alfredo veiga neto_ecopolitica

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208 Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, dez/2014. Universidade Federal do Rio Grande - FURG ISSN 1517-1256 Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental Revista do PPGEA/FURG-RS Ecopolítica: um novo horizonte para a biopolítica Alfredo Veiga-Neto 1 Resumo: Discutem-se os conceitos foucaultianos de biopoder e biopolítica, em termos de suas origens, usos e imbricações com a Modernidade e com a formação dos Estados modernos. Argumenta-se que a ecopolítica representa um novo horizonte e uma ampliação da biopolítica, na medida em que estende, do humano para o planetário, o papel conferido à vida. Para alguns autores, pode-se alargar a ecopolítica até mesmo para fora do nosso planeta. Em sintonia Foucault que inscreveu a biopolítica no quadro mais amplo de uma história da governamentalidade liberal , sugere-se inscrevermos a ecopolítica no marco da governamentalidade neoliberal, de modo a falarmos até mesmo em uma ecogovernamentalidade. Articulando a ecopolítica e a ecogovernamentalidade com o colapso do espaço e a progressiva desfronteirização contemporânea, sugere-se que é importante e urgente ressignificarmos o mais profundamente possível as relações entre o humano e o ambiental. Discute-se a problemática apropriação que o neoliberalismo tem feito da ecopolítica bem como o caráter controlador, autoritário, utilitarista e excludente de certas práticas e políticas dirigidas à preservação ambiental e à ecologia. São feitos comentários sobre algumas relações entre a ecopolítica e a educação. Palavras-chave:Michel Foucault, Governamentalidade, Disciplina, Biopoder, Neoliberalismo, Ecopolítica. Estamos em busca das novas categorias que podem tornar inteligíveis as destruições e as perturbações, mas igualmente as iniciativas que vivemos. Alain Touraine 2 Nunca é demais situarmos geometricamente aquilo que pensamos, dizemos e escrevemos. Questões como “quais são as bases dos nossos pensamentos”, “de onde 1 Mestre em Genética e Doutor em Educação. Professor Titular do Departamento de Ensino e Currículo e Professor Convidado Permanente do PPG-Educação, da Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre, RS. E-mail: [email protected] 2 Touraine (2009, p.12).

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alfredo

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  • 208 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, dez/2014.

    Universidade Federal do Rio Grande - FURG

    ISSN 1517-1256

    Programa de Ps-Graduao em Educao Ambiental

    Revista Eletrnica do Mestrado em Educao Ambiental

    Revista do PPGEA/FURG-RS

    Ecopoltica: um novo horizonte para a biopoltica

    Alfredo Veiga-Neto1

    Resumo: Discutem-se os conceitos foucaultianos de biopoder e biopoltica, em termos de suas

    origens, usos e imbricaes com a Modernidade e com a formao dos Estados modernos.

    Argumenta-se que a ecopoltica representa um novo horizonte e uma ampliao da biopoltica,

    na medida em que estende, do humano para o planetrio, o papel conferido vida. Para alguns

    autores, pode-se alargar a ecopoltica at mesmo para fora do nosso planeta. Em sintonia

    Foucault que inscreveu a biopoltica no quadro mais amplo de uma histria da governamentalidade liberal , sugere-se inscrevermos a ecopoltica no marco da governamentalidade neoliberal, de modo a falarmos at mesmo em uma

    ecogovernamentalidade. Articulando a ecopoltica e a ecogovernamentalidade com o colapso do

    espao e a progressiva desfronteirizao contempornea, sugere-se que importante e urgente

    ressignificarmos o mais profundamente possvel as relaes entre o humano e o ambiental.

    Discute-se a problemtica apropriao que o neoliberalismo tem feito da ecopoltica bem como

    o carter controlador, autoritrio, utilitarista e excludente de certas prticas e polticas dirigidas

    preservao ambiental e ecologia. So feitos comentrios sobre algumas relaes entre a

    ecopoltica e a educao.

    Palavras-chave:Michel Foucault, Governamentalidade, Disciplina, Biopoder, Neoliberalismo,

    Ecopoltica.

    Estamos em busca das novas categorias que podem

    tornar inteligveis as destruies e as perturbaes, mas

    igualmente as iniciativas que vivemos.

    Alain Touraine2

    Nunca demais situarmos geometricamente aquilo que pensamos, dizemos e

    escrevemos. Questes como quais so as bases dos nossos pensamentos, de onde

    1 Mestre em Gentica e Doutor em Educao. Professor Titular do Departamento de Ensino e Currculo e

    Professor Convidado Permanente do PPG-Educao, da Faculdade de Educao da UFRGS, Porto

    Alegre, RS. E-mail: [email protected] 2 Touraine (2009, p.12).

  • 209 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, dez/2014.

    falamos e para onde falamos parecem estar sempre presentes, implcita ou

    explicitamente, em nossos pronunciamentos. De uma parte, as metforas geomtricas

    nos ajudam a pensar e a explicar os solos sobre os quais se aliceram o que pensamos;

    de outra parte, tais metforas mostram por onde andam e se articulam os nossos

    pensamentos. Alis, o prprio verbo situar tem, por si s, um carter posicional; ele

    assume uma certa carga topolgica, se aqui entendermos topologia no sentido de uma

    racionalidade fundada num determinado espao enunciativo.3

    Basta um exame atento para o que consta no pargrafo anterior para logo

    vermos o quanto o discurso est preso s imagens geomtricas, o quanto estamos

    imersos em elementos topolgicos. Notem que, alm do verbo situar, me referi a os

    solos, bases, por onde, fundar e andar por. E como se tudo isso ainda fosse

    pouco, qualquer metfora carrega, em si, a imagem do transporte de um sentido, j

    plasmado num campo semntico, para um sentido anlogo, porm pertencente a um

    outro campo semntico.

