A Questo Palestina e o Estado de Israel

Ricardo da Costa (Ufes)Palestra proferida no dia 09 de agosto de 2002no curso de Relaes Internacionais no Centro Universitrio Vila Velha,a convite da Diretoria de Extenso e Seqenciais.

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O ataque de 11 de setembro de 2001 s torres gmeas em Nova York.

Os acontecimentos de 11 de setembro nos Estados Unidos trouxeram tona a questo religiosa para o centro das discusses intelectuais em todo o mundo. Entramos no sculo XXI com um antigo dilema existencial: f versus razo. Com efeito, pensvamos que esse debate tivesse sido sepultado desde pelo menos o sculo XIII, quando os universitrios medievais discutiam acaloradamente a possibilidade de unir as verdades da religio e da filosofia.

Por outro lado, durante algum tempo, a intelectualidade brasileira acreditou que toda anlise da vida humana passava necessariamente pelo crivo da economia: o homo economicus prevalecia nas mentes dos acadmicos como um tipo ideal pujante e necessrio ao entendimento da Histria.

No entanto, a persistncia do homem-bomba palestino, do mrtir em prol da f, do suicida-crente na destruio final tanto do capitalismo quanto do imperialismo norte-americano e de Israel mostrou opinio pblica mundial que o tema da religio permanece no centro da existncia humana e que a chamada Questo Palestina e o Estado de Israel so itens obrigatrios da pauta de discusso nas relaes internacionais. Como se chegou a este ponto? Qual a histria da questo rabe-israelense? Esta palestra de hoje tenta responder a estas duas perguntas. Assim, farei um breve histrico do contexto da fundao do Estado de Israel para que possamos compreender melhor o tema e suas possibilidades (ou no) de resoluo.

O estado de Israel nasceu sob o signo da morte em escala industrial. A Soluo final nazista - especialmente a partir de 1942 - mostrou aos judeus europeus que a nica alternativa era buscar a proteo de um estado prprio. Esse movimento sionista e nacionalista fora iniciado no final do sculo XIX pelo judeu vienense, Theodor Herzl (1860-1904), que percebeu a Palestina como uma concreta possibilidade territorial para a fundao de um estado judeu. Em seu livro O Estado Judeu, ele disse: A Palestina nossa inolvidvel ptria histrica. Esse nome por si s seria um toque de reunir poderosamente empolgante para o nosso povo. (HERZL, 1954: 67) Herzl passou a estimular a imigrao para a Palestina, ento sob o domnio do Imprio Otomano.

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Theodor Herzl (1860-1904).

Ali j viviam cerca de 25 mil judeus. Em 1914, com o incio da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), imigraram 60 mil nacionalistas judeus, que passaram a viver com cerca de 650 mil no judeus, a maioria rabes.

A comunidade judaica europia conseguiu o apoio da Inglaterra para o estabelecimento de uma ptria nacional na Palestina. Em 1917, Arthur Balfour (1848-1930), ministro do exterior, emitiu um importante documento, que ficou conhecido como Declarao Balfour, onde aprovava a idia, sem, no entanto, citar a palavra estado - isso para no ferir o apoio dado tambm aos rabes contra os turcos (SOLIMAN, 1990: 28). A Declarao Balfour foi sancionada em 1922 pela ento Liga das Naes: a Inglaterra administraria provisoriamente a Palestina e incentivaria o movimento sionista.

Os rabes reagiram com violncia. No mesmo ano de 1922 morreram 50 pessoas de cada lado. Com o fim do Imprio Otomano os rabes tambm aspiravam sua independncia e o apoio ingls lhes parecia uma intromisso indesejvel. No entanto, quando os nazistas chegaram ao poder na Alemanha em 1933, a imigrao judaica para a Palestina no parou de aumentar: de cinco mil imigrantes por ano em 1929 para 60 mil s em 1935! Em 1936 os rabes pressionaram os ingleses para que limitassem a imigrao, sem sucesso. Aconteceram ento greves e ataques de rabes contra oficiais britnicos e judeus.

