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    7Figurino, moda e luxo

    no filme Zuzu AngelLuciana Fagundes Haussen1

    http://www.youtube.com/watch?v=JuW_iLW547M
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    Resumo:O artigo analisa o figurino de cinema a partir do filme Zuzu Angel(Sergio Rezende, 2006), e discute como representada a obradesta designer brasileira de roupas das dcadas de 60 e 70, sob oaspecto da relao de seu trabalho com as idias de moda e luxo.Destaca a trajetria da equipe de produo do figurino do filme e

    a repercusso das suas escolhas em cenas-chave desta produoaudiovisual. Para tanto, trabalha com a contextualizao histrica,a narrativa cinematogrfica e com os conceitos de figurino decinema, moda e luxo. Como suporte terico, recorre s obras de,Michel Pastoureau, para as anlises dos tecidos, de Jean-JacquesRoubine, Deborah Nadoolman Landis e Marcel Martin, sobre opapel do figurino na dramaturgia e no cinema, e Gilles Lipovetskysobre os conceitos de moda e luxo.

    Palavras-chave:Cinema; Figurino; Zuzu Angel; Moda; Luxo.

    Abstract:This article analyzes the film costumes from the film Zuzu Angel(Sergio Rezende, 2006) and discusses how it represented the workof this important Brazilian designer fashion from the 60s and 70s,under the aspect of its work in relation to the ideas of fashionand luxury. Its highlights the choices of the production team of

    the films costume design, and the repercussions of those choiceson the outcome of key scenes of this historical narrative. For that,deal with the historical context, narrative film and the concepts ofcostumes design, fashion and luxury. As a theoretical framework,draws on the works of Michel Pastoureau, for analysis of the tissues,

    Jean-JacquesRoubine, Deborah Nadoolman Landis and MarcelMartin, on the role of costume design in the drama and film, andGilles Lipovetsky on the concepts of fashion and luxury.

    Keywords:Movie; Costume design; Zuzu Angel; Fashion; Luxury.

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    O filme Zuzu Angel, do diretor SergioRezende, lanado, no Brasil, em 2006, umaproduo nacional que narra a vida da estilistabrasileira Zuzu Angel de 1971 a 1976 - data dasua morte, vtima do regime militar. A obra temcomo tema central a ditadura no pas e a buscade Zuzu por justia, pelo desaparecimento de seu

    filho, Stuart Angel Jones capturado, torturado,e com a morte confirmada em 1971. Em meio squestes polticas e sociais suscitadas, a narrativatambm revela aspectos da profisso de estilistano Brasil, nos primeiros anos da dcada de 70.

    So estas representaes que sero objetode anlise do presente artigo, ao lanar um olharsobre os figurinos apresentados na pelcula. Atrajetria se justifica por cruzar a experinciareal da protagonista - como renomada e pioneiraestilista brasileira, e sua representao em pelculaque resultou na conquista do prmio de melhorfigurino do Prmio Vivo de 2007, da AcademiaBrasileira de Cinema. Assim, o estudo observatanto o papel do figurino de cinema no filme eo resultado das escolhas em cenas chave danarrativa, como o trabalho de Zuzu e sua relaocom a moda e o luxo.

    Partir do ponto-de-vista dos realizadoresde Zuzu Angel parece uma opo acertada porser o cinema um canal de expresso de umainterpretao da realidade, capaz de contribuir naconstruo de um imaginrio. E esta representaoda realidade atravs das imagens cinematogrficaspassa, inevitavelmente, por uma troca de

    informaes entre o produto (filme) realizadopor uma equipe, e o pblico, que o interpreta deacordo com suas imagens internas particulares ecoletivas.

    Zuzu AngelPara elucidar o perodo excludo da

    narrativa do filme, faz-se importante um breverelato do desenvolvimento da carreira de Zuzu

    Angel, inclusive para traar os paralelos comas noes de moda e luxo que passam portransformaes ao longo dos anos. Nascida em

    Curvelo, no interior de Minas Gerais, Zuleikade Souza Netto (1921 1976) casou-se com ocanadense naturalizado nos EUA, Norman Angel

    Jones com quem teve trs filhos (um menino eduas meninas). Viveu em Salvador e, em 1947,mudou-se para o Rio de Janeiro, poca quecomea suas atividades profissionais. No perodo,a indstria de tecelagem no Brasil passa por umgrande desenvolvimento. O sistemaprt--porterentra no mercado e as lojas de departamentocomeam a fazer sucesso com o uso do credirio.

