a virtude da prudência segundo santo tomás de aquino · ser la virtud una buena cualidad de la...
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Rodrigo de Oliveira Dias
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
MONOGRAFIA
Rio de Janeiro Dezembro de 2008
INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II
Curso de Filosofia
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Rodrigo de Oliveira Dias
Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles
Rodrigo de Oliveira Dias
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia
Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles
Rio de Janeiro
Dezembro 2008
INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II
Rodrigo de Oliveira Dias
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia Avaliada pela Banca Examinadora abaixo assinada
Grau Obtido __________
Prof Dr Sergio de Souza Salles Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II
Prof Dr Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira
Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II
Observaccedilotildees da Banca
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Rio de Janeiro
01 de dezembro de 2008
Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando
Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver
ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade
de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo
especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este
trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de
exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos
aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta
graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor
A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo
(Santo Tomaacutes de Aquino)
Resumo
Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e
distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver
A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica
Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo
Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II
Curso de Filosofia
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Rodrigo de Oliveira Dias
Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles
Rodrigo de Oliveira Dias
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia
Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles
Rio de Janeiro
Dezembro 2008
INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II
Rodrigo de Oliveira Dias
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia Avaliada pela Banca Examinadora abaixo assinada
Grau Obtido __________
Prof Dr Sergio de Souza Salles Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II
Prof Dr Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira
Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II
Observaccedilotildees da Banca
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Rio de Janeiro
01 de dezembro de 2008
Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando
Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver
ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade
de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo
especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este
trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de
exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos
aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta
graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor
A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo
(Santo Tomaacutes de Aquino)
Resumo
Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e
distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver
A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica
Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo
Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
Rodrigo de Oliveira Dias
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia
Orientador Prof Dr Sergio de Souza Salles
Rio de Janeiro
Dezembro 2008
INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II
Rodrigo de Oliveira Dias
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia Avaliada pela Banca Examinadora abaixo assinada
Grau Obtido __________
Prof Dr Sergio de Souza Salles Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II
Prof Dr Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira
Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II
Observaccedilotildees da Banca
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Rio de Janeiro
01 de dezembro de 2008
Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando
Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver
ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade
de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo
especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este
trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de
exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos
aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta
graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor
A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo
(Santo Tomaacutes de Aquino)
Resumo
Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e
distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver
A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica
Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo
Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
INSTITUTO DE FILOSOFIA JOAtildeO PAULO II
Rodrigo de Oliveira Dias
A virtude da prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino
Monografia apresentada ao Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II conveniado agrave PUC-Rio como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Bacharel em Filosofia Avaliada pela Banca Examinadora abaixo assinada
Grau Obtido __________
Prof Dr Sergio de Souza Salles Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II
Prof Dr Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira
Instituto de Filosofia Joatildeo Paulo II
Observaccedilotildees da Banca
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Rio de Janeiro
01 de dezembro de 2008
Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando
Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver
ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade
de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo
especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este
trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de
exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos
aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta
graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor
A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo
(Santo Tomaacutes de Aquino)
Resumo
Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e
distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver
A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica
Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo
Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004
______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
Aos meus pais Gilvete e Fernando a meu irmatildeo Fernando demais parentes e amigos em especial Cocircnego Mazine por sempre terem-me aconselhado e incentivando
Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver
ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade
de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo
especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este
trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de
exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos
aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta
graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor
A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo
(Santo Tomaacutes de Aquino)
Resumo
Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e
distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver
A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica
Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo
Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
Agradecimentos Agradeccedilo a Deus que nos comunica as perfeiccedilotildees necessaacuterias para o bem viver
ao Seminaacuterio Arquidiocesano de Satildeo Joseacute em seus formadores pela possibilidade
de me preparar para o serviccedilo do Cristo a todo corpo docente desta instituiccedilatildeo
especialmente ao professor Seacutergio Salles por seu aconselhamento em todo este
trabalho e por sua amizade ao professor Carlos Frederico que sempre me serviu de
exemplo por sua dedicaccedilatildeo ao professor Beethoven por sua solicitude e a todos
aqueles que compartilharam comigo as salas de aulas no decurso desta
graduaccedilatildeo bem como aqueles que prestaram culto agrave Deus em meu favor
A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo
(Santo Tomaacutes de Aquino)
Resumo
Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e
distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver
A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica
Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo
Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
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permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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A prudecircncia eacute virtude soberanamente necessaacuteria agrave vida humana Pois viver bem consiste em obrar bem Ora para obrarmos bem eacute necessaacuterio levarmos em conta natildeo soacute o que faccedilamos mais ainda como o faccedilamosrdquo
(Santo Tomaacutes de Aquino)
Resumo
Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e
distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver
A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica
Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo
Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
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permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
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() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
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virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
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Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
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speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
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prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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Resumo
Santo Tomaacutes de Aquino na Summa Theologiaelig apresenta o quadro das virtudes e
distingue as virtudes sobrenaturais das humanas partindo da definiccedilatildeo comum que diz ser a virtude uma boa qualidade da mente pela qual vivemos retamente e de que natildeo podemos fazer mal uso Dentre as humanas que podem ser intelectuais e morais encontramos a virtude da prudecircncia virtude essencial ao bem viver
A prudecircncia virtude intelectual encontra-se entre as virtudes cardeais isto eacute uma das principais virtudes ao lado das virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila Este trabalho pretende esclarecer a razatildeo pela qual a prudecircncia identificada pelo Aquinate como virtude intelectual em razatildeo de sua sede a razatildeo praacutetica eacute por vezes chamada de virtude moral por uma exigecircncia antropoloacutegica
Para responder a tal questatildeo eacute necessaacuterio compreender a funccedilatildeo desta virtude em face agraves outras virtudes de modo a chamaacute-la virtude intermediaacuteria entre as virtudes intelectuais e morais Palavras-chave Prudecircncia razatildeo praacutetica accedilatildeo
Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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Resumen Santo Tomaacutes de Aquino en la Summa Theologiaelig muestra el cuadro de las virtudes y distinge las virtudes sobrenaturales de las humanas partiendo de la definicioacuten comuacuten que afirma ser la virtud una buena cualidad de la mente por la cual vivimos rectamente y de ella no podemos hacer mal uso Entre las virtudes humanas que pueden ser intelectuales o morales encontramos la virtud de la prudencia virtud esencial para bien vivir
La prudencia virtud intelectual encuentrase entre las virtudes cardinales o sea una de las principales virtudes al lado de las virtudes morales de justicia fortaleza y templanza Este trabajo pretende esclarecer la razoacuten por la cual la prudencia identificada por Aquinate como virtud intelectual en razoacuten de su sede la razoacuten praacutectica es algunas veces llamada de virtud moral por una exigencia antropoloacutegica
Para responder a dicha cuestioacuten es necesario comprender la funcioacuten de esta virtud a luz de las otras virtudes de tal modo que seraacute llamada de virtud intermediaria entre las virtudes intelectuales y las morales Palabra-clavei Prudencia razoacuten praacutectica accioacuten
Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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Lista de abreviaturas De Lib Arb
Ethic
In Ethic
In Sent
QQDD
STh
Virt Comm
IaIIaelig
IIaIIaelig
De Libero Arbitrio
Ethica Nichomachia
Sententia libri Ethicorum
Scriptum super Sententiis
Quaeligstiones Disputataelig
Summa Theologiaelig
Virtutibus in Communi
Prima Secundaelig
Secunda Secundaelig
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
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prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
Referecircncias Bibliograacuteficas
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SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 10
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes 12
