kene marubo raimunda enes de oliveira (shapowã) raimunda
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Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas Nº 1, setembro de 2011
KENE MARUBO
Raimunda Enes de Oliveira (Shapowã) raimunda.acre@gmail.com,
Andréa Martini dauakaro@yahoo.com.br &
Sebastião Francisco de Oliveira (Tamã Imy)1
RESUMO
O presente artigo registra grafismos chamados kene, entre especialistas da Terra
Indígena Marubo do Rio Ituí, no estado do Amazonas, Brasil. Conhecido pelo
mesmo nome, entre variadas sociedades indígenas da família linguística Pano,
o kene alia história, memória e arte. Cada um tem seu significado próprio. São
usados na forma de pintura corporal, em objetos cotidianos e ocasiões rituais.
Trata-se de uma linguagem de grande importância, tanto para o povo Marubo
como para o patrimônio artístico e cultural. Sugere um intercâmbio necessário,
entre formas de observar, experimentar e compreender o mundo.
Palavras-chave: Grafismos; Kene; Marubo; Povos Indígenas; Rio Ituí;
Amazônia; Brasil.
ABSTRACT
This article registers graphic symbols called kene by specialists of the Ituí River
Indigenous Land, in the Brazilian state of Amazonas. Known by the same name
among several indigenous societies from the Pano linguistic family, kene
connect history with memory and art. Each design has its own significance.
They are used in body painting, everyday objects and rituals. It is a language of
great importance for the Marubo peoples, as well as for artistic heritage and art
in general. This suggests that an exchange of ways to observe, envision and
understand the world is necessary.
1 Este é o resultado da pesquisa de iniciação científica (PIBIC/CNPq) de Raimunda Enes de Oliveira. Raimunda é discente do curso Formação Docente para Indígenas da Universidade Federal do Acre, Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul – Acre, Brasil. É também atual presidente da Associação Kapy da Etnia Marubo Tamawavo do Alto Rio Ituí (KAPY). Andréa Martini é antropóloga, professora do referido curso e instituição (Ufac – Floresta) e doutora em Ciências Sociais (IFCH/Unicamp). Sebastião de Oliveira é representante em assuntos institucionais, conselheiro ou
hapowãdo de seu clã, além de tradutor e intérprete de línguas Marubo - português.
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Keywords: graphism; Kene; Marubo; indigeneous people, Itui River; Amazonia;
Brazil
TAMA E O KENE
Tama é o nome de uma árvore muito, muito grande.
Existiram mulheres artistas [na própria tribo]. Os nomes de seus clãs são
Vari Shavovo; Tama Shavovo; Shane Shavovo. Os nomes das artistas são: Tamã
Chori; Tamã Peko; Tamã Nai; Tamã Yochi; Tamã Maia; Tamã Vasi. Estes são os
nomes das artistas da antiga geração que faziam pinturas de kene. Essas
mulheres pintaram a grande árvore chamada Tama.
A história fala que Tama era um homem encantado em uma árvore; essa
árvore falava. Tama era um homem parente da família das futuras artistas,
como um irmão mais velho transformado em árvore. A história fala que ele
pediu para as mulheres o pintarem nos seus quatros lados; [os lados] da grande
árvore. Esse pedido quer dizer, na tradição, que esse homem estava treinando
essas mulheres em artes, o nome dessas mulheres é Tama Shavovo que quer
dizer “toda família do Tama”.
Depois de tudo isso, passou-se a pintar o corpo e muitas outras coisas.
Qualquer tipo de kene “utiliz{vel”, benéfico ou de livre acesso, pode ser
empregado em objetos em geral. Há kene que não pode ser usado, ou mesmo,
visto (cf. Item Resultados - “Principais Kene”).
Todo esse conjunto de kene e de colares [ráne] dos Varinawavo
representa um complexo sistema de valores (VIDAL, 1992; RIBEIRO, 1986).
Valores artísticos representados na variância de linguagens, [na] pela história e
cosmologia e também pela sofisticação das peças (MÜLLER, 1990). Valores
éticos e estéticos nos desenhos e na identificação com a vida de cada Clã e/ou
seção de clã (GRUPIONI, 1998; MELATTI, 1987). E também, em valores
organizacionais, como as relações entre grupos étnicos (FEM/CIMI, 2002;
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CARNEIRO DA CUNHA, 1992/1998) elaborada através da complexa
cosmovisão e história social do(s) grupo(s), dentre os quais, àquele atualmente
denominado Marubo (MONTAGNER, 1995).
É interessante notar que essa devida pintura tinha regras e ainda as têm,
até hoje O kene por nome Vei Kene ou “kene da morte”, foi pintado no lado
escuro da árvore, em que bate o sol poente; onde o sol some. Todo kene escrito
naquele lado da árvore não é favorável. Se alguém usa o desenho acontecem
acidentes com a família ou com a própria pessoa que usou.
Vei Kene está relacionado às cobras ou é a própria cobra. Tem um
sentido de morte. Por isso é que os velhos especialistas chamam de Vei Tama
Kene; palavra também relacionada atualmente às ideias de morte e inferno. Um
tipo de pajé benéfico encontrado entre os Marubo é chamado de Romeya;
considerado autor de todos esses saberes. Ele resguarda os conhecimentos
relativos ao conjunto de desenhos kene. Dizem os Romeya para não prejudicar
a tribo.
Já os kene escritos do outro lado da árvore Tama são benéficos. Tal
conjunto também representa a identidade da etnia. Os kene benéficos são
chamados de Yove Tama Kene e significam a espiritualidade do povo Marubo.