    Quando inaugura seu ateli, noapartamento em Ipanema em 1957, Zuzu jmantinha contatos prximos com o poder atravsdo grupo Obra das Pioneiras Sociais, de SarahKubitchek, que fazia uniformes para meninas emeninos carentes. No entanto, o que caracterizavasua produo criativa, eram as saias do tipo guarda-chuva - tendncia entre as mulheres da sociedadecarioca, influenciadas pelo New Lookde Diordops-guerra.

    Pode-se dizer que Zuzu Angel, comoestilista, oscila entre os papis de artes da modae de criadora de moda uma vez que, separada,sustentava os trs filhos trabalhando como

    costureira, ou seja: produzindo roupas a partir dodesejo das clientes. Ao mesmo tempo em que davaincio s suas prprias criaes. Caractersticasestas que se aproximam do pensamento do

    filsofo francs Gilles Lipovetsky, sobre luxo, modae consumo.

    Historicamente, Lipovetsky identificaisto como tempos pr-democrticos (artesoannimo), em contraposio chegada de temposmodernos (costureiro criador). Para o filsofo, orepresentante da mudana o costureiro ingls

    com base na Frana, Charles Frderic Worth, que,na metade do sculo XIX, impe soberanamenteseus modelos e gostos s clientes metamorfoseadasem consumidoras despojadas de um real direito decontrole [...]. Nasceu a idade de ouro do costureirodemiurgo: ele vai durar cem anos (Lipovetsky eRoux, 2005, p. 43).

    Neste perodo, a moda j fazia parte douniverso do luxo e, a partir de Worth, passa a estarassociada a um nome, a uma individualidadeexcepcional, a uma casa comercial de muitoprestgio (Lipovetsky e Roux, 2005, p. 43). Masa relao moda/luxo no novidade em 1850.Ela tem incio no sculo XIV quando o luxo seaproxima da cultura e vai conjugar-se com a obrapessoal e a criao da beleza (Lipovetsky e Roux,2005, p. 36). E a moda, segundo o filsofo, umainveno social histrica do Ocidente, datadadeste perodo.

    De ritual ou de costumeiro que era, o vestir-se impe-se como um baile de mscaras, dedisfarce ldico, perfeitamente compatvel, deresto, com a etiqueta e a seriedade da vidamundana. O aparecimento da festa (excesso,desperdcio) anexando pela primeira vez a

    arquitetura da toalete. No mais a oferendaaos deuses e os rituais tradicionais, mas o jogointegral das aparncias, a mania dos pequenosnadas, a febre das novidades sem amanh(Lipovetsky e Roux, 2005, p 40).

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    No caso brasileiro, no entanto, o amanhecerdos anos 60 chega cinzento com o golpe militar de1964 e o baile de mscaras, no caso da produode Zuzu Angel, ocorre nos meios detentores dopoder, quando a estilista faz roupas para as esposasdos generais do regime. Mas os anos 70 comeamsinalizando grandes transformaes a emanar das

    ruas e das manifestaes juvenis, no apenas noBrasil, mas ao redor do mundo.Neste contexto tem incio o filme Zuzu

    Angel. E aqui a anlise parte para o que estrepresentado na pelcula, com especial atenoao figurino. Para um melhor entendimento, faz-senecessrio pensar o processo de realizao de umproduto cinematogrfico.

