a esfinge do século

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 otimismo das primeirasespeculações e teses acerca da TV

(o “mais poderoso veículo dedivulgação do mundo moderno”) ede sua relação com a cultura literáriasurpreende aquele que percorre acoleção do Jornal de Letras1. A partir de

1956, o periódico passou a publicar, comassiduidade variada, notícias breves econsiderações mais abrangentes esistemáticas sobre o moderno dispositivoaudiovisual (inaugurado oficialmente, no

Brasil, em setembro de 1950). Debatiam-se as qualidades intrínsecas e aspossibilidades de criação da “mais novaexpressão artística” – seu papel nadifusão do livro, sua consolidação como

novo e estimulante mercado de trabalhopara o literato. As tentativas de situar atelevisão no mundo das artes culminaram1 Mensário criado, em 1949, no Rio de Janeiro, por Elysio, João e José Condé. Integraram seu corpo de redatores e seu conselho

fiscal expoentes da arte e da crítica literária: Brito Broca, Alvaro Lins, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Manuel

Bandeira, entre outros.

O

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num poema de índole modernista,escrito pelo jornalista e poeta Dermival

Costa Lima, primeiro diretor-artístico daTupi carioca (“Elegia do camera-man”,TV-Poema, julho de 1960, 12). 

O  Jornal  divulgava, com entusiasmo,as iniciativas para dar “maior

aproveitamento literário àspossibilidades da televisão”. Umexemplo egrégio:  A história da semana,que pretendia levar – ao “pequeno‘écran’” – contos, crônicas e novelas

que, pela sua natureza, se prestassem àadaptação através da imagem. Entre osescritores cujas obras seriam veiculadasno programa (com 30 a 50 minutos deduração), figuravam Carlos Drummond

de Andrade, Marques Rebelo, GuimarãesRosa, Aníbal Machado e Orígenes Lessa.O empreendimento da TV-Rio eraduplamente bem-vindo: ofereceria àtelevisão “maiores perspectivas críticas”

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e abriria novas oportunidades a nossosescritores (“pois é preciso notar que os

programas serão pagos”) (“Televisão eliteratura”, outubro de 1956, 2).Digno de aplausos era, também, o TV

de vanguarda. O programa quinzenalconduzido pelo “mestre” Cassiano Gabus

Mendes, nas noites de domingo, seconstituía numa das “mais sérias ehonestas pesquisas de uma linguagemespecificamente de TV” ( Jornal deLetras, Notícias do País, julho-agosto de

1960, 3). Lançado em 1952, pela Tupi,permaneceu no ar até 1967,apresentando, ao todo, 400 espetáculos(Porto e Silva, 1981). Embora desseprimazia aos clássicos da literatura e da

dramaturgia estrangeira e aos filmesamericanos de sucesso, levou ao arencenações de vários textos brasileiros.A adaptação de O feijão e o sonho, feitapor Walter George Durst, deixou

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Orígenes Lessa comovido: “O autor,presenciando a sua obra no vídeo,

impregnado da mesma dor humilde quelhe dera a sua imaginação, sensibilizou-se tanto que derramou uma lágrima.”(Chico Vizzoni, “O feijão e o sonho”, OCruzeiro, 08 de setembro de 1956, 26).

Diante de tantos exemplosalvissareiros, como dar crédito aossombrios prognósticos de que apopularidade da TV sepultaria o hábitoda leitura? Tanto nos Estados Unidos

como na Grã-Bretanha, o que severificava era que a televisão, pelocontrário, atuava como estimulante daleitura: “A primeira coisa que umtelespectador quer fazer, depois de

assistir à adaptação videoteatral de umromance, é ler esse romance, caso jánão o tenha feito.” (Hugo Covendish, “Atelevisão não matou o hábito da leitura”, Jornal de Letras, agosto de 1961, 9).

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A aproximação entre a galáxia deGutenberg e a da imagem eletrônica era

sacramentada, ainda, em eventos comoo primeiro concurso literário realizadoem parceria com a televisão. A EditoraPiratininga, criadora do prêmio de 50 milcruzeiros, contou com o apoio da TV-

Record, de São Paulo; além dapublicação do romance laureado, o autorreceberia os direitos autorais da obra( Jornal de Letras, Rádio e TV, maio de1958, 10). Visando a estimular o

interesse de nossos “homens de ficção”(sic) pela TV, O Cruzeiro, juntamentecom a Tupi, lançou, em 1960, umconcurso de âmbito nacional, “comprêmios substanciais em dinheiro”; o

objetivo, dessa feita, era criar umaliteratura específica para o “veículo dedivulgação artística e cultural do maisalto poder de penetração”( Ivan Alves,“Literatura e televisão”, O Cruzeiro, 14

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de maio de 1960, 20-22). Movido porpreocupações análogas, Benjamin

Cattan, produtor do TV de Vanguarda,organizou, em 1964, o Primeiro Concursode Peças Nacionais, vencido porOduvaldo Viana Filho, com O matador ,Osmar Lins, com  A ilha no espaço, e

