a construção das hierarquias sociais: classe, raça, gênero e etnicidade, márcio mucedula...

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  • 7/28/2019 A construo das hierarquias sociais: classe, raa, gnero e etnicidade, Mrcio Mucedula Aguiar

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    8 3Cadernos de Pesquisa do CDHIS n. 36/37 ano 20 p. 83-88 2007

    As Hi erarqu ia s So ci ai s cons ti tu em-s e um dos

    temas fundadores das Cincias Sociais. De Marx a

    Max Weber, dentre outros, essa problemtica

    fundamental. Na Filosofia Moral esses estudos

    sempre foram associados aos privilgios e ao

    sentimento de Honra Social1

    . No Brasil, a questo dopreconceito e da discriminao, esto implicados na

    associao entre a raa e classe. Esse texto pretende

    fazer um esclarecimento preliminar sobre esses

    conceitos.

    Karl Marx, sem dvida nenhuma, foi um dos que

    mais se preocupou com os estudos das hierarquias

    sociais. Sua interpretao do capitalismo bem como

    das possibilidades de sua superao esto

    intimamente ligados sua teoria das classes sociais.

    Para Marx, as classes sociais so realidades objetivas

    decorrentes de posies que os sujeitos ocupam na

    esfera produtiva. A posse ou ausncia do capital

    define o pertencimento a uma das classes

    fundamentais: burgueses ou proletrios. Essas

    posies na estrutura social implicariam na criao

    de interesses e orientaes que possibilitariam uma

    ao comum entre os membros de uma mesma

    classe. O seu conceito de classe s tem sentido no

    A construo das hierarquias sociais:

    classe, raa, gnero e etnicidade

    Mrcio Mucedula Aguiar

    Doutor em Sociologia. Professor na UNITRI e Catlica de Uberlndia.

    [email protected]

    R e sum o

    A prop os ta ce nt ra l de st e ar ti go di sc ut ir , da

    perspectiva da Sociologia, a construo da

    interseco das categorias gnero, classe e raa e

    entender como as diferenas sociais soestruturadas por hierarquias raciais.

    Palavras-Chave: Hierarquias Sociais. Sociologia.

    Preconceito. Discriminao

    A b s t r a c t

    The main proposal of this paper is to discuss, from

    the perspective of Sociology, the construction of

    the intersection of the categories: gender, class

    and race and understand how social differencesare structured by racial hierarchies.

    Keywords: Sociology. Categories. Differences.

    Social Hierarchies.

    corpo de sua teoria geral do funcionamento do

    capitalismo.

    Essa distino se faz necessria para pensarmos

    um pouco como se formam os conceitos dentro das

    Cincias Sociais. Segundo Guimares2, nas Cincias

    Sociais existem dois tipos de conceitos: os nativos e osanalticos. Os conceitos nativos esto ligados quelas

    categorias que so criadas e tm sentido dentro do

    mundo prtico e efetivo. So conceitos desenvolvidos

    historicamente e com sentido para um determinado

    grupo humano. Fazem parte do senso comum das

    pessoas e das formas como elas se classificam ou

    classificam as outras. Quanto aos conceitos

    analticos estes s fazem sentido no corpo de uma

    determinada teoria cientfica. Nesse sentido, o

    cientista social procura observar como as pessoas se

    classificam e pensam as hierarquias, por exemplo,

    como os trabalhadores percebem e elaboram sua

    prpria condio de classe. De alguma maneira os

    conceitos analticos nascem a partir do estudo dessas

    fontes. O cientista social procura dar um sentido

    mais preciso que s tem lgica dentre uma teoria

    mais ampla de um fenmeno social.