E os maléficos, como dito acima: Vei Tama Kene.
Após essas mulheres fazerem kene na árvore, outras mulheres, de outros
clãs, chamado Yno Shavovo, chamado Yno Maia e Yno Meto, viram,
aprenderam e fizeram também desenhos em seus maridos.
Esses maridos, conforme veremos à frente, (Cf. Anexo A), viraram ou se
transformaram em vários tipos de onça conforme as pinturas de kene
desenhadas em seus corpos. Hoje ninguém mais usa tais kene por isso.
Apareceram depois, outras mulheres atuais [contemporâneas] que aprenderam
ao ver a árvore e deu-se, assim, a continuidade da pintura de kene no corpo das
pessoas, além de objetos, cerâmica e outros suportes.
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ARTE E COTIDIANO
O principal objetivo do presente trabalho é descrever os kene, desenhos
ou grafismos hoje conhecidos entre alguns especialistas indígenas do povo
Marubo do Rio Ituí, no município de Atalaia do Norte - AM.
Complementarmente, incentivar e fortalecer o trabalho artístico e os
conhecimentos exclusivos de especialistas indígenas, assim como, o repasse de
conhecimentos entre todos os envolvidos na pesquisa.
Dada a associação direta, feita pelo conhecimento Marubo, entre
narrativa, canto e desenho, a pesquisadora – bolsista do CNPq Raimunda Enes
de Oliveira, orientada por seu esposo e co-autor da pesquisa Sebastião
Francisco de Oliveira, também transcreveu e traduziu parte de quatro
importantes mitos sobre kene. São eles: 1) ONÎ NÃNÃ - Do homem que deixou
as duas mulheres na mata ou Das duas mulheres, o sapo, a cutia, o morcego e a
onça; 2) SHAWE SHOVIA – [O grupo de crianças que] Virou Jabuti; 3) KORO -
O mito da maloca [koro] que andava e falava; 4) YNO KENE ATIVO - O mito
das onças, curica, cutia e bacurau.
Como tantas outras práticas artísticas entre povos indígenas, os desenhos
e pinturas Marubo fazem parte do cotidiano e se combinam a outras atividades
e afazeres cotidianas (BASTIDE, 1979). É atividade quase que exclusivamente
feminina, não fosse o papel fundamental de pajés e outros interessados. Talvez
por isso as mulheres sintam forte responsabilidade em aprender e ensinar umas
às outras e também às crianças (OPIAC & APAMIKTARJ, s/d).
A população Marubo da Terra Indígena Rio Ituí, local desta pesquisa,
está estimada em cerca de 850 moradores, segundo dados primários da
pesquisadora, distribuídos em quinze malocas. No entanto, a população total
na Terra Indígena é de 2.377 habitantes entre grupos Matis, Marubo, Kanamari,
Korubo, Kolina e Mayoruna. Em extensão territorial é a terceira maior Terra
Indígena do Brasil com 8.544.444 hectares de terra e localiza-se no município de
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Atalaia do Norte, Estado do Amazonas, Brasil (GRUPIONI, 1998; MELATTI,
1987).
Entre os meses de janeiro e março, seguindo o calendário Marubo, todos
gostam de fazer as pinturas de proteção chamando a força para o plantio e para
a saúde. Na força da cheia no rio, no inverno amazônico, e sendo mulher, se não
estamos trabalhando, estamos em casa com a família: ensinando a fazer
tecelagem e artesanato como redes e colares. As velhas ensinam as meninas. Os
velhos ensinam os meninos a fazerem arco, flecha, cesto, remo, etc. É tempo de
contar história. Toda noite tem história cantada e contada. Também tem
conselho dado e cantado, tem mitos contados e cantados.
As mulheres Marubo realizam variadas e cansativas atividades
cotidianas. Elas fazem artes variadas: cerâmica, cesta, peneira, colar de aruá e
de cocos de palmeiras variadas. Fiam muito bem o algodão. Confeccionam fios
resistentes com tucumã ou algodão para fazerem redes de fibra, sacolas, tiaras,
saias, tornozeleiras.
Fazem também todo tipo de comida, tiram lenha, carregam água, varrem
a maloca, cuidam dos filhos e netos. Caçam com seus maridos, pegam peixe
com veneno de folha e cipó da mata. Tiram banana e macaxeira no roçado,
fazem farinha, plantam variedades de plantas comestíveis e úteis. E ainda,
ajudam os homens a limparem os roçados, fazem desenhos kene, tecem
peneiras, cestinhos, vassouras, elaboram variados colares, tecem missanga.
Trabalham na palha de arumã, murmuru e tucum. Da palmeira tucum
(Bactris setosa) extraem uma fibra forte e útil, além dos cocos para artes variadas
e fio para amarrações. Do arumã, planta da família das marantáceas,
Ischnosiphon ovatus, se fazem balaios, peneiras para carregar cargas de
macaxeira, farinha, banana, cestos com as talas.
Já do murmuru, a palmeira Astrocaryum murumuru aproveitam do coco
às palhas dos olhos para fins técnicos e artísticos. As mulheres ainda
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confeccionam material de estética para toda a família, tinturaria de urucum,
Bixa orellana e frutos de jenipapeiro, Genipa americana, colares de dentes de
animais, além dos mais variados adornos. Quando uma maloca é terminada,
são as mulheres quem batem o barro no chão para nivelar o piso.