Plínio Marcos, com Estória de subúrbio (Porto e Silva, 1981, 54).Decifrar e tornar proveitosa a

linguagem específica da TV era umaidéia fixa da redação do  Jornal de

Letras. Com intuito de sistematizar apesquisa e a discussão, Eliseo Condésolicitou a Péricles Leal que reproduzisseo curso de Estética da Televisão,ministrado nas novas estações das

Emissoras Associadas. O convite resultounuma série de oito extensos e curiososensaios, que contemplavam todas asfacetas da arte pela imagem,mobilizando referências bibliográficas

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clássicas sobre cinema e estética.Segundo Leal, a TV – considerada

meramente como veículo – se constituía,em realidade, numa manifestaçãoartística, com identidade própria.Transcorridos, no entanto, dez anosdesde o lançamento da televisão no

Brasil, ainda imperava um certo medo deafirmar sua autonomia ante as artescorrelatas.

Era missão do Realizador – “em querepousa toda a responsabilidade da

mensagem da obra de arte na TV, em suatríplice mister de autor (ou adaptador),diretor e produtor” – fazer com que elanão fosse apenas útil (informação,veículo de vendas etc.), mas fonte de

prazer estético, obra de criaçãoartística. Como isso era possível? Tendo-se perfeito domínio das leis e dos valoresestéticos da linguagem visual, suasrestrições e suas possibilidades: “(...) [O]

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conhecimento da linguagem da TV dota oRealizador da capacidade de levar sua

mensagem ao público e atingi-lo namedida exata do ideal Kantiano:‘produzindo em quem os contempla aimpressão de que foram criados semintenção, à semelhança da natureza’.

Dessa perfeita união entre criador ecriatura, realizador e matéria, será feitaa televisão como arte.” (“Televisão: sualinguagem”, setembro de 1960,11). Ofator social da recompensa, da

posterioridade, nada disso deveriapreocupar o Realizador, no “momentomais puro da criação”. O que importavaera produzir beleza, uma narração maisperfeita e mais bem acabada possível

(“Iniciação à televisão”, julho-agosto de1960, 3).Todavia, nem mesmo os programas

mais prestigiosos estavam livres dasdemandas e das pressões implacáveis dos

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patrocinadores. Em janeiro de 57, umanunciante determinou a TV-Rio que

cancelasse seu apoio publicitário aoaclamado A História da Semana. A razãoda birra, segundo o Correio da Manhã,era “deliciosa”: “o homem queria umbreque no texto de Carlos Drummond de

Andrade, para entre moça, flor etelefone, cantar loas ao seuestabelecimento. E, convenhamos, erademais querer criar breque em texto dopoeta Drummond, sem mais aquela...”

(Rádio e TV, 08 de janeiro de 1957, 12).O jornal carioca repisou o tema, 15 diasdepois, deplorando que uma das atraçõesmais elogiáveis da TV não encontrassenovo patrocinador: “Será possível que se

gaste dinheiro com tanta baboseira e nãose queira amparar um teleteatro tão bemfeito, à base de originais tão bemselecionados?” (Rádio e TV, 23 de janeirode 1957, 12).

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  Já no início dos anos 60, o  Jornal deLetras dava os primeiros sinais de

desconsolo com a programaçãoefetivamente levada ao ar por nossasemissoras. Hábeis em capitalizar emcima do congenial mau gosto popular, osinfluentes patrocinadores, os

publicitários e as cúpulas administrativasdas tevês não se mostravam inclinados afomentar a função esclarecedora datelevisão; criavam programas cada vezpiores, que, por seu turno, cooperavam

para rebaixar ainda mais o padrão dogosto (Walter Alves, “A concessão doscanais de televisão”, abril de 1962, 8).

Na coluna “Rádio e TV”, Alves tornavapatente que o gráfico dos sentimentos

provocados pelo novo dispositivoaudiovisual declinava – mês a mês – doentusiasmo ao asco. Enquanto, em todosos países do mundo, a TV arregimentaradiretores, roteiristas e produtores de

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cinema, a nossa – lastimou o crítico – seconservava desgraçadamente fiel ao

rádio. Ambos eram veículos, não formasde arte; só tinham valor quandoutilizavam uma das “artes verdadeiras”:a música, o teatro, o cinema, o ballet ea pantomima. Uma aliança, de resto,

pouco freqüente – a programaçãoprimava pela vacuidade, pelomercenarismo, pela falta de decência,pela inculcação premeditada de valoresalienatórios e alienígenas (“Balburdia

dirigida”, dezembro de 1962, 7 e 10).Para desfazer essa inversão de valores(herança do pervertido sistemacomercial de radiodifusão norte-americano), a única saída era a

intervenção estatal (“Embrutecimentopela imagem”, maio de 1962, 8).Com o golpe de 1964, o controle

governamental sobre astelecomunicações se tornou, de fato,

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mais vigilante. O regime militarenfatizou, desde o início, o caráter

estratégico da TV para a consecução doprojeto nacional exposto na Doutrina daEscola Superior de Guerra (ESG)(Oliveira,  2001). O resultado dainterferência estatal não foi exatamente

o almejado pela crítica ilustrada: com aredução do preço e a ampliação docrediário, o número de televisores emuso no país saltou de irrisórios 2 mil, em1950, para 760 mil, em 1960, e 4 milhões

e 931 mil, em 1970 (Mira, 1995, 30); afim de sintonizar-se com as preferênciasdo novo público das classes C e D, asemissoras investiram numa linha deprogramação cada vez mais popular (ou