    Essa rpida digresso acerca do carter topolgico daquilo que pensamos,

    dizemos e escrevemos serve de ponto de partida para que eu estabelea as duas questes

    que so bsicas para a melhor compreenso deste texto.

    Em primeiro lugar, quero marcar a regio a sobre a qual e partir da qual estou

    pensando quando componho o que segue. Essa regio situa-se no interior de um

    tringulo formado pelas minhas incurses nos Estudos Foucaultianos (o lado 1), pela

    minha formao de bilogo (o lado 2) e pelas minhas experincias com a Educao (o

    lado 3). flutuando dentro desse tringulo imaginrio ora me aproximando mais de

    um lado do que dos outros dois que eu me movo neste texto.

    Tal flutuao implica uma articulao no apenas mvel mas, tambm, uma

    articulao cujos elementos que a compem assumem intensidades e presenas

    variveis. Assim que ora o componente foucaultiano mais forte, ora o educacional

    e ora o biolgico. Desse modo, a minha abordagem e os argumentos que trago

    envolvem mais do que uma transversalidade temtica e disciplinar; trata-se, digamos, de

    uma triangulao mvel e graduvel.

    Em segundo lugar (e talvez mais importante), quero apontar para a fora que

    quero dar metfora que usei no ttulo deste texto. Ao me referir ecopoltica como um

    novo horizonte para a biopoltica, sublinho o fato de que aquela, a ecopoltica, amplia os

    horizontes e leva adiante tudo o que j foi pensado e dito sobre a biopoltica. De fato,

    3 Assumindo uma certa liberdade vocabular, tenho usado a palavra topologia para me referir a tudo aquilo a que, em maior ou menor grau, se pode atribuir algum carter geomtrico ou

    propriedade ligada a um lugar, seja numa linha, numa superfcie ou num espao. Para

    isso, me valho da associao entre os radicais gregos top (lugar, local) e logos (linguagem, enunciao de um julgamento, proposio, razo). Assim, a topologia no

    guarda, aqui, um maior compromisso com o conceito que os matemticos atribuem a

    essa palavra.

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    vrios autores tm insistido que, a partir de tal ampliao, a biopoltica pode ser

    entendida como um caso da ecopoltica, de modo que essa passa a englobar aquela.

    Frequentemente, as palavras que carregam conceitos muito relevantes e

    capazes de descrever e problematizar condies, configuraes e relaes vistas como

    importantes, so submetidas a ressignificaes e metaforizaes que acabam por

    deslizar, para outros campos semnticos, os seus sentidos primeiros. s vezes, so

    outras palavras que, na forma de afixos prefixos, infixos ou sufixos , so

    combinadas com aquelas que j existem, de modo a gerar novos significados4. Esse

    parece estar sendo o caso da biopoltica. Assim, por exemplo, em um artigo

    recentemente publicado (Veiga-Neto, 2011), explorei, no marco da Educao em

    Cincias e da Educao Ambiental, as relaes entre a biopoltica e a noopoltica, um

    conceito inspirado na biopoltica e proposto e desenvolvido por Lazzarato (2004), h

    cerca de uma dcada.

    Neste texto, agora instigado pela proliferao discursiva que gira em torno da

    ecopoltica, quero no apenas argumentar que ela abarca a biopoltica, mas quero

    tambm lembrar, ainda que de modo esparso, as possveis implicaes da ecopoltica

    com a Educao. Quando me refiro a de modo esparso, quero dizer que no darei um

    tratamento sistemtico ou exaustivo para tais implicaes; apenas lembrarei, aqui e ali,

    algumas das possveis conexes entre a Educao (principalmente escolar) e a

    ecopoltica.

    E mais: como veremos no final deste texto, a partir dessas duas questes

    centrais acima mencionadas a primeira: a minha flutuao no interior de um

    tringulo imaginrio; a segunda: a ampliao dos horizontes da biopoltica esboarei

    algumas referncias de ordem epistemolgica. Elas podero ser entendidas como alertas

    que nos previnam do fundamentalismo, denuncismo, catastrofismo e salvacionismo que

    tm marcado os mais variados discursos que tratam tanto do Ambiente quanto da

    Educao.5

    Como a biopoltica est no centro deste texto, ela exige um detalhamento

    maior. Farei isso a partir daqui.

    A biopoltica

    Comecemos com algumas consideraes sobre a biopoltica, um conceito em

    torno do qual a produo bibliogrfica vem experimentando um crescimento notvel ao

    longo da ltima dcada. Como logo veremos, no h apenas um conceito para essa

    palavra e as complicaes que ela encerra no so triviais. Ainda que nas ltimas trs

    4 Tem-se um bom exemplo disso no conjunto de palavras que giram em torno da

    disciplinaridade: multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade etc. (Veiga-Neto, 1996).

    5 Para uma primeira aproximao desses topoi presentes na tradio ocidental, vide Veiga-Neto

    (2004) e Veiga-Neto; Lopes (2010).

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    dcadas tenha predominado amplamente o conceito proposto por Michel Foucault

    biopoltica como uma poltica que, visando assegurar a vida biolgica do homem,

    exercida pelo Estado, o qual toma para si os clculos, as aes, as regulaes e os

    controles sobre as populaes , bem antes disso outros j trataram das relaes entre a

    vida e a poltica ou, mais especificamente, j se ocuparam da ideia de uma poltica da

    vida.