    Os realizadoresO diretor e roteirista Sergio Rezende2,

    quando parte para a realizao de Zuzu Angel,possui na bagagem outros quatro filmes baseadosem personagens reais. Mas no prefcio do livrosobre o roteiro do filme, Rezende aponta que um engano pensarmos ser mais fcil contaruma estria real do que outra a partir da nossaimaginao, j que no existem cenas prontas,e h a dificuldade de compactar em duas horasvrios anos da vida de uma pessoa. Curiosamente

    j recebi crticas apontando inverossimilhanasem episdios retratados ao p da letra e elogiospela preciso na recriao de fatos que nuncaaconteceram [...] o poder da fico vence sempre(Rezende, 2006, p. 12).

    So vrios os elementos integrantesda linguagem do cinema. Muitos advindos deoutras manifestaes artsticas como a literatura,a pintura, a fotografia, o teatro. uma linguagemhbrida com bases definidas, porm viva. E dentreos seus elementos constituintes, est o figurino.

    O filsofo e terico cinematogrfico

    francs, Marcel Martin, em seu livro A linguagemcinematogrfica (2003, p. 60), considera ovesturio um elemento flmico no especfico. Esteseria no especfico por contribuir construo daimagem do cinema apesar de no ser especficoa ele, fazendo parte tambm da composio daimagem em outras formas de expresso artstica

    como no teatro e na pintura.No cinema, o figurino apresentapeculiaridades distintas ao figurino de teatro ede televiso. Se a TV reduz, o cinema amplia,e muito. Por isso o figurino cinematogrfico omais difcil de todos (Carneiro, 2003, p.165).Com relao ao teatro a norma inversa. Suautilizao pelo cinema no fundamentalmentediferente da que feita pelo teatro, embora sejamais realista e menos simblica na tela do que nopalco (Martin, 2003, p. 60).

    A partir da exposio dos diferentes usos eresultados do figurino nos trs diferentes meios deexpresso - teatro, cinema e televiso -, percebe-se como o figurino se apresenta como elemento decomposio da cena. Ao pensarmos a personagemsendo incorporada pelo ator, este tem comoinstrumento de trabalho o seu corpo, sobre o qualrecaem as vestes. O figurino, portanto, dialoga comtodo o cenrio e tambm com a representao,movimentao e expresso do ator.

    O teatro, por ser dos trs o mais antigo, podefuncionar como fonte de referncia do pensamentosobre a composio do figurino. Levando-se emconta o surgimento do teatro moderno a partir da

    segunda metade do sculo XIX, conclui-se que osfigurinos seguem as orientaes dos movimentosartsticos caractersticos de distintos momentosmas, de qualquer forma, a indumentria semprecumpriu um papel na narrativa encenada. Mesmoquando desprezada ou tida como algo suprfluo,ela devia colaborar com o movimento do corpo do

    ator para permitir a preciso do gesto, bem comoviabilizar ao espectador decifrar o que se passa noespetculo. Nas palavras do terico francs Jean-

    Jacques Roubine:

    O figurino, por sua vez, deve ser consideradouma variedade particular do objeto cnico.Pois se ele tem uma funo especfica, a de

    contribuir para a elaborao do personagempelo ator, constitui tambm um conjunto deformas e cores que intervm no espao doespetculo, e devem portanto integrar-se nele(Roubine, 1982, p.127).

    No caso do filme Zuzu Angel, entre osintegrantes da equipe de Rezende, est KikaLopes3, frente da produo de figurino. Sendoa atividade de figurinista uma ao coletiva -como a maior parte das funes da produocinematogrfica - ela no pensada isoladamentee precisa estar em conexo com o roteiro, a

    direo, a direo de fotografia e a direo dearte. E ainda, dependendo do volume de trabalho,em sintonia com uma equipe prpria. Neste caso,cabem as palavras da figurinista e doutora emhistria do design, Debora Nadoolman Landis,quando afirma: O sucesso de um figurino [...] a fuso da inteno do roteirista, da interpretaodo diretor e da intuio e talento do figurinista(Landis, 2007, p. 19)4.

    Para chegar ao caminho a ser trilhado emZuzu Angel, Kika Lopes participou de reuniescom o produtor, Joaquim Vaz Pereira e o diretor dearte, Marcos Flaksman, para pensar visualmenteo roteiro. O figurino uma das mais efetivasferramentas de um diretor para contar uma histria to poderosa que uma distrao em uma roupapode arruinar uma cena (Landis, 2007, p. 17)5.