2 A filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 17
21 A emergecircncia da doutrina da prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes 17
22 Os haacutebitos e as virtudes 20
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes 23
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma 27
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia 27
32 Atividade proacutepria da prudecircncia 29
4 Conexatildeo das virtudes 33
41 A primazia da prudecircncia 34
42 A prudecircncia e a caridade 36
Conclusatildeo 40
Referecircncias Bibliograacuteficas 42
Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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Introduccedilatildeo
O tema das virtudes jaacute era abordado desde a Iliacuteada de Homero e
desempenhava um importante papel na sociedade grega claacutessica O significado
desse tema para o homem grego era de tal importacircncia que rapidamente foi
incorporado agrave discussatildeo filosoacutefica de modo a influenciar as discussotildees eacuteticas
posteriores Durante esse percurso o significado de virtude a ἀρετή que foi
traduzida para o latim por virtus foi modificado ateacute chegar ao sentido que noacutes
conhecemos
Grande parte destas distintas acepccedilotildees sobre a virtude pode ser
encontrada influenciando direta ou indiretamente Santo Tomaacutes (1225 ndash 1274)
de modo que seu tratado sobre as virtudes constitui uma verdadeira siacutentese sem
excluir sua contribuiccedilatildeo pessoal ao tema
Os autores que se debruccedilaram sobre esta temaacutetica estabeleceram uma
hierarquia das virtudes Nessa mesma direccedilatildeo guiar-se-aacute o Aquinate
Estabelecendo o que eacute virtude ele proporaacute uma nova ordem de relaccedilatildeo entre
estas
Eacute nessa discussatildeo que emerge a virtude da prudecircncia virtude intelectual
assim entendida desde Aristoacuteteles (384383 ndash 322 aC) poreacutem frequumlentemente
tomada por virtude moral pelo Angeacutelico Dentre outras peculiaridades desta
virtude podemos citar o fato de ser a uacutenica virtude intelectual compreendida entre
as virtudes cardeais de modo indissociaacutevel destas
Portanto deter-nos-emos em estabelecer as relaccedilotildees existentes entre as
virtudes morais e a prudecircncia para podermos estabelecer qual o papel desta
virtude para o Aquinate Deste modo natildeo nos ocuparemos em tratar das partes
anexas e outras peculiaridades desta virtude mas sim em compreender seu lugar
no quadro das virtudes
Para esclarecermos esta particularidade e compreendermos o motivo pelo
qual Santo Tomaacutes elenca a prudecircncia tambeacutem entre as virtudes morais esforccedilar-
nos-emos por discriminar em primeiro lugar quais as influecircncias mais
significativas recebidas pelo Angeacutelico
Estabelecidas as principais teses que nortearam o pensamento sobre as
virtudes em particular sobre a prudecircncia passaremos ao levantamento das obras
nas quais Santo Tomaacutes aborda de maneira significativa a virtude da prudecircncia
11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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11
Em seguida deter-nos-emos na definiccedilatildeo de virtude o que nos permitiraacute
estabelecer o significado de virtude e subsequumlentemente as distinccedilotildees entre
elas Desta maneira ser-nos-aacute possiacutevel natildeo soacute classificar a prudecircncia como
entender sua distinccedilatildeo especiacutefica
Por fim analisaremos a prudecircncia em si mesma partindo de sua definiccedilatildeo
sua operaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para estabelecermos quais satildeo as relaccedilotildees entre
esta virtude intelectual e as virtudes morais suas consequumlecircncias e a repercussatildeo
desta virtude na conquista da felicidade
1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
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virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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1 Teorias sobre a prudecircncia anteriores a Santo Tomaacutes
Para um melhor entendimento da originalidade da concepccedilatildeo da prudecircncia
no pensamento de Santo Tomaacutes eacute conveniente voltarmos agraves diversas teorias ao
menos as mais significativas que a precederam na histoacuteria da filosofia e
identificar suas diferenccedilas
Soacutecrates (470469 ndash 399 aC) segundo a Apologia de Platatildeo defendeu
que a vida digna do homem eacute a vida especulativa ou seja dialeacutetica A vida
especulativa consistiria no exerciacutecio da capacidade racional do homem uma vez
que esta o caracteriza como tal A partir dessa compreensatildeo acerca da vida digna
do homem podemos concluir que a ἀρετή1 concebida ateacute entatildeo como excelecircncia
natural geradora da vida digna passou a ser considerada intrinsecamente
relacionada agrave faculdade racional do homem atraveacutes do exerciacutecio dialeacutetico
Nesse sentido existe certa unidade na concepccedilatildeo filosoacutefica grega a partir
da intuiccedilatildeo socraacutetica Essa tradiccedilatildeo foi seguida mais de perto por Platatildeo (427 ndash
347 aC) e Aristoacuteteles Aquele concebeu a alma humana composta de trecircs partes
(racional irasciacutevel e apetitiva) onde cada parte possui uma virtude peculiar A
sabedoria (σοφία) eacute a virtude que se relaciona com a parte racional da alma a
coragem (ἀνδρεία) com a irasciacutevel e a temperanccedila (σωφρύνη) com a apetitiva
Entretanto a justiccedila (δικαιοσύνη) eacute a virtude que se relaciona com toda a alma
Sendo a racionalidade aquilo que conveacutem ao homem a parte racional da
alma eacute aquela que o caracteriza como tal e por isso esta parte governa as
demais Deste modo assim como a parte racional dirige as demais a sabedoria
deve dirigir as outras virtudes
O Estagirita tambeacutem entendeu a racionalidade como essencial nos homens
e assim como em Platatildeo sua doutrina sobre a alma refletiraacute na doutrina das
virtudes Pela atividade da alma segundo a virtude conquista-se a εὐδαιμονία2
isto eacute a melhor vida para o homem
As virtudes seratildeo divididas em duas classes seguindo a divisatildeo da parte
racional da alma como diraacute em sua Eacutetica a Nicocircmaco
1 Na Iliacuteada significa excelecircncia natural de qualquer tipo mas a partir de Soacutecrates seu significado passaraacute por transformaccedilotildees 2 Cf Ethic X 7 1177a 11-19 Felicidade perfeita resultado da atividade contemplativa
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
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prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993
PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002
PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960
REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006
SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998
SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999
______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000
TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999
______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008
VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004
______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
13
A virtude tambeacutem se divide em espeacutecies de acordo com esta subdivisatildeo [da razatildeo] pois dizemos que algumas virtudes satildeo intelectuais e outras morais por exemplo a sabedoria filosoacutefica a compreensatildeo e a sabedoria praacutetica satildeo algumas das virtudes intelectuais e a liberalidade e a temperanccedila satildeo algumas das virtudes morais3
Segundo Aristoacuteteles a alma humana divide-se em trecircs partes duas
irracionais e uma racional A parte racional que podemos dizer ser racional por
essecircncia eacute a sede das virtudes intelectuais que podem ser chamadas ainda de
dianoeacuteticas jaacute as partes irracionais da alma satildeo a parte vegetativa e a sensitiva
A parte vegetativa da alma eacute aquela que podemos chamar de irracional por
essecircncia uma vez que eacute comum a todos os animais e natildeo se caracteriza
especificamente humana diferentemente ocorre com a parte sensitiva que
mesmo sendo irracional participa da razatildeo pois mesmo sendo capaz de se opor
agrave razatildeo pode-lhe ser obediente e doacutecil4 de modo que podemos chamaacute-la de
parte racional por participaccedilatildeo Essa parte da alma eacute a sede das virtudes eacuteticas
ou morais que consistem em dominar seus impulsos
Enquanto as virtudes morais satildeo adquiridas por um haacutebito estaacutevel que
conduz agrave realizaccedilatildeo de um bem atraveacutes de uma accedilatildeo voluntaacuteria sendo a justa
medida entre a falta e o excesso as virtudes dianoeacuteticas satildeo adquiridas pelo
ensino e conduzem propriamente agrave εὐδαιμονία pois o homem deve aperfeiccediloar-
se naquilo que o distingue dos demais e o que caracteriza o homem como tal eacute a
razatildeo
Eacute nesse contexto que encontraremos a virtude da prudecircncia (φρόνησις) nos
escritos peripateacuteticos A grande inovaccedilatildeo seraacute a clara distinccedilatildeo entre sabedoria
praacutetica (prudecircncia) e sabedoria teoacuterica ou filosoacutefica (sabedoria) que juntamente
com a arte a ciecircncia e o intelecto formam o quadro das principais virtudes
intelectuais5 A virtude da prudecircncia assim como a arte versa sobre o que eacute
contingente enquanto as demais virtudes intelectuais aperfeiccediloam a razatildeo acerca
dos princiacutepios universais fazendo com que o homem possa operar de acordo
com a sua proacutepria natureza Atendendo tanto aos princiacutepios universais que se
encontram no entendimento quanto agraves realidades concretas do quotidiano a
virtude da prudecircncia seraacute responsaacutevel pela aproximaccedilatildeo da parte superior com a
parte inferior da alma
3 Ethic I 13 1103 a 4 Ethic I 13 1102 b 5 Ethic VI 3 1139 b
14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
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duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
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permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
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virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
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speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
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A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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14
A phroacutenesis diz respeito agravequilo que estaacute ligado aos homens e portanto ao que existe de mutaacutevel no homem Jaacute a sapiecircncia ou sophia virtude considerada mais elevada que a virtude da sabedoria no campo das virtudes dianoeacuteticas diz respeito ao que estaacute acima do homem Em contra partida a sapiecircncia ou sophia6 eacute aquela que diz respeito agraves ciecircncias teoreacuteticas e de um modo todo especial a mais elevada delas a metafiacutesica7
Como visto a εὐδαιμονία perfeita eacute alcanccedilada pela atividade virtuosa mais
perfeita e sendo a sabedoria a virtude mais elevada a εὐδαιμονία mais perfeita eacute
alcanccedilada pela atividade desta isto eacute pela contemplaccedilatildeo Poreacutem existe uma
felicidade imperfeita que natildeo consiste na contemplaccedilatildeo mas na vida ativa que eacute
alcanccedilada pela atividade da prudecircncia (sabedoria praacutetica) que por analogia
pode ser considerada como a virtude suprema da vida praacutetica por controlar as
accedilotildees particulares pela ldquoreta razatildeordquo (ὀρθὸς λόγος) em cada situaccedilatildeo Essas accedilotildees
particulares por sua vez satildeo consideradas sobre o prisma do que pode contribuir
para a εὐδαιμονία
Na era heleniacutestica os estoacuteicos assim como os epicuristas negaram a
metafiacutesica na divisatildeo destas correntes da filosofia encontramos somente a loacutegica
a fiacutesica e a eacutetica Como substituta da metafiacutesica na fundamentaccedilatildeo da eacutetica eles
utilizaram a fiacutesica Este novo estatuto da eacutetica gerou uma nova concepccedilatildeo de
ἀρετή que deixa de ser meio para alcanccedilar a felicidade e passa a se identificar
com a proacutepria εὐδαιμονία
A εὐδαιμονία estoacuteica consiste em viver segundo a natureza Como sua
natureza eacute a razatildeo (λόγος) entatildeo a felicidade seraacute seguir o λόγος humano que eacute
manifestaccedilatildeo do λόγος universal Como seguir o λόγος eacute seguir a proacutepria
natureza o bem moral eacute aquilo que conserva tal natureza e o mal eacute o que a
degrada Para ser feliz portanto eacute necessaacuterio buscar o bem que eacute a conservaccedilatildeo
da sua proacutepria natureza
O virtuoso por estar de acordo com a natureza e consequumlentemente com
o λόγος universal teraacute uma ὀρθὸς λόγος que o guiaraacute a uma accedilatildeo reta Ao
contraacuterio aquele que age mal age por ignoracircncia e por natildeo estar em harmonia
com o verdadeiro bem que eacute a virtude perfeiccedilatildeo da razatildeo
6 Neste caso o autor utiliza o termo sabedoria com traduccedilatildeo de φρόνησις (que neste trabalho traduzimos por prudecircncia) e sapiecircncia como traduccedilatildeo de σοφία (que preferimos traduzir por sabedoria) 7 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 157 2000
15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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15
Neste mesmo caminho Epicuro (341 ndash 271270 aC) entendeu que a
direccedilatildeo da vida moral eacute determinada pela razatildeo Deste modo a virtude da
prudecircncia ganhou o status de virtude suprema como podemos sintetizar com as
palavras de DrsquoArc Ferreira
