Camila dos Santos da Costa1

João Pedro da Silveira Guimarães2

Universidade Católica de Petrópolis

[email protected]

[email protected]

O livro “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, publicado em 1977, relata

de maneira intimista a história do narrador personagem Rodrigo S.M entrelaçada com

a história de vida da personagem alagoana Macabéa. O narrador, um dia, ao encontrar

uma nordestina na rua com uma realidade tão diferente da dele, inspirou-se a escrever

uma narrativa sobre a existência dessa personagem peculiar. No decorrer da escrita,

Rodrigo S.M voltou-se para suas questões mais íntimas, inclusive refletindo sobre o

próprio ato de escrever. A história contada sobre Macabéa iniciou-se relatando a morte

de sua tia, que cuidou dela após a morte de seus pais. Com isso, a protagonista mudou-

se para o Rio de Janeiro para exercer a profissão de datilógrafa que a tia lhe arranjara.

A alagoana passou a morar na rua Acre, em um apartamento com quatro mulheres que

trabalhavam nas Lojas Americanas. Sentia orgulho em exercer a profissão de

datilógrafa, porque, de alguma forma, estava inserida em alguma função na sociedade.

Em seu cotidiano na cidade do Rio de Janeiro, Macabéa conheceu um jovem

rapaz nordestino chamado Olímpico, que, ao contrário da personagem, tinha muitas

ambições na vida. Os dois iniciaram um relacionamento em que estavam juntos para

sanar a solidão, porquanto ambos eram tão diferentes, já que a moça não tinha muita

expectativa para o futuro e não tinha consciência da própria existência. Por isso, o

relacionamento logo terminou e, assim, Olímpico trocou a personagem por Glória,

colega datilógrafa de Macabéa. No transcorrer do enredo, Glória incentivou a

1 Licencianda de História – Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Contato: 2 Formado em Letras pela Universidade Católica de Petrópolis. Pós-graduando em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil. Licenciando em História pela UCP. Contato: [email protected]

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protagonista a procurar uma cartomante, para que esta pudesse lhe conceder uma

esperança para o futuro. Durante a consulta com a cartomante, a datilógrafa encontrou

o sentido de sua própria existência e uma perspectiva de mudança para seu destino.

Todavia, ao sair da residência da cartomante, sofreu um acidente e teve uma morte

dramática.

Os romances de Clarice Lispector têm como característica o fluxo de

consciência, que leva em conta o aspecto psicológico das personagens. O termo surgiu

na Psicologia com William James, no capítulo IX de sua obra “Princípios de

Psicologia”. A proposta do conceito surgiu no século XIX, para explicar como a mente

funciona ao processar os pensamentos fornecendo a estes uma ordenação lógica. A

teoria da literatura apoderou-se dessa técnica para definir os romances que tenha a

psique humana como tema central. A literatura, ao se apropriar do termo de James,

relacionou o fluxo de consciência com a ideia de tempo psicológico de Freud,

contribuindo para a literatura intimista e relacionando esta ao campo do concreto.

O fluxo de consciência transmite de antemão os fatores do pensamento que

antecedem o discurso verbal. A literatura marcada pelo fluxo de consciência viabiliza

ao autor adentrar às camadas mais profundas do psicológico das personagens,

distinguindo-se do tempo físico, pois aquele é filtrado pelas vivências subjetivas e

individuais de cada agente dentro da história, assim demonstrando a sensação que

cada indivíduo sente diante da construção de sua própria temporalidade. Portanto o

fluxo de consciência permite que as personagens sigam diversas trajetórias pela sua

capacidade de explorar diferentes horizontes de possibilidades, estando, segundo

(RÜSEN, 2001, p. 62) ligado à construção da consciência histórica para obtenção da

ideia lógica de uma projeção para o futuro, o que se relaciona com a história como a

constituição de um espaço de experiência para se enxergar um horizonte de

expectativas nos escritos de (KOSELLECK, 1979).

A consciência histórica foi um termo utilizado pelo filósofo da história Hans-

Georg Gadamer, analisando dentro desse contexto a possibilidade do homem de se

perceber no tempo, para que ele consiga reconhecer a sua trajetória e se projetar no

futuro:

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Ter senso histórico é superar de modo consequente a ingenuidade natural, que nos leva a julgar o passado pelas medidas supostamente evidentes de

nossa vida atual, adotando a perspectiva de nossas instituições, de nossos

valores e verdades adquirimos. Ter senso histórico significa pensar

expressamente o horizonte histórico coextensivo à vida que vivemos e

seguimos vivendo (GADAMER, 1998, p. 18).