    Feito esse esclarecimento, voltemos discusso

    1 GUIMARES, Antnio Srgio Alfredo. Classes, Raas e Democracia. So Paulo: Editora 34, 2002.

    2 GUIMARES, Antnio Srgio A. Como trabalhar com raa em Sociologia. Educao e Pesquisa. Vol. 29 n 1 So Paulo Jan/Jun, 2003.

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    das classes sociais. Observamos que para Marx, a

    classe era um conceito objetivo decorrente da esfera

    produtiva. Max Weber amplia o debate, na medida

    em que separa na sua teoria as dimenses

    econmicas, polticas e sociais da distribuio do

    poder na sociedade. Lembremos que a temtica das

    hierarquias sociais est relacionada distribuiode poder na sociedade. A classe social decorreria da

    posse de determinados bens que tem importncia

    decisiva na esfera do mercado. Existem situaes

    em que o critrio de pertencimento ao grupo a

    honra e o prestgio social. As relaes sociais so

    baseadas nas regras de pertena a grupos de status

    ou estamentos. Se a situao de classe condicionada

    por motivos puramente econmicos, a situao

    estamental condicionada ao sentimento de (...)

    uma estima especfica positiva ou negativa dahonra adscrita a alguma qualidade comum a

    muitas pessoas. (....) a honra.... expressa na

    exigncia de um modo de vida determinado para

    todos que queiram pertencer ao seu crculo.3

    An al it ic am en te , a cl as se fo i vi st a co mo um a

    associao ou como uma comunidade. Quando se

    pensa a classe como comunidade, pode ser associada

    a uma comunidade de destino ou de origem. Aqui

    quando se pensa na origem, esse discurso pode ser

    equiparado s raas e etnias. Essa idia da classe

    como comunidade nos remete idia de que essa

    categoria sempre um processo em formao e

    nunca algo permanente, pois, necessita de um

    discurso de origem ou destino.4

    No Brasil temos algumas hierarquias que

    combinam com a classe, raa ou a cor a que esto

    intimamente ligadas ao processo de formao de

    nossas diferenas sociais. Sabemos que atualmente

    com o desenvolvimento cientfico das cincias

    naturais e sociais o conceito de raa cada vez mais

    questionado em sua eficcia cientfica. No existenenhuma pesquisa que comprove que a cor da pele,

    ou outras caractersticas fsicas implicariam em

    certos comportamentos morais ou qualidades

    essenciais a um determinado povo como se

    acreditava no final do sculo XIX. No final da

    segunda guerra mundial depois do holocausto

    nazista, houve um esforo muito grande por parte

    de geneticistas, bilogos, antroplogos e socilogos

    no sentido de banir o conceito de raa das cincias.

    As pe sq ui sa s de Ma rx e Du rk he im be m co mo

    antroplogos como Franz Boas demonstraram que o

    mundo social tinha uma especificidade prpria,

    diferente das ordens naturais. O conceito de culturaseria muito mais vivel para se pensar as diferenas

    humanas do que o conceito de raa. O mundo social

    est intimamente ligado a um universo simblico

    que lhe d sentido e significado.

    Se do ponto de vista da natureza o conceito de

    raa no se sustenta para discutir nossas diferenas,

    apesar disso, ele ainda opera na vida social. Os seres

    humanos se pensam e se classificam enquanto

    pertencentes s raas. Sociologicamente poderamos

    dizer que a raa uma construo social. Ou seja, acor ou raa de uma pessoa est associada a certo

    significado simblico. Sabemos que ser negro e branco

    no Brasil implicam em diferenas de tratamento,

    por exemplo, no acesso ao mercado de trabalho ou

    no critrio esttico.

    No caso brasileiro nossa noo nativa de cor pode

    ser associada a uma derivao a idia de raa. 5 A

    raa ou a cor funciona como um critrio relevante

    no preenchimento de posies na estrutura de

    classes.6 Nesse sentido, a raa funciona como um

    mecanismo adscritivo de criao de desvantagens

    no acesso ao mercado de trabalho e outros setores da

    vida social.

    comum acreditar que a situao dos afro-

    descendentes no Brasil de se encontrarem nas

    camadas mais pobres da populao se deve muito

    mais pobreza e ao passado escravista do que

    existncia do preconceito e da discriminao em nossa

    sociedade. A existncia de uma extensa miscigenao

    teria criado uma sociedade hbrida e, portanto, mais

    tolerante com as diferenas. Em nosso caso afronteira entre raa e classe muito tnue. Pode-se

    afirmar que a pobreza tem cor no Brasil. Portanto, a

    raa ou cor, so conceitos essenciais para se pensar

    as hierarquias sociais.