A phroacutenesis sabedoria [para Epicuro] eacute aquela que governa os prazeres e os ordena de maneira a estabelecer os que podem e os que natildeo podem ser praticados A sabedoria ligada agrave vida praacutetica do homem eacute aquela que estaacute no aacutepice das virtudes e caracteriza-se por ser a virtude suprema Desta forma Epicuro natildeo se distancia do intelectualismo socraacutetico nem da concepccedilatildeo de virtude jaacute consagrada pelo mundo grego8
Com o retorno a filosofia platocircnica Plotino (205 ndash 270 aC) iraacute propor que a
realidade se divide em trecircs hipoacutestases que satildeo a saber o Uno o Nous e a Alma
entretanto tudo existiria9 por causa do Uno que eacute a hipoacutestase superior Por tal
compreensatildeo da realidade fundada no Uno este se torna o nuacutecleo de seu
pensamento
Plotino por ser um neoplatocircnico natildeo poderaacute deixar de conceber o homem
como identificado essencialmente agrave sua alma sendo esta destinada a reunir-se
com o divino ao Uno que se identifica com o Bem Para tal uniatildeo eacute necessaacuteria
uma purificaccedilatildeo (κάθαρσις) que conduziraacute o homem ao divino por um processo
dialeacutetico
Um dos caminhos10 para o divino eacute a virtude que segue o quadro das
virtudes cardeais apresentado por Platatildeo Em Plotino as quatro virtudes podem
ser adotadas como ciacutevicas (πολιτικαὶ ἀρεταί) ou como cataacuterticas (ἀρεταὶ
καθαρτικαί) 11 sendo a segunda o modo proacuteprio de purificaccedilatildeo que ao ser
alcanccedilado permite que se viva em irrestrita pureza agrave semelhanccedila do Uno Deste
modo Plotino se afastaraacute da concepccedilatildeo estoacuteica de virtude como fim e retornaraacute agrave
compreensatildeo de virtude como meio
O pensamento cristatildeo medieval caracterizado por uma grande
aproximaccedilatildeo entre filosofia e teologia revelada fator que deu a tocircnica dos temas
a serem tratados em ambas as ciecircncias12 foi fortemente marcado pela filosofia
8 DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 p 155 2000 9 O Uno eacute a causa suprema de tudo dele emana de modo livre e necessaacuterio toda a realidade (as demais hipoacutestases) 10 Aleacutem da virtude a heroacuteica platocircnica a dialeacutetica e a simplificaccedilatildeo satildeo caminhos para o Uno 11 As virtudes enquanto ciacutevicas se relacionam no niacutevel do sensiacutevel e servem como primeiro passo em direccedilatildeo ao Uno enquanto cataacuterticas elas purificam o homem e o assemelham ao Uno 12 Neste periacuteodo discutiam-se os estatutos da filosofia e da teologia como ciecircncias
16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
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permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
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() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
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virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
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Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
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speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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16
neoplatocircnica por encontrar na filosofia do Uno um sistema que pudesse num
primeiro momento dar conta da compreensatildeo acerca de Deus
No que tange agrave virtude da prudecircncia ser-nos-aacute de maior importacircncia neste
momento Santo Agostinho (354 ndash 430) que nos apresenta uma extensa e
estruturada doutrina a respeito da prudecircncia que encontraraacute sua originalidade
natildeo na definiccedilatildeo desta virtude que herdaraacute dos claacutessicos mas sim no que nos
permite adquiri-la agrave vontade13
Tal afirmaccedilatildeo fica evidente quando no De Libero Arbitrio ele diraacute que
aquele que possui a boa vontade adere e se debruccedila sobre esta a considerando
o bem mais excelente natildeo permitindo que ela lhe seja tirada opondo-se assim a
tudo que a contradiga E portanto quem possui a boa vontade agiraacute de acordo
com as virtudes cardeais nas quais se encontra a prudecircncia
Agostinho Considera agora se a prudecircncia natildeo te parece o conhecimento daquelas coisas que precisam ser desejadas e das que devem ser evitadas Evoacutedio Parece-me que assim eacute [] Ag Consideremos pois uma pessoa que possua essa boa vontade de que nossas palavras vecircm proclamando a excelecircncia jaacute haacute algum tempo Ela abraccedila-a a ela somente com verdadeiro amor nada possuindo de melhor Goza de seus encantos Potildee enfim seu prazer e sua alegria em meditar sobre ela considerando-a quanto eacute excelente e quanto eacute impossiacutevel ela lhe ser arrebatada isto eacute ser-lhe subtraiacuteda sem seu consentimento Poderemos duvidar de que tal pessoa se oporaacute a todas as coisas que sejam contrarias a esse uacutenico bem Ev Eacute absolutamente necessaacuterio que assim seja Ag Podemos deixar de crer que essa pessoa natildeo esteja tambeacutem dotada de prudecircncia ela que vecirc a obrigaccedilatildeo de desejar esse bem acima de tudo e de evitar o que lhe eacute oposto Ev De modo algum parece-me algueacutem ser capaz disso sem a prudecircncia14
Assim podemos entender a etimologia que Agostinho se utiliza ao falar da
prudecircncia Para ele prudecircncia eacute um porros videns (ver a distacircncia) que necessita
da memoacuteria da inteligecircncia e da providecircncia
Diante destas variadas concepccedilotildees sobre o estatuto da prudecircncia
perguntamo-nos qual seraacute a originalidade de Santo Tomaacutes de Aquino em sua
aproximaccedilatildeo ao tema das virtudes Essa questatildeo torna-se relevante uma vez que
percebemos as influecircncias recebidas pelo Aquinate tanto do aristotelismo quanto
da tradiccedilatildeo cristatilde e aqui podemos inserir os pressupostos neoplatocircnicos e
estoacuteicos que marcaram que influenciaram o pensamento patriacutestico
13 Cf REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006 pp 52-64 Agostinho entende que a posse da virtude depende do sujeito poreacutem tal requisito natildeo se restringiraacute ao intelecto mas dependeraacute diretamente da vontade (faculdade da alma descoberta por Agostinho no De Libero) mais especificamente da boa vontade que eacute o bem mais excelente 14 De Lib Arb I 13 27
2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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2 A Filosofia da prudecircncia em Santo Tomaacutes 21 A prudecircncia nas obras de Santo Tomaacutes
Dentre as obras dedicadas ao tema da prudecircncia podemos destacar o Scriptum
super Sententiis Sententia libri Ethicorum as Quaeligstiones Disputataelig De Virtutibus
e a Secunda Secundaelig da Summa Theologiaelig
O Scriptum super Sententiis obra desenvolvida por ocasiatildeo do seu
bacharelado sentenciaacuterio15 na primeira estada em Paris16 constitui a primeira
grande obra de Tomaacutes e mesmo sendo um escrito da juventude revela sua
estaacutevel aproximaccedilatildeo aos claacutessicos dentre eles Aristoacuteteles e sua intuiccedilatildeo sobre
os diversos temas abordados por ele em suas obras posteriores
Mudam sobretudo o conteuacutedo e a inspiraccedilatildeo O jovem bacharel natildeo faz nenhum misteacuterio disso e suas opccedilotildees transparecem imediatamente Podemos contar mais de duas mil citaccedilotildees de Aristoacuteteles no comentaacuterio aos quatro livros de Lombardo () Santo Agostinho autor mais prestigiado depois de Aristoacuteteles natildeo totaliza mais de mil citaccedilotildees (500 para o Pseudo-Dioniacutesio 280 para Gregoacuterio Magno 240 para Joatildeo Damasceno)17
Nesta obra destaca-se o terceiro livro sobretudo a distinctio trinta e trecircs
que abordaraacute temas relacionados agrave prudecircncia temas estes que seratildeo retomados
posteriormente nas obras subsequumlentes Dentre as obras da maturidade outras
trecircs referem-se agrave prudecircncia Podemos dizer que foram elaboradas quase
simultaneamente agrave exceccedilatildeo da IaIIaelig da Summa Theologiaelig elaborada entre os
anos de 1269 e 1270 A Sententia libri Ethicorum as QQDD De Virtutibus e a
IIaIIaelig da Summa Theologiaelig satildeo datadas entre os anos de 1271 a 1272
A Sententia libri Ethicorum caracteriza-se como uma exposiccedilatildeo sinteacutetica da
obra peripateacutetica e lhe serviraacute como um trabalho propedecircutico agrave elaboraccedilatildeo do
seu tratado da prudecircncia propriamente dito na IIaIIaelig da Summa Theologiaelig como
nos diraacute Jean-Pierre Torrel
15 Apoacutes formar-se na faculdade de artes o candidato a mestre em teologia deveria ingressar na faculdade de teologia que durava por volta de oito anos Na faculdade antes de conquistar o grau de mestre o aluno deveria tornar-se bacharel (auxiliar do mestre) que na faculdade de teologia constava de trecircs estaacutegios bacharel biacuteblico (estudo apurado das escrituras atraveacutes da exegese) o bacharel sentenciaacuterio (comentar as sentenccedilas de Lombardo) e bacharel formado (auxiliar o mestre nas disputas) De acordo com a participaccedilatildeo do bacharel nas disputas este era agraciado com o tiacutetulo de mestre 16 De 1254 a 1256 17 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 49
18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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18
O comentaacuterio da ldquoEacutetica a Nicocircmacordquo de Aristoacuteteles foi composto em Paris em 1271-1272 Trata-se de uma sentencia isto eacute de uma exposiccedilatildeo sumaacuteria e de caraacuteter mais doutrinal do texto de Aristoacuteteles contemporacircnea da redaccedilatildeo da Secunda Secundaelig a qual prepara18
Por isso a Sententia libri Ethicorum especialmente o quarto livro seraacute de
fundamental importacircncia para o desenvolvimento do tratado da prudecircncia nas
obras de Tomaacutes
As QQDD diferentemente dos comentaacuterios agraves obras de Aristoacuteteles19
surgem diretamente da atividade escolaacutestica20 e portanto caracterizam-se como
fruto da docecircncia Por esse motivo as QQDD apresentam-se como um dos
melhores modos de percorrer o itineraacuterio filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino pois
revelam seu esforccedilo criatividade e originalidade o que eacute indispensaacutevel agrave anaacutelise
do pensamento do Doutor Comum21
Para tanto eacute necessaacuterio reportar-nos agrave origem deste gecircnero a lectio22 O
mestre no seacuteculo XII restringia-se a esta atividade de ensino poreacutem era
frequumlente o surgimento de problemas (dificuldades) decorrentes da sententia
Assim por uma exigecircncia metoacutedica nascem da lectio as quaeligstiones que
consistiam em exposiccedilatildeo de argumentos favoraacuteveis e contraacuterios de modo
sistemaacutetico sobre um tema para solucionar um problema Eacute diretamente das
quaeligstiones que surgem as QQDD propriamente
QQDD De Virtutibus eacute na verdade o tiacutetulo de um grupo de cinco questotildees
que abarcam um conjunto de trinta e seis artigos sobre as virtudes Essas cinco
questotildees satildeo De virtutibus in communi De caritate De correctione fraterna De
spe e De virtutibus cardinalibus No que tange agrave virtude da prudecircncia somente as
questotildees sobre virtutibus in communi (questatildeo I) e virtutibus cardinalibus (questatildeo
V) seriam relevantes
18 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 399 19 TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999 p 201 ldquo() os comentaacuterios de Aristoacuteteles jamais foram objeto de ensino oralrdquo 20 LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000 ldquoEtimologicamente o termo lsquoescolaacutesticorsquo proveacutem do latim scholasticus que nos primeiros seacuteculos da Idade Meacutedia indicava aquele que ensinava as artes liberais isto eacute as disciplinas que constituiacuteam o triacutevio () e mais tarde passou a chamar-se tambeacutem scholasticus o professor de filosofia e teologia cujo tiacutetulo era tambeacutem o magisterrdquo 21 SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O Iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista Idea Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999 22 Atividade que consistia em ler um texto segundo a exegese de um autor que gozava de autoridade A lectio compotildee-se de trecircs momentos littera (leitura do autor) sensus (sentido do texto) sententia (exposiccedilatildeo de uma nova doutrina decorrente do texto)
19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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19
Nas QQDD De virtutibis in communi o Aquinate expotildee os problemas
acerca das virtudes em geral Os artigos que versam sobre a prudecircncia
apresentam-se da seguinte maneira
Artigo VI Em sexto lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto praacutetico assim como no sujeito Artigo VII Em seacutetimo lugar deseja-se saber se existe virtude no intelecto especulativo Artigo XII Em deacutecimo segundo lugar deseja-se saber se as virtudes se distinguem entre si Deseja-se saber sobre a distinccedilatildeo das virtudes Artigo XIII Em deacutecimo terceiro lugar deseja-se saber se existe virtude no meio
Nas QQDD De virtutibus cardinalibus Santo Tomaacutes apresenta as questotildees
sobre as virtudes cardeais entre elas a prudecircncia do seguinte modo
Artigo I Em primeiro lugar deseja-se saber se estas satildeo as quatro virtudes cardeais a saber a justiccedila a prudecircncia a fortaleza e a temperanccedila Artigo II Em segundo lugar deseja-se saber se as virtudes satildeo conexas de modo que quem tenha uma tenha todas Artigo III Em terceiro lugar deseja-se saber se todas as virtudes satildeo iguais no homem Artigo IV Em quarto lugar deseja-se saber se as virtudes cardeais se mantecircm na paacutetria