Na ficção, um conceito que se aproxima muito da realidade, as personagens

são espelhos das vivências dos autores, marcando essa conciliação com o real. Por

isso, percebe-se o fenômeno da consciência histórica dentro da obra de Clarice

Lispector. A personagem Macabéa apresenta falta de consciência histórica e, com

isso, uma ausência de compreensão de sua localização temporal, fazendo com que não

reconheça sua própria identidade e possibilitando que o narrador, Rodrigo S.M., pense

e decida sua história e realidade. Já Olímpico, namorado de Macabéa, tem consciência

de sua própria existência e projeção para o futuro, marcando a incompatibilidade entre

o casal e a escolha de Olímpico por Glória, sendo esta mais ambiciosa e sonhadora.

O romance de fluxo de consciência marca a probabilidade de reação ao

contexto histórico de sobrevivência psíquica, sendo compatível com um século

assinalado por tragédias, como as Guerras Mundiais e o contexto de Guerra Fria,

levando o indivíduo para o interior de si mesmo, o que corresponde à escrita dos

romances intimistas de Clarice Lispector. Deste modo, segundo (GADAMER, 1984,

p. 17), a consciência história é um fardo e um privilégio do homem contemporâneo.

A ambiguidade e a transitividade temporal, que caracterizam o romance de Lispector,

estão no medo que o narrador e a protagonista possuem com relação ao presente, a

negatividade ao olhar o passado e a expectativa atrelada ao futuro, pois esperam um

novo rumo em suas vidas.

Depois de uma situação traumática é muito complicado recomeçar. Após as

guerras mundiais, os reflexos destes combates, os genocídios, os massacres e todo o

avanço técnico, ficou difícil voltar a acreditar no ser humano, por isso Lispector volta-

se para suas questões mais pessoais, mas, ao fazer isso, a autora olha para o outro pois

sabia que como era fruto de seu tempo todos que teriam contato com a obra poderiam

estar sentindo o mesmo. Igualmente acontece com relação à Macabéa e a Rodrigo

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S.M., isso porque o narrador-personagem precisou se colocar na pele de outra pessoa

para admitir suas próprias dores.

Com as diversas perspectivas temporais, surge o fluxo de consciência na obra

clariciana “A Hora da Estrela”, contrariando a questão da linearidade dos fatos e

demarcando um romance com um tempo delineado pelos saltos psicológicos e mentais

das personagens, que possui uma outra dinâmica no que se refere ao tempo físico. Ao

adentrar nos aspectos mentais e íntimos de Macabéa, Rodrigo S.M. realiza um

encontro com suas próprias questões pessoais: “Desculpai-me mas vou continuar a

falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois

descobri que tenho um destino” (LISPECTOR, 1998, p. 15).

O narrador-personagem reconhece que a protagonista nordestina vivia sem

refletir sobre a existência na maior parte das vezes, fazendo com que Rodrigo S.M.

precisasse pensar e agir em seu lugar. Por esse motivo, o narrador se envolve muito

na vida da personagem, com o objetivo de ser fiel ao seu relato e ganhar o

conhecimento da essência de Macabéa, como se sentisse o que ela sente e tivesse no

minuto exato de que está narrando. Neste fator, a história é “presentificada”,

acontecendo na mente do leitor no momento em que está sendo narrada.

A visão de Rodrigo S.M. sobre o passado de Macabéa não foi exatamente o

que ocorreu, porquanto a personagem recria as memórias da alagoana a partir de um

estereótipo criado através da visão do nordestino que possui uma vida árdua por viver

em uma região largada por autoridades e posteriormente se muda para uma cidade

grande. Esse estereótipo mistura-se às próprias lembranças do narrador-personagem

que constrói a imagem de Macabéa.

A memória, em sua concretude, está relacionada com a percepção do passado,

estabelecendo uma interação entre o esquecimento e a preservação das informações

(RICOEUR, 2000, p. 423). Os fatos do tempo vivido nunca são mantidos da mesma

forma que ocorreram, pois vários fatores da vida humana colaboram para a sua

mudança e apagamento, incluindo aspectos psicológicos e sentimentais. Rodrigo S.M.

escolhe para narrar uma história de outro indivíduo que não possui identificação com

a sua realidade, criando as memórias dessa personagem, e, concomitantemente,

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esquecendo de suas próprias memórias, que são um fardo para a sua existência, o que

tornou a si mesmo um escritor isolado e desiludido em seu próprio ofício.