“popularesca”).Por razões mercadológicas, o TV deVanguarda  e congêneres saíram daribalta televisiva; a lista das dez maioresaudiências, em junho de 1968, era

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composta por novelas, programas deauditórios e o Tele catch  (Israel Tabak,

“Televisão, subcultura a serviço daalienação”, Caderno B, Jornal do Brasil,16 de junho de 1968, 3). O receio daspropriedades narcotizantes e viciadorasda TV se torna, então, bastante

difundido. Não só o conteúdo toscoirradiado pela TV era diagnosticado comoruinoso para a mente e para o intelecto;numa espécie de versão em negativo dodeterminismo tecnológico de McLuhan,

afiançava-se que os problemas do veículoeram inerentes à sua própria tecnologia –“[A]s pessoas ficam sideradas naquelatela e esquecem que há outras pessoasem volta”, reclamou Vinícius de Moraes,

para quem o maior pecado da televisãoera contribuir para a diminuição dotempo de bate-papo (“TV/Pesquisa: Elanão é boa. Pode melhorar?”, Realidade,outubro de 1970, 16).

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Ressabiado, Alceu Amoroso Lima sóligava a televisão para assistir a

“documentários objetivos”, sem“qualquer intenção normativa, polêmicaou novelesca”; não se tratava depreconceito contra o veículo, mas demanter-se alerta para não virar escravo

dele: “A TV é como álcool. Em pequenasdoses estimula. Em dose maciçaescraviza. E se converte num vício, comoa droga. É preciso, pois, lidar com elacom muito cuidado. Como se lida com

explosivos. Ou com veneno, que dependeda dose. É transparente como água, mastambém como nitrato de prata. Éessencialmente ambivalente. Oupolivalente. E é algo que deve ser

tomado em pequenas doses.” (idem, 15).O homem, que desencadeara a TV,estava começando a ser devorado porela, “a esfinge do século”.

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O acirramento da guerra dominical deaudiência entre Chacrinha e Flávio

Cavalcanti ocasionava seguidasceleumas, desagradando os militares, aIgreja, setores da “classe média domilagre” e a grande imprensa. “Todomundo está discutindo o nível da nossa

televisão. ‘Baixíssimo’, dizem uns;‘Baixíssimo’, afirmam outros;‘Baixíssimo’, juram terceiros. Não douum passo sem esbarrar, sem tropeçarnum sujeito indignado”, escreveu Nelson

Rodrigues ([13/09/1971] 1996, 232), noauge da polêmica gerada pela performance, nos estúdios da Globo e daTupi,  da mãe-de-santo Dona Cacilda deAssis (que dizia receber o espírito do

“Seu Sete da Lira”, um exu daUmbanda).Para Nelson, a unanimidade contra a

TV não era burra – era irreal e hipócrita.Certas coisas, segundo ele, um grã-fino

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só ousaria revelar num terreno baldio, àluz dos archotes, na presença solitária de

uma cabra vadia. Outras não diriajamais, mesmo em solo seguro. Porexemplo: o grã-fino que assistia aoDireito de nascer , ao Sheik de Agadir , aOs Irmãos Coragem, que não perdia um

programa de Dercy Gonçalves, doChacrinha, do Raul Longras, só admitiriaque gostava de televisão ao médium,depois de morto (Rodrigues, s/d, 225;[13/09/1971] 1996, 234). A condição

social de “pequeno burguês” – “semnenhum laivo de grã-finismo” ou “posede intelectual” (Nelson gostava deapresentar-se como um intuitivo) – lhedava, em contrapartida, “descaro

bastante” para confessar de peito abertonão só que assistia à televisão brasileira,como gostava dela, com todo o seu tãocaracterístico e discutido mau gosto(Rodrigues, s/d, 225).