Nesse momento, com o apoio britnico, surgiu a Haganah, uma fora de defesa judaica paramilitar com o objetivo de proteger os civis judeus contra os ataques rabes. Uma faco mais radical da Haganah chamada Irgun se organizou como grupo terrorista. Assim, j antes da Segunda Guerra estava bastante claro que os ideais da Declarao Balfour eram impraticveis.

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Tropas da Haganah.

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Cartaz do Irgun.

Durante o conflito mundial, as autoridades britnicas admitiram limitar a imigrao judaica para a Palestina, pois dependiam do petrleo rabe para seu esforo de guerra. Ao completar as quotas, os imigrantes adicionais eram repatriados. Os extremistas judeus tambm agiram com violncia. Em 4 de novembro de 1944, o Ministro de Estado no Oriente Mdio foi assassinado por dois membros do grupo Stern, outra faco do Irgun.

No ms seguinte, o Partido Trabalhista britnico tomou a dianteira e firmou um compromisso permitindo a imigrao judaica ilimitada para a Palestina. Por outro lado, Anthony Eden (1897-1977), Ministro do Exterior, assegurou que o governo britnico daria total apoio unio rabe, fato que mostrava as diferenas entre os polticos britnicos a respeito da questo palestina.

Em maro de 45 os rabes organizaram a Liga rabe da Sete Naes, mas tinham poucos pontos em comum, com exceo do anti-sionismo. Quando, poucos meses depois, o lder do Partido Trabalhista se tornou Primeiro-ministro, encontrou a Liga rabe determinada a impedir a imigrao judaica a qualquer custo. Estava claro que os ingleses perdiam cada vez mais o controle da situao. Cada tentativa de reprimir a desordem gerava ainda mais violncia. Em junho de 1946 a Haganah dinamitou todas as pontes sobre o rio Jordo. Lderes sionistas foram presos. Em 22 de julho, a Irgun retaliou, dinamitando uma ala do hotel Rei Davi, quartel-general do exrcito britnico em Jerusalm, matando 91 pessoas, entre ingleses, judeus e rabes.

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Ataque do Irgun ao Hotel Rei David.

Finalmente, o Primeiro-ministro decidiu retirar-se, a exemplo do que fizera na ndia. Ernest Bevin (1881-1951), Ministro do Exterior, declarou (fevereiro de 1947) que os ingleses entregariam s Naes Unidas, sucessora da Liga das Naes, seu mandato sobre a Palestina. Em junho, um comit especial da ONU chegou Palestina para estudar a futura diviso poltica, mas o cenrio poltico palestino estava em p de guerra: trs terroristas da Irgun estavam condenados morte por enforcamento e dois soldados ingleses eram mantidos como refns pelos terroristas judeus para forar sua libertao.

Ao mesmo tempo, muitos refugiados judeus dirigiram-se Palestina clandestinamente. Em 1947, um navio vindo de Marselha, o President Warfield, rebatizado de xodo, transportava 4.500 sobreviventes do campo de concentrao de Bergen-Belsen na Alemanha foi interceptado em Haifa por navios de guerra britnicos. A histria correu o mundo porque os imigrantes a bordo divulgaram o fato atravs do rdio. No entanto, o xodo rendeu-se e retornou a Marselha, onde foi negado asilo aos refugiados que, por fim, desembarcaram em Hamburgo.

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President Warfield.

Nesse mesmo dia, os trs terroristas da Irgun foram enforcados e em represlia os dois soldados ingleses refns dos terroristas judeus tambm foram enforcados e seus cadveres foram dinamitados com minas explosivas. Menahen Begin (1913-1992), futuro primeiro-ministro de Israel e ento um dos lderes da Irgun disse: Ns retribumos na mesma moeda (WILLMOTT, 1993: 104).

