1 a recepÇÃo do modernismo na imprensa de sÃo joÃo
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A RECEPÇÃO DO MODERNISMO NA IMPRENSA DE SÃO JOÃO DEL-REI
Nilo da Silva Lima
Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG
El movimiento moderno en el Brasil, fue un grito de alegria y
entusiasmo. Fue el grito fuerte de la gente nueva. Un grito
necesario, que encontró repercusión en todos los rincones de la
tierra brasileña. La reación modernista, entre nosostros, nació
de una fatiga unánime.
(Peregrino Junior – Verde, ano.1, n.5, jan.1928, p.15)
Resumo:
Objetivo desse artigo é analisar a recepção do modernismo na imprensa de São João
del-Rei, por considerá-lo uma vertente praticamente desconhecida dos estudos e
pesquisas acerca desse importante movimento literário no âmbito da história, da
literatura, da arte e da cultural brasileira.
Palavras-chaves:
Modernismo, recepção, imprensa de São João del-Rei.
1 – Introdução:
Apesar de todo atraso na constituição da imprensa no Brasil, ora impedida pela Ordem-
Régia, de 6 de junho de 1747, proibindo a publicação de quaisquer papéis no Brasil, ora
pela morosidade na criação de infraestrutura mínima para a impressão, ora em razão da
grande distância entre o interior de Minas Gerais e Rio de Janeiro e São Paulo, ainda,
assim, São João del-Rei “foi, todavia, a segunda cidade mineira que teve imprensa
periódica”, cujo marco foi a edição do Astro de Minas, por Baptista Caetano de
Almeida, em 20 de novembro de 1827, “que o fundou e o manteve durante doze anos
ininterruptos” (VIEGAS, 1969, p.74). Tendo, inclusive, promovido a implantação da
primeira tipografia da cidade, onde foi impresso o Astro de Minas (REZENDE, 2008,
p.1) que circulou em São João del-Rei, de 20 de novembro de 1827 a 6 de junho de
1839, em três edições semanais: às terças, quintas e sábados (REZENDE, 2008, p.6).
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Ressalta-se, aqui, o que Guilherme Jorge de Rezende (2008) destaca quanto ao Astro de
Minas que esse jornal “acumulava também, como queria o seu mentor, a função de
livraria, comercializando livros e demais tipos de publicação” (2008, p.2).
Portanto, a imprensa de São João del-Rei nasce com e na publicação do Astro de Minas
(1827). Dessa época, além do “entusiasmo da mocidade” (VIEGAS, 1969, p.77) que se
aflora num número significativo de “folhas literárias de vida brilhante, mas efêmeras”
(VIEGAS, 1969, p.77), ao lado dos jornais murais, que surgem do empenho pioneiro de
João Lobosque Neto (Joanino Lobosque), criador do Jornal do Poste (OLIVEIRA,
2004), característica que distingue ainda esse jornalismo tipicamente são-joanense, a
imprensa se desenvolve e se firma como uma forma explícita e apaixonada pelo
progresso, pela defesa, pela projeção de São João del-Rei tanto em Minas Gerais quanto
no cenário nacional.
Uma análise, ainda que preliminar, incompleta, provisória e panorâmica dos programas
dos jornais, que elegem, de modo específico o editorial como território propício de sua
manifestação, e que compõe a linha de pensamento do jornal, desde a primeira edição
do Astro de Minas, em 1827, até os que hoje ainda continuam sendo escritos,
distribuídos, lidos, criticados e defendidos, em meio à absoluta transformação pela qual
a imprensa e todo sistema de comunicação atravessam, constata-se, claramente, a
manutenção da paixão por São João del-Rei. Pelo povo são-joanense, pelo progresso,
pela liberdade de imprensa, pela informação de qualidade, pela denúncia consciente,
responsável, pela prestação de serviços, pela cultura e, sobretudo, por uma consciência,
cada vez mais crítica, da riqueza inexorável do patrimônio histórico, artístico, literário e
cultural de São João del-Rei.
Nesse sentido, as “folhas literárias” têm vencido a efemeridade por essa consciência de
que a imprensa tem a responsabilidade na preservação, divulgação e modernização de
São João del-Rei. Aliás, à luz dessa consciência do patrimônio cultural de São João del-
Rei é que Baptista Caetano de Almeida cria a Biblioteca Municipal, “a primeira
biblioteca pública de Minas Gerais” (REZENDE, 2008, p.1). Nela, além do imenso
tesouro que guarda, mantém um acervo significativo dessas “folhas literárias”, que
comprovam a vitalidade contínua da imprensa são-joanense. Acervo que ainda clama
por investimentos, pesquisas, divulgação, que têm por obrigação corroborar a
consciência tanto dos que escreveram e escrevem quanto dos que preservam esse
patrimônio cultural são-joanense. Afinal, preservar implica muito mais do que criar e
manter acervos. Implica, sobretudo, democratizar o acesso a esse patrimônio cultural,
pesquisá-lo, conhecê-lo, entender a sua função social, trazê-lo dos cômodos
ensombrados e empoeirados dos arquivos à luz dos estudos contemporâneos de história,
literatura, arte, e cultura. Posto que “a questão do arquivo não é uma questão do
passado; trata-se de uma questão do futuro, de uma resposta, de uma promessa e de uma
responsabilidade para amanhã” (DERRIDA, 2001, p. 50). Ou seja, este é o tempo de
busca, de ir, de se desassossegar pela obsessão do “mal de arquivo” (DERRIDA, 2001,
p. 118) por conhecê-lo, pesquisá-lo, entendê-lo, para que o sentido menos incompleto se
revele num futuro, num amanhã que há de ser constituído por essa busca incessante
empreendida pelos estudos atuais, que se mostram tardios.
O interesse pela busca, pela pesquisa da recepção do modernismo na imprensa de São
João del-Rei, portanto, nasce e se justifica por essa busca incessante, não apenas pelo
simples registro da passagem da caravana de modernistas pela cidade. Mas, sobretudo,
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pela procura do significado dessa passagem, que mais do que dado, precisa ser
construído, tanto para o projeto histórico, artístico e cultural do modernismo quanto
para a imprensa são-joanense e para a produção literária que teve nessa imprensa, em
especial, no jornal, a sua principal e, por vezes, única fonte de registro, de veiculação e
de memória.
Um conjunto de ideias, ao mesmo tempo, provoca e justifica o estudo acerca da
recepção do modernismo na imprensa de São João del-Rei.
Primeiro, o que, a princípio, não teria nada a ver, o projeto que desenvolvo na produção
de uma espécie de dicionário de escritores e poetas de são-joanenses, ainda em
execução e que foi também um dos elementos que me fizeram deparar com uma enorme
produção literária feita, por muitos autores, apenas nessas chamadas “folhas literárias
são-joanenses”, em jornais que gritam, clamam, de seu silêncio quase absolutamente
mudo, pelo resgate, estudo, por um lugar, ainda apenas lá nesses bastidores da literatura.
Segundo, ainda persistindo em Derrida, essa possessão pelo “mal de arquivo”. Uma
febre que possui esse tipo de pesquisador e o leva, e o arrasta continuadamente para o
arquivo. Uma paixão por ouvir os gritos silentes e empoeirados dessa literatura, desse
patrimônio, não só literário, mas cultural, para trazê-lo à luz dos estudos
contemporâneos carentes da luminosidade esquecida, nunca ou raramente iluminadora
da cultura que nele reside. Reiterando nesse aspecto a obsessão que me fez ir atrás de
uma revista modernista editada aqui em São João del-Rei, mesmo entendendo que ela,
de fato, nunca poderia ser encontrada.
Apesar do diálogo constante, mantido entre poetas, escritores, jornalistas e artistas
ligados ao modernismo tanto de São Paulo e Rio de Janeiro quanto de Belo Horizonte e
poetas, escritores, jornalistas e artistas de São João del-Rei, um estudo dessa
correspondência comprovaria as consequências desse diálogo para a produção artística
são-joanense, aquela aversão pela destruição do passado, que erroneamente foi atribuída
aos projetos estéticos do modernismo, mediante a consciência da função do passado
para São João del-Rei, de fato, aqui nunca nasceria uma revista modernista. Embora o
modernismo nas letras, nas artes, na história e na cultura aqui se faça de uma maneira
que se constitui na vertente que mais encantaria Mário de Andrade, Manuel Bandeira,
Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, dentre os que aqui vieram e ainda continuam
vindo em busca de arte e de passado que aqui se fazem presentes.