    Ao nos referirmos biopoltica como uma poltica da vida, entra logo em

    questo a ambivalncia do genitivo: a vida pode ser tanto o sujeito quanto o objeto da

    poltica (Castro, 2011, p.15). Foi essa ambivalncia que levou Esposito (2004) a falar

    numa biopoltica negativa em que a vida o objeto da poltica e numa biopoltica

    positiva em que a vida entra como o sujeito da poltica. No mesmo sentido vai

    Lemke (2011), em sua recente e importante obra Biopolitics. Anadvanced introduction.

    As dificuldades no param por a. Assim, por exemplo, pode-se perguntar

    sobre os variados sentidos que so atribudos palavra vida. Dois desses sentidos

    logo se colocam: trata-se tanto da vida em geral como todo o conjunto de estruturas

    e correlatas funes biolgicas envolvidas com a manuteno do indivduo e sua

    reproduo (para manuteno da espcie) quanto da vida humana tomada no

    apenas na dimenso de vida biolgica mas, tambm, na sua dimenso de vida racional e

    envolvida com a poltica.

    De modo similar, a palavra poltica pode ser entendida de muitas maneiras,

    que vo de uma dimenso estritamente jurdico-institucional at uma dimenso

    estritamente social. E como se isso ainda fosse pouco, encontram-se vrias combinaes

    entre ambas as dimenses.

    Como que para complicar ainda mais as coisas, a biopoltica tornou-se uma

    palavra da moda, muito frequentemente de significado vago ou, mesmo, praticamente

    sem significado algum em si mesma. Nesses casos, ela funciona apenas como moeda

    (tida como) forte em jogos de retrica que mais valem como combustvel para uma

    performatividade oca, sem a menor preocupao com a semntica, mas com a mxima

    preocupao com a pragmtica...

    Frente a tais dificuldades, tratemos um pouco bem pouco, verdade...

    dos sentidos principais atribudos biopoltica.

    Desde que se comeou a publicar os cursos que Michel Foucault proferiu no

    Collge de France e, em especial, os cursos diretamente relacionados com a razo

    poltica, como o caso de Em defesa da sociedade (Foucault, 1999), Segurana,

    territrio, populao (Foucault, 2008) e Nascimento da biopoltica (Foucault, 2008a)

    , muitos autores das mais diferentes reas, atentos potncia analtica da biopoltica

    na forma como ela foi proposta pelo filsofo, lanaram-se ao empreendimento de

    incorporar tal conceito como uma importante ferramenta para suas prprias pesquisas.

    E, como j referi, at mesmo para tension-lo e desdobr-lo em vrios outros.

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    Mas, ao contrrio do que muitos tm dito, nem a palavra biopoltica e nem o

    conceito que ela encerrou por vrias dcadas foram criados por Foucault. Num estudo

    rigoroso, Castro (2011) traou uma cuidadosa genealogia, mostrando que at mesmo j

    no incio do sculo XX Johan Rudolf Kjelln criou a palavra biopoltica6. Mesmo assim,

    para o que est em discusso neste texto, esse poltico e politiclogo sueco deve ser

    visto como o criador de uma palavra e no como um ponto de origem de uma ideia.

    Afinal, bem antes dele, Aristteles, j no sculo IV a. C., havia tratado demoradamente

    sobre as relaes entre a vida e a poltica.

    Para o que est aqui em discusso, no interessa nos aprofundarmos numa

    discusso acerca das provenincias remotas do conceito. Basta que se tenha claro que, a

    partir da primeira dcada do sculo passado, a biopoltica estava presente, ainda que de

    modo um tanto rarefeito, na literatura da Filosofia e da Cincia Poltica. Nesses

    primrdios, a biopoltica era entendida como a prpria vida de uma sociedade, tomando

    vida no sentido metafrico das relaes entre as diferentes partes e atividades que

    compem o todo social, em sentido anlogo s relaes que existem entre as partes de

    um organismo vivo ou mesmo s relaes que os organismos vivos mantm entre si.

    Como esclarece Castro (2011, p.32), a biopoltica de Kjelln trata das lutas sociais, do

    enfrentamento e da cooperao que define o dinamismo da vida social.

    fcil ver que esse conceito primordial nominado pela palavra biopoltica

    est fundado sobre a metfora organicista do Estado, cunhada por Aristteles em sua

    Poltica. Tal entendimento de Kjelln manteve-se at meados do sculo XX. A partir de

    ento, alguns autores franceses entre eles, Edgar Morin e ingleses entre eles,

    James Davies operaram deslizamentos da metfora organicista no sentido de recorrer

    Biologia no que tange a conceitos e mtodos, para estudar e descrever os fenmenos

    sociais e os correspondentes processos polticos que lhes so imanentes. Os primeiros

    daqueles autores, tentando explicar a histria das sociedades humanas a partir da

    Biologia; os ingleses, buscando na Biologia os conceitos e mtodos que pudessem ser

    teis Sociologia.