Já os homens Marubo têm serviços cerimoniais e rituais complexos. São
responsáveis pela confecção de adornos como pentes tradicionais, tambores
enfeitados, maletas de palha do broto ou olho de palmeira, enfeite tradicional na
entrada da maloca. Além disso, constroem a maloca, produzem flautas, buzinas
de taboca, lança-colares enfeitados, cocares de pena, arcos e roupas tradicionais
masculinas. Fazem também bancos no formato de jaboti e lanças compridas
para caçada.
Os homens também têm a responsabilidade em matar a caça e deixar
“tudo no ponto de cozinhar”: péla-se o animal e tira o couro, trata e corta a
carne. Já nos roçados, os homens gostam de fazer as coisas em campanha ou
mutirão. Todos àqueles pertencentes à mesma maloca derrubam, encoivaram
[tirar tocos e paus após a queima], plantam e limpam os roçados [coletivos e/ou
individuais] uns dos outros. Quem colhe os cultivares são as mulheres. Na
pescaria que muito apreciam, em seus variados sistemas, os homens são bons
técnicos, principalmente, no marisco com plantas tóxicas como tingui e na
embicheiro; técnica de marisco com mergulho.
Alguns homens, de acordo com os dons próprios ao seu clã, podem
aprender a desenhar e relatar os extensos mitos relacionados ao Kene, como é o
caso de Tamã Ymi que tem essa função em seu próprio clã [ver o mito
introdutório da árvore Tama]. Hoje, como ontem, o Kene se faz presente na
vida de homens, mulheres e crianças do povo Marubo. Sua identidade se
caracteriza fortemente através dessas linhas, da arte apurada de seus desenhos.
É o mesmo que acontece entre outros povos de língua Pano (CARNEIRO DA
CUNHA & ALMEIDA, 2002).
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Nas palavras de Raimunda, “Kene é como um desenho, mas, hoje vejo ao
mesmo tempo, as longas histórias e explicações que estão ali presentes. Eu já
não penso o grafismo sozinho, eu penso que está tudo relacionado: os mitos, os
cânticos de kene, a história de kene, o desenho em si, como um todo. Já não é
mais como antes, antes eu pensava numa coisinha “pobre” e *hoje+ eu comecei a
me apaixonar vendo toda a beleza que tem ali dentro... por ter no desenho
aquela linda história contada” (Comunicação pessoal, julho 2011).
METODOLOGIA
No primeiro semestre de 2009, a professora Msc. Heidi Soraia Berg inicia
uma orientação com Raimunda Enes de Oliveira sobre o tema Kene, na área de
“Linguagem e Artes”, do curso Formação Docente para Indígenas, doravante
CFDI, vinculado ao CMULT/UFAC-Floresta (CFDI/UFAC-FLORESTA/OPIAC,
2009; CFDI/UFAC-Floresta, 2007). O projeto aprovado passa a receber apoio do
CNPq, ao longo de 2010, tendo sido renovado por mais um ano (agosto de
2011). Com a saída da professora Heidi para seu doutoramento, a orientação
passa a ser realizada pela professora doutora Andréa Martini, da área de
Ciências Sociais e Humanidades do referido curso, pela proximidade com
temas de pesquisa já desenvolvidos.
Durante o período conhecido por “Fase Intermedi{ria”, no CFDI, ao qual
discente e a atual orientadora estão vinculadas, são realizadas variadas
atividades interligadas de pesquisa e ensino nas aldeias. Trata-se de dois
períodos anuais, em que discentes como Raimunda, atuam nas escolas
localizadas em Terras Indígenas, realizando atividades de pesquisa
complementares à sua formação e estágio supervisionado. No caso do Rio Ituí,
a escola indígena não é diferenciada, ou seja, não é adaptada à realidade e às
práticas culturais indígenas como proposto nas pioneiras atividades no estado
do Acre (KAXINAWA, 2002; CABRAL; MONSERRAT & MONT, 1987).
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A trajetória da pesquisadora influenciou, e positivamente, na escolha do
tema, localidades pesquisadas, colaboradores e também nas metodologias
utilizadas. Falante e escrevente em língua Marubo “comum”, Raimunda Enes
de Oliveira, pertence ao clã Shane Shavo, clã do pássaro azul – sanhaçu; seu
nome na língua Shapowã. Trabalhou conjuntamente com o esposo Sebastião
Francisco de Oliveira, pertencente ao clã Tamawavo, cujo nome é Tama Ymi.
Casados há trinta anos, ele é representante Marubo para assuntos
institucionais, políticos e gerais, além de conselheiro ou hapowãdo de seu clã,
tradutor e intérprete de língua Marubo [comum e mítica]. Ela, atual presidente
da Associação Kapy da Etnia Marubo Tamawavo do Alto Rio Ituí (KAPY) é
discente do CFDI. Todo o trabalho foi realizado inteiramente por ambos, tendo
como orientadores e tradutores, nas duas línguas [mítica e comum], os
especialistas Tama Ymi e sua mãe Varî Vanti, traduções em português,
Raimunda Francisca de Oliveira.
Outros colaboradores importantes são o pajé Miguel ou Kenãpa. Além
dos senhores considerados líderes para o grupo como Felipe da Costa Marubo,
Txoko Tãma e Vicente Doles Marubo, Ivãpa. Outros especialistas que
gostaríamos de citar: Maria Vargas Marubo, Satã Mesma, que auxilia Raimunda
no início das tarefas relacionadas ao kene; Maria Dóles Marubo, Võewa;
Antônio Maia Marubo, Ramê; Eduardo Francisco da Cruz, Shane Panã; Simão
Francisco Marubo, Shane Poyia. Têm entre 35 anos e 90 anos de idade, como
Satã Mesma e Varî Vanti, respectivamente.