O assassinato dos soldados ingleses foi recebido com indignao na Europa, dando origem a vrios distrbios anti-semitas em vrias cidades inglesas - Londres, Liverpool, Glasgow e Manchester -, fatos que no aconteciam na Inglaterra desde o sculo XIII. Uma sinagoga em Derby foi incendiada e destruda (JOHNSON, 1989: 521). Isso tudo a apenas dois anos aps o fim da Segunda Guerra e a abertura dos campos de concentrao na Alemanha! Apesar disso - ou exatamente por isso - a poltica de Menahen Begin teve xito: os britnicos decidiram sair o mais rpido possvel da Palestina.

No final de 1947, as Naes Unidas propuseram a nica soluo plausvel: o fim do mandato britnico e a diviso da Palestina em dois estados, um judeu e outro rabe; a cidade de Jerusalm permaneceria sob administrao internacional, idia defendida por Theodor Herzl no sculo XIX. Os sionistas aceitaram, mas dessa vez a voz discordante veio do mundo rabe, que comeou a se preparar para a guerra. Os Estados Unidos e a Unio Sovitica votaram a favor da resoluo da ONU; a Gr-Bretanha votou contra, mas no tinha mais como controlar os acontecimentos.

Mesmo assim a violncia no diminuiu e, em dezembro de 1947, os ingleses anunciaram sua retirada da Palestina para o dia 15 de maio de 1948. At l morreriam mais de mil pessoas, entre rabes e judeus.

Um dia antes do trmino do mandato, 200 lderes judaicos reuniram-se no Museu de Arte Moderna de Telaviv para ouvir o novo Primeiro-ministro da nao, o socialista Ben Gurion (1886-1973), ler uma curta declarao proclamando o estabelecimento do Estado de Israel. O novo pas foi logo reconhecido oficialmente pelos Estados unidos e pela Unio Sovitica.

Na manh seguinte, Israel foi invadido pela Liga rabe - Lbano, Sria, Iraque, Jordnia e Egito. A desvantagem, tanto em equipamento militar quanto em efetivo de soldados era de Israel: 40 mil muulmanos contra 35 mil israelenses. Em junho, os srios avanaram sobre a Galilia, os iraquianos para oeste, chegando a 15 quilmetros do Mediterrneo; os jordanianos assediaram Jerusalm, capturando a Cidade Velha e seu bairro judeu. Os egpcios ameaavam Jerusalm pelo sul.

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Mapa da Guerra de 1948 (chamada pelos israelenses de guerra de independncia).

Um mediador da ONU, o conde Folke Bernadotte (1895-1948), famoso por haver tentado uma trgua entre a Alemanha nazista e os Aliados (sem sucesso), conseguiu uma trgua de um ms. Os israelenses foram rpidos e aproveitaram a oportunidade para comprar armas (na Frana e na Checoslovquia) e em julho lanaram uma ofensiva bem sucedida.

Uma nova trgua foi acertada em julho, mas Bernadotte foi assassinado por membros da Stern. Com receio da condenao da opinio pblica, Ben Gurion dissolveu a Stern e a Irgun.

De qualquer modo, os israelenses lanaram sua ofensiva, agora melhor equipados e preparados. Em contrapartida, srios e iraquianos haviam retornado suas fronteiras; jordanianos estavam dispostos a um cessar-fogo, aps terem tomado a Velha Jerusalm; egpcios perderam o sul de Jerusalm para os israelenses. A unio rabe durou apenas at o final do primeiro ms de guerra. O Conselho de Segurana das Naes Unidas declarou o cessar-fogo em dezembro de 1948 e no incio de 1949 terminou a guerra de independncia de Israel, que tinha agora cerca de 20% a mais de terras do que a resoluo da ONU de 1947. Mais de 500.000 rabes buscaram refgio na Faixa de Gaza, no Egito, no Lbano e na Jordnia. Israel tinha um milho de judeus agora dispostos a defender seu pas.