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Os leitores de O Globo se espantaram,decerto, ao ver a firmeza com que

Nelson interpelou o líder da cruzada poruma  televisão mais virtuosa – o ministroda Comunicação, Hygino Corsetti, queventilara a hipótese de cassar aconcessão das emissoras que insistissem

com o “sensacionalismo” e a “baixaria”.O cronista classificou de “uma selva deequívocos” o pronunciamento de suaexcelência sobre a programação dasemissoras brasileiras. Como de hábito,

Nelson abusou do sarcasmo paradesacreditar seu adversário: a verdadeinapelável e fatal – insinuou – era que o“sr. ministro” só pudera iluminar a todoscom uma “minuciosa análise reflexiva

sobre as nossas TVS (sic)”, porque, nofundo, fazia parte dos oito milhões debrasileiros que passavam os dias e asnoites diante da telinha; era, entrequatro paredes, um telespectador

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Nelson costumava afirmar que nossatelevisão era o espelho de nosso povo: “A

pior televisão do mundo é a inglesa comaquela mania cultural. A TV tem que serfeita para as massas e as massas sãoburras e têm mau gosto e não têm nadaque ver com a grande arte, com a grande

música, com a grande pintura. Se ela éfeita para as massas tem que ter o níveldas massas. Evidentemente, você não vaiinvestir bilhões numa TV para que oProust diga: ‘Está ótimo. Tem bom

gosto’.” (“Eu sou um ex-covarde”,entrevista, Veja, 04/06/1969, 5;consultar, também, Rodrigues, s/d, 119;Rodrigues, [13/9/1971] 1996, 233); “Derainhas loucas, bem-amados, irmãos

coragem, etc, etc.”, Opinião, 27/08 a03/09 de 1973, 20).  Aos “radicais” que,seguindo o ministro Corsetti, repetiam aladainha “Precisamos mudar atelevisão”, Nelson replicava que mais

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correto e inteligente seria “mudar opovo”: “Em vez de fazer severas

restrições à TV, sua excelência deviaendereçá-las ao povo. E, então,chegaríamos a essa contingênciarealmente constrangedora: substituir umpovo por outro povo.” (Rodrigues,

[13/09/1971] 1996, 234). Nelson já fazia parte da história datelevisão brasileira, quando semanifestou, de forma enfática, em suadefesa.2  Das declarações anteriores,

depreendemos que ele estavasolidamente convicto de que o veículoque conhecia tão bem era – e deveria ser– um reflexo do  gosto popular , daspreferências da massa ignara. Ao

contrário do ministro Corsetti e de tantas2  O celebrado criador de Vestido de noiva integrou a primeira mesa-redonda sobre futebol da TV brasileira (quiçá, da TV

mundial). O sucesso na  Resenha Facit   o conduziu ao  Noite de gala, carro-chefe da TV Rio, onde apresentou Cabra vadia  –

quadro sui generis de entrevistas, realizado num cenário que simulava um terreno baldio, com caprinos de verdade pastando etudo mais. Nelson escreveu, também, a telenovela  A morta sem espelho (1963), perseguida pela censura e narrada pelo próprio

autor, com sua inconfundível entonação sepulcral; tentou o gênero mais duas vezes, com Sonho de amor (1964), pretensaadaptação de O tronco do ipê, de José de Alencar,  e O desconhecido (1964), história de um neurótico de guerra que fugia do

manicômio (Clark, 1991, 151-154; Castro, 1992, 332-333, 341-342, 345-346; Annette Schwartsman, “Juiz condenou Nelson aofim-de-noite”, Folha de S. Paulo, tvfolha, 16/04/1995, 4; Esquenazi, 1996, 29-30, 98-99).

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outras autoridades governamentais eintelectuais, Nelson não via problema

algum, inclusive, em utilizar a mediçãodo Ibope como sismógrafo dos anseios daaudiência: “(...) [E]ssas pesquisas sãoimprescindíveis. Eu diria mesmo que opior cego é o que não vê a utilidade de

tais pesquisas. (Foi, naturalmente, umlapso de sua excelência).” (Rodrigues,[13/09/1971] 1996, 233).

Quando o assunto era televisão,Nelson (polêmico por cálculo, por

instinto) se indispunha, pois, com gentede todas as divisões ideológicas. Suaperspectiva crítica diferia das posiçõestradicionais a respeito do papel e dainfluência da mídia moderna. Nelson

concordava que a televisão brasileira erade um mau gosto profundo, reflexo, porsua vez, do mau gosto da multidãoinsensível ou refratária à Cultura; nãovia, porém, nenhum mal  nisso – seja do

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ponto de vista moral, político ouestético. Ele reagiu, com veemência, por

exemplo, contra a “ditadura do Juizadode Menores” que escorraçara as novelasdo horário nobre para as onze horas danoite. Do ponto de vista psicológico –argumentou – era uma asneira imaginar

que os folhetins pudessem produzir “umageração de perigosíssimos  gangstersjuvenis”. Pelo contrário: o efeitocatártico lhes conferia o salutar papel dehigienizador mental. Do ponto de vista

estético, ironizou que chegava a ser“sublime” a idéia de impor o bom gosto“a pauladas”. O pior é que os “assassinosda telenovela” estavam apenascomeçando a agir; como uma coisa puxa

a outra, não tardaria para que asmarchas e os sambas fossem igualmenteexpulsos do horário nobre (Rodrigues,[25/09/1964] 1996, 47-48). Do ponto devista político, Nelson atribuía à

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dificuldade de respeitar e compreender o gosto popular   (Chacrinha, escola de

samba, Fla-Flu, sexo) uma das principaisrazões do fracasso das esquerdas noBrasil, mais solitárias, mais insuladas doque um Robinson Crusoé sem radinho depilha (Rodrigues [27/01/1968] 1993a,