Foram utilizadas técnicas de entrevista aberta, descrições etnográficas e
observação participante em que a convivência acentuada entre o casal de
pesquisadores e colaboradores facilitou enormemente a tarefa, tanto do ponto-
de-vista linguístico como do antropológico, além de certa liberdade na obtenção
de registros audiovisuais, gravações e também registros de pequenas biografias.
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Muitas ressalvas linguísticas devem ser feitas. Tomamos [toda] a
liberdade. E até o momento não se teve acompanhamento ou revisão
linguística. Gostaríamos de solicitar apoio dos colegas neste sentido.
Comentários de revisão do artigo escrito, em língua portuguesa e edição,
geralmente são tarefas da orientadora Andréa Martini e seguem diferenciados
no texto, destacados entre parênteses. Não temos, até o presente momento,
acesso ao programa de computador que respeite a acentuação da língua
indígena [Marubo]. Portanto, fizemos várias adaptações. Onde se vê as vogais
“e” e “i” grafadas com acento circunflexo, leia-se um acento til. Por isso falamos
de “toda a liberdade”.
Segundo V}ri Vãtî, a língua hoje falada pelo Marubo é uma “língua
misturada”, oriunda das fusões, casamentos e também de conflitos entre
variados grupos étnicos no passado. Nossa professora explica que existem hoje
duas línguas: a língua Asãki Iki Vana, segundo ela, a “língua misturada” e a
língua dos pajés “língua do passado”, em suas palavras, chamada Yove Vana.
As grafias em português, linguagem mítica e comum, e todo o impressionante
esforço dos colaboradores e autores para fazerem bem feito, à frente Tamã Ymi
e Shopowã Shane Shavo, levou-os a acompanhar dias e noites de explicação e
aprendizagem na língua Yove Vana, juntamente com toda a comunidade. São
narrativas feitas pelo pajé que atravessam a noite, em que todos devem ouvi-lo.
Ninguém pode dormir, nem tampouco, trabalhar.
Tudo isso para apreender uma história ou mito, memorizar sua
narrativa, seus detalhes, os nomes corretos e repassar com qualidade, segundo
ensinado, para a língua Asãki Iki Vana e português. Trata-se de um serviço
denso composto pelas atividades de audição, transcrição, tradução, [re]
tradução e [re] transcrição em três línguas. Neste esforço [hercúleo] foram
transcritos quatro mitos relacionados ao kene que estão ainda em processo de
digitalização, além das inúmeras atividades já desenvolvidas pelo casal como
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lideranças e por Raimunda como docente do CFDI. Esse conjunto de
documentos comporá o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Raimunda
no CFDI/UFAC.
Mínima nota antropológica: O texto foi entremeado por uma “fala
conjunta” que é produto da edição final da orientadora Andréa. Nesta
plurivocalidade [talvez acentuada] procuro manter o texto que recebi do casal,
porém, por vezes, “integrando-me | narrativa deles” num texto que j{ vem de
uma tripla [?], sêxtupla sessão de tradução e re-tradução. Entre me diferenciar
demais do texto, como antropóloga, ou me integrar a ele, fiz a segunda opção.
Ao longo de dois anos e ainda que resumidamente, foram realizadas as
seguintes atividades: 1) Pesquisa bibliográfica inicial; 2) Observações sobre as
leituras; 3) Elaboração de roteiro para pesquisa de campo e entrevistas; 3)
Reunião preparatória com lideranças; 4) Reunião preparatória com a
comunidade; 5) Pesquisa de campo e encontros nas aldeias visitadas com a
participação de professores, agentes de saúde e outros interessados;
6)Digitalização, transcrição, traduções sucessivas de material escrito e gravado;
7) Elaboração de artigo e, 8) Apresentação pública dos resultados na Ufac -
sede, Ufac - Campus Floresta e na Terra Indígena Marubo do Rio Ituí.
A estudante fez também um intenso acompanhamento dos professores
indígenas Marubo durante seus períodos de pesquisa de campo. A distância até
as aldeias é grande, sendo necessário geralmente, mais de dois dias de
caminhada, além de transporte por barco. O translado também pode ser feito
por avião fretado entre os municípios de Cruzeiro do Sul - Acre e/ou Atalaia do
Norte – Amazonas, até a sede da comunidade - aldeia conhecida como Vida
Nova; sede do Pólo Base dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).
Foram organizadas e revisadas sucessivas versões das traduções obtidas pela
bolsista.
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Acreditávamos que todas as transcrições e traduções necessárias seriam
realizadas num único semestre. Mas, o material registrado é abundante e rico
em (re) traduções. Que vem a ser: as traduções feitas sobre as traduções que os
próprios narradores, intérpretes e tradutores, fazem na tentativa de
compreender. As traduções foram feitas, portanto, ao longo de toda a pesquisa.
E não apenas, durante o período específico das entrevistas.
Raimunda também teve de aprender a desenhar kene para saber contar
melhor a história. Segundo afirmam seus professores Marubo, contar, cantar e
desenhar kene é tarefa interligada. Vejamos então, alguns resultados destes
aprendizados.
KENE DO MAR E TERRA
Segundo nossos colaboradores e a história indígena e oral Marubo, o
kene teve sua origem nos antepassados mais antigos. Vieram através de duas
fontes: terra e mar.
Os Kene (s) aprendidos do mar vieram através de um homem chamado
Vimi Peya que em seu encanto buscou vários conhecimentos e não só os
desenhos kene. Teve conhecimentos sobre a construção de maloca, tecelagem,
história, canto, medicina. Quando Vimi Peiya voltou do fundo do mar, ele
ensinou muitas coisas que havia aprendido para seus parentes em terra.