    Em entrevista ao site de estilo da UOL6,Kika Lopes conta que Rezende no queria uma

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    cpia. Tudo rplica ou releitura (Vazoni, 2006),explica Kika. O que nos leva ao pensamento deMartin de figurino para-realista. O figurinistainspira-se na moda da poca, mas procedendo auma estilizao (Martin, 2003, p. 61).

    Assim, dois meses antes de comearema rodar o filme, ela e sua equipe de quatro

    figurinistas confeccionaram cerca de 400 peas,das quais, aproximadamente a metade era paraa personagem principal. Como expe Landis, oprimeiro passo de um figurinista e um supervisor defigurino avaliar as exigncias do script, o nmerode trocas de cada personagem, o oramentopotencial disponvel, e incontveis outros detalhesprticos (Landis, 2007, p. 19)7.

    Por Zuzu Angel ser uma designer demoda, a equipe parte de referncias que ajudamna construo da personagem vivida pela atrizPatrcia Pillar. E poderia se pensar, por isto, emum trabalho simplificado ao recorrer s obrasexistentes em acervos de familiares e instituies.

    Tal fato no ocorreu. A nica pea originalde Zuzu Angel em seu filme homnimo, o vestidoverde que Patrcia Pillar utiliza no casamento dofilho Stuart. As demais foram confeccionadas porcostureiras e alfaiates (estes ltimos responsveispela maior parte dos uniformes dos militares),outras garimpadas em brechs e algumas atuais,como pares de sapato da indstria de calados

    Arezzo.Em seu trabalho, Kika ressalta a utilizao

    de tecidos originais da tecelagem Santa Isabel,

    com quem Zuzu fazia parceria. Neste ponto, nosaproximamos do conceito de mise-em-scne,que seria o arranjo dos elementos no quadro esua respectiva movimentao. E aqui recorremosa Andr Bazin que, ao tratar da evoluo dalinguagem cinematogrfica, relaciona a mise-em-

    scnea uma maior utilizao dos planos sequncia

    em profundidade de campo, ao final da dcadade 30.

    A colocao de um objeto em relao aospersonagens tal que o espectador no podeescapar sua significao [...] Em outrostermos, o plano sequncia em profundidadede campo do diretor moderno no renuncia

    montagem [...] ele a integra composioplstica (Bazin, 1991, p. 76).

    O que torna relevante o papel do tecidoescolhido pelo figurinista, para dar uma sensaode maior ou menor fluidez, ou no caso, promoveruma maior aproximao realidade das texturas ecores dos tecidos eleitos pela prpria Zuzu Angelpara serem trabalhados.

    Ainda sobre a complexidade da execuodo trabalho, at para as decises que parecemmais simples, como o figurino de Stuart, a escolhafoi bastante refletida. Foram testados at 30

    casacos at se chegar ao de veludo cotel verde(Vazoni, 2006), conta a figurinista.Para analisarmos os resultados das

    escolhas feitas por Kika Lopes e a equipe, vamosacompanhar a narrativa proposta pela pelcula,que no linear e intercala os momentos finais davida da protagonista, em 1976, com as lembranasque remetem ao incio da dcada de 70.

    O filmeLogo na abertura, temos um plano areo

    do mar do Rio de Janeiro. Desta imagem passamospara uma cena em um quarto de pouca luz ondeZuzu grava um depoimento sobre as perseguiesque j vem sofrendo. Ela est de bluso preto eem seguida, sai noite usando um leno cinzana cabea, vestindo pantalonas marrons. Ests. Nesta poca a morte do seu filho j haviasido confirmada, e o preto passa a ter lugar de

    destaque no guarda-roupa da figurinista, que atento primava pelas peas estampadas, coloridase representativas de uma luz e paisagens de umpas tropical.

    Voltando no tempo a cena seguintemostra o desfile de moda que Zuzu realizou emNova Iorque, com vestidos coloridos, vermelho,

    azul, estampas, tecidos fludos, brincos e colares.Isto ocorre porque o perodo retratado no filmecoincide com o momento em que Zuzu estariacomeando a ter um reconhecimento maior emtorno de seu nome.