    Essa situao muda e se amplia em meados da dcada de 1970. No inverno de

    1975-1976, Foucault ministrou, no Collge de France, o curso que no Brasil ficou

    conhecido com o nome de Em defesa da sociedade. Foi ali, na aula do dia 17 de maro

    de 1976, que o filsofo discorreu, em detalhes, sobre o sentido que estava dando a essa

    palavra, por ele mesmo usada pela primeira vez na segunda conferncia que havia

    proferido no Rio de Janeiro, em outubro de 1974 O nascimento da medicina social

    (Foucault, 2006)7. Nas aulas seguintes daquele mesmo curso no Collge de France,

    Foucault volta ao assunto. E faz o mesmo, porm com menos detalhes, no curso

    6 A ttulo de curiosidade, lembro que Esposito (2004) atribui a J. R. Kjelln tambm a criao da

    palavra geopoltica. 7 No Brasil, esta conferncia foi traduzida por Roberto Machado e consta na conhecida

    coletnea Microfsica do poder (Foucault, 1992).

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    Segurana, territrio, populao, no inverno de 1977-1978. O curso seguinte, no

    inverno de 1978-1979, leva essa mesma palavra no ttulo: Nascimento da biopoltica.

    Mas, um tanto estranhamente8, nesse ltimo curso ele ocupa-se muito mais com a

    histria e a caracterizao do liberalismo e do neoliberalismo do que, propriamente,

    com a biopoltica.

    Tambm no deixa de ser estranho que, embora a biopoltica tenha aparecido

    vrias vezes nos curso de Foucault, esse conceito no esteja presente em algum outro

    livro escrito pelo filsofo, a no ser no primeiro volume da Histria da sexualidade

    A vontade de saber (Foucault, 1999a).

    Foucault refere-se biopoltica como a poltica que trata da vida das

    populaes, ou seja, a poltica que tem como interesse e preocupao principais a

    prpria vida das populaes, em termos de govern-las em funo do binmio sade-

    morbidade, bem como no que concerne sua higiene, alimentao, natalidade,

    mortalidade, sexualidade, longevidade, fecundidade, casamentos etc. Em ntima

    articulao com o surgimento dos Estados modernos, dos saberes estatsticos e com a

    ideia de populao como um organismo vivo, a biopoltica toma a vida humana como o

    prprio objeto da poltica; ela promove a distribuio das aes de governamento dos (e

    sobre os) indivduos que compem uma populao, no mbito da vida. Sendo assim, o

    conceito foucaultiano afasta-se da conotao organicista que, at a poca de suas

    investigaes, outros autores haviam atribudo biopoltica.

    Como mostrou o filsofo, se do incio do sculo XVII at os finais do sculo

    XVIII o poder disciplinar havia presidido o governo dos indivduos porque ele dava

    conta do modelo de soberania sobre o qual se assentava a vida poltica9. O modelo da

    soberania parte do pressuposto de que o poder algo natural e conferido, por origem,

    quele que pode e deve exerc-lo. Tal modelo mostrou-se insuficiente para gerir as

    populaes humanas que, no sculo XVIII se encontravam em franca exploso

    demogrfica e em vias de industrializao. Certas instituies como a escola, o

    hospital, o quartel, a fbrica etc. se modificaram e assumiram a tarefa de implantar

    e disseminar amplamente um novo modelo no mais de soberania, mas de

    governamentalidade10 (Veiga-Neto, 2000). a que o conceito de biopoltica esboado

    8 Num balano que Foucault faz no transcorrer desse mesmo curso, ele explica por que resolveu

    dirigir suas aulas menos para uma discusso sobre a biopoltica e muito mais para longas e

    detalhadas explicaes e problematizaes acerca do liberalismo e do neoliberalismo. Para um

    interessante desenvolvimento dessa opo, vide Castro-Gmez (2010).

    9 Em meus estudos sobre a disciplinaridade moderna, situei a emergncia do movimento de

    ressignificao e progressiva expanso das disciplinas um movimento a que denominei virada disciplinar j em meados do sculo XVI, portanto mais de meio sculo antes do que props Foucault (Veiga-Neto, 1996).

    10 Para mais detalhes, vide, entre outros, os importantes estudos de Gadelha (2009); Noguera

    (2011) e Varela; Alvarez-Ura (1991).

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    por Foucault, antes de 1978, nasce como oposio ao paradigma da soberania (Castro-

    Gmez, 2010, p.55).

    Como bem sabemos, Foucault criou a palavra governamentalidade para

    designar um amplo leque de questes que na Modernidade tomam, como objeto de

    estudo e ao, as maneiras de governar, as formas pelas quais se conduzem as aes.

    Para ele, a governamentalidade situa-se no encontro entre as tcnicas de dominao

    exercidas sobre os outros e as tcnicas de si (Foucault, 2006, p.785). Ela nada tem a

    ver com o modelo de soberania nem com o modelo do Prncipe, mas funciona a partir

    do sculo XVIII como uma dobradia, capaz de articular aquilo que prprio da

    populao com aquilo que prprio das subjetividades; em outras palavras, articulando

    o coletivo com o individual.

    Deriva justamente desse carter articulador da governamentalidade o fato de

    que a biopoltica pode extravasar para alm da dimenso populacional e poltica de

    modo a entrar na dimenso dos sujeitos ou, talvez seja melhor dizer, da subjetividade e

    da tica de si. E, ao colocar a tica de si nessa intrincada equao, a governamentalidade

    coloca-a tambm no plano da poltica. esse um dos principais pontos em que a

    biopoltica assume relevncia no campo da Educao11.