Os Kene de Vimi Peiya são os mais fáceis para aprender a fazer. Trata-se
de vários tipos de amarrilhos que servem na armação da maloca, peneiras,
cestaria e também, na feitura de flechas. Amarrilhos que, ao final, tomam a
forma de kene. Porém, são muito variados. Exemplos de Kene desse Vimi Peiya
é o kene por nome de Kapê Shikachi Kene, Ene Pixi Kene, Ene Txitxã Kene,
dentre outros que ele viu, mas, não ensinou para ninguém. É o caso do Ene
Awá Keneyá. Conta-nos a história que esse foi o primeiro kene que Vimi Peyia
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viu numa anta, porém a história também fala que esse kene não foi ensinado
para ninguém.
VIMI PEYA E TAMAWAVO
Os conhecimentos e saberes do povo Marubo relacionados ao kene
apresentam-se como longas histórias, cantos e narrativas míticas. As histórias
principais como fontes orais do kene são: 1) A história de Vimi Peiya; 2)A
história de Tama (árvore que representa uma pessoa); 3) A história do Pato da
Água (Ene Shõ Aká); 4) A história da onça; 5) A história do jabuti e outras mais.
Quando se fala em conhecimento, não se pode excluir Vimi Peiya. Vimi
Peiya foi uma pessoa [encantado] que além de buscar os conhecimentos no
fundo do mar foi também construtor, narrador, “dono da história” nas palavras
de Sebastião. É conhecido e considerado “o s{bio do povo Marubo”. Segundo
nossos colaboradores, ele aprendeu, preservou e repassou saberes e práticas,
além de conscientizar seu povo sobre a importância dos mesmos.
Vimi Peiya se inspira no pajé tradicional do passado [primeiros pajés].
Hoje ainda é assim. Vimi Peya, sábio, incentivou seu povo com a arte do kene,
através de suas tecelagens e amarrilhos variados de cipó. O que resulta numa
arte bonita, algo que nem todos conseguem fazer.
Existem grafismos empregados na tecelagem bem parecidos com kene. E
outros, são considerados kene, como por exemplo: Kapê Chinkaxi Kene, Ene
Pichin Kene, Ene Kenã Kene, Ene Chomo Kene. Por isso se fala que existe uma
fonte de kene que veio do mar e da experiência de Vimi Peyia e outra que veio
da terra, conforme a história da árvore Tama.
Tama quer dizer pessoa, essa pessoa é considerada [hoje os clãs
chamados] Tamawavo, Shane Nawavo, Isko Nawavo que são gerações de Vari
Nawavo. Vari Nawavo foi uma primeira geração, ou seja, aqueles que nasceram
da terra propriamente dita, conforme a história de seu surgimento. Hoje
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Tamawavo, Shane Nawavo e Isko Nawavo são considerados a família dos
artistas de kene.
O clã chamado Yno Nawavo também era povo de artistas de kene;
também pintaram as onças (cf. Anexo A. Mito Marubo: “Yno Kene Ativo” - O
mito das onças, curica, cotia, bacurau). Rane Nawavo também eram clãs de
artistas especialistas em estética do corpo, desenhos, pinturas, colares, dentre
outros adereços. Faziam também tecelagem de algodão com Rane Pichin Kene,
Rane Kenã Kene, Rane Vatxi Kene dentre outros.
Porém, esses dois clãs, Yno Nawavo e Rane Nawavo, não preservaram
seus conhecimentos, quem preservou tais conhecimentos foi o clã do
Tamawavo. E nesse tempo, Yno Nawavo e Rane Nawavo, ainda não eram
ligados aos Tamawavo. Hoje esses clãs são todos ligados através de afinidade,
casamento e relações de parentesco.
Apesar disso, os Tamawavo e também outros clãs Marubo, evitam trocar
e receber nomes de outras famílias; não é considerado digno.
Eles evitam casar “misturando” os clãs e não recebem nomes de clãs que
não sejam os seus próprios. Porém, os Tamawavo têm a função social e ritual de
conhecerem, preservarem e repassarem os nomes e conhecimentos relacionados
a si próprios e aos outros clãs. Foram os primeiros a nascer sobre a Terra, os
primeiros a se constituírem como gente. [Nascem] Como povo que se chama
Yora Koin, povo verdadeiro, que nasceu primeiro do que os outros [aqueles
que] emergiram da terra ou brotaram, wenia Yora.
Por isso os Vari Nawavo, que são os mesmos Yora Koin da linguagem
mítica, são considerados antepassados dos Tamawavo e também raízes de
outras etnias Pano [atualmente chamadas de] como Puyanawa, Shanenawa,
Yawanawa e Huni Kuin. A história fala que Varinawavo é um povo temido por
todos os outros. Varinawavo é hoje o chamado [povo] Marubo.
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KENE (S)
Os principais kene apreendidos através da terra e do mar são os descritos a
seguir:
1) Ene Pichî Kene – Kene da palheira d´água que veio do mar – de autoria de
Vimi Peya. Tecelagem que faz em peneiras, cestos, abanos, esteiras (pichî) e
outros, Pichî traduz como sendo um material, como o papel. Neste material
[suporte] pode se fazer qualquer kene que se queira ou se saiba fazer.
Interessante saber que independentemente do kene que esteja escrito ou nele
seja feito, será sempre chamado: Ene Pichî Kene.