120).Nunca é demais lembrar que, nos anos60, seduzidos pela possibilidade de falaràs grandes massas, artistas de esquerdase dispuseram, sim, a deixar os

preconceitos de lado, e tentar modificara televisão, atuando estrategicamentedentro dela (Ortiz, 1988; Ridenti, 2000).“A televisão é ruim assim porque osintelectuais deixaram que ela ficasse

assim. E ela está aí para ficar. Quemquiser mudar que entre na briga”,conclamou o dramaturgo, romancista eator Plínio Marcos (“Telenovela é umaepidemia nacional”, Veja, 07/05/1969,

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29). “Tem muito intelectual metido abacana, que pensa virar estátua, que se

preocupa com o que a História vai dizerdele. Fica sonhando com a academia eacha televisão um negócio sujo. Estesvão ficar falando sozinhos. Pra mim, onegócio é entrar na briga. E partir pro

pau!” (idem, ibidem).O ingresso na TV se harmonizava coma tese, sempre sustentada pelo escritor,de que mais importante que a “cultura”do “artista de elite”, das “pessoas

herméticas que não falam umalinguagem que seja compreendida portodos”, era a “popularidade” (medidapela fácil comunicabilidade com opúblico): “[N]ão adianta absolutamente

nada a cultura enrustida. (...) Nestemomento, nós temos grandes escritores,grandes artistas mesmo e grandes atoresque não conseguem chegar junto a seupovo, não é? E qualquer babaquara da

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Globo chega violentamente... (...) Tenhocerteza, por exemplo, de que se uma

vanguarda não caminhar junto do povoacaba até servindo a quem detém opoder. É preferível caminhar no nível dopovo, não fazendo concessões de idéias,mas fazendo concessões na forma para

atingi-lo.” (Steen, 1981, 256).Assim também pensavam Paulo Pontese Oduvaldo Vianna Filho. Intelectuaisligados ao PCB, eles desembarcaram, em1968, na TV Tupi. A razão foram as

dificuldades de sobrevivência no teatro,em virtude dos problemas com acensura, que acabaram redundando notérmino do Grupo Opinião, do qual eramfundadores. Juntos, os dois escritores

efetuaram uma sensível reformulação nagrade da Tupi: criaram o FestivalUniversitário, o Festival de Música deCarnaval, remodelaram o programainfantil do Capitão Aza e o programa de

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Bibi Ferreira, o “Bibi ao vivo”,  no qualintroduziram um miniteatro, de 12

minutos, previamente gravado sob adireção de Sérgio Brito.O projeto de uma nova programação,

encomendado pelo diretor-geral da Tupi,Almeida Castro, realçava o papel

primordial das telenovelas na guerra deaudiência (Moraes, 1991, 220-222; MariaCélia Teixeira, “Guerra de audiência nãoé de hoje”,  Jornal do Brasil, Idéias, 02/12/2000, 3). Vianinha e Pontes

citavam o colega Dias Gomes comoexemplo de um esquema dramáticorealista ajustado ao gosto popular. E é,seguramente, na trajetória profissionaldesse autor que devemos concentrar

nossa atenção, se quisermos captar todasas nuanças da melindrosa e complicadaconvivência entre as ambições dosartistas de esquerda e as necessidades e

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as preferências dos produtores culturaise da audiência de massa.

A primeira incursão do literato baianona TV é pouco conhecida. Por volta de1953, alastrava-se pelo Brasil umaverdadeira caça às bruxas, versãonacional do macarthismo norte-

americano. Devido a uma viagem à UniãoSoviética, Dias Gomes perdeu o empregona Rádio Clube do Brasil e ficou duranteum ano sem poder escrever usando opróprio nome em qualquer veículo de

comunicação. Para sua sorte, noentanto, a TV Tupi (única situada no Riode Janeiro, à época) não tinha autorescontratados e comprava programasavulsos; Dias passou, então, a escrever

peças policiais, shows e tudo mais quecompusesse a grade da emissora, sob odisfarce do nome de dois amigos e daesposa, Janete Clair (Silva Júnior, 2001,86).

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Autor teatral já renomado (graças àrepercussão, em 1960, da montagem de

O pagador de promessas, adaptada parao cinema, com sucesso, por AnselmoDuarte, em 1963), Dias Gomes retornou àTV, em 1969 – mais uma vez, por questãode sobrevivência. Sem emprego e com as

peças O berço do herói  e  A invasão interditadas, aceitou o convite da RedeGlobo para escrever telenovelas, ao ladode Janete Clair. A idéia de levar suatemática teatral a uma platéia

gigantesca – a mais heterogênea que játivera, composta de elementos de todasas classes sociais, do intelectual aomarginal – lhe soou bastante sedutora (“Do Pagador de Promessas ao Bem-

Amado: Dias Gomes”, Opinião, 26 defevereiro a 04 de março de 1973, 19;Pecegueiro, 1980, 32; Gomes, 1998, 255;Ridenti, 2000, 329; Silva Júnior,2001,84).