    Foram aquelas instituies j referidas a escola, o hospital, o quartel, a

    fbrica etc. que se modificaram de modo a encaminhar novas solues para os

    novos problemas que colocavam em xeque a vida dos indivduos e at mesmo a prpria

    sobrevivncia do Estado e das novas configuraes econmicas de todo o Ocidente. O

    poder disciplinar no era mais capaz de, por si s, dar conta do status quo. Foi a partir

    da que o biopoder surgiu como uma nova forma de poder. Isso certamente no

    significou o desaparecimento do poder disciplinar; como mais de uma vez Foucault

    frisou, preciso pensar tudo isso em termos de nfases e realces, combinaes e at

    reforos mtuos.

    No sentido mais amplo, o biopoder a forma pela qual determinadas aes

    tomam por objeto a vida humana (Rabinow; Rose, 2006). Seja no mbito dos corpos

    humanos (pensados em sua individualidade, como corpo-indivduo), seja no mbito das

    populaes humanas (pensadas como um corpo vivo, um assim chamado corpo-

    espcie), o biopoder atua sobre a vida. No caso dos corpos humanos, o biopoder atua

    pelas tecnologias disciplinares; no caso das populaes humanas, o biopoder atua pelas

    biopolticas. Tais operadores do biopoder no so antagnicos, mas se

    complementam, se conectam e muitas vezes at se reforam. A partir da, pode-se dizer

    que, num sentido mais restrito, o biopoder refere-se s aes que tomam por objeto a

    vida tanto dos corpos individuais quanto do corpo-espcie a que chamamos de

    11 Felizmente, a bibliografia que circula no Brasil sobre as relaes entre a biopoltica e a

    Educao tem crescido bastante. Mesmo correndo o risco de cometer omisses injustas e no

    referindo os numerosos artigos em peridicos e captulos esparsos em livros (como

    principalmente o caso daqueles publicados na coleo Estudos Foucaultianos), cito Gadelha

    (2009) e as coletneas organizadas por Oliveira; Kohan (2012) e Pulino; Gadelha (2012).

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    populao12. Assim, como Foucault deixa claro no primeiro volume de Histria da

    sexualidade (Foucault, 1999, p.131), o biopoder, a partir do sculo XVII13,

    desenvolveu-se em duas formas principais, que no so antitticas e constituem, ao

    contrrio, dois polos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermedirio

    de relaes. Um desses polos, o mais antigo, tomou o corpo humano como mquina

    individualizada, fazendo as disciplinas atuarem sobre ele. O outro polo formou-se em

    meados do sculo XVIII e tomou como objeto o corpo-espcie, fazendo atuar sobre ele

    toda uma srie de novas tecnologias de interveno e regulao, a partir de seu

    conhecimento cada vez mais detalhado e exaustivo. Tais tecnologias seguem um

    conjunto de estratgias (de interveno e regulao) sobre a vitalidade humana coletiva,

    que Foucault denominou biopoltica.

    justamente nesse ponto que a famosa mxima do deixar viver, fazer

    morrer, caracterstica da lgica da soberania, inverte-se para a mxima moderna do

    fazer viver, deixar morrer, prpria da governamentalidade moderna. Nesse ponto,

    abrem-se vrios problemas relativos s prticas da excluso includente, uma

    prerrogativa que os Estados contemporneos arrogam a si: depois de abandonar parte

    dos seus indivduos para deixa-los morrer, o prprio Estado suspende suas garantias e

    os captura para faz-los morrer (Candiotto, 2011).

    De novo aqui, o envolvimento entre a biopoltica e a Educao deveras

    interessante, principalmente se atentarmos para as polticas e prticas de incluso14.

    Esta leitura foucaultiana da biopoltica afasta-se no apenas do tratamento

    organicista que Kjelln havia dado a essa palavra, mas, tambm e radicalmente, das

    interpretaes marxianas e weberianas acerca das relaes entre Histria e Economia.

    Afastando-se de uma leitura economicista e asctica, Foucault argumenta, como to

    bem salientou Castro (2011a, p.55), que a entrada da vida na histria foi determinante

    para a formao do capitalismo e que o biopoder assegurou a insero controlada dos

    corpos no aparelho produtivo e para ajustar os fenmenos da populao aos processos

    econmicos. Alm disso, questes tais como a sexualidade, a soberania, a

    medicalizao, a norma, a governamentalidade, os dispositivos de seguridade e o

    racismo principalmente na forma poltica de racismo de Estado encontraram (e

    continuam encontrando) no biopoder e na biopoltica a condio de possibilidade para a

    12 No deixa de ser um tanto estranho que o prprio Foucault jamais tenha feito uma distino

    clara entre biopoder e biopoltica; so termos que ele utiliza indistintamente (Castro-Gmez, 2010, p. 55, nota 3).

    13 Aqui, insisto numa ressalva. Conforme j comentei na nota 9, em meus estudos genealgicos

    sobre a disciplinaridade moderna, situei a emergncia desse primeiro polo na segunda metade

    do sculo XVI (Veiga-Neto, 1996).

    14 Para discusses detalhadas sobre as relaes entre biopoltica, governamentalidade e incluso

    educacional, vide: Lopes; Hattge (2009), Rechico; Forte (2008), Skliar et alii (1997), Thoma;

    Hillesheim (2011), Lopes; DalIgna (2007), Veiga-Neto; Lopes (2011),

  • 216 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, dez/2014.

    sua emergncia, disseminao e relevncia15, nas formas como hoje so conhecidas e

    praticadas.