Terceiro, a provocação que o jornal A Tribuna (1914-1938) continua propondo com
relação ao manancial inesgotável de suas fontes que podem não saciar à extinção
absoluta da sede, mas alentar essa sede da história, da literatura, da memória cultural de
São João del-Rei. Em especial, dois artigos publicados em suas páginas, um em 1924,
noticiando a visita de uma caravana de modernistas a São João del-Rei, a recepção que
tiveram na cidade. Outro em 1925 repudiando o futurismo, ainda eivado da mesma
confusão da época da Semana de Arte Moderna e que acirrara os ânimos entre
“modernistas/futuristas” e “conservadores”. Ao lado do fragmento de uma carta de 1938
enviada à redação por Gilberto de Alencar. Por uma obsessão por ler nesse conjunto de
textos mais do que o mero registro da passagem da caravana de modernistas pela cidade
sem outras consequências, um itinerário que implica uma nova vertente pela qual o
modernismo ainda não se leu nem foi lido.
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Por que A Tribuna, se o objetivo é pesquisar a recepção do modernismo na imprensa de
São João del-Rei? É que, apesar do grande número de jornais que sempre circularam e
ainda circulam em São João del-Rei, apenas A Tribuna registra a visita da caravana de
modernistas a São João del-Rei, com destaque para “essa cidade hospedando gente de
tão alta estirpe!” (T.B, 1924, p.1).
E também em razão da relevância que esse jornal apresenta no âmbito da imprensa e da
cultura são-joanenses, o que a sua história comprova, mantendo-se até hoje como um
dos jornais de São João del-Rei que, desde o Astro de Minas (1827), primeiro jornal
impresso de São João del-Rei, resistira bravamente à “efemeridade das folhas literárias
são-joanenses”.
Procedeu-se, desse modo, a uma ampla pesquisa em todos os jornais que circularam em
São João del-Rei no período compreendido entre 1919 a 1938. A escolha desse corpus
se fez por considerar a relação de proximidade com o ano de 1922, ano de realização da
Semana de Arte Moderna em São Paulo, em fevereiro de 1922 e os desdobramentos da
Semana na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (BOAVENTURA, 2000), quanto
os antecedentes da Semana. Assim, opta-se pelo início em 1919, por se tratar da data da
primeira viagem de Mário de Andrade a Minas Gerais (NATAL, 2007, p.193), e 1938
como término, considerando a morosidade, de certo modo natural, para que chegasse,
despertasse interesse e fosse tomada como matéria jornalística, no interior, a própria
Semana de Arte Moderna e a sua repercussão na imprensa de São Paulo e do Rio de
Janeiro, que se constituíam nos centros culturais com que os jornalistas, escritores e
poetas de São João del-Rei mantinham contatos, diálogos e até correspondência mais
frequentes. 193. E, ainda, em razão de um terceiro texto – o fragmento de uma carta
endereçada à redação d‟A Tribuna,em 16 de janeiro de 1938 e que faz eco com a
recepção do modernismo na imprensa são-joanense.
Nenhum jornal, a não ser A Tribuna, em São João del-Rei, portanto, ocupa-se, noticia e
se torna, em virtude dessa exclusividade, a fonte tanto do registro quanto das pesquisas
da recepção do modernismo em São João del-Rei. Quando se insiste na recepção do
modernismo e não apenas no registro isolado da caravana, como tem acontecido até o
momento, fundamenta-se essa opção no fato de que, além do artigo de T.B (Tancredo
Braga), publicado na primeira página, da edição nº537, de 24 de abril de 1924,
noticiando a chegada e a visita dos modernistas, o mesmo jornal publica, um ano
depois, novamente, na primeira página, da edição nº627, de 5 de março de 1925, o
artigo de J. Brandão “Verso futurista...Abaixo o futurismo!”, que se constitui num dos
documentos que testemunham a recepção do modernismo na imprensa de São João del-
Rei.
Quarto, por uma paixão – outra? – pela produção literária são-joanense que, guardadas
algumas exceções, continua se fazendo na contramão, ou pelo menos numa aparente
contramão, da estética modernista. Talvez seja esse o aspecto dessa produção que mais
me provoca e apaixona.
E, por último, pela possibilidade de pesquisa dessa vertente do modernismo que se
escreve não dos compêndios literários onde se torna uma tradição, mas dessas margens,
dos bastidores de si, de seu movimento, que permanece o modernismo ainda longe de
uma tradição de si como tradição.
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2 – A Semana de Arte Moderna
No livro, 22 por 22: a semana de arte moderna vista pelos seus contemporâneos
(2000), organizado por Maria Eugenia Boaventura, a pesquisadora “reúne as polêmicas
divulgadas na imprensa no decorrer do ano de 22”, quando ocorre, entre 11 e 18 de
fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo a Semana de Arte Moderna.
Os artigos reunidos demonstram, de modo claro e inequívoco, que a Semana de Arte
Moderna, além de ter sido um fiasco, do ponto de vista do desejo de envolver toda
sociedade paulista, provocou, na imprensa, um ímpeto de ataques de defensores dos
cânones artísticos e culturais contra os idealizadores da chamada nova era artística e
literária.
Houve uma resistência explícita, e certamente pouco pensada pelos modernistas da
Semana, manifestada por parte da imprensa, contra as ideias desse modernismo que lhes
pareceu ainda eivado de arrogância. O núcleo desses ataques foi a confusão estabelecida
entre futurismo, na sua acepção ligada às propostas de Marinetti, Boccioni e Russolo,
que defendiam uma ruptura total com o passado, pela independência, originalidade e
personalidade artística e o modernismo, como tendência para um futuro em oposição à
decadência melodramática do passado de que não queriam depender (ANDRADE, apud
BOAVENTURA, 2000, p.108). Essa confusão se origina a partir dos próprios
promotores da Semana de Arte Moderna que se nomeiam futuristas. Não sei se por um
lapso ou propositadamente. A defesa que, sobretudo, Oswald de Andrade faz do
equívoco de considerar futuristas os modernistas não resolve a dúvida acerca do lapso
ou do propósito. Pelo contrário, apenas acirra os ânimos e, assim, dissemina a Semana
pelo país (ANDRADE, apud BOAVENTURA, 2000, p.108).
É provável que a aversão ao futurismo afeito às ideias e aos ideais de Marinetti, aflore-
se em função da destruição do passado como forma de inaugurar e de impor o novo. E,
então, as calorosas disputas na imprensa, aliadas ao fracasso, aparente, da Semana de
Arte Moderna, acabam desviando o foco da semana propriamente dita, que talvez fosse
o objetivo maior, ainda que não de todo ou mesmo pouco consciente desta rebelião
estética, que erroneamente ainda continua confundindo com os tumultos da Semana, em
detrimento das conquistas para a arte, a literatura e para o cenário da cultura brasileira,
que irradiam a partir dessa Semana. Porém, sem estar, sem depender estritamente da
Semana em si. Tanto que todo transtorno do fiasco quanto a série de prolongados
ataques acaba corroborando a disseminação dos ideais, mais do que apenas das ideias
inauguradoras da Semana.
De modo geral, os artigos apresentam duas vertentes: a do entusiasmo dos “semideuses,
bárbaros e modernos”, sonhando uma “renascença paulista” e a condenação absoluta
dos adversários daquele “delírio coletivo a acometer um grupo de intelectuais
empolgados por um capricho passageiro”. Assim, temos, de um lado, a defesa
apaixonada da Semana de Arte de Moderna e da nova era literária e artística por Mário
de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Sérgio Millet, Sérgio Buarque. E,
do outro lado, não menos apaixonadamente, porém contra, os ataques de Mário Pinto
Serva, Galvão Muniz, Oscar Guanabarino e Plínio Salgado.