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Espinhoso era encontrar, na prática,uma linguagem própria, uma identidade,

para o gênero que nascera do folhetimdo século passado, gerara a radionovelae o filme em série, e encontrara natelevisão seu “veículo ideal”. Ascorriqueiras acusações de “subarte” ou

“subliteratura” eram, nos termos deDias, “preconceituosas” e “idiotas” – aqualidade de uma obra de arte não éinerente ao gênero, mas ao artista e àscondições em que ele desenvolve seu

trabalho. Só uma evidente má fé –acrescentava – poderia considerar “astelenovelas” como um todo uniforme,nivelando, por exemplo, O direito denascer e Selva de pedra  temática,

estética e culturalmente: a primeirapropunha um comportamento passivo elacrimoso diante de uma sociedade cujosvalores negativos são aceitos comoimutáveis, ao passo que a segunda

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discutia e reprovava o conceito de vitóriana sociedade capitalista, levando a uma

reflexão sobre os equívocos de umasociedade baseada no ter   e não no ser ,dando provas eloqüentes de que nemmesmo a censura, o caráter industrial eas condições pouco convenientes de

recepção retiravam da teledramaturgia opotencial crítico (Silva Junior, 2001, 93-94).

A primeira tarefa de Dias, porém, naemissora do Jardim Botânico, foi

inglória: concluir a adaptação dofolhetim italiano do século XIX  A pontedos suspiros, após a saída de GlóriaMagadan. A fim de “aliviar aconsciência”, ele introduziu,

“sutilmente”, no “enredo alienante”,uma crítica à deposição de João Goulart,e à esperança de tempos melhores(Gomes, 1998, 258). Uma ardilezainsuficiente para dar cabo do

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constrangimento do dramaturgo, queassinou a obra com o pseudônimo de

Stella Calderon.A partir daí, Dias Gomes procuroulevar adiante seu projeto de renovaçãoda telenovela, fundamentado numa sériede “experiências temáticas, formais”. A

proposta – endossada por Daniel Filho,então diretor de produção da Globo – eradescartar o formato cubano-mexicanoconvencional dos folhetinsmelodramáticos e ambientados em

paragens exóticas da Espanha e doCaribe e promover uma gradualaproximação entre a teledramaturgia e o“universo real” do telespectadorbrasileiro. Verão vermelho (1970) –

primeira novela assinada pelo autor com o próprio nome (no contrato com aGlobo, havia uma cláusula que lhegarantia um aumento, se assimprocedesse) – era ambientada no interior

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da Bahia, no tempo dos coronéis, etratava da questão da terra e dos tipos

populares regionais: “O visual já erabrasileiro, embora tivesse a aventura e oromance do folhetim, porque não podiame desligar abruptamente disso. Mas jáera uma temática totalmente nossa, um

linguajar nosso, com raízes nossas.”(Silva Júnior, 2001, 89).  Assim na Terracomo no céu  (1970-1971), pretendiamostrar o jeito de ser carioca, com asgarotas de praia e os cafajestes de

Ipanema; Dias se orgulhava da heresiaque cometera logo no vigésimo capítulo,ao matar a heroína da novela, sabendoque iria desgostar 95 por cento dopúblico: “Eu pretendia provocar nele

uma atitude crítica em relação à novela,o que consegui. As cartas insultuosas quepassei a receber, aos montes, criticavama sociedade que eu estava mostrando,supondo que estavam criticando o meu

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trabalho.” (“Do Pagador de Promessas aoBem-Amado”, Opinião, 26/02 a 04/03 de

1973, 19). A aposta no bom-humor, quedistanciava a novela do vale de lágrimasdo folhetim tradicional, foi repetida em Bandeira 2 (1972) – “a melhor novela já

apresentada pela televisão brasileira”,na opinião (amplamente compartilhada)de Veja (“A novela quase namaioridade”, 12/07/72, 80-82).Buscando, no cinema, técnicas cada vez

mais aperfeiçoadas (cenas externas,cortes rápidos, som, iluminação) e comum texto elogiado pelo prestigiosocrítico teatral Ian Michalski, “Bandeira2” ratificara, segundo a revista, o célere

progresso da novela, a partir de “BetoRockfeller”. O público aplaudira aexperiência, sustentando um Ibopeinédito, às 22h, de 55%, no Rio deJaneiro (até então, os índices não

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haviam passado dos 30%, no horário). Osaldo foi positivo, mas Dias Gomes

amargou uma derrota no capítulo final: aCensura exigiu a morte do protagonistaTucão – o bem tinha que triunfar sobre omal.