2) Ãsî Tae Kene – Desenho do “pé de mutum” dito pela senhora Võewa. J{ para
a senhora Varî Vãti é chamado [como sendo igual ao] Shete Voshká Kene. Esse
kene não se usa. O que é confirmado pelo pajé Miguel. Já o kene chamado Ãsî
Tae Kene se usa no corpo inteiro, só em homens.
3) Mîpo Tae Kene – Desenho de uma batata nativa, Varî Vãti e também pelo
pajé Kenãpa. Só para mulher, feito no corpo.
4) Kevõ Isã Kene – Isso na versão de Maria Vargas, Satã Mema. Kevõ isã é
palmeira por nome bacaba; Oenocarpus circumtextus. Já na versão de Varî Vãti
trata-se de um tipo de kene que enrola [envolve, circunda, enovela], chamado
Seví Kene. Usado só em mulheres, nas costas, nas pernas. Serve para as
primeiras aprendizagens em artes das crianças, principalmente, em objetos
como: peneira, abano, pichî (esteiras), cerâmica e outros.
5) Kara Mapo Kene – Quer dizer “desenho da cabeça do sapo kara”, um dito
sapo comível apreciado pelos antigos. Aparece aí, em dois modelos – conforme
versão de Kenãpa e Varî Vãti. Para homem, só pode ser desenhado no queixo e
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para mulheres nas costas. Já a segunda versão do desenho feita por Varî Vãti, é
usada pelos homens no queixo. Ela a chamou de Nawã Moka Kene. Segundo os
especialistas, ambas as versões do kene podem ser utilizadas em objetos.
Quando é feito com a garra ou gancho do desenho para um lado só, chama-se
Westi Meshtea.
6) Nawich Kene – Kene que significa “riscar” dentro de algo, ou riscar pela
frente do corpo de alguém. Conforme Vãrî Vãtí, Satã Mema, Tama Ymi. É
usado por homens e mulheres. No homem é feito só da cintura para cima.
7) Txeshê Ashká Kene - Kene que significa “linhas” que separam o desenho
como nos riscos pretos sobre fundo branco, como feito e dito por Várî Vãti. Só
se faz em mulheres nas costas e nos objetos em geral. Esse desenho, quando
dentro das forquilhas [forquilhas são bifurcações nos traços do grafismo que
separam ou envolvem um desenho] é pingado com a cor preta, então, [o kene] é
Txeshê Ashká Kene. O desenho que não é pingado nas forquilhas das linhas,
esse é chamado de Oshõ Ashká Kene.
8) Paka Mevi Kene/Vei Kene – Dito pelo pajé Kenãpa, Varî Vãtí e Tama Ymi.
Kene da taboca; espécie de bambu abundante na região; Guadua sarcocarpa.
Atrai a morte. É com a taboca cortante que se fazem os diversos tipos de armas.
Só os guerreiros o podiam ainda usar, embora seu uso estivesse proibido. É
usado hoje nos recipientes para rapé e urucum preparado para pintura.
Segundo Tama Ymi, a taboca já nasceu envenenada. As pessoas usam porque
não entendem.
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9) Kevõ Isã Kene – Kene da palmeira chamada bacaba, conforme a versão de
Varî Vãtí. Só para mulher usar nas costas. No segundo desenho, Kevõ Isã Kene
feito também por Varî Vãti.
10) Tama Kene - Substitui (uma/a) pessoa na área espiritual. Representa a cobra.
Também considerado como Sheki Toshkã Kene, “desenho da mão de milho”,
na versão de Kanãpa e Varí Vãtî. Desenhado nas costas e objetos. O desenho
deve ser feito na diagonal; é a regra. Esse kene estava na árvore Tama e foi
achado lá atrás [no tempo]; significa todos os outros kene.
11) Chîkõmi Váka Kene – Kene da flor da sororoca, versão de Võ Ewa [Aldeia
Água Branca] e outros informantes. Feito só em mulheres e objetos como
peneiras. No segundo desenho, kene literal da flor, pendão da sororoca, feita
por Tama Ymi. Trata-se de um “kene contempor}neo de criatividade” que
desvenda o “sentido camuflado dos segredos antepassados”, nas palavras de
Raimunda.
12) Yawa Merîki Kene – Dito pelo pajé Miguel Kenãpa. Segundo a versão de
Maria Doles, Vô Ewa, é chamado de Nawã Mukã Kene feito para mulher pintar
nas costas. Segundo a versão da anciã Varî Vãtí, também é chamado de Yawa
Merîki Kene e serve para a mulher usar nas costas e pernas por ser pequeno.
13) Txonã Îtxo Kene [sendo o estilo rave com duas pontas] ou Westistá Aká
Kene [estilo westi com apenas uma ponta, um gancho, uma garra] – Conforme
Varí Vãtí. Só para mulher desenhar nas costas. Kene da “ponta do rabo *îtxo+ do
macaco barrigudo *txonã+” usado em objetos.
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14) Yove Tama Kene – Pintura para homens e mulheres. Não é muito usado no
cotidiano, serve especialmente, nos momentos espirituais e/ou rituais. Dito e
desenhado conforme orientação do pajé Kenãpa. Esse kene foi o primeiro a ser
pintado no homem encantado Tama, segundo a mitologia Varinawavo
(Marubo).
15) Matsi Tama Kene – Existe, mas é camuflado pelo pajé para [em] proteção ao
povo. Kene da cobra jibóia ou anaconda; cobra que atrai, engana, mata e carrega
para uma vida que não é boa, segundo explicações de Raimunda obtidas com
Varî Vãtí. Tal cobra, os Marubo não matam e nem olham.