Se por um lado, os apelos de modernização talvez exigissem, em nome da eficácia de
seu objetivo, e até pelo enfrentamento de uma tradição já canonizada, devidamente,
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constituída numa espécie de herança cultural, uma posição mais agressiva e veemente, o
que foi lido como arrogância. Por outro lado, os adversários, interessados na
manutenção dos cânones artísticos e culturais, no bônus dessa herança que se transmitia
como se nunca fosse ser questionada um dia, levaram ao extremo, a suposição dessa
arrogância, dessa agressividade do próprio movimento que visava mudança radical no
jeito de fazer, de interpretar, de criticar e de reler o patrimônio cultural e artístico do
país. Ora, não provocasse nada, tivesse sido toda morna, meiga e comportada, a Semana
teria sido pior do que o fracasso absoluto de que foi vítima, não teria existido. Não teria
movido absolutamente nada na cultura brasileira.
Portanto, o futurismo que os modernistas queriam, ainda que inspirado no ideal de
ruptura com o passado, não se quis, aqui, destruição alguma do passado. Antes,
postulava apenas, como esclareceria Oswald de Andrade, “um futuro construtor, em
oposição à decadência melodramática do passado de que não queríamos depender”
(ANDRADE, apud BOAVENTURA, 2000, p.108).
Um aspecto relevante desse conjunto de textos é a fonte – o jornal. Uma ampla
discussão de arte, literatura e cultural brasileira que se inaugura e se faz pelos jornais.
Pode-se se dizer que exclusivamente pelos jornais, que são a memória mais profícua a
que as consequências, obrigatoriamente, continuariam voltando. Uma discussão toda ela
disseminada em jornais, a princípio de São Paulo e Rio de Janeiro, pela territorialidade
próxima do núcleo dessa discussão. Mas que se espalha também pelo interior, pelas
folhas literárias e culturais do interior, de uma maneira silenciosa, por vezes, sem o
galhardo, o sarcasmo, a violência e a força demonstradas na Semana de 1922.
Entretanto igualmente firme e veemente. Uma vertente esquecida e silenciada dessa
discussão ainda sem tempo exato de cessar no âmbito da cultura brasileira. Permanece
legada à poeira, à solidão, ao amarelamento, aos odores que habitam as inúmeras folhas
que compõem acervos de jornais imprescindíveis aos estudos do modernismo que
mantém dobras quase que absolutamente desconhecidas, praticamente um século depois
de 1922. Como o caso específico de São João del-Rei que não fica, nunca ficou à
margem desse palco de dramatização de uma das principais peças do patrimônio
histórico, artístico, literário e cultural desse país e mantém em seus acervos não mero
registro da passagem de caravana de modernistas, mas um marco importante e de
consequências mal conhecidas para a compreensão e o entendimento do próprio
modernismo, do que ele foi capaz de provocar, de produzir fora, para além do adro do
Teatro Municipal de São Paulo, para depois de 1922.
A caravana de modernistas que aqui esteve em 1924 e que o jornal A Tribuna (1914-
1938) noticia em suas páginas, com exclusividade, dadas as pesquisas empreendidas por
todos os outros jornais de circulação na época compreendida entre janeiro de 1919 e
janeiro de 1938, não se trata de uma mera passagem como se tudo tivesse silenciado
após a passagem da caravana, ainda em meio aos barulhos que persistem ameaçadores.
Também, não foi à toa, como um mero passeio sem pretensões que os modernistas
vieram a Minas Gerais, iniciando-se por São João del-Rei, exatamente na contramão da
mais grave acusação de que o movimento era alvo – a destruição do passado. Como não
foi à toa, ou por “deboche” que por aqui por Minas, e São João del-Rei novamente
estiveram de outras vezes. Andando, como Mário de Andrade disse “em busca de arte e
de passado” (ANDRADE, 1993, p.158). Vieram, pois, os modernistas, ver, sentir,
conhecer, estudar o passado, porque pretendiam superá-lo, não destruí-lo.
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Se o modernismo, confundido com futurismo tanto incita os ânimos na imprensa
paulista e carioca, com ataques veementes contra os ideais de uma nova era literária,
aqui, em São João del-Rei, haja vista que se defenderia, em tese, como fundamento da
nova estética, a destruição do passado, e o passado se constituindo no maior patrimônio
cultural da cidade, e o próprio jornal A Tribuna mantinha em seu programa, e esse afã
que se repete por todos os programas de quase todos os jornais que aqui foram
publicado e que ainda se publicam, explicitado em diversos de seus editorais, um
apaixonado compromisso com o patrimônio material, artístico e cultural de São João
del-Rei, não poderia, a princípio, reagir de outra forma a imprensa são-joanense.
Portanto, ela se soma à imprensa nacional, absolutamente a tempo, posto que a Semana
tinha acontecido em 1922, gritando “Verso futurista... Abaixo o futurismo!”, no artigo
de J. Brandão, de março de 1925.
Embora a imprensa são-joanense, penso, tivesse tido a chance, com a passagem da
caravana de modernistas por São João del-Rei, de entender dois anos após a tumultuada
Semana de Arte Moderna, que o modernismo não tinha nada a ver com o futurismo e
que, ao contrário de destruir o passado, os modernistas, que aqui se encontravam,
vinham a Minas Gerais em busca das fontes deste passado e de sua arte, porque se opor
ao passado exige conhecê-lo antes, profundamente.
Portanto, o artigo de J. Brandão de 1925 contra o futurismo, malgrado os ânimos ainda
acirrados pelo interior, parece-me meio na contramão histórica daquela distinção na
hospitalidade com que a caravana de modernistas foi acolhida em São João del-Rei,
regada a desfile de blocos carnavalescos, vinhos bons e discursos. Uma noitada que
marca profundamente os modernistas, em especial, Mário de Andrade que recomenda a
Manuel Bandeira São João del-Rei, em resposta à carta de 2 de janeiro de 1928, em que
Manuel Bandeira conta a Mário de um projeto de viagem às cidades históricas de Minas
Gerais, incluindo São João del-Rei. Viagem que entre acertos e falhas, Manuel Bandeira
faria no final de fevereiro de 1928 (MORAES, 2001, p. 371-394) e até agora pelas
pesquisas teria passado sem nenhum registro na imprensa de São João del-Rei. Ou seja,
Mário de Andrade e Manuel Bandeira trocam impressões dessas viagens a Minas Gerais
de janeiro de 1928, quando Manuel Bandeira revela a Mário a intenção da viagem, até
junho de 1928, quando Mário diz a Manuel Bandeira que fora incluído por José
Mariano numa nova caravana a Ouro Preto, custeada pelo Governo de Minas.
3 – A Tribuna
A Tribuna começa a circular em São João del-Rei no dia 26 de julho de 1914 com o
título em caixa alta: A Tribuna:“Semanário noticioso, literário, humorístico e
ilustrado”, sob a direção de seus fundadores: Tancredo Lisboa Braga (funcionário da
Diretoria dos Correios), João Jeunon Júnior (comerciante) e João Viegas Filho
(estudante de Farmácia em Ouro Preto). Circula quase ininterruptamente entre 1914 a
1938. Trata-se do primeiro jornal ilustrado de São João del-Rei e era impresso na
Gráfica Garcia, no Rio de Janeiro, em quatro páginas de papel acetinado, medindo 48
cm de comprimento por 34 cm de largura, sendo que a partir do quarto número passa a
ser impresso em papel comum, devido os preços e as dificuldades causadas pela guerra
europeia. A Tribuna compreende duas fases: a primeira, de 1914 a 1920, fase do
idealismo lisonjeador, no sentido de que se acreditava no progresso da cidade, que
haveria ser resgatada junto à fé otimista no homem e na paz; a segunda, de 1920 a 1938,
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fase da maturidade, da fundamentação do programa, da conquista de espaço e de
credibilidade (LIMA, 2004, p. 76-83).
A diagramação d‟A Tribuna distribui os elementos da seguinte forma: a primeira página
traz no alto o título e o subtítulo do jornal e logo abaixo o número da edição, o ano de
publicação, o local, a data, constando dia, mês e os artigos dispostos em cinco colunas
verticais, por vezes, apresenta uma sexta coluna.