    Em 1971, ela j havia apresentado umacoleo em Nova Iorque (novembro de 1970) e exatamente este desfile que reproduzido noincio do filme e que teve como temas as baianase o cangao. Seguindo as mudanas assinaladaspor Worth na moda, Zuzu Angel estabelece suapequena loja em um bairro nobre do Rio de

    Janeiro, Ipanema.E se a primeira metade da dcada de 70,

    como aparece no filme, basicamente modernaem relao moda, que fortemente vinculadaa um sistema fechado ligado roupa, algunsindcios em direo a um ps ou hipermodernopodem ser percebidos. Um deles o fato de Zuzuse consagrar, no exterior, nos Estados Unidos, eno na Frana, bero da alta-costura. Apesar de aestilista ter sido casada com um norte-americano,o fato no descarta certo deslocamento geogrficodos referenciais de moda antes centralizadosem Paris. Nova Iorque j faz parte de um futuro

    circuito fashion.Apesar disso, o imaginrio em torno daelegncia francesa permanece vivo. No filmeisto fica claro quando a nora de Zuzu chega aoapartamento da estilista no meio da noite, juntocom Stuart, ambos foragidos da polcia militar.

    A jovem est vestida com cala e camisa e leva

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    uma bolsa a tiracolo. Os cabelos so curtos, numaimagem bem masculinizada. Zuzu d a ela umvestido estampado de rosa e verde com brocheno peito e os ombros e as costas mostra. Ocomentrio de Zuzu (Patrcia Pillar) : Paris exigeisso de uma nora de Zuzu Angel. E Stuart quandov a noiva vestida novamente de forma sensual

    pergunta: Voc vai ficar assim para os franceses?.Outro dilogo elucidativo sobre o circuitoda moda, da profisso de estilista e as relaescom o poder, ocorre entre a protagonista e o filhoquando este pergunta: Costurando para mulherde general? Ao que a protagonista responde:Voc faz o seguinte: ganha a tua revoluo edepois eu vou costurar para as mulheres do comitcentral.

    Outro indcio das mudanas no conceitode moda gira em torno da atriz Elke Maravilha,interpretada por Luana Piovani. Em suasparticipaes ela sugere, em seu modo de vestir,

    a idia do uso o que me cai bem. Onde deixade existir uma oposio bem definida entre o queest na moda e o que no est. Em uma cena noaeroporto, Elke (Piovani) veste short e camisetameia barriga estampados, com colete longo azule colar de bolas.

    Em outro momento, em um bar, aspersonagens de Zuzu Angel e Elke Maravilha(Pillar e Piovani) assistem a um show da prpriaElke Maravilha, que sempre se caracterizou, navida real, pelos figurinos espetaculares. Nestacena em particular, Elke veste uma cala com

    estampa de ona, blusa preta e uma ushanka8

    sobre a cabea, provavelmente em referncia sua origem9.

    A atitude da artista prenuncia umaindividualizao do consumo da moda. E essaliberdade de interpretao da moda se aproximacom o que ocorre hoje com o entendimento de

    um luxo para si, a servio de um indivduo privado,num processo de subjetivao do luxo.

    Uma ltima fortaleza hierrquica derrubada ideologicamente, entenda-se sob o impactodo imaginrio democrtico, celebrandoum luxo plural, la carte, emancipadodos critrios impessoais do preo. Tudo se

    passa como se o indivduo contemporneo,com suas aspiraes realizao ntima, sehouvesse tornado refratrio a uma definiorestritiva do luxo suscetvel de proibir-lheo acesso ao que associado ao sonho, svolpias e s belezas superlativas. Enquanto osprodutos raros e caros no cessam de retraarbarreiras objetivas e distncia social, a culturaps-moderna adota o perspectivismo ou osubjetivismo como expresso da exignciademocrtica do direito felicidade e ao luxo(Lipovetsky e Roux, 2005, p. 56).