16) Shete Voshká Kene - Significa a cabeça do urubu, dito por Varî Vãtí e não se
costuma usar o kene. Em versão de Satã Mema é conhecido como Tama Meã
Kene e a mulher pode usá-lo nas costas.
17) Txonã Îtxao Kene ou ainda, Westichta Aká Sevi Kene - Ou seja, esse kene
est{ misturado/entremeado, h{ “dois kene em um”. Conforme Varî Vãtí. J{ seu
segundo desenho é para ser usado por mulheres, pintado nas costas.
18) Shõnõ Shenã Kene - Desenho das lagartas de samaúma. Esse kene é
chamado também de Chinã Kene, kene das lagartas de samaúma. O homem usa
no peito [na região do coração] e nos músculos, sendo um dos mais usados
desde a antiguidade [dos tempos primordiais] por homens e mulheres. O nome
Shõno é atribuído à árvore que se conhece por samaúma. È um kene que pode
ser usado por todos. Os homens geralmente usam nas costas, peito e
queixo/rosto. As mulheres, se usarem, só pode ser nas costas. Dito por Varî
Vãti, Kenãpa, Satã Mesma.
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19) Kayõ (Atxá) Tae Kene - desenho do (passo), pé ou pegada da arara colorida
kayõ, considerada a “rainha das araras”; seu nome antigo. Para mulheres e se
faz nas costas.
20) Nawã Moka Kene – Faz nas costas da pessoa, mas, não é fácil de fazer.
21) Vekê Kene – Símbolo da face da pessoa. Assemelha-se ao formato do rosto
de uma pessoa. Esse kene é muito apreciado e usado pelos anciãos, sendo feito
na altura do braço chamado pwyã, j{ próximo ao ombro *na região “das marcas
de vacina”+. Ou ainda, próximo ao peito, no queixo e nas costas de homens. J{
nas mulheres é feito nas costas e coxas.
22) Peshko Kene - Kene do crescimento. É muito desenhado em crianças para
elas crescerem rápido. Por Varî Vãti.
KENE (S) DO MAR*
23) Ene Koma Kene – Novo kene [contemporâneo] ensinado pelo pajé Miguel e
feito por Tama Ymi e Shapõwã. Kenapã falou que ninguém acertara em fazer tal
kene. Contado na história de Vari Mãpe, Shõ Ati – Shenê Ene [trata-se de uma
única história, muito comprida, segundo Raimunda].
24) Kapê Shikachi Kene - Significa peito de jacaré. Por ser um animal muito
comum na alimentação e ser visto com facilidade pelos caçadores indígenas, ao
longo dos rios e igarapés, sua presença no ambiente é motivo de inúmeras
observações, histórias e inspiração para a criação artística. Faz parte da história
de Vimi Peiya. Só executado em objetos como peneiras, abanos, em pichî e
também em crianças.
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25) Ene Pichi Kene - Esse grafismo é o abano encantado feito pelo povo da água
para uso. Diz a história de encantos que Vimi Peya usou abano como cama
enquanto estava no fundo do mar.
CONCLUSÕES
Observamos nesta pesquisa alguns desenhos ou grafismos da etnia
Marubo chamados kene. Cada kene tem seu nome e significado próprios. Trata-
se de uma linguagem de grande importância, material e espiritualmente para o
povo Marubo, faz parte de seus saberes, práticas e valores.
Os desenhos kene representam e surgem duma profunda interação
gente-natureza. A observação das lagartas, por exemplo, motivou os artistas
ancestrais a realizar um desenho kene. Este representa, primeiramente, a
organização das lagartas e, em seguida, a organização das pessoas que
desempenham atividades artísticas semelhantes como desenho, tecelagem.
Não só as lagartas, mas, outros seres e espíritos que vivem nas árvores se
comunicam com os homens, principalmente através dos pajés. O pajé fica
responsável em transmitir para a geração de viventes, aquilo que recebe através
destas suas conversas com os espíritos. É assim que o grupo constrói, apreende,
repassa e também reinventa seus conhecimentos.
Os kene são geralmente usados na forma de pintura corporal com
jenipapo, pinturas em objetos e ocasiões rituais. Por exemplo, geralmente
quando se realiza um convite para festa. O responsável pelo convite deve estar
enfeitado (a) com qualquer tipo de kene, bem entendido, àqueles utilizáveis por
pessoas comuns feitos com jenipapo. Ou, pelo menos deve estar bem enfeitado
com palha de buriti. Nunca sem ornamentos e pinturas.
O convite sempre é feito cantado e não falado, para todos ouvirem. Isso
serve também para aquele que fala ser visto por todos, assim como, seus
enfeites e pinturas chamando bem a atenção. Para todos aceitarem, acreditarem
no convite. Como num convite para festa, a história do Kene é contada e
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também cantada. Esse conhecimento faz parte do trabalho, lazer, educação,
história e alimentação, ou seja, é parte da vida cotidiana do povo Marubo.
Arte do kene integra linguagem oral, história, memória e arte. Serve
como uma importante ferramenta na educação linguística, história e filosofia
dos povos falantes de línguas Pano. Com essa pesquisa, outros professores
também se animaram em registrar aspectos da cultura Marubo, num registro
bilíngue. Todo esse material registrado é abundante, rico e complexo. Merece
um tratamento adequado à sua especificidade cultural, social e linguística.
Não deixamos de notar quão apreciadas são as tarefas de tradução e
interpretação de passagens míticas pelos Marubo. Raimunda e Sebastião
realizaram inúmeras sessões dessas atividades que podem durar dias. O
especialista fala, posteriormente, outro especialista traduz, comenta, repassa aos
terceiros o que o primeiro diz, e todos devem se certificar de que a versão é
realmente convincente.