A primeira página é o palco das notícias mais importantes. Nela se encontra um
panorama sobre a cidade – administração pública municipal, eventos religiosos, cívicos,
políticos, militares e culturais, como o carnaval, a semana santa, bem como artigos
sobre educação, discursos, alguns ensaios sobre literatura e arte e o editorial, que não
aparece em todas as edições. Aparecem também nessa página poemas e crônicas de
colaboradores de São João del-Rei e de outras cidades, quase sempre autores
consagrados. E a ilustração que é a inovação do jornal, sempre retratando
personalidades da vida política de São João del-Rei e de projeção em Minas Gerais.
Posteriormente, figuram também moças e artistas de famílias tradicionais de São João
del-Rei.
A segunda página se constitui no espaço de notas sociais. Aliás, traz o título em
destaque “Chronica Social”, que se transforma logo após a quinta edição em “Notas
Sociais”, que permanece até a última edição do jornal. Registram-se nessa página lista
de aniversariantes da semana, comentários de recepções, notas de falecimento, avisos de
cultos e celebrações religiosas, e a coluna “Instantâneos/Perfis”, assinada por P.Tronio,
tratando de um olhar quotidiano poeticamente romantizado sobre a cidade e sua gente,
em especial sobre as moças, numa visão assexualizada e divinizadora da mulher.
Publicam-se também os avisos sobre Teatro, que mantinha sempre alguma peça em
cartaz ora no Teatro Municipal, ora no Teatro Artur Azevedo, os recitais de piano, as
exibições da orquestras Ribeiro Bastos e Lira Sanjoanense, com objetivo de incentivar e
divulgar um turismo que se interesse cada vez mais pelo patrimônio cultural de São
João del-Rei.
A terceira página é reservada à publicação de atos oficiais da Câmara Municipal, como
balancetes, resumos de obras em andamento ou finalizadas no perímetro urbano e nos
Distritos, prestações de contas – o jornal antecede muitos anos antes da legislação
pública moderna, criando em São João del-Rei a cultura da transparência e da prestação
de contas do serviço público que hoje é exigida por uma legislação rigorosa. Nela se
inicia, conforme a diagramação que varia de uma edição para a outra, os anúncios
publicitários.
A quarta página é exclusivamente dedicada aos anúncios publicitários dos órgãos do
comércio e de empresas que patrocinavam a edição do jornal.
A Tribuna tinha uma tiragem de 2000 exemplares por edição, que eram distribuídos
entre assinantes, órgãos públicos e a população. Além de São João del-Rei, o jornal
chegava a Belo Horizonte, Barbacena, Lavras, Juiz de Fora, Mariana, Ouro Preto, Ponte
Nova, Rio de Janeiro e São Paulo. O que comprova a relevância desse jornal do interior
de Minas Gerais cuja circulação teve sempre como objetivo a divulgação de São João
del-Rei como uma cidade importante em Minas Gerais e para o país, constituindo-se
num centro cultural imprescindível à história, à literatura, à arte e à cultural brasileira.
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Ainda que não se constitua numa inovação, mas A Tribuna é um dos jornais de São João
del-Rei que não apenas cria espaço na imprensa são-joanense para noticiar a publicação
de textos escritos por mulheres, na imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, como
mantém entre seus colaboradores mulheres que passam a escrever permanentemente
para o jornal, como Gilka Machado Vargas, Inimá, Maria Coelho Pacheco, Regina
Guerra, entre outras cuja publicação ocorreu com menos frequência.
O estudo da recepção do modernismo na imprensa de São João del-Rei, como as
pesquisas demonstram, tem seu fundamento em dois artigos e numa correspondência
publicadas pelo jornal A Tribuna. Sendo dois artigos diretamente relacionados ao
impacto que as ideias e os ideais do modernismo causaram na imprensa são-joanense,
um de 24 de abril de 1924, o outro de 5 de março de 1925 e uma carta endereçada à
redação do jornal em 16 de janeiro de 1938.
4 – A recepção do modernismo na imprensa são-joanense
Assim, em 24 de abril de 1924, A Tribuna publicava em sua primeira página:
Palmo e meio
T.B1
Em conseqüência da sobrelevante honra concedida por D.
Helvécio, a suprema autoridade eclesiástica de Minas, de
pontificar aqui nas festas da Semana Santa, a cidade esteve cheia
de forasteiros.
Dentre grande número de visitantes ilustre, sem falar nos
conterrâneos residindo fora da terra natal – é preciso que
registremos mui desvanecidos a visita feita a São João del-Rei
por um grupo de artistas e intelectuais que aqui vieram para
assistir aos atos sacros e admirar as antigas belezas
arquitetônicas de nossa cidade.
Senhora Olívia Guedes Penteado, dama da mais nobre distinção,
figura luminar da alta aristocracia paulista. Senhorinha Tarsila
do Amaral, pintora, alma de verdadeira artista, de rara e perfeita
beleza. Blaise Cendrars, nome popular em França, o que vale
dizer em todo mundo, considerado um dos maiores intelectuais
parisienses. Espírito jovial, boêmio e sonhador. Cinco anos de
guerra. Um fuzil alemão inutilizou-lhe o braço. Dr. René de
Castro Thiollier, redator do “Jornal do Comércio de São
Paulo”, autor do livro Senhor Don Torres. Dr. Oswaldo de
Andrade, literato, jornalista. Publicou o livro Condenados. Dr.
Mário de Andrade, redator do “Correio Paulistano”, professor
do Conservatório de São Paulo, autor de Paulicéia Desvairada.
1 T.B – Trata-se das iniciais de Tancredo Lisboa Braga, fundador e diretor do jornal A Tribuna, junto com
João Jeunon Júnior e João Viegas Filho.
10
Gofredo Telles, jornalista, escritor. Tem publicado os livros Mar
da Noite e Fada Nua.
Esta plêiade de pensadores e homens de letras são, com Graça
Aranha e Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro e Paulo Prado,
em São Paulo, os introdutores no Brasil do chamado
“movimento literário”, essa coisa nova, ultra-original e esquisita
também, conhecida por “futurismo” que conseguiu suplantar o
simbolismo e o cubismo. São eles os organizadores da “Semana
de arte” que tanto sucesso tem causado na paulicéia.
Essa cidade, hospedando gente de tão alta estirpe mental, sente-
se vaidosa, desvanecida, principalmente porque saíram
encantados, levando a melhor impressão, “croquis” e fotografias
para contar lá fora, nas folhas paulistas e francesas as nossas
grandezas. São João del-Rei falada em Paris. Que ponta!
(A Tribuna, ano X, n.537, 24 de abril de 1924)
Esse artigo se reveste de uma pluralidade de significado. Primeiro, por se somar aos
traços que marcam o itinerário do modernismo numa vertente que, por testemunhar a
andança, a visita e os estudos dos modernistas fora do centro de onde a Semana de Arte
Moderna tinha acontecido e ainda se desdobrava em consequências para as margens
distantes do Teatro Municipal de São Paulo, far-se-ia dessas margens, desses bastidores,
até então desconhecidos do modernismo, que nem modernismo se sabia ser, que se
nega, por vezes, como modernismo, para o núcleo de próprio modernismo.
Segundo, porque o artigo no âmbito dessa leitura deixa de valer apenas pela
exclusividade da publicação feita pela A Tribuna para se revestir de uma importância
fundamental para a imprensa de São João del-Rei, que demonstra, até mesmo em função
de uma análise conjunta de todos os artigos e matérias publicada nessa edição nº537, de
24 de abril de 1924, a sintonia dos jovens diretores de um jornal do interior de Minas
Gerais com um eventos artístico e cultural desse país e que se transformaria ao longo da
história, embora contestado por alguns, no principal evento da cultura artística e literária
brasileira. Aqui, em São João del-Rei, a imprensa estava conectada aos andamentos das
discussões artísticas e literárias que estavam em cena em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O artigo não apenas cita nominalmente cada um dos componentes da caravana dos
modernistas, como descreve, com detalhe que mescla características pessoais e
identificação profissional e especialização de cada um dos componentes, inclusive
citando obras escritas, pintura e a participação no jornalismo paulista.