A Summa Theologiaelig eacute uma obra sinteacutetica de iniciaccedilatildeo agrave teologia mas que
se utiliza da filosofia como disciplina subordinada Ela eacute resultado do ensino do
Doutor Comum em Roma apoacutes uma tentativa que lhe pareceu insuficiente de
retomar o comentaacuterio agraves sentenccedilas para seus alunos a exemplo do que havia
feito em Paris O caraacuteter introdutoacuterio desta obra e o fato de natildeo ter sido concluiacuteda
pelo Aquinate natildeo a faz menos importante para nosso estudo
Eacute aliaacutes nesta obra que encontraremos uma abordagem mais precisa e
especiacutefica da prudecircncia em dois tratados o primeiro encontra-se na IaIIaelig e
aborda os haacutebitos e as virtudes jaacute o segundo na IIaIIaelig averigua a prudecircncia
No tratado sobre a prudecircncia da Summa Theologiaelig aleacutem de podermos
verificar que natildeo existem divergecircncias entre seu conteuacutedo e o de outras obras
constata-se mais firmeza e seguranccedila por ser a obra mais completa e organizada
em seu propoacutesito A IaIIaelig considera as virtudes em geral imediatamente apoacutes agrave
consideraccedilatildeo dos haacutebitos em geral compreendendo as questotildees 55 a 67 Em
quase todas as questotildees eacute citada a virtude da prudecircncia das quais destacamos
em especial as questotildees que apresentam os seguintes temas
Questatildeo 56 Sobre o sujeito da virtude Questatildeo 57 Sobre a distinccedilatildeo das virtudes intelectuais
20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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20
Questatildeo 58 Sobre a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais Questatildeo 61 Sobre as virtudes cardeais Questatildeo 65 Sobre a conexatildeo das virtudes Questatildeo 66 Sobre a igualdade das virtudes
Tal panorama indica-nos o objetivo do Aquinate de examinar as virtudes de
modo geneacuterico A frequumlecircncia com que eacute mencionada a prudecircncia indica-nos sua
importacircncia no tratado das virtudes entretanto eacute na IIaIIaelig que Santo Tomaacutes
analisa a prudecircncia propriamente apresentando-a da seguinte forma
Questatildeo 47 Da prudecircncia em si mesma Questatildeo 48 As partes da prudecircncia Questatildeo 49 As partes como que integrantes da prudecircncia Questatildeo 50 As partes subjetivas da prudecircncia Questatildeo 51 As partes potenciais da prudecircncia Questatildeo 52 O dom do conselho Questatildeo 53 A imprudecircncia Questatildeo 54 A negligecircncia Questatildeo 55 Viacutecios opostos agrave prudecircncia que tecircm semelhanccedila com ela Questatildeo 56 Os preceitos relativos agrave prudecircncia O Angeacutelico apresenta na Summa Theologiaelig o uacutenico tratado especiacutefico
sobre esta virtude como atesta Herminio de Paz
Pero muchos estudiosos y principalmente los que han examinado otros lugares paralelos [al tratado de la prudencia en la 2-2] especialmente la 1-2 pueden preguntarse por queacute hablar de nuevo de la prudencia Y la razoacuten es muy sencilla Santo Tomaacutes la considera aquiacute en ella misma y de ahiacute que haya un orden propio de exposicioacuten ciertas precisiones y complementos23
Por tanto nossa pesquisa concentrar-se-aacute sobretudo nessa obra na IaIIaelig
e IIaIIaelig sem poreacutem negar a convergecircncia com outros textos do Aquinate
22 Os haacutebitos e as virtudes Como visto eacute na IaIIaelig que Santo Tomaacutes mais extensamente aborda o
tema dos haacutebitos e das virtudes em geral Tais tratados servir-nos-atildeo de
propedecircutica agrave perquiriccedilatildeo sobre a prudecircncia
Na questatildeo cinquumlenta e quatro da IaIIaelig o Doutor Comum discute as
distinccedilotildees dos haacutebitos que se datildeo pela distinccedilatildeo dos objetos dos princiacutepios ativos
23 DE PAZ Herminio Tratado de La prudencia introduccioacuten a las cuestiones 47 a 56 In AQUINO Tomaacutes de Suma de Teologiacutea Madri BAC 1990 p 374 ldquoMas muitos estudiosos e principalmente os que examinaram outros paralelos [ao tratado da prudecircncia na 2-2] especialmente a 1-2 podem perguntar-se porque falar de novo da prudecircncia E a razatildeo eacute muito simples Santo Tomaacutes a considera aqui em si mesma e ai que tenha uma ordem proacutepria de exposiccedilatildeo certas precisotildees e complementosrdquo
21
e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
22
bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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e do seu ordenamento agrave natureza Desta uacuteltima proveacutem a distinccedilatildeo pelo bem e
pelo mal tema do artigo terceiro dessa questatildeo
Haacutebitos humanos satildeo disposiccedilotildees estaacuteveis que se interpotildeem entre as
faculdades humanas e os atos humanos por isso dependem sempre da decisatildeo
da vontade Por entender o homem como pessoa ou seja como indiviacuteduo dotado
de natureza racional o Aquinate atribui-lhe a capacidade de conhecer O homem
conhece o bem e o mal que estatildeo nas coisas e por isso sua vontade eacute livre para
querecirc-las ou natildeo Desse modo os haacutebitos morais por dependerem da vontade
podem ser bons ou maus de acordo com a determinaccedilatildeo daquela
Os haacutebitos bons virtudes portanto distinguem-se dos maus viacutecios por
serem conformes agrave razatildeo As virtudes para Santo Tomaacutes diferenciam-se em trecircs
tipos a saber teologais24 ou teoloacutegicas morais e intelectuais Por serem haacutebitos
e por isso disposiccedilotildees segundo a natureza as virtudes podem ainda ser
classificadas quanto agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza inferior
isto eacute agrave do proacuteprio homem e agrave disposiccedilatildeo para um ato que conveacutem agrave natureza
superior As virtudes que se orientam para a natureza humana satildeo chamadas
virtudes humanas e correspondem agraves virtudes morais e agraves intelectuais jaacute as que
se orientam para a natureza superior ou seja as virtudes teologais satildeo
chamadas sobrenaturais25
As virtudes tanto as humanas quanto as sobrenaturais pertencem ao
homem pois satildeo disposiccedilotildees do sujeito Entretanto como dito anteriormente
distinguem-se quanto agrave natureza para a qual se ordenam mas se assemelham
por serem os meios pelos quais o homem alcanccedila seu fim A essecircncia da virtude
eacute portanto ser um haacutebito operativo bom que assim sendo ordena a pessoa a
seu fim supremo por sua capacidade de tornar bom aquele que a exerce como
diz Santo Tomaacutes
Devemos contudo considerar que assim como os acidentes e as formas natildeo subsistentes se chamam entes natildeo porque tenham por si menos o ser mas porque por eles alguma coisa existe assim tambeacutem se consideram bons ou unos natildeo certo por alguma outra
24 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323-324 ldquoSatildeo portanto as virtudes teologais assim chamadas por trecircs razotildees primeiramente porque tecircm diretamente Deus (theos) por objeto em seguida porque ele eacute sua uacutenica causa (segundo o termo teacutecnico satildeo ldquoinfundidasrdquo em noacutes por ele somente) enfim conhecemos sua existecircncia tatildeo-somente pela revelaccedilatildeo divina na Sagrada Escritura 25 STh I-II q 54 a 3
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bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
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duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
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() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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bondade ou unidade mas porque por eles algum ser eacute bom ou uno Assim pois a virtude eacute considerada boa porque por ela algum ser eacute bom26
Nesse sentido identificamos que a virtude eacute o haacutebito que torna bom quem a
tem e isso implica um aperfeiccediloamento moral de modo que a definiccedilatildeo comum
de virtude diz ldquoa virtude eacute uma boa qualidade da mente pela qual vivemos
retamente ()rdquo 27 o que leva o Aquinate a especificar quais haacutebitos que convecircm agrave
natureza humana podem ser chamados de virtude propriamente
De dois modos diz-se que um haacutebito pode ordenar-se ao ato bom quando
pelo haacutebito adquirimos a faculdade do bem agir e quando aleacutem de dar-nos a
faculdade leva-nos ao bom uso da mesma Ora como soacute se pode chamar
propriamente de bom aquilo que estaacute em ato o caso que confere essa
caracteriacutestica eacute aquele pelo qual um haacutebito natildeo soacute garante a faculdade como o
ato do bem agir Esse eacute o caso das virtudes morais e por isso satildeo elas que
possuem o nome propriamente de virtudes
Agrave simples destreza evocada pela noccedilatildeo de haacutebitus a noccedilatildeo de virtude acrescenta o aperfeiccediloamento moral e por isso somente as virtudes morais merecem propriamente o nome de virtudes enquanto as intelectuais soacute o levam de maneira improacutepria Natildeo basta conhecer o bem eacute necessaacuterio ainda praticaacute-lo e por isso a sede da virtude propriamente dita natildeo pode se encontrar senatildeo na vontade ou em alguma potecircncia movida pela vontade28
Os haacutebitos que aperfeiccediloam a parte sensitiva da alma satildeo aqueles aos
quais conveacutem o nome de virtudes propriamente uma vez que eacute esta a parte da
alma que nos daacute a faculdade de fazer uso das potecircncias e haacutebitos de que
dispomos Poreacutem vale salientar que assim como diz Aristoacuteteles esta parte da
alma soacute seraacute sede das virtudes morais na medida em que participarem da razatildeo e
da faculdade da vontade por serem princiacutepios dos atos humanos29
A compreensatildeo de virtude adotada pelo Angeacutelico como haacutebito bom e sua
funccedilatildeo na eacutetica remete-nos agrave filosofia claacutessica como podemos atestar pelas
palavras do Pe Lima Vaz
A concepccedilatildeo da virtude como haacutebito ou qualidade no sentido aristoteacutelico reinterpretada por Tomaacutes de Aquino particularmente no aprofundamento da noccedilatildeo aristoteacutelica de mesotecircs ou da virtude como meio entre extremos viciosos () permite por outro lado unificar as
26 STh I-II q 55 a 3 ad 1 27 STh I-II q 55 a 4 28 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 320 29 STh I-II q 56 a 4
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duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
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permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
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virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
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speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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23
duas definiccedilotildees claacutessicas a de Aristoacuteteles () em que a virtude eacute definida como perfeiccedilatildeo (teleiacuteosis) do ser e a estoacuteica recebida por Agostinho segundo a qual a virtude eacute boa qualidade da mente pela qual se vive com retidatildeo e da qual ningueacutem faz mau uso30
Essa siacutentese original realizada pelo Aquinate natildeo soacute nos revela sua grande
admiraccedilatildeo pelo Estagirita e pelo Bispo de Hipona como sua novidade em relaccedilatildeo
aos mesmos A estruturaccedilatildeo peripateacutetica sobre as virtudes satildeo sem duacutevida o
arcabouccedilo teoacuterico de toda a fundamentaccedilatildeo filosoacutefica do tratado sobre as
virtudes em especial sobre a prudecircncia entretanto a autoridade de Agostinho e
sua proacutepria visatildeo antropoloacutegica cristatilde faacute-lo-atildeo deslocar a precedecircncia das virtudes
intelectuais para as virtudes morais pois somente estas garantiratildeo uma boa
qualidade da mente isto eacute da razatildeo garantindo assim o aperfeiccediloamento do
homem em sua inteireza inclusive seu agir
23 A distinccedilatildeo entre as virtudes Tendo analisado o estatuto da virtude que se funda no haacutebito
verificaremos agora as distinccedilotildees entre as virtudes humanas Em primeiro lugar
das distinccedilotildees entre as virtudes intelectuais e em seguida das virtudes morais
Soacute entatildeo passaremos ao estudo da virtude da prudecircncia em si mesma
Como dito anteriormente as virtudes intelectuais natildeo satildeo virtudes
propriamente ditas uma vez que pela virtude conquista-se a felicidade Ora as
virtudes intelectuais natildeo se referem aos bens humanos pelos quais o homem
conquista a felicidade 31 Todavia na medida em que nos possibilitam a faculdade
do bem agir ou de contemplar a verdade podemos consideraacute-las virtudes Deste
modo natildeo se pode considerar bom absolutamente o saacutebio aquele que contempla
a verdade mas o podemos em relaccedilatildeo ao justo o que pratica atos justos
Entretanto eacute necessaacuterio distinguir os haacutebitos ou virtudes intelectuais
especulativos dos praacuteticos sem poreacutem contrapocirc-los
Em primeiro lugar a distinccedilatildeo entre intelecto especulativo e intelecto praacutetico () que se estabelece como distinccedilatildeo no seio da unidade da potecircncia intelectiva (dynamis) uma vez que seu ato (energeacuteia) pode ser especificado seja pelo objeto em si (verdadeiro ou falso intelecto teoacuterico) seja pelo objeto como desejaacutevel (bom ou mau intelecto praacutetico) Essa unidade na distinccedilatildeo dos atos da inteligecircncia doutrina fundamental da noeacutetica aristoteacutelica
30 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 233 31 STh I-II q 57 a 1
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permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