    Mas se podemos perceber no filme indciosrumo a uma democratizao da moda e do luxo,o pano de fundo da narrativa bem distinto. Os

    jovens da classe mdia retratados na histria aindaso politicamente engajados, lutam por ideaisigualitrios no campo poltico e o consumo aindaest vinculado necessidade, e no ao suprfluo.

    A sociedade brasileira da poca vive sob umaditadura, e a idia da democratizao, de qualquerespcie, parece distante no filme.

    Valendo-se da sua funo de criadora,Zuzu Angel questiona o papel de sua moda em

    um momento to controverso para o pas. Emuma passagem, quando est com a coleo prontapara embarcar para os Estados Unidos, para umnovo desfile em Nova Iorque, se questiona: Eeu criando vestidos coloridos, com passarinho eflorzinha enquanto o pas passa por tudo isso!. Esteseu questionamento a faz produzir uma coleo

    de contestao, com vestidos longos brancos ebordados com gaiolas, prises e militares.

    So muitas as abordagens que podemser feitas para as roupas apresentadas na coleoemergencial da estilista, a escolha no casodeste estudo vai ao encontro das anlises doespecialista em histria medieval, o francs Michel

    Pastoureau. Em suas pesquisas, o historiador emalguns momentos volta o olhar para a questo dasindumentrias e dos usos dos tecidos e cores emdiferentes pocas da histria ocidental.

    Pode-se dizer, assim, que a deciso pelobranco ou pela no cor possui uma relao comum passado longnquo (poca feudal) que seestende at pelo menos a segunda revoluoindustrial (1850 1870). A o entendimento era oda utilizao do branco ou cru como uma formade higienizao, pois os mtodos de tingimento10e, portanto, as cores, eram tidas como impuraspara o contato direto com a pele, pelo menos na

    intimidade das roupas de cama e de dormir.Falamos aqui de questes morais das

    ordens religiosas at a reforma protestante. Aescolha do branco enfim, pode representar tantouma busca de pureza como um protesto a umainvaso da privacidade, da intimidade das pessoas- promovida pelo regime militar. As gaiolas, prisese militares bordados nas roupas so explcitossmbolos contestatrios. Mas, ao retratar gaiolase prises a estilista usa o recurso das listras queacompanham o desenvolvimento e evoluo doimaginrio ocidental h sculos.

    [...] ao longo dos sculos, o homem ocidentalno cessou de marcar com listras tudo oque se referia a desordem. Sem dvida,tratava-se de assinalar essa desordem, deproteger-se dela, de advertir mas tambmde organizar, purificar, reconstruir. Os trajeslistrados impostos aos loucos so ao mesmo

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    tempo grades destinadas a isol-los do restoda sociedade e tutores, apoios, vias retilneaspara reconduzi-los nos trilhos ao caminhoreto. A listra no desordem; ela sinal dedesordem e meio de recuperao da ordem.A listra no excluso; marca de exclusoe tentativa de reincluso (Pastoreau, 1993,p.120).

    Afinal, onde estava a to aclamada razono perodo retratado no filme quando o Brasil viveuma ditadura militar liderada pelos presidentes(militares) Emlio Garrastazu Mdici (1905-1985)11e Ernesto Geisel (1907 1996)12? Parece ser esteo questionamento que Zuzu Angel leva Amricado Norte, ao mesmo tempo em que refora suabusca por justia e pelo direito de enterrar seufilho.

    Mesmo com toda a dor registrada eapresentada no filme, ao retornarmos ao campo damoda e do acesso ao luxo, no passa despercebido

    o fato de a prpria estilista ser uma pioneira daquiloque viria ser a mulher ps ou hipermoderna.

    Na dcada de 1970, separada, tendoque sustentar a casa e alavancar sua profisso, elaaparece no filme de uma forma bastante feminina.Em um momento fala da ditadura e da injustiaenquanto tira os clios postios. Quando visita abase area em busca do filho desaparecido, vesteum vestido vermelho, elegante, que contrasta comos uniformes monocromticos dos militares e o diacinzento.