Terceiro, por se tratar a primeira página onde o artigo foi publicado, do espaço das
notícias consideradas mais importantes, ao lado da notícia de pontificação da semana
santa em São João del-Rei pela autoridade máxima do Arcebispo Dom Helvécio e das
últimas informações sobre a celebração do 21 de abril, data cívica relevante para São
João del-Rei, por causa de Tiradentes, cujo local de nascimento tem como território a
Fazenda do Pombal, numa espécie de rede territorial que envolve os Municípios de São
João del-Rei, Tiradentes e Ritápolis (SACRAMENTO, 2005), a imprensa de São João
del-Rei dá destaque à visita dos modernistas que reúne na cidade uma “plêiade de
pensadores e homens de letras”.
11
Quarto, por demonstrar pleno conhecimento da representação desses visitantes para a
arte, a literatura e a cultura brasileira, quanto para a inserção de São João del-Rei no
âmbito das discussões provocadas pelos ideais dos modernistas, reconhecendo-os, por
um lado, como “os introdutores no Brasil do chamado movimento literário”, esse ânimo
de inovação sempre acompanha e caracteriza os programas das chamadas “folhas
literárias” que compõem a imprensa são-joanense. E, por outro lado, de modo sucinto,
porém, com extrema clareza e pertinência crítica, determinando uma posição crítica do
jornal sobre o movimento: “essa coisa nova, ultra-original e esquisita, também,
conhecida por futurismo”. Como se vê, aqui, também se repete a mesma confusão que
persistia na recepção do modernismo na imprensa nacional, porquanto se confunde
futurismo com modernismo.
Quinto, o artigo encerra, ressaltando o êxito para os modernista que “saíram daqui
encantados, levando a melhor impressão, croquis e fotografias” e para São João del-Rei,
uma vez que os visitantes vão “contar lá fora, nas folhas paulistas e francesas a nossas
grandezas”.
Portanto, a somas de todos esses elementos, mais a produção poética de Oswald de
Andrade, a pintura de Tarsila do Amaral, a crítica histórica e estética de Mário de
Andrade, todos, a partir de 1924, eivados da história e do patrimônio cultural de São
João del-Rei corroboram o conjunto que dá a dimensão de que a recepção do
modernismo na imprensa de São João del-Rei marca efetivamente a própria recepção do
patrimônio cultural de São João del-Rei, de Minas Gerais no destino do modernismo
como um dos principais movimentos de história, arte e cultura brasileira. Além de
ressaltar que, ao contrário do que os adversários do modernismo queriam fazer crer, os
modernistas, em absoluta distinção dos ideais radicais do futurismo de Marinetti, não
queriam destruição alguma do passado, antes, andaram por Minas Gerais em busca de
arte e do passado, para conhecê-lo. A superação, a rejeição do passado é por apenas não
repeti-lo indefinidamente sem crítica, sem originalidade, sem personalidade de que tanto
a história quanto a criação artística e literária precisam.
São João del-Rei maravilha os modernistas por lhes apresentar o ideal estético, artístico
e cultural que buscam nessas andanças por essas trilhas fora do caminho oficial da arte
moderna que nascia. São João del-Rei, que abre o caminho dos modernistas por outras
cidades de Minas Gerais, como Congonhas, Ouro Preto e Mariana, oferece aos
modernistas o que vieram buscar – arte e passado, numa lição silenciosa, mas de
encantamento pela relação intrínseca que sempre houve nela entre a tradição e a
modernidade. O passado lançando luzes à construção do presente.
Cabe ressaltar que A Tribuna traz na segunda coluna da segunda página uma nota acerca
de um festival de blocos “Mi-Carême”, vencido pelo bloco Custa mais vai, e que a
diretoria do bloco oferece uma recepção onde “foram servidos vinhos finos e cerveja
aos representantes da imprensa e da sociedade carnavalesca, bem como à missão
artística que nos visitou”. Ou seja, ao término das festividades da Semana Santa,
posterior às celebrações de 21 de abril, um festival de blocos carnavalescos – São João
del-Rei, um espaço plural em que o sagrado e o profano, a fé e o carnaval, a memória e
a construção do presente, o passado, a tradição, a história e a cultura moderna tudo
convive num mesmo palco. Não há qualquer destruição do passado, antes, ele se torna
num elemento fundamental da própria implantação da modernidade. A nota ainda
12
ressalta “...missão artística que nos visitou”. Não vieram, aqui, à toa os modernistas,
mas em missão – buscar arte e passado e o encontraram por todos os lados de São João
del-Rei, de uma forma que apenas São João del-Rei, Minas Gerais, podia conceder ao
modernismo.
Assim, o modernismo que se faz depois dessas visitas a Minas Gerais ganha um
contorno, uma identidade que se tornará característica do modernismo brasileiro, por
acrescentar à identidade paulista, repleta dos vestígios das vanguardas europeias, essa
marca da arte e do passado de Minas Gerais.
No entanto, em meio ao desvanecimento e à vaidade de São João del-Rei por hospedar
“essa gente de tão alta estirpe”, em 5 de março de 1925, portanto, um ano após a visita
da caravana de modernistas, A Tribuna, publica na primeira página, da edição nº627,
uma espécie de manifesto anti-futurista, assinado por J. Brandão:
Verso Futurista... Abaixo o Futurismo!
J. Brandão
Abaixo a arma perigosa daqueles que, desprotegidos da prenda
espiritual que lhes fora negada pelas potências arqui-divinas,
procuram pô-las em prática contra a rainha excelsa das
sinfonias cadenciadas: – a métrica, embarcação capaz de
conduzir no bravio oceano da realidade, e também da fantasia,
anjo tutelar dos templos de Polymnia – a poesia!
Esses incapazes, empurrados pelo desejo ardente de uma
composição versificada, embrenham-se, audaciosamente, pela
trilha barulhenta onde se encontra instalado a palacete do já
célebre futurismo.
Esse hipotético “rei da elegia hodierna” pensa em penumbrar a
humanidade experimentada, que se não cansa de gritar por todos
os povos: Abaixo o “pé-quebrado”! Abaixo o intrujão! Abaixo o
pseudo transformador dos cânticos autênticos, expelidos pelos
lábios alcanforados das deusas que residem no pantheon das
graças – imortalizadas pelos sons eólicos das harpas melodiosas
que lhe servem de guia – quando sobre suas cabeças desce esse
misterioso e sobrenatural dogma instituído na arquipotente
métrica: os sons cadenciados pelas sílabas tônicas que vêm ferir
o ouvido daqueles contemplados pelo ideal e infusos a esse
recurso pulveráceo, surgido das entranhas artimanhosas da
vetusta inveja!
Abaixo o futurismo! – é o estribilho do universo em peso!
E eles, os adeptos, os perseguidores e incapazes de reproduzir
em estrito verso, prosseguem, na mais viva esperança de enlutar
o paraíso aquático, onde os cisnes de plumagem alva adormecem
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embalados aos sonoros cânticos metrificados pelos lábios
purpurinos das sereias!...
Abaixo o futurismo! É o grito irresistível que se ouve de norte a
sul!
( A Tribuna, ano XI, n.627, 5 de março de 1925)
O primeiro aspecto que logo se destaca, numa leitura em conjunto de ambas as
publicações, é o de uma aparente contradição entre o desvanecimento e a vaidade de
1924, época da recepção da caravana de modernistas, e 1925, época da recepção da
estética modernista, de modo absolutamente claro, na linha de confusão entre futurismo
e modernismo que acirrara os ânimos da imprensa paulista por ocasião da Semana de
Arte Moderna. Aparentemente, porque voltando ao texto de 1924: “... introdutores no
Brasil do chamado “movimento literário”, essa coisa nova, ultra-original e esquisita
também, conhecida por “futurismo” que conseguiu suplantar o simbolismo e o
cubismo”, notamos que em meio à hospedagem que se envaidecia com a vista dos
intelectuais, já o autor, Tancredo Braga, aponta para uma crítica sucinta, pouco
consistente, certamente em função de um domínio ainda preliminar de todo programa
modernista, porém, visível – essa coisa nova, ultra-origina, e esquisita também. O
primeiro esboço crítico parece se perder no meio do desvanecimento pela recepção dos
intelectuais, cuja ideia ainda não foi devidamente apreciada. Por este lado, o artigo de
1925, de J. Brandão, não se mostra incoerente, apenas, passado um ano da visita dos
modernistas e três anos da Semana de Arte Moderna, a imprensa de São João del-Rei,
retoma o tema da estética modernista, confundida ainda com o futurismo para uma
análise mais profunda.