    Da biopoltica para a ecopoltica

    Tambm aqui, a histria de uma palavra neste campo comea com Rudolph

    Kjelln. Numa obra que acabou caindo no esquecimento Grundriss zu einem System

    der Politik (1929) e em que tratou de estabelecer os fundamentos de uma Cincia

    Poltica no idealista, mas organicista, Kjelln chamou de ecopoltica ao ramo da

    Politicologia que aborda os fatores econmicos que determinam a posio e o poder do

    Estado (Castro, 2011, p.31). Esse conceito praticamente nada tem a ver com os

    diferentes significados que hoje se atribuem ecopoltica. Mais uma vez, conceitos

    diferentes so atribudos a uma mesma palavra.

    Numa primeira aproximao bem ampla, atualmente compreendemos a

    ecopoltica como o conjunto de polticas orientadas para o controle da vida no ambiente,

    a nvel planetrio. Muitos tm usado essa palavra num sentido positivo: como o

    conjunto das normas e leis em favor do meio ambiente. Outros, usando ecopoltica

    como adjetivo, ligam a ela a ideia de autoidentificao da ecologia e dos movimentos

    ecolgicos enquanto saberes e prticas de carter eminentemente poltico (Viola, 1987).

    Outros mais vm a ecopoltica como a nova face das Cincias Polticas, configurando-a

    como um instrumento de luta social que viabiliza novos conceitos, linguagens e

    estratgias de mudana social (Ruiz, 1991, p.130). Vista como capaz de articular um

    desenvolvimento econmico e social autossustentvel, a biopoltica prioriza estratgias

    e solues de pequeno e mdio porte, em nveis concretos de municpios, vinculando as

    bases s esferas do poder, e as decises internacionais ao local (idem). Seria, ento,

    pelas aes pautadas pela ecopoltica que evitaramos o ecocentrismo anti-humanista e,

    ao mesmo tempo, promoveramos um melhor equilbrio entre o homem e seu ambiente.

    Questes tais como conscincia ecolgica, preservao do planeta,

    minimizao dos partidarismos, segurana, respeito s diferenas etnoculturais, ateno

    s necessidades locais, sustentabilidade e antiutilitarismo constam nas agendas da

    ecopoltica. Alm disso, quase sempre explcito o acento tico dos discursos

    ecopolticos, com defesas candentes a favor de uma nova tica planetria que submeta

    os interesses econmicos (do capitalismo) aos interesses sociais.

    Pode-se dizer que a ecopoltica no apenas desloca a importncia at agora

    conferida biopoltica como, tambm e principalmente, amplia, do humano para o

    planetrio, o papel conferido vida. Assim, nossos interesses e preocupaes com a

    manuteno da vida vo para alm da populao humana (como corpo-espcie) e se

    instalam no todo do planeta (como um novo corpo vivo, digamos um corpo-ecolgico

    15 Seria preciso lembrar que, no contexto em que este texto se situa, a palavra relevncia no implica nenhum juzo de valor?

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    ou um corpo-planetrio). E, se a questo de ampliar o escopo da biopoltica, no h

    como no trazer baila, entre outras, propostas como as de Siqueira (2012, p.42),

    quando esse autor mostra a necessidade de incluirmos, em nossas discusses, o

    deslocamento da poltica e, mais recentemente, os investimentos capitalistas para a

    rbita do planeta Terra. Dessa maneira, a ecopoltica transbordaria para fora do nosso

    planeta.

    No mesmo sentido vai Passetti (2012, p.19-20), para quem o

    planeta, sua existncia prpria no sistema solar, no universo e este no mais entendido como infinito, mas orientado pela noo de inacabado como universo

    em expanso , aos poucos substitui a experincia de territrio. O territrio e a populao so assimilados por ecossistemas e so deslocados para o espao: a importncia da humanidade se torna imediata e esta passa a ser o alvo de

    direitos, polticas, programas e resistncias.

    Em sintonia com o procedimento de Foucault que inscreveu a biopoltica

    no quadro mais amplo de uma histria da governamentalidade liberal , o caso,

    ento, de inscrevermos a ecopoltica no marco da governamentalidade neoliberal, de

    modo a falarmos de uma ecogovernamentalidade, como extenso e atualizao da

    governamentalidade liberal ou (digamos) clssica.

    Nessas ampliaes conceituais, alguns autores vm falando tambm em

    ecogovernamentalidade. Para Malette (2011, p.4) a ecogovernamentalidade implica uma

    reorganizao dos conceitos de populao, segurana e economia poltica, nos quais a

    regulao dos vivos se expandiria para regulao de tudo o que necessrio para a vida.

    Tal expanso das regulaes tradicionais configura uma nova pistme ecolgica que

    levaria o problema do governo a uma nova fase crtica (idem).

    Esse autor ainda mais explcito quando afirma que

    podemos ampliar a problematizao da governamentalidade moderna ao sugerir

    que os problemas da vida, do ambiente e do governo coincidem agora com a emergncia da ecopoltica, cristalizando, assim, uma relao de poder/saber que reorganiza profundamente de maneira relacional os trs

    movimentos constitutivos da governamentalidade moderna: governo, populao

    e economia poltica (Malette, 2011, p.16) [grifos do autor]

    Assim pensada, a ecopoltica pode funcionar como uma garantia contra o

    ecologismo de que nos fala Touraine (2009, p.165), em sua crtica ao discurso

    interpretativo dominante: O que eu descarto um ecologismo que, em nome da

    natureza, rejeita tudo aquilo que se refere interveno humana. Ele coloca-se

    fortemente a favor dos movimentos em defesa do meio ambiente que exigem uma

    viso mais ampla e responsvel do desenvolvimento, indo alm da atividade

    econmica (idem). E, mesmo sem usar a palavra ecopoltica, Touraine refere-se

    ecologia poltica: Esta ecologia poltica o exemplo mais importante da passagem de

    uma concepo progressista e evolucionista para uma concepo mais crtica e at

    mesmo ambivalente do progresso, e a ao mais inovadora na busca de uma concepo

    que unisse os contrrios em vez de nos obrigar a escolher entre um e outro (idem)

  • 218 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, dez/2014.