A despeito das boas intenções e de

pareceres favoráveis a  Bandeira 2 e Obem amado (1973), a marcante passagemde Dias Gomes pela TV suscitouresistências similares às provocadas porseu trabalho no rádio, nos anos 40 –

“Escrever para o rádio naquela épocanão era exatamente uma profissãoartística, digamos assim” (Silva Junior,2001, 83). Os literatos que malbaratavamseu talento, nos meios de comunicação

de massa, submetendo-se a um trabalhofeito às pressas e às demandas e aosveredictos dos patrocinadores, eramrotineiramente alvo de condenação oude compaixão: “Dias Gomes, como tantos

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outros, tem de sentar-se à máquinapondo a alma de lado, para produzir,

obrigado, coisa pior do que o que podeescrever, satisfazendo exigências e‘forças ocultas’ não reveladas mas aoalcance de quem queira ver.” (WalterAlves,  Jornal de Letras, “As lições do

‘Pagador’”, junho de 1962, 6). A busca da  popularidade na indústriatelevisiva resultaram, ainda, em reaçõesde “intelectualóides”, de “idiotas” queachavam que o companheiro estava

cometendo uma espécie de traição,aderindo ao sistema, à alienação querepresentava a telenovela – sobretudo,quando produzida pela suspeitável TVGlobo (Silva Júnior, 2001, 88). Na maior

parte dos casos, Dias Gomes respondia aessa patrulha ideológica repisando anatureza catequizante e ligeiramentesubversiva de sua passagem pela Globo;às vezes, entretanto, adotava uma

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atitude mais realista, relembrando aescassez de oportunidades de trabalho

absolutamente idôneo, durante os Anosde Chumbo (Ridenti, 2000, 327).Todavia, o próprio escritor, na sua

correspondência pessoal ou nasanotações de seu diário, se revela mais

desgostoso com o trabalho na televisãodo que externava em declaraçõespúblicas. No diário que o autor mantevepor quase três anos, entre agosto de1959 e maio de 1962, a ambição de

realizar-se no teatro é assuntorecorrente: “Preciso me realizar comoautor. Parece que reencontrei o meucaminho. Devo ter força de vontade paranão deixar que me afastem dele

novamente. Recebi um pedido de Aiméepara escrever uns programas de televisãopara ela. Não vou aceitar. Chega demediocrizar o meu nome.” (08/11/1959;em “Uma vida aberta”, O Globo,

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Segundo Caderno, 03/06/2001, 6). Emcarta enviada a Jorge Amado, em

fevereiro de 1992, o dramaturgolamentava não poder deixar a TV de ladopara dedicar-se a um romance: “Poucossão os que, como você e Zélia, podemviver de fazer o que gostam. Eu passei

pelo menos um terço de minha vidafazendo o que não gostava. E continuo.Como um garoto que detesta jiló, mas amamãe ameaça ‘se não comer jiló nãovai brincar’. E ele é obrigado a enfiar o

jiló goela abaixo. Eu vivo comendo jiló.”(idem, ibidem).Leitor de Ponson du Terrail, Eugène

Sue, Michel Zevaco, Xavier de Montepin,Alexandre Dumas pai; autor de Meu

destino é pecar , Escravas do amor , entreoutros folhetins assinados com opseudônimo de Suzana Flag ou Myrna,Nelson Rodrigues não manifestava grandeentusiasmo pela modernização  da

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telenovela empreendida (a contragostoou não) por Dias Gomes e outros autores

com ambições revolucionárias no planopolítico e/ou estético. No seu entender,a televisão (como, de resto, toda aindústria cultural) era sinônimo dediversão, passatempo, fortes emoções e

é só. A missão  da telenovela não eraexpor as chagas do país, conscientizarpoliticamente as massas, mas entreter asanta e abnegada audiência. Novela progressista era, na sua avaliação, um

oximoro – tratava-se de um gênero deíndole conservadora, que funcionavacomo válvula de escape para asensaboria cotidiana e para as tensõessociais: “A novela é sobretudo uma fuga.

Como a realidade é muito insatisfatória,a novela representa o sonho cotidianopara muita gente. É um repouso.” (“Derainhas loucas, bem-amados, irmãoscoragem, etc, etc”, Opinião, 27/08 a

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03/09 de 1973, 20). Tampouco cabia àTV mediar a alta cultura para o grande

público: a intenção de importar omodelo cultural europeu (notabilizadopela televisão pública britânica) não eraapenas precipitada; representava umatraição a certo instinto de nacionalidade 

expresso pelas emissoras brasileiras –com suas vulgaridades sublimes, com sualealdade a formas narrativas eespetaculares de comprovado apelopopular no correr dos séculos, sobretudo,

na América Latina (“Telenovela é umaepidemia nacional”, Veja, 07/05/1969,29; “Eu sou um ex-covarde”, Veja,04/06/1969, 5; “De rainhas loucas, bem-amados, irmãos coragem, etc, etc.”,

Opinião, 27/08 a 03/09 de 1973, 20).Atuando como advogado deChacrinha, no caso do “Seu Sete daLira”, o autor repisou a denúncia dasimposturas intelectuais que norteavam a

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crítica televisiva: “Aristóteles havia deachar uma graça infinita no nosso