    Nesta cena possvel um retorno ao texto

    clssico de Susan Sontag, Fascinante Fascismosobre a obra da cinesta alem Leni Riefenstahl,onde Sontag discorre sobre as estticas fascistas.

    Estticas fascistas [...] nascem de (e justificam)uma preocupao com situaes de controle,de comportamento submisso, de esforo

    extravagante e resistncia dor; elas endossamduas situaes aparentemente opostas: aegomania e a servido. [...] A arte fascistaglorifica a capitulao, exalta a irracionalidadee torna a morte fascinante (Sontag, 1986,p.73).

    Sobre os uniformes, a autora segue: Huma fantasia generalizada sobre uniformes. Elessugerem comunidade, ordem, identidade (atravsde postos, faixas, medalhas[...]) competncia,autoridade legtima e exerccio legtimo daviolncia (Sontag, 1986, p.78). E para darveracidade s cenas militares, como j foi dito, KikaLopes teve a colaborao de um time de alfaiates,porque o jogo do poder estava representado deforma bastante expressiva nos uniformes dosmilitares.

    Mesmo transitando em mundos todistintos, entre desfiles de moda, lojas de roupase pores da ditadura, a personagem de Zuzu,atravs dos figurinos, mantm distncia de umafetichizao da ordem monocromtica militar.

    As unhas esto sempre pintadas, na maior parte,de vermelho. Neste sentido, Zuzu Angel pareceantecipar o novo papel da mulher, e da perpetuaoda feminizao do luxo como prope Lipovetsky.

    O qu se v no momento em que asmulheres tm acesso aos diplomas e aos postosde responsabilidade? Assiste-se, paradoxalmente, volta das roupas ntimas femininas sedutoras,ao triunfo das top models sexy, ao retorno das

    formas femininas, ao sucesso do Wonderbra, dassaias curtas, da maquiagem entre as adolescentes.H refeminizao da mulher e no uniformizaosexual das aparncias. As mulheres reivindicam aigualdade com os homens: no querem por issoparecer-se com eles. A partir do momento em que

    a febre contestadora passou e em que todas asatividades esto abertas aos dois sexos, as mulheres

    j no hostilizam os emblemas estticos dadiferena sexual: reivindicam-nos como smbolosidentitrios (Lipovetsky e Roux, 2005. p. 77).

    Consideraes finaisNa anlise do filme Zuzu Angeltransparecem os vrios paradoxos que marcama trajetria da moda e do luxo na sociedadeBrasileira. Os jogos de poder, onde os realizadoresse aproximam e so procurados por aqueles quedetm as regras do jogo, no caso, o poltico. Mostratambm que, mesmo nos momentos de maiorrepresso e dor, parece haver espao para o luxonas suas mais diversas formas de manifestao.

    Com relao ao figurino de cinema,percebe-se a preocupao da figurinista coma narrativa do filme e sua integrao com adireo, a direo de arte e direo de fotografia.Preocupao esta, que acaba por dar aos figurinosum papel de destaque, em que o figurino, comoelemento constituinte da cena, cumpre umafuno importante na composio do quadrocinematogrfico e na narrativa. Ao remontarmos sprimeiras cenas, quando Zuzu (Patrcia Pillar) nos apresentada, temos o contraste do colorido do Riode Janeiro, onde a histria se desenrola, seguidapela primeira cena de Patrcia Pillar, em um quartoescuro com roupas escuras. Percebemos que algoali destoa.

    Em seguida, em uma volta ao tempo, somostrados os momentos mais efusivos da estilista,com suas roupas coloridas e temas brasileiros, compssaros, flores, anjos, baianas e cangao. Estestemas, no decorrer da histria, so substitudos, nasroupas, pela temtica da represso, da ditadura,

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    das gaiolas, do sem cor. O destaque do figurino,no caso deZuzu Angel,tambm relevante porser sobre uma histria sobre a histria de umafigurinista, de uma designer de moda que marcoupoca no Brasil.

    Atravs da protagonista a narrativa nosmostra um momento de mudana na atitude das

    mulheres. Nos seus desejos e nas suas formas deencarar o feminino. Porm, chama a ateno decomo foi solitrio o trabalho de algumas pioneirascomo a prpria Zuzu e a atriz Elke Maravilha,principalmente diante de tantos uniformesmilitares, com seus tons cinzentos, sua ordem, sualimpeza.