Segundo aspecto, esse artigo, faz eco com a visão da Semana de Arte Moderna pelos
seus contemporâneos, porquanto reproduz a voz do mesmo acirramento que ocorrera na
imprensa paulista em 1922. Incapaz de distinguir futurismo de modernismo. Mesmo
São João del-Rei tendo lançado luzes, no ano anterior, à vertente de um modernismo
com a características especificamente brasileiras, a de uma multiplicidade que faz
conviver na arte, na literatura, na cultura brasileira o passado, a tradição e a
modernidade, a leitura, a interpretação, a estética moderna, ainda assim, agora,
contraditoriamente, rejeita-se essa nova era literária, artística e cultural, como alguma
coisa que vem destruir, anular, absolutamente tudo foi feito até então em literatura, arte
e cultura.
Há de se notar no futurismo um grande contingente de
ingenuidade. Espíritos fracos que, por insuficiência mental, não
compreendem a substância da arte eterna, incapazes de atingir a
espiritualidade dos grandes gênios, atiram-se ao futurismo na
ilusão, em que se encontram, de serem gênios incompreendidos.
(SERVA, apud BOAVENTURA, 2000, p. 214).
O futurismo é a arte no avesso, estilizada com a mão canhota e
deformada a golpes de audácia e de cavação (...) ninguém
conseguiu penetrar nas intenções macabras desse carnaval da
pintura, dessa literatura mômica e desses versos cambaios com
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fumaças de arte e que não passam da zabumba rimada à custa de
fórceps. (CASTRO, apud BOAVENTURA, 2000, p. 231-232.)
Em música são ridículos; na poesia são malucos e na pintura são
borradores de telas. (GUANABARINO, apud BOAVENTURA,
2000, p.259).
...o uivo da besta encheu de tal maneira a atmosfera beatífica
onde os deuses do passado dormiam o seu quieto sono que até os
Joves pesadões da crítica, que dormitavam encostados aos seus
relâmpagos de latão, vieram à beira do abismo espiar o barulho.
(PAUCI, apud BOAVENTURA, 2000, p.270).
Comparando o artigo de J. Brandão com esses fragmentos de alguns textos dos
adversários do modernismo que insistiam em lê-lo com futurismo, fica claro o permear
de vozes semelhantes na rejeição da nova era literária como “esse abscesso de
futurismo” (ELECTI, apud BOAVENTURA, 2000, p. 249). O que corresponde ao
lastro de metáforas do texto de J. Brandão, como desvairismo, penumbrismo,
alucinação, desordem, rompimento radical com o passado, vetusta inveja para qualificar
a nova estética com um abscesso da arte, da literatura e da cultura brasileira. Portanto,
um movimento que devia ser rechaçado do cenário artístico, literário e cultural.
Terceiro, enquanto Mário de Andrade diz:
Depois do pranto de todo um século romântico, “coroado” nos
espinhos duma guerra tremenda, queremos rir e livremente rir!
Batem os sinos! É sábado de Aleluia! Não me pesa ser o Judas
desse sábado, contanto que me deixem sorrir aos leitores d’A
Gazeta, no dia em que refloresce para mim o terno idílio.
(ANDRADE, apud BOAVENTURA, 2000, p. 42).
A imprensa são-joanense defende como poesia a permanência dos cânones simbolista,
parnasiano e romântico. Arte, cultural e, sobretudo, poesia para ser feita quase que
exclusivamente à luz de conceitos como inspiração, “prenda espiritual”, metrificação,
rima, sílabas expelidas pelos lábios de “alcandoradas deusas”. Algo quase impossível ao
humano. Uma arte toda ela embevecida do “pranto de um século romântico”. Poesia
compreendida e feita com uma linguagem etérea, como um pablo sagrado e imortal das
deusas, e não um produto cultural e humano.
Contra essa fatura de lirismo descomedido é que o modernismo impõe nova estética, a
estética da liberdade e da libertinagem do poético e do poeta, que procura, que precisa
rir, rir livremente. Um riso que coagule o pranto de séculos. Nesse sentido é que a busca
pela arte e pelo passado se apresentam como estratégia fundamental ao modernismo que
não quer destruir por destruir esse patrimônio, mas superá-lo, não repeti-lo. Produzir
uma arte moderna livre, com identidade própria, que nasce não da destruição do
passado, mas do conhecimento, do estudo e da superação de seus cânones.
Essa nova estética, que passada a caravana dos modernistas, retoma, ela mesmo, os
barulhos que ainda repercutem na imprensa são-joanense. É ela que fica para
testemunhar a recepção do modernismo por aqui. Que se faz em duas vertentes, uma
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que hospeda, com desvanecimento e vaidade os intelectuais modernistas, com certa
desconfiança acerca do que eles propõem para a arte brasileira. E outra que se soma às
vozes acirradas da imprensa paulista contra a nova estética, quando ela, de fato, impõe
sua própria recepção no cenário artístico e cultural.
Uma análise da produção poética que tem feito da imprensa são-joanense, sobretudo de
suas “folhas literárias” meio de veiculação, de publicação e de memória, demonstra,
que, com raras exceções, a poesia, em especial, no âmbito das artes e da cultura,
continua arraigada, senão tanto pela forma rígida de seus versos, pela escolha dos temas,
pela linguagem, pela própria concepção poética que, por vezes, constitui-se em matéria,
em objeto poético, arraigada aos cânones do parnasianismo, do simbolismo e,
sobretudo, do romantismo. O que não torna essa poesia menor, nem inferior a qualquer
outra poética, apenas a distingue no âmbito das chamadas poéticas modernas. O que por
si merece e prova a sede de pesquisá-la. De ir atrás dela, de ouvir, de sentir o ela diz.
Por último, A Tribuna publica na edição de nº1.412, de 16 de janeiro de 1938, carta de
Gilberto de Alencar, cujo fragmento destacamos:
Os modernistas dirão que isso é passadismo bolorento. Mas seria
de certo interessante pedir a eles que vivem com a boca cheia de
patrimônio e nacionalismos, seria de certo lhes pedir que nos
explicassem direitinho, como é que se pode formar uma pátria
verdadeira sem o culto ao passado.
Passadismo ou não, urge que resguardemos as nossas tradições
e os nossos costumes.
A cidade deveria ser, por isso mesmo, classificada como
monumento nacional, a fim de que a ignorância dos modernistas
não possa desfigurá-la e destruí-la.
Assim procedem os povos mais cultos e adiantados do mundo.
(A Tribuna, ano XXIV, nº1.412, 16 de janeiro de 1938).
Com um jornalismo moderno e inovador A Tribuna cria espaço em suas páginas para a
publicação de uma série de correspondência endereçada à redação. Possibilita, ciente de
que não é a dona absoluta da verdade sobre os fatos que noticia, o diálogo com o leitor,
com a população são-joanense, com o visitante, com o turista. Essa correspondência
apresenta um repertório variado: repercussão e recepção do jornal e dos acontecimentos
por ele noticiados; respostas e comentários a denúncias feitas pelos artigos; cobrança de
transparência e prestação de serviços por parte dos órgãos da administração pública, em
especial da administração pública municipal; registro de visitantes que estiveram ou
leram sobre São João del-Rei e se confessam seduzidos pela cidade, por sua história,
seu patrimônio cultural e sua gente; elogios; sugestões e exigências feitas com relação à
preservação do patrimônio histórico de São João del-Rei.
Dentre essa multiplicidade de vertentes, a carta de Gilberto de Alencar, publicada na
edição nº1.412, de 16 de janeiro de 1938, que tem como fio condutor – o abandono, a
destruição, a substituição do passado, das tradições e costumes pelo modernismo. E é
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por ele que seu texto se liga, soma-se ao eco das desconfianças, das denúncias, da
resistência, da confusão feita em relação ao modernismo.
Piccarolo (1992), em artigo publicado em La revista coloniale, deixa claro a posição
dos modernistas quanto à interpretação do passado: não defendem uma relação de
mórbida mimese, de mera submissão e repetição acrítica do passado, antes, procuram
conhecer o passado, saem em busca de sua arte, de sua história, das tradições e
costumes, não para copiá-los, mas para superá-los. Haja vista o objetivo das andanças
dos modernistas por Minas Gerais e pelo país.