    Lembro-me de um evento de discusso sobre a

    implementao das chamadas aes afirmativas no

    3 Apud BARBOSA, Lucia Maria de Assuno et al. De preto a afro-descendente : trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relaestnico-raciais no Brasil. So Paulo: EDUFSCar, 2003, p. 124.

    4 GUIMARES, Antnio Srgio Alfredo. Op.cit. 2003.5

    Idem,2002.6 HASENBALG, Carlos A. (1979). Discrimin ao e Desig ualdades Raciais no Brasi l. Rio de Janeiro: Graal.

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    Brasil, onde uma estudante indignada com o

    professor contrrio a essas polticas fez uma colocao

    em que ela ilustrava muito bem o teor de nossas

    hierarquias. Num discurso emocionado ela

    afirmava que era negra, mulher, pobre e gorda e

    preferia ser discriminada com um diploma obtido

    atravs do acesso universidade por um sistema decotas do que continuar sendo discriminada sem

    acesso universidade. Em sua fala demonstrou pelo

    menos quatro fatores que fundamentam as

    hierarquias sociais no Brasil: a cor, o gnero, a classe

    e o padro esttico.

    O Gnero uma das dimenses fundamentais na

    construo das hierarquias sociais. Pode-se observar

    que esse conceito comea a ser considerado

    importante para se pensar nossas hierarquias a

    partir da dcada de oitenta com a ascenso doschamados Novos Movimentos Sociais. Benhabib e

    Cornell7 demostram como o surgimento do

    movimento feminista e a chamada nova esquerda

    levam a uma reestruturao terica a partir da

    perspectiva feminista. Poderamos ampliar, no s

    o movimento feminista, mas tambm o movimento

    negro e outros movimentos que colocam problemas

    aos conceitos desenvolvidos pela tradio ocidental.

    Tais movimentos acabam por questionar as

    categorias fundamentais da cincia, teorias e

    metodologias ocidentais. Para essas autoras h uma

    necessidade de mudana do paradigma marxista

    para o pensamento feminista. O que seria esse

    chamado indivduo portador da razo e que busca a

    liberdade? Ser que ele possui gnero, cor e etc.?

    Ser que tais diferenas tm alguma atuao na

    formao do seu eu e da sua posio social?

    Podemos observar que o marxismo ortodoxo

    possui alguns pressupostos: o materialismo histrico

    que enquanto cincia busca generalizaes

    semelhantes a leis; essa concepo coloca que astransformaes sociais so determinadas em ltima

    anlise pelas relaes de produo; que a conscincia

    de grupo est ligada posio ocupada na esfera

    econmica e nesse sentido as classes sociais so os

    atores coletivos mais importantes.

    Segundo essas autoras a tradio de pensamento

    ocidental marcada pela construo de um conceito

    de razo deontolgico. Nesse sentido, o pensamento

    ocidental faz uma distino entre o sujeito e o

    conhecimento. O conhecimento torna-se possvel

    devido existncia de um sujeito que portador da

    razo, este sujeito existe independente das condies

    histricas e uma categoria universal. Tal conceito

    semelhante ao conceito de indivduo que aparece

    nas teorias contratualistas, um indivduo portadorda razo percebe a necessidade da criao de um

    contrato social para que sua existncia seja garantida

    atravs da criao do Estado.

    A chamada razo deontolgica acaba por reduzir

    os conceitos sua essncia deixando de lado a

    particularidade. Nesse sentido, o prprio conceito

    de cidadania no leva em considerao as

    particularidades dos vrios grupos sociais. Portanto,

    essa razo como conceito deontolgico incapaz de

    pensar a diferena e particularidade sem reduzi-la irracionalidade.

    Para as autoras a prpria dicotomia entre vida

    pblica e privada no capaz de perceber as

    especificidades e os anseios frutos da condio de

    gnero da mulher. A esfera pblica de uma forma

    geral foi identificada como o locus do indivduo, onde

    este indivduo na busca do bem comum contribui

    para o bem geral. Enquanto a esfera privada foi

    identificada como o espao do amor e da afeio. De

    certa forma, a esfera pblica o espao da razo

    enquanto a esfera privada o espao por excelncia

    da famlia. Ou seja, cabe confinar a mulher no

    espao privado e neste locus que se realizam a

    socializao dos filhos, atividade praticamente

    identificada ao papel da mulher. Nessa perspectiva,

    as mulheres passam a ser naturalmente

    confinadas esfera de vida privada.