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() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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24
permite a Tomaacutes de Aquino explicar a sinergia entre o verdadeiro (verum) e o bom (bonum)32
Como virtudes intelectuais especulativas Santo Tomaacutes entende a ciecircncia
a sabedoria e o intelecto O intelecto eacute a virtude pela qual conhecemos os
primeiros princiacutepios de modo imediato jaacute a ciecircncia e a sabedoria referem-se agrave
demonstraccedilatildeo das conclusotildees extraiacutedas dos princiacutepios conhecidos pelo intelecto
de modo que poderiacuteamos classificaacute-las como ciecircncias Contudo a distinccedilatildeo
ocorre pelo fato de a sabedoria considerar as causas primeiras enquanto a
ciecircncia versa sobre as consequumlecircncias dos primeiros princiacutepios num caso
determinado A funccedilatildeo da sabedoria eacute portanto julgar os conteuacutedos do intelecto
e da ciecircncia pois os juiacutezos universais soacute satildeo possiacuteveis ao passo que se referem
agraves causas primeiras o que a torna a mais perfeita das virtudes intelectuais
especulativas Deste modo a sabedoria eacute una por se tratar do universal ao
passo que a ciecircncia se multiplica em diversos gecircneros de conhecimento
Dentre as virtudes praacuteticas encontramos a prudecircncia e a arte Essas
virtudes satildeo aquelas que encontrando sua sede na razatildeo referem-se agraves coisas
contingentes isto eacute inclinam a inteligecircncia de acordo com juiacutezos retos a respeito
de accedilotildees particulares
A arte eacute como as virtudes intelectuais em geral uma virtude imperfeita e
por isso independente das disposiccedilotildees morais No iniacutecio da soluccedilatildeo apresentada
no terceiro artigo da questatildeo cinquumlenta e sete Santo Tomaacutes afirma que
A arte natildeo eacute mais que a reta razatildeo de acordo com a qual fazemos certas obras E a bondade destas natildeo consiste em o apetite humano se comportar de um determinado modo mas em ser boa em si mesma a obra perfeita
Tal definiccedilatildeo de arte caracteriza-a como recta ratio factibilium em paralelo agrave
definiccedilatildeo de prudecircncia como a recta ratio agibilium 33 Com efeito a prudecircncia eacute a
virtude intelectual praacutetica que orienta o agir em cada caso concreto para que a
obra realizada seja boa Assim a pretensatildeo desta virtude posicionaacute-la-aacute em um
patamar bastante distinto da virtude da arte que se assemelha a ela Podemos
elucidar tal distinccedilatildeo pela ceacutelebre analogia utilizada pelo Aquinate para comparaacute-
las na questatildeo em que discute se verdadeiramente distinguem-se
32 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008 p 224 33 STh I-II q 57 a 4
25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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25
() a bondade das obras da arte natildeo eacute a do apetite humano mas a destas obras mesmas e por isso a arte natildeo pressupotildee o apetite reto E daiacute vem que o artiacutefice que peca voluntariamente eacute mais digno de louvor que outro que o faz involuntariamente ao contraacuterio quem peca voluntariamente vai contra a prudecircncia mais que quem o faz involuntariamente porque a prudecircncia exige por essecircncia a retidatildeo da vontade o que natildeo se daacute com a arte Por onde consta com clareza que a prudecircncia eacute uma virtude distinta a arte34
Entatildeo podemos concluir que a prudecircncia eacute a virtude necessaacuteria ao bem
viver uma vez que vive bem quem age bem Ora somente as virtudes que aleacutem
de garantir a faculdade do bem agir causem seu bom uso satildeo virtudes
propriamente e como visto anteriormente estas satildeo as virtudes morais
Chegamos assim agrave seguinte questatildeo a prudecircncia eacute uma virtude intelectual e
portanto natildeo poderia ser tomada por virtude propriamente poreacutem ela possui todos
os elementos de uma virtude em sentido proacuteprio o que nos levaria a chamaacute-la de
virtude moral
Por virtudes morais entendem-se aquelas virtudes que aperfeiccediloam o
apetite sensiacutevel e que portanto causam o agir bem Remetendo-se agrave tradiccedilatildeo
claacutessica o Doutor Comum identifica quatro virtudes morais principais35 a saber
prudecircncia justiccedila temperanccedila e fortaleza
Note-se que a prudecircncia tambeacutem aparece no quadro das virtudes morais
mas por enquanto discorreremos sobre as outras trecircs virtudes morais e
abordaremos a virtude da prudecircncia mais adiante
A justiccedila que como vimos em Platatildeo tinha uma posiccedilatildeo privilegiada pois
era a uacutenica a se referir agrave alma inteira em Tomaacutes de Aquino seraacute a virtude social
por excelecircncia uma vez que eacute de sua competecircncia ocupar-se das relaccedilotildees entre
os homens tendo assim por objeto harmonizar as accedilotildees humanas em relaccedilatildeo ao
outro e isto pode-se dar em niacutevel pessoal ou comunitaacuterio Sua condiccedilatildeo
privilegiada em relaccedilatildeo agraves demais eacute garantida em Tomaacutes uma vez que ele a
considera a mais importante das virtudes morais
As virtudes da fortaleza e da temperanccedila satildeo as virtudes morais da
disciplina pessoal visto que versam sobre a regulaccedilatildeo das paixotildees36 A fortaleza
eacute aquela subordinaccedilatildeo por haacutebito das paixotildees do irasciacutevel agrave vontade enquanto a
temperanccedila eacute a subordinaccedilatildeo do concupisciacutevel Deste modo a fortaleza eacute aquela 34 STh I-II q 57 a 4 35 Estas virtudes principais o Doutor comum chama de cardeais pois toda a vida moral gira em seu entorno 36 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 323
26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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26
virtude que modera a audaacutecia o medo a coacutelera refreando-os quando prejudiciais
e regrando-os quando salutar Da mesma forma age a temperanccedila no que diz
respeito agraves disposiccedilotildees do concupisciacutevel limitando-os ao necessaacuterio para que
natildeo se caia no viacutecio seja por excesso ou falta
Entretanto soacute age bem aquele que conhece para que assim sua vida seja
dirigida de acordo com este bem Tal afirmaccedilatildeo eacute verdadeira poreacutem pode-nos
conduzir a um erro grave o de negar a distinccedilatildeo entre as virtudes morais e
intelectuais Santo Tomaacutes resolve essa questatildeo relacionando estas virtudes
poreacutem deixando claro sua real distinccedilatildeo
() para agimos retamente eacute necessaacuterio natildeo soacute a razatildeo estar bem disposta pelo haacutebito intelectual mas tambeacutem a potecircncia ativa o estar pelo haacutebito da virtude moral Portanto assim como o apetite se distingue da razatildeo a virtude moral se distingue da intelectual Logo assim como o apetite eacute principio dos atos humanos enquanto participa de certo modo da razatildeo assim o haacutebito moral realiza a noccedilatildeo de virtude humana na medida em que se conforma com a razatildeo37
O que permitiraacute a aproximaccedilatildeo entre as virtudes morais e intelectuais eacute
justamente a existecircncia de uma virtude que exerccedila uma funccedilatildeo intermediaacuteria
Essa exigecircncia seraacute suprida pela virtude da prudecircncia como veremos a seguir
37 STh I-II q 58 a 4
3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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3 A virtude da prudecircncia considerada em si mesma
Como discorremos ateacute aqui a virtude da prudecircncia possui um papel
relevante na eacutetica tomista o que se verifica pelas repetidas referecircncias agrave mesma
no decorrer de suas obras sempre sinalizando a importacircncia e a necessidade
desta virtude para a vida plenamente humana e social
Todavia natildeo nos basta somente identificar a posiccedilatildeo privilegiada desta
virtude eacute necessaacuterio compreender tambeacutem quais satildeo as bases e as relaccedilotildees
sobre as quais se fundam o pensamento do Aquinate acerca da prudecircncia Para
isto passaremos a anaacutelise da virtude da prudecircncia em si mesma a partir da
questatildeo quarenta e sete da IIaIIaelig
31 Definiccedilatildeo da prudecircncia A prudecircncia eacute uma atividade de previsatildeo pois recorrendo agrave etimologia da
palavra citando Santo Isidoro o Angeacutelico diraacute que ldquoprudente significa o que vecirc ao
longerdquo38 Assim como Agostinho a prudecircncia eacute entendida como um porros videns
entretanto essa etimologia eacute utilizada com o propoacutesito de auxiliar a argumentaccedilatildeo
segundo a qual a prudecircncia reside na razatildeo pois o conhecimento do futuro a
partir das coisas presentes ou passadas pertence agrave razatildeo ao passo que sendo
essa a funccedilatildeo da prudecircncia conclui-se ser sua sede a razatildeo 39
Contudo natildeo eacute suficiente dizer que a prudecircncia pertence agrave razatildeo deve-se
acrescentar que ela concerne agrave razatildeo praacutetica visto que prudente eacute o que delibera
bem e a deliberaccedilatildeo cabe agrave razatildeo praacutetica Do mesmo modo que a sabedoria
versa sobre o que haacute de mais elevado absolutamente a prudecircncia versa sobre o
que haacute de mais elevado no gecircnero dos atos humanos de onde se segue que
() o que raciocina bem com relaccedilatildeo a todo o bem moral dizemos que eacute prudente de modo absoluto A prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas natildeo sabedoria absoluta por natildeo versar sobre a causa mais elevada e absoluta dado que se trata do bem humano e o homem natildeo eacute o melhor dentre aquelas coisas que existem40
38 STh II-II q 47 a 1 39 Cf NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 369 1993 A etimologia correta seria a derivaccedilatildeo do nome prudecircncia de providecircncia [conforme se observa na questatildeo quarenta e nove] poreacutem no artigo primeiro da questatildeo quarenta e um o Aquinate se utiliza de uma etimologia adotada por muitos de seus predecessores para demonstrar o caraacuteter de conhecimento desta virtude 40 STh II-II q 47 a 2 ad 1
28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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28
Aqui podemos perceber natildeo soacute a convergecircncia sobre a distinccedilatildeo destas
duas virtudes sabedoria e prudecircncia entre o Mestre de Aquino e o Estagirita
como tambeacutem a razatildeo pela qual a segunda eacute chamada de virtude Como visto
anteriormente virtude eacute o haacutebito bom que conveacutem no caso das virtudes
humanas agrave natureza humana Ora a prudecircncia versa sobre as coisas humanas e
delibera sobre elas possibilitando natildeo soacute o conhecimento mas tambeacutem a sua
praacutetica
Tais caracteriacutesticas tornam a prudecircncia uma virtude especial41 distinta das
demais virtudes em funccedilatildeo de seus objetos Sendo a prudecircncia a recta ratio
agibilium a reta razatildeo aplica-se agrave accedilatildeo distinguindo-se das virtudes intelectuais e
das morais por um lado e aproximando-se de outro
Distingue-se das demais virtudes intelectuais segundo o objeto material
pois assim como a arte ocupa-se do contingente e natildeo do necessaacuterio como as
demais sem portanto confundir-se com esta por estar no acircmbito da accedilatildeo e natildeo
da fabricaccedilatildeo Apesar da singularidade da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais
virtudes da razatildeo ldquoela eacute essencialmente uma virtude intelectualrdquo 42 em razatildeo de
sua sede
A prudecircncia tendo sua sede na razatildeo eacute virtude intelectual Natildeo obstante
possui a noccedilatildeo peculiar de virtude moral sendo tambeacutem enumerada entre estas43
Todas as virtudes morais dizem respeito agrave accedilatildeo mas natildeo sob o mesmo aspecto
da prudecircncia pois esta leva em consideraccedilatildeo a verdade praacutetica enquanto aquelas
levam em consideraccedilatildeo a bondade
() tanto a ciecircncia como a arte e a prudecircncia satildeo uma recta ratio e visam a algum tipo de verdade a ciecircncia a verdade teoacuterica especulativa (adequaccedilatildeo o intelecto e da coisa) a arte a verdade da obra (adequaccedilatildeo da obra e do intelecto) a prudecircncia a verdade da vida (adequaccedilatildeo da accedilatildeo e do apetite reto) 44
Tendo esta caracteriacutestica de virtude especial a prudecircncia distingue-se
dentre todas as virtudes humanas versando ao mesmo tempo sobre a verdade
uma vez que eacute uma recta ratio e a praacutetica Diferentemente da ciecircncia recta ratio
41 STh II-II q 47 a 5 42 STh I-II q 58 a 3 43 STh II-II q 47 a 4 44 NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 371 1993
29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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29
speculabilium e da arte recta ratio factibilium ela eacute a verdade da vida recta ratio
agibilium o que lhe atribui um poder imperativo sobre os atos humanos como
veremos
32 Atividade proacutepria da prudecircncia Eacute necessaacuterio que os fins das virtudes morais preexistam na razatildeo pois seu
fim eacute o bem humano e o bem da alma humana eacute estar conforme a razatildeo Com
esta deduccedilatildeo o Aquinate inicia o sexto artigo da questatildeo quarenta e sete de onde
se entende que as virtudes morais pressupotildeem certa disposiccedilatildeo intelectual Eacute
justamente este o papel da prudecircncia aplicar princiacutepios universais a conclusotildees
particulares no que se refere ao agir
Para ilustrar esta funccedilatildeo da prudecircncia iremos recorrer agrave teoria do