Para nos liberarmos do passado não é necessário destruí-lo: é
suficiente não copiá-lo. Destruí-lo significaria não compreendê-
lo, não sentir toda a sua beleza, não interpretar sua função
histórica. E vocês, caros amigos, esta beleza sentem, vocês
entendem perfeitamente a grande ação que a arte, a verdadeira e
grande arte de todos os séculos exerceu sobre todas as épocas
[...]. Destruir o passado, de resto, para substituí-lo por uma arte
nova significaria colocar-se contra a mais indestrutível das leis
eternas da natureza: as leis do devir [...]. Mas para superá-lo é
necessário estudá-lo e conhecê-lo, o que não se poderia fazer se
o destruísse.
(PICCAROLO, apud, BOAVENTURA, 2000, p. 96).
Gilberto defende, ainda, a classificação de São João del-Rei como monumento
nacional, para que “a ignorância dos modernistas não possa desfigurá-la, destruí-la”.
Ora, toda essa desconfiança que se configura não apenas na imprensa são-joanense,
porque ao publicar a carta, A Tribuna torna esse texto, de certa forma, eco de sua
própria voz, mas na imprensa nacional, trata-se de uma recepção eivada de dúvidas
acerca da verdadeira intenção, do pensamento, da arte e do destino que os modernistas
dariam ao patrimônio cultural herdado do passado. Essa reação permanece dezesseis
anos após a Semana de Arte Moderna. Como ainda, hoje, noventa e um anos depois da
Semana de Arte de Moderna, continua acirrando os ânimos e disseminando dúvidas e
desconfianças. O que comprova que o modernismo, quase um século depois, ainda não
se concluiu definitivamente.
Outro aspecto que merece destaque: todo trabalho, pesquisa, estudos, publicações,
viagens, que, sobretudo, Mário de Andrade fará ao longo de sua vida, comprovariam o
apreço que tanto ele quanto o próprio modernismo mantiveram em relação ao
patrimônio histórico, artístico e cultural do Brasil. Ressalta-se a criação, em 13 de
janeiro de 1937, portanto, um ano antes da carta de Gilberto de Alencar e da publicação
n‟A Tribuna, pela Lei 378, do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), no governo de Getúlio Vargas, por solicitação do Ministro da Educação,
Gustavo Capanema, a uma equipe, de que fazia parte Mário de Andrade, de um projeto
sobre a preservação do patrimônio artístico e cultural brasileiro com o objetivo de
salvaguardar os bens patrimoniais brasileiros (FERNANDES, 2010, p.10).
Portanto, não procede sobre os modernistas a acusação de ignorantes e, muito menos, de
destruidores do patrimônio nacional. Pelo contrário, a pesquisa, o estudo, a preservação
e a divulgação do patrimônio artístico e cultural brasileiro, incluindo a diversidade dessa
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cultura que varia, multiplica-se e se distingue em cada região, tornou-se numa das
vertentes mais caras aos modernistas.
5 – O enigma do “deboche” dos modernistas
Da época da visita dos modernistas, 1924, conta ainda uma anotação, que Mário de
Andrade fez de próprio punho no livro de registro do Hotel Macedo onde se
hospedaram em São João del-Rei e transcrevera para o seu arquivo, onde segundo
Lopez (2008) se destaca o “claro riso dos modernos”.
D. Olívia Guedes Penteado, solteira, photographer, anglaise,
London; D. Tarsila do Amaral, solteira, dentista, americana,
Chicago; Dr. René Thiollier, casado, pianista, russo, Rio; Blaise
Cendrars, solteiro, violinista, allemand, Berlin; Mário de
Andrade, solteiro, fazendeiro, negro, Bahia; Oswald de Andrade
Filho, solteiro, escrittore, suíço, Berne; Oswald de Andrade,
viúvo, escolar, holandês, Rotterdan.
(LOPEZ, 2008, p. 1).
O hotel não existe mais, como também não foram encontrados os livros do acervo do
hotel. No entanto, como o próprio Mário de Andrade tinha transcrito a anotação para
seu arquivo, futuramente, quando das pesquisas e estudos do acervo de Mário de
Andrade, esse registro se torna público, como outros vestígios dessas visitas dos
modernistas por Minas Gerais, em especial, e pelo país continuam sendo revelados.
Considerando o teor do texto, penso que pelo que pelo menos duas leituras podem ser
feitas: a primeira, associando-se a um fragmento do poema “Noturno de Belo
Horizonte”, que fora escrito por Mário de Andrade também em 1924, quando de sua
visita a Belo Horizonte, é lida por muitos são-joanenses como um deboche de Mário de
Andrade à cidade de São João del-Rei, à arte e ao passado que aqui vieram buscar,
viram e levaram ou viram e não gostaram, salvo raríssima exceção – São Francisco de
Assis. Como se a cidade que os recebeu com “desvanecimento” e “vaidade”, como
registrara Tancredo Braga, no artigo d‟A Tribuna de 1924, e o povo são-joanense que
inclusive levou a todos os modernistas para o “Mi-Carême”, o festival de blocos
vencido pelo “Custa mas vai” quando lhes serviram vinho bom, cerveja e discurso, na
verdade não passava de um caiporas sem nenhum ou com pouca noção de arte, onde o
próprio Theatro Municipal, um teatro grego, em toda sua imponência histórica, que mal
viu, mal entendeu, não passava de uma inutilidade nesse canto do país onde jamais seria
encenada uma peça de Eurípedes. Neste aspecto, os modernistas que diz vieram em
busca de arte e de passado, chegaram como eram acusados pelos opositores da Semana
de Arte Moderna, muito arrogantes, precisando sim, de arte e de passado, porém, sem
humildade suficiente para entender a própria multiplicidade como fundamento da arte
moderna. Esse “deboche” faria, portanto, eco com o artigo de 1925 de J.Brandão que
um ano após a visita registra explicitamente a estética moderna, nesse estranhamento
produzido na recepção do modernismo. Por esta razão até hoje (SACRAMENTO,
2003) anda certa mágoa com os modernistas, em especial contra Mário de Andrade por
esse suposto deboche da arte, da cidade e do povo são-joanense lido nesse conjunto de
textos.
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Em Cataguases, por exemplo, onde não esteve nenhuma caravana, mas de modo
peculiar, no interior de Minas Gerais, chegara o modernismo, a recepção foi marcada
desde o primeiro momento, haja vista, a trajetória histórica da revista Verde (1927) por
um indiferentismo em relação às ideias e aos ideais modernistas tanto de São Paulo e
Rio quanto do exterior. Fizeram, como disseram os moços do grupo Verde (ÁVILA,
2011, p.4-5) o seu modernismo verde. Numa afronta, a princípio, aos que se impunha
daqui pr‟ali como os inventores, os donos e os tutores de arte moderna. Se riram desse
modernista verde, receberam também em troca o riso de indiferença dos modernistas de
Cataguases. Tanto que Ribeiro Couto (1927, p. 15) „”...por enquanto ainda não sabemos
o que queremos, sabemos tão só o que não queremos”. E, então, quando começara a
receber artigos para a revista e elogios, achavam também que era deboche, e não era.
Por outro lado, lida a anotação de Mário, escrita no livro de registro do Hotel Macedo,
mais o fragmento do poema “Noturno de São Belo Horizonte”, mais essa mesma
sensação de deboche sofrida pelos modernistas da Verde, de Cataguases, por parte dos
modernistas de São Paulo e mais uma passagem de um artigo de Mário de Andrade:
Depois do pranto de todo século romântico “coroado” nos
espinhos duma guerra tremenda, queremos rir e livremente rir!
Batem os sinos! É sábado de Aleluia! Não me pesa ser o Judas
desse sábado, contanto que me deixem sorrir, no dia em que
refloresce para mim o terno idílio.
(ANDRADE, apud BOAVENTURA, 2000, p. 42)
Portanto, sem o peso de quaisquer interpretações, sobretudo contra a recepção com que,
não as ideias, mas a comitiva, foi recebida, podemos concluir que de forma alguma
Mário de Andrade teria debochado de São João del-Rei, de sua gente, de sua arte e de
seu patrimônio cultural. Encontrara em Minas o alívio da “guerra” enfrentada pelos
modernistas desde 1922.