    Ainda segundo as autoras, torna-se necessrio

    uma redefinio das categorias pblico e privado

    com a incorporao de padres de comportamento e

    emocionalidade que antes eram identificados aofeminino e confinados esfera privada. O

    feminismo ao questionar o conceito deontolgico de

    razo e a dicotomia pblica e privada acaba tambm

    por demonstrar que o princpio normativo e

    dispositivo institucional da teoria poltica liberal no

    consegue lidar com as diferenas. Portanto, o

    conceito de indivduo (persona pblico) prejudicado

    pela desigualdade, assimetria e dominao que

    7

    BENHABIB, S.; CORNELL. Feminismo como Crtica da Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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    permeia a identidade privada desse sujeito dotado

    de gnero. O enfoque liberal do eu tem a perda da

    compreenso do eu dotado de gnero, e poderamos

    ampliar, o eu marcado pela identidade tnico-racial.

    A crtica do feminismo coincide dessa forma como

    uma srie de argumentos que permitem questionar

    o pensamento ocidental.Para Boaventura Souza Santos8, a Sociologia da

    dcada de 80 vai ser dominada pela temtica dos

    novos movimentos sociais que se configuram em

    novos atores polticos. Este autor observa que, as

    transformaes geradas pelo excesso de regulao

    do modelo fordista acabaram possibilitando o

    surgimento de um conjunto de movimentos

    emancipatrios que buscaram desvendar formas de

    opresso que transcendiam o ambiente de produo.

    Ou seja, antes o principal movimento emancipatrioera o operrio. Suas demandas eram fortemente

    ligadas s questes econmicas. A desigualdade

    econmica era vista como principal fonte de

    estruturao das desigualdades sociais. Sua luta se

    concentra basicamente na luta pelas melhores

    condies de vida do operariado. Tal processo em

    linhas gerais culminar no desenvolvimento do

    chamado Estado de Bem-Estar Social.

    Progressivamente este Estado garante um conjunto

    de direitos sociais comea tendo como conseqncia

    uma maior regulao da vida social.

    A no vi da de ma io r do s NM Ss re si de em qu e

    constituem tanto uma crtica de regulao social

    capitalista, como uma crtica da emancipao

    social socialista tal como ela definida pelo

    marxismo. Ao identificar novas formas de

    opresso que extravasam das relaes de

    produo e nem sequer so especficas delas, como

    sejam a guerra, a poluio, o machismo, o

    racismo ou produtivismo, e ao advogar umparadigma social menos assente na riqueza e no

    be m- es tar ma te ri al do qu e na cu lt ur a e na

    qualidade de vida, os excessos de regulao da

    modernidade. Tais excessos atingem, no s o

    modo que se produz, mas tambm o modo como

    se descansa e vive; a pobreza e as assimetrias das

    relaes sociais so a outra face da alienao e do

    desiquilibrio interior dos indivduos; finalmente,

    essas formas de opresso no atingem

    especificamente uma classe social e sim grupos

    sociais transclassistas ou mesmo a sociedade no

    seu todo. 9

    A citao longa , mas essencial para entender

    as crticas tanto do Movimento Feminista como do

    Movimento negro ao movimento operrio. Se boa

    parte das hierarquias se constroem a partir da

    classe, existem outras diferenas que so geradoras

    de desigualdade que necessariamente no derivam

    da posio de classe. Ou dito de outra maneira,

    existem certas hierarquias que se combinam classe

    social gerando certas especificidades de opresso que

    o movimento operrio desconsiderou.As mu lh er es se mp re ti ve ra m um pa pe l

    importante na luta do movimento operrio. Apesar

    disso, em seus lares continuavam oprimidas tendo

    que conciliar o mundo do trabalho com as tarefas

    domsticas, o cuidado dos filhos, considerados uma

    atribuio natural das mulheres. Segundo Stolcke 10,

    o termo gnero enquanto categoria analtica foi

    introduzido nos estudos feministas na dcada de 80.