    [grifos do autor]. O socilogo conclui essas passagens de modo otimista com relao

    aos ecologistas, na medida em que eles nos convenceram de que o desenvolvimento

    econmico [assim] como o respeito ao meio ambiente deveriam ser associados s lutas

    contra a desigualdade e a excluso (idem).

    Voltando a Malette (2011, p.17), constatamos que o par ecopoltica

    ecogovernamentalidade abre novos domnios de interveno poltica com alcance

    nunca visto, de modo a impor novos limites para a ao humana, agora,

    argumentando que o mundo natural que sustenta toda a vida tem regras intrnsecas

    que nenhum governo ou indstria humana deve violar. Nesses termos, at mesmo a

    territorialidade elemento central no estabelecimento dos Estados modernos tem de

    ser repensada.

    Num mundo globalizado, repensar as relaes entre a territorialidade e a

    ecogovernamentalidade adquire a maior importncia, pois no se trata apenas de

    repensar as agresses que a lgica capitalista tem feito ao ambiente, em termos de

    esgotamento e contaminao. Trata-se, tambm, de repensar a prpria lgica espacial de

    desterritorializao em que o capitalismo opera, em suas novas configuraes

    contemporneas16. Bem sabemos, por exemplo, que nos cenrios do trabalho imaterial e

    do capitalismo cognitivo o espao tende a colapsar ou, no mnimo, se desfronteirizar

    pela quase anulao das distncias fsicas entre os seus atores sociais e econmicos

    (Saraiva; Veiga-Neto, 2009; Harvey, 1996).

    Nesse ponto, podemos articular ecopoltica, ecogovernamentalidade, colapso

    do espao e desfronteirizao para reforarmos a urgncia de ressignificarmos o mais

    profundamente possvel as relaes entre o humano e o ambiental. Tal ressignificao

    passa por um maior cuidado discursivo, na medida em que, frente quelas relaes

    que so de uma imanncia de tamanha magnitude , no faz mais sentido falarmos em

    o homem no seu ambiente, o homem na Natureza e, nem mesmo, o homem e a

    Natureza. No se trata de patrulhar o dito, de defender o sempre problemtico

    politicamente correto, mas de manter aquilo que Gaston Bachelard chamou de

    vigilncia epistemolgica, a saber, uma atitude que combina rigor conceitual com

    respeito ao discurso racional17. Como um plus a essa vigilncia epistemolgica, tenho

    insistido que o cuidado com o dito significa ter respeito ao outro, nosso leitor ou ouvinte

    esse outro que, no fundo, sempre tambm nosso interlocutor e aquele de quem

    dependo para eu mesmo ser o que eu sou.

    As implicaes educacionais so aqui da maior magnitude. O campo dos

    Estudos do Currculo, por exemplo, talvez seja um dos mais permeveis recepo e

    16 Ainda que parea estranho, sustento que a desterritorializao contempornea no implica

    uma denegao tout court do espao, mas uma outra lgica a reger a distribuio das coisas ali

    contidas.

    17 Mesmo reconhecendo que muito difcil estabelecer os limites do que (ou no ) racional,

    sugiro que, para os efeitos prticos deste texto, a racionalidade seja vista como a capacidade de

    dar razes para, de modo compreensvel numa comunidade de discurso.

  • 219 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, dez/2014.

    incorporao dessas articulaes entre a ecopoltica e a ecogovernamentalidade. Para

    alm dos contedos sobre ecologia mas sem lhes retirar a importncia , as polticas

    e correspondentes prticas curriculares podem desempenhar um papel crucial na

    promoo de condutas ticas a favor do respeito ao ambiente e, ao mesmo tempo,

    colocar em movimento dispositivos capazes de promover subjetivao na contramo

    dos aspectos mais desumanos do neoliberalismo.

    Nesses processos de ressignificao das relaes entre o humano e o

    ambiental, convm estarmos atentos para as frequentes contradies performativas que

    qualquer anlise discursiva, por mais simples que seja, pe logo mostra. Vejamos um

    exemplo. Muitos, alicerados em razes biopolticas e ecopolticas, defendem

    ardorosamente uma leitura holstica da posio do homem no mundo natural,

    entendendo-os numa relao de imanncia mtua radical. Mas, ao mesmo tempo,

    defendem um tipo de alimentao qual eles mesmos adjetivam de natural18. Com

    isso, eles colocam o humano fora da natureza, separado do mundo natural. Basta

    perguntarmos por que, se consideram o homem como parte indissocivel da Natureza,

    chamam de no-natural aquilo que produzido pelo prprio homem. claro que no

    faz sentido algum contra-argumentar que, sob o ponto de vista gramatical, as palavras

    artificial e natural so antnimas; preciso compreender que foi justamente no

    interior de um paradigma tradicional que compreendia o homem separado (e quase

    sempre acima...) da Natureza que se instituiu tal antonmia entre artificial e

    natural. Mant-la implica aceitar tal separao; aceitar a separao leva contradio

    performativa.

    preciso registrar a impressionante penetrao da ecopoltica nos discursos

    contemporneos afinados com a racionalidade neoliberal. Se quisermos nos manter

    sintonizados com o tratamento dado por Foucault ao liberalismo e ao neoliberalismo

    por ele entendidos no como ideologias nem como objetos compreensveis a partir da

    Economia, mas como prticas governamentais e, por isso, mais ao alcance da

    Politicologia , vale a pena analisarmos a ecopoltica pelo vis da governamentalidade.