A lembrança do passado viabiliza a construção de uma identidade tanto

pessoal quanto coletiva, então, por essa razão, o indivíduo que não compreende sua

própria trajetória dentro do tempo não se percebe dentro da sociedade. Por causa disso,

Macabéa sente-se deslocada do meio social, porquanto não tem a percepção das

memórias que formam sua interioridade. A visão da nordestina sobre si mesma é

resultado das relações com as pessoas que convive em seu ambiente coletivo, pessoas

estas com uma realidade tão distante da vivida pela personagem que acaba se

inferiorizando por esse sentido. Igualmente se sucede em Rodrigo S.M., por possuir

os fardos das memórias negativas do passado, precisa se refletir na narrativa de outra

pessoa para conseguir sobreviver e realizar seu trabalho de escritor. A consciência

histórica é um auxiliador na construção da memória, que faz com o que o homem

conheça todas as esferas que formam sua história e enredo, respondendo a pergunta:

“quem somos nós?” (CERRI, 2011, p. 41,).

De acordo com (RÜSEN, 2001, p. 62) e com (HALBWACHS, 1990, p. 71),

é através da lembrança que o homem alcança uma experiência com a sua própria noção

de temporalidade (de sua cultura), com isso o narrador Rodrigo. S.M., por temer suas

próprias memórias, sendo que estas o trouxeram para a posição atual de escritor

frustrado, ele não as acessa, tornando-se necessário criar memórias de outra

personagem para mudar a sua perspectiva de si mesmo.

A autora Clarice Lispector, em sua forma narrativa intimista, promove a

entrada do autor nas emoções e sentimentos das personagens, levando esse elemento

do romance de fluxo de consciência para o universo do leitor, o que marca o

estabelecimento de empatia entre o leitor e os sujeitos da narrativa. O que remete a

ideia do antropólogo Roberto da Matta, de “olhar o outro como espelho e guia” para

“deslocarmos nossa própria subjetividade” (MATTA, 1978, p. 12).

Uma das características imprescindíveis dos escritores da segunda metade do

século XX é “o retorno ao real”, fazendo com que os leitores não sejam passivos diante

da leitura, pois estes constroem a narrativa assumindo papéis de coautores. Com isso,

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essas obras apresentam um caráter autorreflexivo demostrando o poderoso papel

político desempenhado pela literatura, desta forma possibilita que os interlocutores

pensem e repensem através das obras quem são e quem desejam ser no mundo.

A protagonista Macabéa, por não se perceber temporalmente, não consegue

estabelecer ligação com a sua realidade e, por isso, não alcança as palavras para se

expressar e, assim, não encontra a sua própria existência. Desta forma, uma pessoa só

pode encontrar o seu lugar no mundo descobrindo seu universo vocabular. Segundo

(WITTGENSTEIN, 1921), “os limites da minha linguagem são os limites do meu

mundo”. Com isso, a personagem vive uma espécie de alienação, não obtendo

respostas para suas próprias questões. Então, a realidade de Macabéa é,

constantemente, observada e modificada pela visão do narrador e do próprio leitor. O

exemplo disso é o fato de Rodrigo S.M. praticamente não falar da infância de

Macabéa, pois a personagem perdeu seus pais muito cedo, o que fez com que suas

lembranças se perdessem no esquecimento, ficando assim subordinada a outras

pessoas, como o narrador e os leitores.

A partir de sua história, Clarice Lispector também demonstra uma espécie de

fluxo de consciência, porque a autora, no momento de sua escrita, vivencia em seu

psicológico todo o cotidiano das personagens que surgiram a partir de suas próprias

experiências. A escritora também conhece cada sentimento e pensamento de todos os

sujeitos da narrativa. O romance pode ser considerado autobiográfico, pela

proximidade que Rodrigo S.M. e Macabéa têm de Lispector, por esta também ser

nordestina e viver em um mundo que subalterniza as mulheres e tira a sua voz,

expressão e identidade. No tempo presente, a sociedade clama por uma história dos

subalternizados para a construção de uma identidade social e a possibilidade de

alteridade com relação àqueles que foram deixados de fora da história por muitos anos.

Em relação ao narrador, a proximidade vem a partir da identificação com a profissão

de escritor, principalmente pela conexão dos dois com a escrita no fim de suas vidas.