Abelardo Barbosa. Claro, porque ele nãoprecisa fingir inteligência.” (Rodrigues,[13/09/1971] 1996, 235). NelsonRodrigues não foi o primeiro nem o únicoa conduzir Chacrinha ao trono. Como é

de conhecimento geral, “o velhopalhaço” foi eleito um dos gurus dotropicalismo, movimento artístico ecomportamental que eclodiu no eixo Rio-São Paulo em 1967, capitaneado por

Caetano Veloso e Gilberto Gil. Antesdeles, outro intelectual da velha guarda como Nelson não escondera suaadmiração pelo comunicador. Em 02 deabril de 1966, Manchete  promoveu,

dentro da série Diálogos Impossíveis, oencontro entre Chacrinha e Rubem Braga– “homens de mundos aparentementediferentes”, mas “escravos ambos dopovo”. A conversação, “que a princípio

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parecia difícil de se estabelecer”,acabou esticando-se por horas a fio na

cobertura do “sabiá da crônica”, emIpanema. Uma conversa longa e franca arespeito de temas variados (de RobertoCarlos a Nossa Senhora da Penha), masem que prevaleceu a rasgação-de-seda e

a troca de idéias acerca da arte decativar o gosto popular .Será mera coincidência que os elogios

à Chacrinha tenham partido de homensde letras que se notabilizaram por sua

atuação em gêneros não auráticos, cujaexpansão está ligada ao aparecimentodos meios de comunicação de massa?Decerto que não. “Há homens que sãoescritores e fazem livros que são

verdadeiras casas, e ficam. Mas ocronista de jornal é como o cigano quetoda noite arma sua tenda e pela manhãa desmancha, e vai”, meditou RubemBraga, a respeito de seu ofício ([1951]

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Teatro. Este, no seu ponto de vista,permanecia indigno de ostentar a

condição de  grande arte justamente pornão pressupor uma concepção imaculadae uma fruição solitária, reverente,análoga à do romance e à do soneto,tendo de submeter-se aos caprichos da

platéia (Rodrigues, [1967] 1993b, 156-157; ver, também, Rodrigues[16/05/1968] 1993a, 247; Rodrigues,[18/03/1971] 1995, 190). Amargurado, odramaturgo sonhava com uma

representação utópica, para cadeirasvazias: “Só seria autor, atriz ou ator,aquele que tivesse disposto a trabalharpara ninguém. (...) Comecei a achar quetambém as igrejas vazias são as mais

belas. O que comprometia e debilitava afé eram os fiéis.” (Rodrigues [1967]1993b, 157).

Não há dúvida de que a hostilidade deNelson contra as “duzentas senhoras

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gordas comedoras de pipocas” da platéiateatral era, em larga medida, uma

resposta à recepção escandalizada oupouca atenciosa às suas peças. Por ironiado destino, no exato instante em que eleredigia suas crônicas, memórias econfissões, a televisão brasileira

incrementava as mudanças que visavama atender nem tanto o “bom-gosto-sem-tostão-dos-intelectuais” (Rodrigues[13/09/1971] 1996, 235), as plataformaspolíticas mais ambiciosas dos artistas de

esquerda, mas o bom-gosto  do públicode classe média freqüentador displicentee desconceituado de teatro e consumidor(não só) de pipocas (constituindo-se, porconseqüência, num agente

importantíssimo para a efetivação doprojeto desenvolvimentista do governomilitar e das emissoras de TV). Em outraspalavras: após muito alvoroço, muitapalpitação, prevaleceu, em detrimento

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começar a ver as adaptações.” (Cadernosde Literatura Brasileira, n3, março de

1997, 46). Em que pese a angústia datraição, o escritor reconhecia que taisinfidelidades ao texto original eraminevitáveis (Pecegueiro, 1980, 25). Nofinal das contas, o ganho cultural (e

financeiro) da transposição de suashistórias para a telinha (aqui e alhures)compensava os possíveis desacatos àautoridade autoral (Steen, 1982, 63). 

Existia, porém – lastimava Amado – um

“elitismo” que negava, por princípio,qualquer qualidade literária àdramaturgia televisiva, mesmo diante detantas realizações dignas de louvor –adaptações, como Vida e morte severina 

e  Anarquistas, graças a Deus, e obrasoriginais, como Feijão maravilha, cheiade “encanto” e “invenção” (Raillard,1990, 281). Essa rejeição em bloco da

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ficção televisiva podia ser apontadacomo mais um exemplo de como a

“condição de intelectual” conduzia, nãoraro, a um distanciamento dasnecessidades e da vivência do “povo”(Ricciardi, 1991, 62).

Vê, assim, o leitor desse

levantamento histórico (altamenteseletivo, óbvio) desenhar-se umconfronto singular, marcado por ofensas,invejas e ressentimentos mútuos: temos,esquematicamente, de um lado, a

pavoneada rejeição dos que possuíamnível de educação formal mais alto às“emoções baratas” ou “alienantes” daTV; do outro, a resistência àsinquietações e autoproclamadas virtudes

dos “artistas de elite”, dos“intelectuais” ou “intelectualóides”, porparte dos homens de letras que sujavamas mãos, nas arenas da indústria cultural,com a intenção deliberada de falar pela

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