    Antes, as funes associadas s mulheres como a

    maternidade e o cuidado com o lar eram vistas como

    atribuies naturais do sexo feminino. Tal

    naturalizao do comportamento feminino

    fundamentava uma srie de desigualdades e

    hierarquias.

    Os estudos feministas passaram a utilizar o termo

    gnero para interpretar as relaes entre homens e

    mulheres. Gnero designaria os significados

    simblicos e sociais associados ao sexo. Com isso era

    possvel observar que certas atividades associadas

    ao feminino muito mais que uma atribuio

    natural ligada ao sexo, era uma construo scio-cultural que justificava a subordinao das

    mulheres aos homens. As desigualdades entre

    homens e mulheres eram, portanto, naturalizadas.

    Para Stolcke11 os estudos sobre as mulheres

    enfatizam principalmente suas experincias, sejam

    as benficas como as prejudiciais. J os estudos de

    8 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mo de Alice: o social e o poltico na ps-modernidade. 5 ed. So Paulo: Cortez, 1999, pg. 256.9 Boaventura Souza Santos. Op. cit., pg. 258.1 0 STOLCKE, Verena. Sexo est para gnero assim como raa para etnicidade? Estudos Afro-Asiticos, (20): 101-119, junho de 1991.

    1 1 Idem, p. 103

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    gnero percebiam que a situao das mulheres s

    poderiam ser apreendidas numa abordagem

    relacional, ou seja, na relao entre homens e

    mulheres. Nessas relaes hierrquicas que

    demarcam funes associadas ao sexo, lugares sociais

    e padres de comportamento que se pode perceber

    como o gnero uma dimenso importante naconstruo de nossas hierarquias.

    Apesar disso, segundo Stolcke a teoria feminista

    concebia as mulheres como uma categoria social

    indiferenciada. Isso gerou uma insatisfao das

    mulheres negras com relao a falta de sensibilidade

    por parte do movimento feminista em relao as

    formas de opresso especficas sofridas pelas

    mulheres negras. Seria necessrio abordar a

    maneira como gnero, classe e raa se cruzam para

    criar no apenas fatores comuns, mas tambmdiferenas na experincia das mulheres.

    A mulher negra no Brasil discriminada duas

    vezes: por ser mulher e por ser negra. Retomemos o

    depoimento da estudante negra, que ressalta

    claramente a interseco de vrios fatores na

    construo das hierarquias associadas s mulheres

    negras. H uma dimenso ligada classe social. Ou

    seja, essas mulheres sofrem a discriminao

    associada falta de recursos econmicos e sua

    posio subalterna ligada ao trabalho manual. Para

    uma compreenso melhor dessa desigualdade no

    se pode deixar de acrescentar a dimenso tnico-

    racial, as mulheres negras pertencem a um grupo

    social historicamente discriminado. Suas

    caractersticas fsicas ligadas negritude foram

    estigmatizadas. Pensemos no padro esttico. Numa

    cultura de forte vis eurocntrico o belo est

    associado pele branca, cabelos lisos e olhos claros.

    Nossos meios de comunicao, livros didticos

    reforam um padro de beleza que coloca a mulher

    negra numa condio de inferioridade.Nas novelas e programas infantis as

    protagonistas em sua maioria so brancas, na dcada

    de oitenta, boa parte das apresentadoras de

    programas infantis eram brancas. Nas novelas, a

    maioria das personagens negras exercem atividades

    subalternas como domsticas, criadas e ajudantes.

    Agora recentemente que essa dimenso comea a

    ser repensada, principalmente pela presso das

    organizaes do Movimento Negro. Associa-se a

    mulher negra s atividades manuais, muitas pessoas

    consideram natural as empregadas domsticas

    serem negras.