Alunos Marubo que estudam na cidade de Atalaia do Norte, estado do
Amazonas, também auxiliaram nesses processos de tradução que para os
Marubo é fundamental, passando da linguagem mítica, para a linguagem
convencional. Um ato de responsabilidade dos pajés e, possivelmente, de
pesquisadores como Raimunda e Sebastião. Desse processo estão surgindo
propostas para materiais didáticos
As informações registradas impulsionaram novas investidas por parte de
outros conhecedores. Várias comunidades começaram seus próprios registros, a
nosso ver, complementando, “retraduzindo” os trabalhos de uns e outros. No
início, alguns pensaram que a pesquisa resultaria em furto intelectual. O que
está acontecendo agora é o contrário. Importante é trabalhar conjuntamente pra
resguardar e também saber divulgar esse conhecimento. São necessárias
pessoas de confiança, apoio financeiro e técnico para realizar novos e futuros
trabalhos. Para sua proveitosa continuidade.
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Anexo A – Mito Marubo
Há várias versões do mito que contamos a seguir. Ele serve para demonstrar
como a arte do kene é forma integradora que envolve conduta, linguagem oral,
história, memória.
“YNO KENE ATIVO” -
O mito das onças, curica, cutia e bacurau.
Era uma vez um grupo de pessoas chamado Yno Nawavo; expressão que
quer dizer um segundo nome para o clã Kamã Nawavo. [Eles] estavam se
preparando para fazer pinturas. Os homens desse grupo eram muito ruins para
suas mulheres. Um dia, elas começaram a pintar seus esposos, um por um. O
primeiro a terminar a pintura chamava- se Ino Wirê. Esse ficou à parte para a
sua pintura secar, um pouco distante dos outros que estavam ainda se
pintando.
Enquanto isso, Ino Wirê percebeu que um bando de queixadas estava
passando por ali. Ele, então, correu para avisar seus parentes. Quando chegou
lá no grupo de pessoas que estavam se pintando, por sorte os adultos já
estavam prontos, já outros estavam começando a pintura nos rostos para depois
fazerem no corpo todo. Suas mulheres mandaram que eles fossem matar as
queixadas assim mesmo. E também para que passassem urucum em seus
corpos inteiros quando vissem um pé dessa planta, pois na manhã seguinte
terminariam suas pinturas.
Então eles saíram e foram matar as queixadas. Enquanto isso Ynõ Rami,
uma das mulheres disse para as outras: - Vamos embora? Nossos maridos são
muito ruins para nós. Sabemos que da carne que trarão só sobram migalhas
[para nós]. Então uma delas respondeu: - Eu não quero ir, pois, eles irão nos
perseguir até matar.
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- E então como vamos fazer? Perguntou a terceira mulher. Yno Rami, a dona da
idéia respondeu: - Vamos apagar todo o fogo que estiver aceso com água e
vamos sumir. Mas Tao
Kati, uma das mulheres, disse: - Vamos nos separar. E, em seguida,
pegou um pouco de fogo aceso num tição e disse: - Eu levarei comigo esse fogo
aqui e vou morar nas árvores, para que nossos maridos não possam alcançar o
fogo. Então, ela se foi e virou uma curica. É por isso que hoje existe curica.
Curica sabe fazer buraco nas árvores para morar [até hoje].
A segunda mulher por nome Yno Rami, a dona da idéia disse: - Eu não
vou para longe, vou ficar nos arredores da maloca para aproveitar e comer a
roça deles. E assim aconteceu, [Yno Rami] virou cutia. É por isso que hoje existe
cutia e [ela] come a roça dos agricultores.
A terceira mulher por nome Yno Meto disse: - E eu ficarei aqui por perto
também, nos arredores da maloca e ninguém poderá perceber quem sou eu,
pois vou virar um bacurau e farei susto para nossos maridos e todas as pessoas
desconhecidas e até para meus amigos. E assim ela fez, virou um bacurau. É por
isso que hoje existe bacurau e [ele] assusta as pessoas que passam por perto
dele.
Depois de tudo isso acontecer, seus maridos chegaram da caçada, mas,
perceberam que suas mulheres não estavam mais ali. Então chamando e
chorando, disseram: - Nós emprestamos os nossos nomes para que vocês
pudessem ser chamadas e para que juntos, nos tornássemos uma família. Nós
gostamos vocês e agora vocês nos deixaram sós. E, enquanto tristes e com fome,
um deles colocou sua carne de queixada ao sol para secar e enquanto secava, ele
comia a carne seca e falava para os outros, dizendo: - Meus parentes não fiquem
tristes, façam como eu.
E assim como ele, os outros fizeram, comiam a carne crua, pois não
tinham fogo para cozinhar. Então viraram onças e o homem chamado Yno
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Wirê, hoje é um gato maracajá, e o outro por nome Yno Kuin aquele em que foi
terminada a pintura, virou onça pintada [e outros clãs de onças de pequeno
porte] como Txashpa Kamã; Shawã Kamã; Ketsivo; Mativo, dentre outros. Estes
são os clãs de onças pequenas, regionalmente chamadas de gatos, que não
terminaram a pintura. Os outros [homens] que não terminaram a pintura, só
passaram urucum em seus corpos, transformaram-se em onças vermelhas.
Outros ainda se pintaram apenas com jenipapo e viraram onças pretas. É por
isso que hoje existem onças pintadas, onças vermelhas, onças pretas e outros
tipos de onças pequenas como o gato maracajá.
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