    Sendo assim, a Educao entra de novo como pea chave em tudo isso. Como

    tinha acontecido quando a escola, a priso, o hospital, o quartel haviam se ressignificado

    e mobilizado para a implantao e expanso da governamentalizao do Estado, mais

    uma vez essas instituies, funcionando como maquinarias de subjetivao, so

    chamadas para a fundao e a expanso de novas subjetividades e novas prticas sociais

    (Veiga-Neto, 2000).

    Tudo perigoso...

    Como ttulo desta ltima seo, tomei emprestado a famosa mxima de

    Foucault (1995, p.256): tudo perigoso. Logo a seguir, o filsofo esclarece que tudo

    18 Numa variante de tal entendimento, fala-se tambm em comida natural, alimentos naturais e alimentos biolgicos.

  • 220 Rev. Eletrnica Mestr. Educ. Ambient. E - ISSN 1517-1256, V. Especial, dez/2014.

    perigoso no significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo perigoso, ento

    temos sempre algo a fazer. (Foucault, 1995, p. 256). Penso que este pequeno

    fragmento temos sempre algo a fazer nos conduz bem para o encerramento

    deste texto.

    Dado que temos sempre algo a fazer e, talvez mais do que isso, sempre h

    algo que deve ser feito , preciso procurar os caminhos e recursos pelos quais

    possamos ir adiante. Esse ir adiante no significa cumprir um suposto destino desde

    sempre impresso numa suposta natureza do homem e do mundo. Na contramo das

    metanarrativas judaico-crists, iluministas e idealistas que acreditam num motor a nos

    empurrar para frente e num tlos a nos atrair para o fim da Histria, penso que cabe a

    ns bem mais do que simplesmente agir adequadamente para o cumprimento desses

    mitos to profundamente entranhados na nossa cultura. Afastando-me para o mais longe

    possvel de alguma forma de essencialismo, representacionismo e fundacionismo,

    procuro me colar ao pensamento de Foucault (2004, p.296) quando ele diz que todas as

    suas anlises so contra a ideia de necessidades universais na existncia humana. Elas

    mostram a arbitrariedade e qual espao de liberdade podemos ainda desfrutar e como

    muitas mudanas podem ainda ser feitas.

    Na medida em que nos descartamos dessas necessidades universais, logo

    nos livramos tambm dos topoi que tm caracterizado os discursos sobre o Ambiente e

    a Educao. O fundamentalismo, o denuncismo, o catastrofismo e o salvacionismo

    passam a ser compreendidos no mais como realidades desde sempre a, mas como

    realidades culturalmente construdas e, portanto, passveis de serem mudadas ou

    recusadas.

    de novo a, ento, que entra a Educao, em sua dupla dimenso de

    reproduo e inovao culturais19. Seja em sua forma institucionalizada e circunscrita s

    escolas, seja em sua forma social difusa, a Educao um dos elementos-chave tanto

    para promover quanto para refrear as aes biopolticas e ecopolticas. Nesse sentido e

    como comentei anteriormente, muito j foi escrito e realizado no campo em que se

    articulam a Educao, a governamentalidade, o liberalismo, o neoliberalismo, a

    biopoltica e o biopoder. Mas, no que tange ecopoltica e ecogovernamentalidade, h

    muita coisa ainda por fazer. Arrisco-me a sugerir que uma parte deste ainda por fazer

    poder ser facilitado se nos valermos dos avanos j conseguidos nas muitas discusses

    j travadas em torno da biopoltica e da governamentalidade.

    Mas aqui preciso continuarmos alerta para a ambiguidade dos nossos

    discursos e prticas sociais, to bem sintetizada na mxima foucaultiana com que iniciei

    esta ltima seo tudo perigoso. De um lado, como sublinhou Castelo Branco

    (2012, p.18), os estudiosos da obra do filsofo tem ressaltado o carter excludente e

    racista das prticas biopolticas; de outro lado, muitos esto mostrando o carter

    19 Aqui, dou palavra cultura a maior abrangncia possvel, incluindo aspectos materiais, comportamentais, ticos, mticos, lingusticos etc.

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    controlador, autoritrio, utilitarista e excludente de certas prticas ecopolticas (Passetti,

    2011, 2012). nesse sentido que vai, por exemplo, o Editorial da revista Ecopoltica20:

    a ecopoltica e a [correlata] produo de novas institucionalidades pretendem alar

    controles para alm das prticas de liberdades por ela convocadas (Ecopoltica n. 2,

    p.4). Duarte (2009) tambm problematiza esse lado mais sombrio da biopoltica, ao

    associ-la ao fascismo contemporneo.

    Nesses aspectos mais sombrios das nossas sociedades regidas pelas

    racionalidades liberal e neoliberal, a ecopoltica parece apresentar os mesmos perigos

    que muitos j detectaram na biopoltica, tais como a imposio de uma soberania

    estatal, o fascismo, o utilitarismo, o atrelamento e subordinao dos interesses sociais

    aos interesses do grande capital, a excluso includente. Como vimos, o modelo da

    soberania que sustentava a lgica do deixar viver, fazer morrer acabou voltando, mas

    agora no mais a cargo de um soberano mas a cargo do prprio Estado.

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