    Bernardino em seu estudo sobre a hierarquia ecor entre empregadas domsticas demonstra como

    essas hierarquias beneficiam as mulheres brancas

    de classe mdia:

    O estudo sobre empregadas domsticas revela

    algumas ambigidades do processo de

    urbanizao do Brasil, entre elas o fato de que a

    emancipao das mulheres brancas de classe

    mdia no se estendeu s mulheres negras pobres

    (Cf, Guimares, 2002). Ao contrrio, foi atravsda condio oprimida destas ltimas que as

    mulheres brancas de classe mdia alcanaram o

    seu grau de liberdade, salvando-se das eventuais

    tiranias no mbito domstico. 12

    Como se pode observar a dimenso de gnero

    assume um papel importante na construo das

    hierarquias sociais. No caso da mulher negra

    necessrio acrescentar essa dimenso ligada cor

    ou raa. Ou seja, a compreenso da situao das

    mulheres negras depende da interseco desses dois

    fatores: o gnero a cor ou raa.

    A relao entre cor e hierarquia social no Brasil

    uma dimenso h muito tempo estudada por

    socilogos brasileiros. Alm dos trabalhos de

    Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e

    Octvio Ianni, um autor pouco relembrado, mas

    fundamental para entender a construo de nossas

    hieraquias o socilogo Oracy Nogueira.

    No final da dcada de 50 Nogueira 13 demonstrava

    a existncia de um preconceito diferente do existentenos Estados Unidos. Oracy Nogueira classificava

    nosso preconceito como de marca e no de origem.

    Possuir um padro esttico diferente da cor branca,

    ter uma condio social inferior, executar certos

    tipos de trabalho todos esses fatores atuariam no

    sentido de preterir os negros em relao aos brancos.

    12 BERNARDINO, Joaze. Hierarquia e cor entre empregadas domsticas em Goinia. In. : Barbosa, Lcia Maria de Assuno...et al. De pretoa afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relaes tnico-raciais no Brasil. So Carlos: EdUFSCar, 2003,p. 240.

    13

    NOGUEIRA, Oracy. Preco nceito de Marca: as relaes raciais em Itapetininga. So Paulo: Edusp, 1998.

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    Este tipo de preconceito estabeleceria uma gradao

    de cores, do mais escuro ao branco. Quanto mais

    prximo da cor branca maiores s probabilidades de

    uma pessoa ascender socialmente. Um preconceito

    mais assimilacionista criando dificuldade para

    percepo do racismo e dificultando a criao de uma

    identidade negra forte diferente do padro norte-americano. Nos Estados Unidos a origem da pessoa

    que define sua condio racial.

    Dito isso, falta falar de um outro conceito, a

    etnicidade. Segundo Hofbauer14, foi o antroplogo

    Franz Boas, o primeiro pensador a se rebelar contra

    o valor explicativo atribudo raa. Boas

    reivindicava uma separao absoluta entre a Raa

    (mbito biolgico) e a Cultura ou Culturas Humanas.

    Boas conseguiu demonstrar que o mbito biolgico

    no tem quase influncia nenhuma sobre odesenvolvimento das culturas humanas.

    No final dos anos 60 alguns antroplogos

    comearam a perceber que o conceito de cultura no

    conseguia analisar certas situaes do mundo

    emprico. Observa-se que as fronteiras das culturas

    no coincidiam com as fronteiras grupais. Era

    possvel que dois grupos compartilhassem

    caractersticas em comum como lngua e religio e,

    no, entanto se sentissem diferentes um do outro.

    Os estudos de Frederik Barth sobre os grupos

    tnicos e suas fronteiras demonstrou que no

    existem diferenas objetivas que levem a seres

    humanos criarem grupos tnicos diferentes. Os

    grupos escolhem alguns sinais ou traos diacrticos,

    como por exemplo, a cor da pele, a vestimenta ou

    tipo de cabelo para afirmarem sua diferena em

    relao a outros grupos. Portanto, a identidade

    sempre um fenmeno relacional, processual e

    contrativo. A questo da identidade e da etnicidade

    apontam para um carter mais subjetivo de

    construo de nossas identidades sociais ehierarquias.

    Podemos perceber que a classe, raa e etnicidade

    so conceitos importantes para se pensar as

    fronteiras das diferenas. Talvez a reflexo sobre essas

    fronteiras sejam essenciais para que um dia

    tenhamos uma sociedade onde no existam

    fronteiras da diferena mas respeito e convvio

    harmnicos entre as mesmas.

    Referncias:

    BENHABIB, S.; CORNELL. Feminism o como Crti ca da

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