silogismo praacutetico que consiste no seguinte
A singularidade loacutegica desse silogismo consiste em que uma premissa maior universal ditando uma norma ou uma prescriccedilatildeo (com um enunciado positivo ou negativo) segue-se uma premissa menor particular que aplica a proposiccedilatildeo universal ad casum sendo a conclusatildeo o proacuteprio exerciacutecio da accedilatildeo que recebe assim uma fundamentaccedilatildeo loacutegica Eacute claro que tal fundamentaccedilatildeo loacutegica natildeo significa uma reintegraccedilatildeo da ciecircncia praacutetica na ciecircncia teoreacutetica pois subsiste uma diferenccedila essencial entre as duas classes de silogismo no cientiacutefico (episthemonkoacutes) a conclusatildeo eacute sempre universal ao passo que no silogismo da accedilatildeo a conclusatildeo natildeo eacute uma proposiccedilatildeo mas a accedilatildeo singular45
A teoria do silogismo praacutetico como formulada acima eacute aristoteacutelica e em
linhas gerais natildeo difere da compreensatildeo do Mestre de Aquino A novidade da
filosofia do Aquinate consiste na introduccedilatildeo da ideacuteia de sindeacuterese
Para natildeo nos alongarmos demasiadamente natildeo nos deteremos no que
significa tal originalidade comparativamente agrave teoria peripateacutetica Tentaremos
poreacutem elucidar o papel do silogismo praacutetico e consequumlentemente da sindeacuterese
para o estudo da atividade da prudecircncia
A prudecircncia estaacute para a sindeacuterese assim como a sabedoria estaacute para o
intelecto46 Tal analogia indica-nos a percepccedilatildeo de Santo Tomaacutes acerca da
atividade do silogismo da prudecircncia Da mesma forma que a sabedoria extrai
conclusotildees vaacutelidas a partir dos princiacutepios primeiros fornecidos pelo intelecto a
45 VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004 p 124-125 46 Entenda-se aqui ldquointelectordquo como a virtude responsaacutevel pela apreensatildeo dos primeiros princiacutepios teoacutericos e natildeo como a parte da alma de mesmo nome
30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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30
prudecircncia extrai da sindeacuterese de modo que esta eacute a faculdade que conhece os
primeiros princiacutepios praacuteticos Ora o conhecimento dos primeiros princiacutepios sejam
eles da razatildeo praacutetica ou teoacuterica satildeo evidentes e portanto naturalmente
conhecidos pelo conhecimento de seus termos
Os primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica satildeo os fins das virtudes morais
pois o que eacute princiacutepio na ordem do conhecimento eacute fim na ordem da accedilatildeo47
Como dito os fins preexistem na razatildeo e mais precisamente na razatildeo praacutetica
pelo haacutebito da sindeacuterese Entretanto eacute a prudecircncia que movida por este haacutebito
chega a certas conclusotildees particulares do que se deve fazer indicando os meios
pelos quais as demais virtudes morais em cada caso atinjam seu fim
Sendo a prudecircncia a recta ratio agibilium seus atos satildeo os atos da razatildeo
no que se refere ao agir a saber deliberar48 julgar e comandar 49 O deliberar
compete agrave inquiriccedilatildeo agrave procura Ora toda inquiriccedilatildeo deve partir de um princiacutepio
sendo este princiacutepio no caso da deliberaccedilatildeo os primeiros princiacutepios praacuteticos
fornecidos pela sindeacuterese e como dito satildeo os primeiro na ordem do
conhecimento mas posteriores na ordem do ser Deste modo deve-se entender a
deliberaccedilatildeo como uma resoluccedilatildeo praacutetica para se chegar ao que deve ser feito
Ora o princiacutepio na inquiriccedilatildeo do conselho eacute o fim que primeiro na intenccedilatildeo eacute posterior quanto agrave realizaccedilatildeo E sob este aspecto necessariamente a inquiriccedilatildeo do conselho haacute de ser resolutoacuteria isto eacute parte do intencionalmente futuro ateacute chegar ao que imediatamente deve ser feito 50
O segundo ato eacute o julgamento das descobertas da deliberaccedilatildeo e como
este tambeacutem compete agrave razatildeo especulativa Entretanto a conclusatildeo do
silogismo praacutetico natildeo se daacute por uma premissa e sim por uma accedilatildeo singular como
exposto pelo Pe Lima Vaz o que nos remete ao ato do comandar que eacute o proacuteprio
da prudecircncia pois este consiste em tornar em accedilatildeo o que foi deliberado e
julgado
47 STh II-II q 23 a 7 ad 2 48 Santo Tomaacutes utiliza a palavra latina concilio STh II-II q 47 a 8ldquo cuius quindem sunt tres actus Quorum primus est consiliarirdquo(nosso grifo) poreacutem algumas traduccedilotildees recorrem a palavra deliberar enquanto outra a palavra conselho Podemos verificar esta diferenccedila na traduccedilatildeo da Suma Teoloacutegica para a liacutengua portuguesa pela Livraria Sulina Editora (ldquoOra trecircs satildeo os atos principais da razatildeo O primeiro eacute aconselhar ()rdquo) e a traduccedilatildeo da editora Loyola (ldquoNela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ()rdquo) Para que seja evitada confusatildeo daremos preferecircncia ao termo deliberar 49 STh II-II q 47 a 8 50 STh I-II q 14 a 5
31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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31
Ora a deliberaccedilatildeo e o julgamento pertencem agrave prudecircncia por esta ser recta
ratio ao passo que o comando o eacute por se referir agrave accedilatildeo Ora o que distingue a
prudecircncia eacute o fato de se referir agrave accedilatildeo portanto esta sua especificidade determina
qual eacute o seu ato principal o comando de modo que os outros atos seratildeo da
prudecircncia enquanto objetos de suas partes potenciais51
De tal exposiccedilatildeo podemos perceber que a prudecircncia move as virtudes
morais ateacute seus fins e ela mesma eacute movida pela sindeacuterese pois como diz Pieper
ldquoo ser precede a verdade e a verdade precede o bemrdquo 52
A sindeacuterese eacute o que permite a descoberta do que haacute de universal a ser
utilizado pela prudecircncia de modo particular em cada situaccedilatildeo concreta em vista
da conquista de um fim sendo este o mesmo da consideraccedilatildeo universal da
sindeacuterese Ora na estrutura metafiacutesica existe um principio responsaacutevel pelo que
haacute de universal e pelo que haacute de particular que satildeo a essecircncia e o ato de ser
respectivamente A primeira versa sobre o universal pois diz respeito agrave espeacutecie
enquanto a segunda como ato individuado diz respeito ao indiviacuteduo Estes
conceitos aplicados agrave pessoa humana permitem ao Aquinate natildeo soacute entender a
prudecircncia como uma virtude essencial do bem viver mas tambeacutem condiccedilatildeo para
alcanccedilar o Absoluto
La razoacuten praacutectica de la que la prudencia constituye una virtud esencial refleja perfectamente la estructura metafiacutesica radical [de cada persona humana] (hellip) Si el esse de cada persona cimentada la peculiaridad de su propia andadura de la esencia humana derivan las normas universales ndash descubiertas originalmente por la sindeacuteresis ndash que la prudencia ha de captar y aplicar a las situaciones concretas incluso a las maacutes imprevisibles De esta manera (hellip) guiacutean a cada persona hasta el Absoluto ndash manifiesta y revela la especificidad y originalidad del sujeto humano compuesto (hellip) de esencia y acto de ser53
Daqui tambeacutem podemos constatar a prudecircncia como uma virtude humana
pois eacute por estar em conformidade com a essecircncia humana que ela eacute capaz de
fornecer o que conveacutem agrave natureza proacutepria do homem e com isso conduzi-lo ao
Absoluto 51 A eubolia eacute a virtude da boa deliberaccedilatildeo e a synesis e a gnome virtudes do bom juiacutezo 52 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 12 53 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 381 juldez 1985 A razatildeo praacutetica da qual a prudecircncia constitui uma virtude essencial reflete perfeitamente a estrutura metafiacutesica radical [de cada pessoa humana] () Se o ser de cada pessoa funda a peculiaridade de sua proacutepria caminhada da essecircncia humana derivam as normas universais ndash descobertas originalmente pela sindeacuterese ndash que a prudecircncia capta e aplica agraves situaccedilotildees concretas inclusive agraves mais imprevisiacuteveis Desta maneira () guiam cada pessoa ateacute o Absoluto ndash manifesta e revela a especificidade e originalidade do sujeito humano composto () de essecircncia e ato de ser
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
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infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
Referecircncias Bibliograacuteficas
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43
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______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
32
Demonstrada a razatildeo pela qual eacute ela a responsaacutevel pela direccedilatildeo da vida
propriamente humana cabe-nos agora passar a considerarmos esta virtude em
relaccedilatildeo com as demais virtudes humanas
A prudecircncia enquanto virtude que orienta o agir pressupotildee que as
virtudes morais disponham-na bem mas estas virtudes por sua vez precisam ser
conformes agrave razatildeo e isto se daacute pela atividade da prudecircncia Desta dependecircncia
muacutetua chegamos agrave relaccedilatildeo fundamental entre estas virtudes
A prudecircncia virtude essencialmente intelectual em funccedilatildeo de sua sede
relaciona-se como ato perfeiccedilatildeo que informa e faz com que as virtudes morais
possam tornar-se verdadeiras virtudes humanas ndash estas por sua vez recebem o
ato como potecircncias passivas
Todavia a prudecircncia tambeacutem pode ser entendida como virtude moral em
vista de seu objeto material e deste modo comporta-se como potecircncia ativa das
virtudes morais que satildeo atos enquanto accedilatildeo
Deste modo a prudecircncia garante o nome de virtude agraves virtudes morais e
estas por sua vez tornam a prudecircncia uma virtude moral o que nos conduz a
outra temaacutetica a conexatildeo das virtudes
4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
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Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
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isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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4 Conexatildeo das Virtudes
Da relaccedilatildeo entre a prudecircncia e os fins das virtudes morais percebemos a
intriacutenseca conexatildeo destas virtudes ao ponto de chamaacute-las todas de virtudes
cardeais As virtudes morais da justiccedila fortaleza e temperanccedila juntamente com a
virtude da prudecircncia virtude intelectual que por seu objeto material podemos
dizecirc-la moral formam uma relaccedilatildeo tatildeo peculiar que refletem a proacutepria
peculiaridade do ser humano entre as demais criaturas
A singularidade do ser humano consiste no fato de ser o uacutenico ente nem
totalmente espiritual nem totalmente corporal mas sim um todo composto por
estes dois princiacutepios de modo complementar54 Deste modo natildeo nos eacute estranha a
necessidade de uma conexatildeo entre estas virtudes que mesmo sediadas em
potecircncias distintas possam convergir encaminhando o homem em sua
completude ao seu fim
Novamente eacute a visatildeo da unidade substancial do homem que se expressa assim como natildeo eacute uma inteligecircncia mais ou menos acidentalmente ligada agrave animalidade de sua natureza muito menos eacute pura vontade sem inteligecircncia nem o contraacuterio Soacute essa luz permite compreender o lugar central que Tomaacutes concebe agrave prudecircncia e que ele exprime na tese principal da harmonia das virtudes ou como diz em sua linguagem de uma ldquoconexatildeordquo sob a eacutegide da prudecircncia ldquoNatildeo pode haver nenhuma virtude moral sem a prudecircncia Igualmente natildeo pode haver a prudecircncia sem as virtudes moraisrdquo55
O tema da conexatildeo das virtudes aparece como uma exigecircncia ontoloacutegica
do homem e pressupotildee a concepccedilatildeo do indiviacuteduo humano como pessoa ou seja
substacircncia individual de natureza racional isto eacute capaz de aperfeiccediloar-se por
suas operaccedilotildees e dar razatildeo de suas escolhas dirigindo-se de modo livre ao seu
fim56
Partindo destas consideraccedilotildees parece-nos salutar elucidar mais
detalhadamente a relaccedilatildeo da prudecircncia com as demais virtudes morais e a
importacircncia da conexatildeo das virtudes para a conquista da felicidade Para tanto eacute
necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo a prudecircncia como razatildeo das virtudes morais e
seu relacionamento com o fim uacuteltimo sobrenatural do homem
54 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 304 55 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 327 56 MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 372-373 juldez 1985
34
41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
fundamentadas
Pieper sobre a primazia da prudecircncia esclarece-nos a sentenccedila
apresentada pelo Aquinate no deacutecimo segundo artigo das QQDD De virtutibus in
communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
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A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
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ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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41 A primazia da prudecircncia
Dentre as virtudes humanas sejam elas morais ou intelectuais destaca-se