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Tracei at aqui em breves linhas o surgimento do Estado de Israel e a oposio sistemtica do mundo rabe. Grosso modo, esse foi o tom da histria do Oriente Mdio de 1947 at os dias de hoje. Guerra e morte, invases e retaliaes, ressentimentos e desprezo profundo de ambos os lados. Uma possvel explicao para isso , por um lado, o fato de o Estado de Israel ser uma nao teocrtica. Forte economicamente, com o apoio norte-americano, os israelenses possuem uma linha dura de assentamentos j h alguns anos e que tem provocado ainda mais o dio muulmano, pois famlias inteiras de islmicos so desalojadas e entregues prpria sorte.

Por outro lado, os movimentos palestinos recusam-se a reconhecer a existncia do Estado de Israel, fato hoje incontestvel, e insistem em um discurso que mescla um discurso de expulso dos judeus da Palestina com outro ainda mais radical, isto , seu extermnio. Alm disso, o apoio irrestrito dos Estados Unidos poltica israelense e a ojeriza popular a tudo o que se refere cultura islmica (especialmente aps os atentados ao World Trade Center e ao Pentgono) provocam ainda mais os nacionalismos muulmanos, da Lbia at o Iraque - em que pese o apoio de boa parte das monarquias rabes aos EUA, como vimos durante a Guerra do Golfo. No entanto, fato que as populaes rabes so francamente anti-semitas, por vezes opondo-se publicamente a seus governos.

Assim, concluo esta palestra com bastante pessimismo. A curto/mdio prazo no percebo a menor possibilidade de entendimento de ambas as partes. Enquanto existir o binmio Estado/Religio em um pas moderno no haver possibilidade de convivncia pacfica multi-tnica ou religiosa dentro de suas fronteiras. A histria do ocidente provou que necessrio separar as esferas do poder das verdades da f. Foi assim que a cultura ocidental conseguiu progresso tecnolgico e desenvolvimento econmico, em que pese os problemas existenciais da Modernidade - ou Ps-modernidade. O problema no religioso ou a religio, pois o homem um ser que busca e necessita algo transcendental, e sim a utilizao que alguns radicais poltico-religiosos fazem do Estado teocrtico para seus prprios fins. Nem o Coro nem a Torah defendem os massacres perpetrados por ambas as partes.

Para que vocs tenham uma idia das propostas pluralistas e harmoniosas que os religiosos j propuseram ao longo da histria humana, termino esta palestra com uma bela citao do Livro do Gentio e dos Trs Sbios, um texto escrito por volta de 1274 pelo filsofo Ramon Llull (1232-1316). Um judeu, um cristo e um muulmano dialogam em uma bela floresta com um ateu sobre as verdades de suas fs. No fim, se despedem

...um do outro muito amvel e agradavelmente. Cada um pediu perdo ao outro caso tivesse dito contra a sua Lei alguma palavra vil. Um perdoou o outro e, no momento da partida, um sbio disse: Da ventura que nos ocorreu na floresta, no se seguiria para ns algum proveito? Parecer-vos-ia bem que, por meio das cinco rvores e seguindo as dez condies significadas por suas flores, todos os dias e uma vez por dia disputssemos seguindo as instrues que a Dama Inteligncia nos mostrou, e que nosso debate durasse at todos ns trs termos uma s f e uma Lei, e at que tivssemos entre ns uma maneira de honrar e de servir uns aos outros que nos fizesse concordar? Porque a guerra, o trabalho e a malevolncia, e o fazer dano e ultraje impede que os homens concordem em uma crena.

Oxal chegue o dia que judeus e muulmanos sentem mesa, andem pelas ruas e comemorem suas festas e dias sagrados em paz.

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Bibliografia

HERZL, Theodor. O Estado Judeu. Rio de Janeiro: Mercaz-Wizo-Brasil, 1954.

JOHNSON, Paul. Histria dos Judeus. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

SOLIMAN, Lotfallah. Por uma Histria Profana da Palestina. So Paulo: Editora Brasiliense, 1990.

WILLMOTT, H. P. Regresso Terra Prometida. In: ALLAN, Tony (dir.). Histria em Revista - A Sombra dos Ditadores (1925-1950). Rio de Janeiro: Abril Livros, 1993, p. 102-105.