O tempo psicológico marca aspectos distintos do tempo cronológico, por

exemplo, pela questão da subjetividade de cada indivíduo em relação às suas vivências

e memórias. O tempo do narrador diferencia-se do tempo que se passa na narrativa e

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do tempo do leitor, que são transpassados de forma diferente de acordo com o seu

psicológico e a sua interioridade, como retrata (BARROS, 2018, p. 76):

[...] de que o tempo psicológico difere do tempo cronológico convencial,

de que o tempo é uma experiência subjetiva (que varia de agente a agente),

de que o tempo do próprio narrador externo diferencia-se dos tempos

implícitos nos conteúdos narrativos, e de que mesmo o aspecto progressivo do tempo é apenas uma imagem a que estamos acorrentados enquanto

passageiros da concretude cotidiana, mas que pode ser rompida pelo

historiador no ato de construção e representação de suas histórias.

O dinamismo dos grandes centros urbanos está intimamente ligado com a

diferente passagem de tempo na psique humana. Com a industrialização e o avanço

tecnológico, a vida nas grandes cidades ganhou um ritmo mais acelerado, por conta

das diferentes tarefas que o ser humano acumulou no decorrer dos anos. O tempo

cronológico é o mesmo, mas a passagem do tempo psicológico se transformou,

porquanto as pessoas possuem uma multiplicidade maior de pensamentos e emoções

conflitantes.

Macabéa, quando criança, precisou lidar com assuntos que não eram próprios

para sua faixa etária, como a questão da morte, que é um elemento muito abstrato para

uma criança compreender, sendo este fato um componente substancial para que ela

ganhasse muita responsabilidade, o que fez com que a personagem construísse uma

identidade sofredora e vazia. Para Freud, é muito difícil acessar e interpretar a psique

humana, pois, na interpretação desta, a psicanálise esbarra com as memórias

traumáticas, que são impedidas pelo inconsciente que não sabe lidar com o sentimento

de luto (RICOEUR, 2000). Essa questão é demonstrada na obra da seguinte forma por

(LISPECTOR, 1977, p. 41):

A música era um fantasma pálido como uma rosa que é louca de

beleza mas mortal: pálida e mortal a moça era hoje o fantasma

suave e terrificante de uma infância sem bola nem boneca. Então

costumava fingir que corria pelos corredores de boneca na mão

atrás de uma bola e rindo muito. A gargalhada era aterrorizadora

porque acontecia no passado e só a imaginação maléfica a trazia

para o presente, saudade do que poderia ter sido e não foi (eu

bem avisei que era literatura de cordel, embora eu me recuse a

qualquer piedade).

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As lembranças são coletivas e são fragmentos das lembranças de outros

indivíduos, sendo que a visão de mundo de uma pessoa é formada através das

memórias de seres humanos próximos a ela, assim “não é necessário que outros

homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre

conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem”

(HALBWACHS, 1990, p. 26).

Quando os indivíduos se afastam de seu local de origem, as memórias sobre

aquele ambiente aos poucos tornam-se vagas. Este fato ainda acontece com retirantes

da região Nordeste que, para fugirem da seca, da fome e da pobreza, fogem para as

cidades desenvolvidas em busca de uma melhoria de vida. Por isso, Macabéa seguia

tão cegamente tudo que diziam, como por Glória e Olímpico, em busca de uma

construção de sua essência, por ter perdido quando deixou seu mundinho para trás.

Por conseguinte, a memória demonstra-se como uma ponte que conecta e

articula elementos temporais, espaciais, identitários e históricos. A memória do

passado se manifesta através de questões vividas no presente e também de memórias

criadas daquilo que não se viveu. A escritora do livro “A Hora da Estrela” cria uma

memória ficcional que expressa tão significativamente que se torna real em seu tempo

psicológico, levando o leitor, através da narrativa, a ter a mesma experiência. Através

da aproximação entre personagens fictícias e agentes reais, pôde-se perceber que toda

a criação humana possui traços da vida prática e, por isso, podem ser analisados

historicamente.

Portanto, infere-se que o romance de fluxo de consciência constrói uma

aproximação com o psicológico, sem compromisso com a linearidade dos fatos, pois

o tempo subjetivo difere-se do físico, que possui uma direção contínua e sequencial.

No romance analisado, o Rodrigo S.M é o sujeito que possui o fluxo de consciência,

por realizar saltos temporais entrelaçando sua história com a de Macabéa. Pelo

narrador ser o sujeito pensante dentro da narrativa, este possui também consciência

histórica, porquanto se percebe no tempo e, no desenrolar do próprio enredo, ele

descobre seu destino. A memória é um fator imprescindível para a consciência

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histórica, porque é através dela que o indivíduo se reconhece no tempo e compõe sua

identidade.

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