a virtude da prudecircncia considerada a primeira dentre as demais virtudes
adquiridas por ser a responsaacutevel por regular o exerciacutecio das demais virtudes
morais as quais natildeo chegariam a ser virtudes propriamente ditas sem a
prudecircncia uma vez que eacute nesta que as virtudes morais encontram-se
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communi ldquoToda virtude eacute necessariamente prudenterdquo57 com as seguintes
palavras ldquoNatildeo haacute justiccedila e fortaleza que possam opor-se agrave virtude da prudecircncia
e todo aquele que for injusto eacute ao mesmo tempo e antes de mais nada
imprudenterdquo58
Essa precedecircncia da prudecircncia em relaccedilatildeo agraves demais virtudes cardeais
estabelece-se pela necessidade do elemento racional proacuteprio da natureza
humana para que as demais virtudes de acordo com seus objetos proacuteprios
possam empregar os meios adequados para atingir seus respectivos fins
Entretanto a prudecircncia natildeo pode atuar agrave revelia das virtudes morais pois os fins
da accedilatildeo que satildeo estabelecidos pelas virtudes morais satildeo princiacutepios
cognoscitivos sobre os quais se apoacuteiam as conclusotildees da prudecircncia Daiacute conclui-
se que as virtudes cardeais satildeo conexas
A conexatildeo das virtudes ocorre sobretudo em razatildeo da prudecircncia ser
ldquomatildeerdquo59 e informadora de todas as demais virtudes morais ao passo que estas
sem o comando daquela natildeo passariam de disposiccedilotildees naturais e natildeo
propriamente virtudes pois ldquoa prudecircncia eacute a razatildeo daquilo que torna virtudes as
outras virtudesrdquo60
Pois como jaacute dissemos nenhuma virtude moral pode existir sem a prudecircncia Porque eacute proacuteprio da virtude moral que eacute um haacutebito eletivo fazer uma eleiccedilatildeo reta e para isso natildeo basta soacute a inclinaccedilatildeo para o fim devido efetivada diretamente pelo haacutebito da virtude moral mas eacute tambeacutem preciso escolhermos diretamente os meios e isto se realiza pela prudecircncia que aconselha julga e preceitua sobre eles E semelhantemente a prudecircncia
57 Virt Comm a 12 ad 23 ldquoOmnis virtus moralis debet esse prudensrdquo 58 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14 59 In Sent III d 33 q 2 a 5 co 60 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p14
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natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
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espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
Referecircncias Bibliograacuteficas
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______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980
______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005
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______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
35
natildeo a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais pois ela eacute a razatildeo reta do que devemos fazer ()61
Esta justificativa eacute reforccedilada com a distinccedilatildeo entre virtude e disciplina
instintiva ldquoA virtude eacute uma capacidade perfeita do homem enquanto pessoa
espiritualrdquo62 isto eacute um haacutebito cuja accedilatildeo dirige-se a concretizar boas obras Jaacute as
disciplinas instintivas natildeo passam de inclinaccedilotildees naturais que realizam boas
accedilotildees de modo geneacuterico Deste modo percebemos que estas disciplinas natildeo
possuem conexatildeo dado o fato de serem pautadas na inclinaccedilatildeo enquanto que as
virtudes por serem haacutebitos eletivos pressupotildeem um dado pautado na razatildeo
Partindo desta consideraccedilatildeo identificamos que o elemento racional que as
virtudes morais necessitam eacute encontrado precisamente na prudecircncia Eacute
justamente a prudecircncia o elemento distintivo entre as virtudes morais e as
disciplinas instintivas pois o que seria apenas instinto bom tem razatildeo de virtude
por receber da prudecircncia o criteacuterio de bondade
() a verdade da virtude intelectual praacutetica comparada com a realidade estaacute para ela como o que eacute medido assim tanto nas virtudes intelectuais praacuteticas como nas especulativas o meio termo eacute considerado na sua conformidade com a realidade Mas em relaccedilatildeo ao apetite ele exerce o papel de regra e medida Por onde o meio termo da virtude moral isto eacute a retidatildeo da razatildeo eacute tambeacutem o da prudecircncia mas desta enquanto regula e mede e daquela como medida e regulada63
A prudecircncia eacute a virtude que sustenta as virtudes morais enquanto virtudes
mas sua operaccedilatildeo depende dessas mesmas virtudes o que nos leva a considerar
a primazia e a precedecircncia da prudecircncia como uma exigecircncia moral pois do
mesmo modo que o ser precede a verdade e esta precede o bem a prudecircncia
precede as virtudes morais Isto adveacutem do fato da prudecircncia versar propriamente
sobre a verdade por ser razatildeo praacutetica que eacute medida pela realidade pelo ser por
sua vez as virtudes morais versam sobre os bens mas que para tanto devem se
harmonizar com a verdade
Da mesma forma que a verdade deve-se harmonizar com a realidade a
bondade das virtudes morais soacute satildeo o que satildeo por estarem em consenso com a
prudecircncia de modo que se pode afirmar do justo do forte e do temperante que
satildeo prudentes
61 STh I-II q 65 a 1 62 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 15 63 STh I-II q 64 a 3
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A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
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ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
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Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
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Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
Referecircncias Bibliograacuteficas
AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995
AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008
______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008
______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001
______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980
______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007
BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945
DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000
FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008
GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946
GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007
HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000
LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008
LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000
LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993
MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985
MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000
43
NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993
PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002
PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960
REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006
SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998
SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999
______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000
TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999
______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008
VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004
______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
36
A primazia da prudecircncia significa pois em primeiro lugar a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a verdade mas significa por fim a orientaccedilatildeo do querer e do agir para a realidade objetiva O que eacute bom comeccedila por ser prudente o que eacute prudente poreacutem estaacute de harmonia com a realidade64
Desta posiccedilatildeo privilegiada da prudecircncia podemos extrair outra conclusatildeo
que parece patente nas consideraccedilotildees de Santo Tomaacutes a conexatildeo das virtudes
cardeais acontece de tal forma tornando-as indissociaacuteveis que podemos afirmar
que a posse de uma destas virtudes acarreta a posse das demais
O mesmo natildeo ocorre entre as virtudes morais e as outras virtudes
intelectuais pois seus objetos satildeo distintos e natildeo se relacionam pois soacute
consideram o que haacute de universal Destarte as virtudes morais podem existir a
exclusatildeo das virtudes intelectuais que natildeo versam sobre o contingente e estas do
mesmo modo em relaccedilatildeo agraves virtudes morais
42 A prudecircncia e a caridade Visto a necessidade da conexatildeo das virtudes cardeais sobre o fundamento
da prudecircncia passaremos agora a discussatildeo no espiacuterito tomista do cristianismo
da necessidade ou natildeo da conexatildeo entre virtudes morais e as virtudes teologais
Antes de mais nada vale retomar a distinccedilatildeo entre virtudes humanas e
sobrenaturais As virtudes humanas satildeo adquiridas pelo exerciacutecio enquanto as
teologais satildeo infusas por Deus a fim de conduzir o homem agrave bem-aventuranccedila
pois tal condiccedilatildeo ultrapassa as capacidades do proacuteprio homem De tal modo eacute
necessaacuterio que as potecircncias humanas sejam acrescidas por Deus dos meios
necessaacuterios para que possam virtuosamente conduzir o homem natildeo soacute seus fins
conaturais mas tambeacutem agrave bem-aventuranccedila65
Seguindo a argumentaccedilatildeo do Doutor Angeacutelico as virtudes morais
enquanto adquiridas independem das infusas pois satildeo adquiridas pelas accedilotildees
humanas que natildeo ultrapassam sua natureza Entretanto as virtudes infusas ao
homem dirigirem-se ao que conveacutem para a conquista da bem-aventuranccedila
64 PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960 p 18 65 STh I-II q 62 a 3
37
ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007
HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000
LAUAND Jean A arte de decidir a virtude da prudecircncia em Tomaacutes de Aquino Disponiacutevel em lthttpwwwhottoposcomvidetur15jeanhtmgt Acesso 09 mar 2008
LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000
LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993
MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985
MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000
43
NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993
PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002
PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960
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SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999
______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000
TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999
______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008
VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004
______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
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ultrapassam a condiccedilatildeo natural do homem e natildeo podendo ser adquiridas pelos
atos humanos satildeo infundidas por Deus66
Essa primeira consideraccedilatildeo eacute importante por demonstrar que natildeo soacute as
virtudes teologias satildeo infusas mas tambeacutem as virtudes morais incluindo aqui a
prudecircncia satildeo passiacuteveis de serem infundidas no homem A distinccedilatildeo entre as
virtudes adquiridas e as infusas eacute quanto agrave espeacutecie o que faz com que existam
duas classes de prudecircncia justiccedila fortaleza e temperanccedila de modo que satildeo
distintas a razatildeo o objeto formal e os fins destas duas espeacutecies de virtudes67
Nessa dimensatildeo onde se consideram as virtudes infusas devemos levar
em consideraccedilatildeo a tese de que o homem batizado eacute uma criatura divinizada e
que enquanto ldquofilhordquo de Deus estaacute destinado agrave salvaccedilatildeo que consiste na bem-
aventuranccedila o verdadeiro fim do homem que se sobrepotildee ao fim das virtudes
adquiridas pelo seu maior grau de perfeiccedilatildeo Desta mesma maneira por ter o fim
mais perfeito as virtudes infusas satildeo verdadeiramente perfeitas68 Do mesmo
modo dentre as virtudes infusas a que se ordena de melhor modo ao fim uacuteltimo
seraacute a mais excelente69
Ora se as virtudes infusas se distinguem das virtudes adquiridas por
pertencerem a espeacutecies distintas existem entatildeo verdadeiramente duas virtudes
da prudecircncia duas virtudes da justiccedila duas virtudes da temperanccedila e duas
virtudes da fortaleza de modo que natildeo recaem sobre os mesmos atos70
Mesmo existindo duas espeacutecies de virtudes morais elas natildeo se excluem
Com efeito eacute possiacutevel ao homem a posse de ambas71 Ademais a existecircncia da
virtude adquirida facilita a operaccedilatildeo das virtudes infusas Entretanto eacute preciso
considerar que mesmo existindo virtudes morais infusas72 estas natildeo satildeo
essencialmente sobrenaturais mas somente as virtudes teologais da feacute
esperanccedila e caridade em razatildeo de seu objeto formal
66 STh I-II q 65 a 2 67 STh I-II q 63 a 4 68 STh I-II q 65 a 2 ldquo() soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e se chamam virtudes absolutamente falando Ao passo que as adquiridas ndash que satildeo as outras ndash o satildeo parcial e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem para um fim uacuteltimo natildeo absoluta mas genericamenterdquo 69 STh II-II q 23 a 6 70 STh I-II q 63 a 4 ad 2 71 As virtudes infusas na concepccedilatildeo tomista satildeo virtudes adquiridas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar estas virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde 72 As virtudes infusas na concepccedilatildeo de Tomaacutes satildeo virtudes recebidas pelo batismo portanto soacute satildeo possiacuteveis aos cristatildeos Disto decorre que podemos chamar as virtudes de virtudes cristatildes e do mesmo modo a prudecircncia infusa de prudecircncia cristatilde