Neste aspecto, Álvaro Moreyra (1928) tinha razão, quando afirma em artigo, escrevendo
sobre o Grupo Verde, de Cataguases, que:
O mal do movimento chamado modernismo foi o desaforo do
começo. Numa terra que usa tanto de revoluções, ninguém sabe
para que um motim inteligente, de fins esclarecidos, provocou
repulsa...
(MOREYRA, 1928, p. 10)
Além do mais, Mário em sua correspondência com Manuel Bandeira, (MORAES, 2001,
p 371-394) em diversas cartas, trocadas com o amigo após sua visita a São João del-Rei
sempre se refere respeitosamente ao patrimônio cultural da cidade, tendo recomendado
a Manuel Bandeira em 1928, a incluí-la no rol das cidades mineiras que ele também
visitar. Tendo estendido essa distinção aos mineiros que ele diz fazendo um comentário
a uma anotação de Manuel Bandeira, que “sobre os mineiros você inteiramente razão.
Estou convencido de que são a coisa mais séria e mais digna de se observar no Brasil
literário de hoje” (ANDRADE, apud, MORAES, 2001, p. 250).
Assim, primeiro, a passagem “Teatro grego em São João del-Rei/Onde jamais
Eurípedes será encenado” (ANDRADE, 2011, p.212), não pode ser extraída do corpo da
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estrofe para ser lida isoladamente, sob o risco de perda do contexto integral do verso,
aliás de todo poema, até porque na estrofe anterior o poeta diz, sem nenhuma ironia
“Minas progride!”:
Afinal Belo Horizonte é uma tolice como as outras.
São Paulo não é a única cidade arlerquinal.
E há vida há gente, nosso povo tostado.
O Secretário de Agricultura é novo!
Fábricas de calçado.
Escola de Minas no palácio dos Governadores.
Na Casa dos Contos não tem mais poeta encarcerados,
Divinópolis possui o milhor chuveiro do mundo,
As cunhas não usam mais pó de oiro nos cabelos,
Os choferes avançam no bolso dos viajantes,
Teatro grego em São João del-Rei
Onde jamais Eurípedes será encenado...
Ninguém mais pára nas pontes, Critilo,
Novidadeirando sobre damas casadas.
Tenho pressa! Ganhemos o dia!
Progresso! Civilização!
(ANDRADE, 2011, p. 212)
O que o poeta ressalta nestes versos, não pode ser lido nunca como “deboche” a Minas
Gerais e especial a São João del-Rei. É, antes, um olhar que mira o progresso que se
encanta e convoca, em versos posteriores, para o encantamento de que se acha
embevecido das coisas de Minas. Provoca, antes, que venham ver, experimentar,
testemunhar a grandeza de Minas, utilizar, no seu interior, a suntuosidade de seu teatro
grego onde Eurípedes jamais será encenado. Se não vier, se não souber, se não
experimentar, se não vier a Minas, se não trouxer a Minas Eurípedes, posto que o teatro
grego está lá.
Em carta de 30 de dezembro de1924 a Mário de Andrade, Carlos Drummond de
Andrade, acusando o recebimento do poema “Noturno de Belo Horizonte”, assim se
refere ao poema:
Recebi o “Noturno de Belo Horizonte”, seguramente o maior
esforço da poesia nacional. (Se não quiser ler, vire a página; eu
vou elogiar.) Gostei ampla, vastamente. Ele me fez crer que você
tem razão, por isso que suas idéias nacionalistas o conduziram
de maneira lógica a um poema tão rico de expressão e intenção,
em que o sentimento da terra se confunde com o puro e
desinteressado lirismo. Isto eu aplaudo, patrício! É poesia, e da
melhor qualidade. Só não é poesia (pelo menos assim o creio) o
trecho em que você prega o nacionalismo universalista, e que
podia figurar dignamente num discurso a 15 ou 19 de novembro.
Mas o resto, quero dizer, quase todo o poema, é esplêndido.
Quantas coisas descobriu você em Minas, numa viagem de
poucos dias! Tenho 22 anos e quase nada sabia disso.
(ANDRADE, 2011, p. 92-93.)
6– Conclusão
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O modernismo, “essa coisa nova, ultra-original e esquisita também”, na verdade, desde
a proximidade com 1922, ainda em 1924, 1925 e 1938, é um movimento, cujas ideias
não tinham sido entendidas e inseridas na prática artística, histórica, e cultural do país,
menos ainda na imprensa de São João del-Rei. Por isso continuava contraditória e
acirrando os ânimos de defensores e opositores do movimento, que nunca se constituiu
numa unanimidade. Os artigos da imprensa de São João del-Rei demonstram,
dramatizam essa contradição. Em 1914, quando A Tribuna foi lançada, logo no seu
primeiro editorial, defende o abandono, a substituição, a superação dos programas
jornalísticos passados em nome de programas modernos com que ela passa a fazer o seu
jornalismo – adere, inova, moderniza-se lá e desconfia-se aqui.
Por outro lado, essa desconfiança e essa distinção entre a recepção dos modernistas e a
recepção do modernismo, demonstra a pertinência crítica do jornalismo realizado na
imprensa de São João del-Rei, que mesmo em se tratando de uma cidade longe do
centro de São Paulo e do Rio de Janeiro onde o modernismo nascera e chegara de
imediato e até de Belo Horizonte, onde muitos jornalistas, poetas e escritores de São
João del-Rei iam em busca de contato e de conhecimento dessas ideias, mostra-se firme,
capaz de distinguir o homem de suas ideais. Independente o suficiente para aceitar o
homem e, mesmo que nem rejeitando de todo suas ideias, pelo menos se desconfiando
delas, questioná-las, por vezes, colocando-se, claramente, contra.
O modernismo nunca foi uma unanimidade nem na imprensa, nem na crítica, nem no
próprio meio literário. Por isso, quase um século da Semana de Arte de Moderna, que se
propõe como inauguradora do modernismo, ele permanece um movimento que não se
concluiu plenamente em todas as suas vertentes. Haja vista o desconhecimento absoluto
dessas fontes primárias relegadas ao silêncio e à poeira dos acervos, onde gritam e
clamam por investimentos, por pesquisas, por estudos, capazes de contribuir com o
entendimento do modernismo. Esperam ser contempladas com a função social da
preservação dos arquivos que é a democratização de suas fontes para pesquisa.
Preservar o patrimônio artístico e cultural é trazê-lo dos bastidores, das margens
silenciosas aonde foram relegados à luz dos estudos contemporâneos de história,
literatura, artes e cultura. Ou estaremos ainda contribuindo para a destruição tão temida
do patrimônio cultural de que se acusavam os modernistas.
Em São João del-Rei a paixão pelo passado, por toda sua história literária e cultural
mesmo dialogando com os modernistas, não se fez e não faz senão com certa
entronização desse patrimônio cultural. Por isso a desconfiança e até aversão à
possibilidade, ainda que remota e imaginária de qualquer destruição, seja ela efetiva ou
apenas cultural. Regozijo pela nova estética sempre foi muito comedido por aqui, na
imprensa, nas artes, na literatura, na cultura. Porém, sem negligenciar o diálogo com o
modernismo.
A recepção do modernismo na imprensa de São João del-Rei se fez, portanto, à
penumbra de uma resistência natural. Primeiro, pela falta de um distanciamento
histórico que permitisse uma crítica mais apurada dos ideais, das ideias e da própria
estética modernista que mal tinha chegado por aqui e que se desperta em
desvanecimento e vaidade na recepção da caravana de 1924. Segundo, por entender o
risco da perda do certo padrão político, literário, artístico e cultural já definido e lhes
garantido por essa chamada herança cultural. A multiplicidade, não inaugurada, mas
21
exposta pelo modernismo, produzia uma enorme sensação de perda de poder dos
mantenedores do patrimônio cultural. Ou seja, o novo haveria de se tornar num dos
paradoxos fundamentais da modernidade (COMPAGNON, 1996, p.13-36). Daí que na
imprensa de São João del-Rei, na arte e na literatura são-joanenses a modernidade, ou
melhor, uma modernidade se faz à revelia do modernismo, ou pelo menos daqueles
traços mais radicais da estética modernista.
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