    O filme Zuzu Angel (Rezende, 2006),confirma, ainda, uma tendncia entre muitosrealizadores cinematogrficos - de formaremequipes mais prximas, com as quais estabelecemafinidades, e acabam por voltar a trabalhar juntos.

    RefernciasBAZIN, Andr. O cinema: ensaios. So Paulo:Brasiliense, 1991.

    CARNEIRO, Marilia.No camarim das oito.Riode Janeiro: Ed. Aeroplano/Senac Rio, 2003.

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    SILVA, Pricila Andrade.A moda de Zuzu Angele o campo do design.Dissertao de mestradodo programa de ps-graduao em Design dodepartamento de Artes & Design do Centro deTeologiae Cincias Humanas da PUC-Rio, 2006.

    VAZONI, Carolina. Zuzu Angel era umamulher chiqurrima, diz Kika Lopes,figurinista do filme. 03 de agosto de 2006.Disponvel em: . Acessoem: 24 de jan. de 2011.

    Notas1 Jornalista, doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da Famecos/PUCRS. Email: [email protected]

    2 O roteiro feito em parceria com MarcosBernstein.

    3 Nascida em Portugal, Kika Lopes comeaa atuar como figurinista em produescinematogrficas nacionais em 1985, atividadeque se intensifica na dcada de noventa com umaumento da produo na primeira dcada dosculo XXI. Atualmente ela tambm atua como

    diretora e a parceria como figurinista de filmesde Sergio Rezende j havia ocorrido em 1986em O Homem da Capa Preta, 1999 Mau OImperador do Rei e tambm em 2001 em QuaseNada.

    4 Costume is one of the directors most effective

    tools for telling a story so powerfull in fact,that a distracting garment can ruin a scene. Traduo da autora.

    5 The successful costume, then, is theamalgamation os the screen writers, thedirectors interpretation and the costume designerintuition and talent. Traduo da autora.

    6 Disponvel em: . Acessoem: 24 de jan. de 2011.

    7 The first step for designer and costumesupervisor is to evaluate the requirements of thescript, the number of changes for each character,the potential budget, and countless other praticaldetail. Traduo da autora.

    8 Ushanka uma espcie de gorro tpico daRssia feito de pele de animal, normalmente deZibelina.

    9 Elke Maravilha o nome artstico de ElkeGiorgierena Grunnupp Evremides. Ela nasceu

    na atual So Petersburgo sendo posteriormentenaturalizada alem, tendo chegado no Brasilainda pequena.

    10 As cores muitas vezes eram obtidas por meiode matrias animais (PASTOREAU, 1993, p.85).

    http://estilo.uol.com.br/moda/ultnot/2006/08/03/ult630u4669.jhtmhttp://estilo.uol.com.br/moda/ultnot/2006/08/03/ult630u4669.jhtmhttp://estilo.uol.com.br/moda/ultnot/2006/08/03/ult630u4669.jhtmhttp://estilo.uol.com.br/moda/ultnot/2006/08/03/ult630u4669.jhtmhttp://estilo.uol.com.br/moda/ultnot/2006/08/03/ult630u4669.jhtmhttp://estilo.uol.com.br/moda/ultnot/2006/08/03/ult630u4669.jhtmhttp://estilo.uol.com.br/moda/ultnot/2006/08/03/ult630u4669.jhtmhttp://estilo.uol.com.br/moda/ultnot/2006/08/03/ult630u4669.jhtm
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    ano XVII l n27 l 2012/1ano XVII l n27 l 2012/1

    11 Emlio Garrastazu Mdici foi presidente doBrasil de 1969 a 1974 e atribui-se a ele um dosperodos mais duros da ditadura.

    12 Ernesto Geisel presidiu o pas de 1974 a 1979e atribui-se a ele o incio da reabertura poltica,apesar de, ainda sob sua direo, muitos crimes e

    prises terem ocorrido.