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Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
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Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
Referecircncias Bibliograacuteficas
AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995
AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008
______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008
______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001
______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980
______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007
BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945
DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000
FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008
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______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007
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LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000
LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993
MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985
MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000
43
NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993
PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002
PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960
REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006
SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998
SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999
______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000
TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999
______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008
VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004
______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
38
Fornecidas as consideraccedilotildees necessaacuterias sobre as virtudes infusas
cabemos agora examinar se tambeacutem nas virtudes morais infusas do homem
elevado pela graccedila haacute conexatildeo e qual a originalidade que Santo Tomaacutes encontra
nessa questatildeo no que se refere agrave prudecircncia
Devemos entender a conexatildeo das virtudes infusas agrave luz da conexatildeo das
virtudes adquirida como nos demonstra Torrel
Deve-se observar eacute ainda a concepccedilatildeo de iniacutecio sobre a unidade substancial do ser humano que comanda diretamente esta nova tese Entretanto depois do que dissemos sobre as virtudes teologais adivinha-se facilmente que a conexatildeo das virtudes morais pela prudecircncia eacute na realidade apenas uma etapa intermediaacuteria e que de fato ela natildeo acontece isoladamente A etapa definitiva da unificaccedilatildeo do ser cristatildeo eacute realizada pela caridade E isso em dois niacuteveis o da prudecircncia e das virtudes infusas certamente mas sobretudo o das virtudes teologais73
Do mesmo modo que dissemos ser a prudecircncia a matildee e a informadora da
das virtudes morais adquiridas enquanto ordenadas aos fins conaturais do
homem a caridade deve ser entendida como a informadora de todas as virtudes
inclusive da prudecircncia enquanto ordenada mais excelentemente ao fim
sobrenatural74 Assim como dito por Torrel do mesmo modo que a as virtudes
morais adquiridas satildeo conexas pela existecircncia de apenas uma prudecircncia75 de
modo que a posse de uma virtude necessariamente revela a posse das demais
as virtudes infusas satildeo conexas
A caridade como a mais excelente das virtudes teologais eacute o princiacutepio de
todo agir bem pois se ordena ao fim supremo de modo que todas as virtudes
infusas satildeo comunicadas por Deus simultaneamente como diz o Doutor Angeacutelico
Todas as virtudes morais satildeo infundidas simultaneamente com a caridade porque Deus natildeo age menos perfeitamente nas obras da graccedila que nas da natureza () Ora eacute manifesto que a caridade ordenando o homem ao seu fim eacute o principio de todas as boas obras que podem ordenar-se para tal fim Por onde eacute necessaacuterio que com a caridade sejam infundidas no homem todas as virtudes morais pelas quais ele produz os vaacuterios gecircneros de boas obras76
73 TORREL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008 p 328 74 STh II-II q 23 a 6 75 In Ethic VI 11 lec 6 ldquo() se houvesse diversas prudecircncias acerca das mateacuterias das diversas virtudes morais assim como haacute diversos gecircneros de coisas artificiais natildeo haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse cada uma delas tendo a prudecircncia a si correspondente Mas isto natildeo pode ser porque os princiacutepios da prudecircncia satildeo os mesmos para toda a mateacuteria moral e portanto por causa da unidade da prudecircncia todas as virtudes satildeo conexas entre si 76 STh I-II q 65 a 3
39
Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
pensamento cristatildeo medieval Desta siacutentese original surgiu o primeiro tratado
propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
que o homem possui um ato de ser proacuteprio pela alma mas natildeo se constitui
exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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TORREL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 1999
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Por tal razatildeo como a prudecircncia adquirida exige as demais virtudes morais
adquiridas a prudecircncia infusa exige as demais virtudes morais infusas Poreacutem
ela mesma eacute exigida pela caridade para que esta possa aperfeiccediloar o homem
conforme a regra divina pois a prudecircncia adquirida soacute eacute capaz de considerar a
regra da razatildeo humana e natildeo Deus regra primeira que regula a razatildeo humana77
77 STh II-II q 23 a 6
Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
entre as virtudes morais visto que comumente eacute associada a estas Nosso
trabalho tencionou indagar sobre o que de fato define a prudecircncia sua atividade e
relaccedilatildeo com as demais virtudes agrave luz dos escritos de Santo Tomaacutes
Seguindo a tradiccedilatildeo Tomaacutes vincula a noccedilatildeo de virtude agrave de felicidade e
tomando por base a filosofia peripateacutetica a segunda eacute decorrente da atividade da
primeira Entretanto nosso filoacutesofo empenhou-se em natildeo abrir matildeo da revelaccedilatildeo
cristatilde propondo assim uma siacutentese entre correntes aparentemente diacutespares o
aristotelismo e o agostinismo de matiz neoplatocircnica que predominava no
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propriamente sobre a virtude da prudecircncia
A essecircncia da antropologia do Doutor Comum consiste na compreensatildeo de
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exclusivamente por esta Ora promover uma doutrina das virtudes meramente
intelectualista nos soaria inconsistente assim como propor uma ruptura entre
estas virtudes e as morais
Pela proacutepria compreensatildeo do que seja o homem eacute necessaacuterio uma
sinergia entre todas as faculdades humanas a fim de conduziacute-lo a seu termo Por
isso eacute imprescindiacutevel uma virtude que transite entre essas faculdades que reflita
sua constituiccedilatildeo metafiacutesica Esta virtude eacute a prudecircncia
A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
e moral de modo que conduza o homem em toda sua unidade agrave conquista da
felicidade
Ela eacute uma virtude intelectual por sua sede pois o homem como ser racional
deve ser guiado pelo que tem de superior como bem intuiu Aristoacuteteles poreacutem eacute
tambeacutem moral em virtude de seu objeto material o mesmo das virtudes morais a
accedilatildeo A convergecircncia destas duas dimensotildees do homem demonstrar-se-aacute tatildeo
necessaacuteria que as virtudes estritamente morais natildeo existiratildeo sem a prudecircncia e
esta natildeo existiraacute sem aquelas Estando poreacutem a prudecircncia numa instacircncia
41
superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
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Conclusatildeo A virtude da prudecircncia desde Soacutecrates eacute compreendida como virtude
intelectual visto que todas as virtudes pertenceriam agrave razatildeo e seriam modos de
prudecircncia Contudo apesar de sua sede a prudecircncia parece melhor acomodada
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A prudecircncia seraacute aquela que revele a totalidade do homem Por isso a
prudecircncia seraacute a virtude do bem viver virtude que eacute ao mesmo tempo intelectual
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41
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agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
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fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
Referecircncias Bibliograacuteficas
AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995
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ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007
BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945
DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000
FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008
GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946
GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
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HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000
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______ Santo Tomaacutes de Aquino mestre espiritual Satildeo Paulo Loyola 2008
VAZ H C de Lima Escritos de Filosofia II eacutetica e cultura Satildeo Paulo Loyola 2004
______ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave eacutetica filosoacutefica 1 Satildeo Paulo Loyola 2008
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superior a razatildeo seraacute a genitora das demais uma vez que ela guia o agir humano
agrave luz da verdade recta ratio agibilium
Pelo que expomos a prudecircncia natildeo eacute soacute a virtude necessaacuteria para o bem
viver mas para um viver plenamente humano A centralidade da prudecircncia para a
vida humana encontra-se tatildeo arraigada na doutrina do Angeacutelico que mesmo
quando versa sobre as virtudes infusas aquelas que levam em consideraccedilatildeo o
fim absoluto isto eacute Deus e por isso satildeo tomadas como verdadeiras virtudes iraacute
demonstrar a necessidade da conexatildeo das virtudes teologais com virtudes
morais cujo elo derradeiro eacute a prudecircncia
Referecircncias Bibliograacuteficas
AGOSTINHO O livre-arbiacutetrio Satildeo Paulo Paulus 1995
AQUINO Tomaacutes de Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudiocomportughesetomasaquinocomentariosaristoteleszipgt Acesso 04 abr 2008
______ Quaeligstiones disputataelig de virtutibus Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgioperahtmlgt Acesso 19 ago 2008
______ Suma de Teologiacutea Madri BAC 2001
______ Suma Teoloacutegica v 3 e 5 Porto Alegre Editora Sulina 1980
______ Suma Teoloacutegica v 4 Satildeo Paulo Loyola 2005
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Satildeo Paulo Martin Claret 2007
BASTOS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Porto Livraria Figuerinhas 1945
DrsquoARC FERREIRA Anderson A raiz etimoloacutegica da virtude da prudecircncia em Santo Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000
FAITININ Paulo Eacutetica Disponiacutevel em lthttpwwwaquinatenetfilosofiaeticagt Acesso 10 abr 2008
GARRIGOU-LAGRENGE Reacuteginald La siacutentesis tomista Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1946
GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Satildeo Paulo Martins Fontes 2001
______ El Tomismo Buenos Aires Ediciones Descleacutee De Brouwer 1951
GOBRY Ivan Vocabulaacuterio Grego de Filosofia Satildeo Paulo WMF Martins Fontes 2007
HOBUSS Joatildeo Sobre a conexatildeo das virtudes em Tomaacutes de Aquino Dissertatio n 11 2000
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LINS Bruno O Intellectus Fidei dos escolaacutesticos e a teologia como ciecircncia Revista Idea Rio de Janeiro ano IV n 2 p 42 juldez 2000
LUNtildeO Angel Rodrigues Eacutetica general Pamplona EUNSA 1993
MELENDO Tomaacutes El ayer y el hoy de la prudencia Revista de Filosofia n 8 p 371-390 juldez 1985
MONDIM Batista Dizionaacuterio enciclopeacutedico del pensiero di San Tommaso DrsquoAquino Roma Edizion Studio Domenicano 2000
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NASCIMENTO Carlos Arthur do A prudecircncia segundo Santo Tomaacutes de Aquino Siacutentese Nova Fase Rio de Janeiro v 30 n 62 p 365-385 1993
PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave filosofia de Aristoacuteteles Satildeo Paulo Paulus 2002
PIEPER Josef Virtudes fundamentais Lisboa Aster 1960
REIS Eacutemilen Vilas Boas O Conceito de virtude no jovem Agostinho evoluccedilatildeo ou revoluccedilatildeo Porto Alegre EDIPUCRS 2006
SILVA Claacuteudio Henrique da Virtudes e viacutecios em Aristoacuteteles e Tomaacutes de Aquino oposiccedilatildeo e prudecircncia Boletim do CPA Campinas n 56 jandez 1998
SILVEIRA Carlos Frederico G Calvet O iter filosoacutefico de Santo Tomaacutes nas Questotildees Disputadas Revista IDEA Rio de Janeiro ano III n 2 p 77-82 janjun 1999
______ Ser e querer em Santo Tomaacutes Revista IDEA Rio de Janeiro ano IV n 1 p 3-14 janjun 2000
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