593702_vitale, luis. a espanha antes e depois da conquista da américa

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VITALE, Luis. “A Espanha antes e depois da conquista da América”. In: VITALE. Feudalismo, capitalismo, subdesenvolvimento . Akal Editor, Madrid, 1977. Tradução: Heloisa Guaracy Machado 1 (OBS: ver o roteiro de leitura na página final) A Baixa Idade Média e a Crise do Feudalismo O feudalismo foi um regime de propriedade privada da terra, de pequena economia agrária e artesanal, baseado primordialmente na troca; um sistema cuja estrutura social se fundamentava em relações de servidão, como vassalagem, homenagem, benefício, castigo para aquele que abandona o feudo, adstrição à gleba, etc. No plano político, o feudalismo se caracterizava por apresentar uma realeza débil e uma nobreza autônoma, possuidora da terra. O trabalho dos servos era base do regime feudal. O sobre produto, não retribuindo o serviço prestado, constituía a renda do solo. Esta podia ser renda em trabalho prestado (prestação pessoal ou trabalho obrigatório que o servo devia efetuar nas terras do senhor), renda em espécie (entrega de determinada quantidade de produtos agrícolas e artesanais) e renda em dinheiro (variante da anterior, aplicada no período final da Idade Média). Esse regime lançou suas primeiras raízes no período final do Império Romano, alcançou seu ponto culminante entre os séculos IX e XII e entrou em crise irreversível durante a baixa Idade Média (séculos XIII ao XV). O choque da cultura mulçumana com a europeia vai minando ao longo de sete séculos, a estrutura feudal. As cruzadas quebraram os estreitos moldes do feudo. Turcos, árabes e judeus recorrem ao mare nostrum, criando feitorias e penetrando no interior dos feudos para vender suas mercadorias. Já não basta ao senhor feudal a economia natural de suas terras para adquirir as novidades em tecidos e espécies que os orientais depositam na sua mesa. A economia de subsistência entra em contradição com as novas relações de produção e de troca. Os burgos crescem. Uma nova classe social começa a emergir nos limites dos castelos do século XII: é a burguesia comercial. Os servos iniciam a emigração do campo para a cidade, incorporando-se à nascente indústria de corporação do artesanato. Os banqueiros de Gênova, Veneza e Báltico, surgidos das novas necessidades urbanas, vão transformando, ainda que lentamente, a vida econômica e social do medievo. A economia natural vai se transformando em economia monetária. A contradição entre o regime feudal e o desenvolvimento das novas forças produtivas põe-se em movimento de forma bastante acelerada. A burguesia nascente e os camponeses voltam-se contra os privilégios, que funcionam como travas impostas pelo feudalismo. Os movimentos de rebelião social – encobertos sob o manto religioso das seitas como os cátaros, valdenses, albigenses, as 1 O texto está fora do padrão da ABNT para margens, com o objetivo de diminuí-lo e facilitar a sua colocação no SGA. [N. T.] 1

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VITALE, Luis. A Espanha antes e depois da conquista da Amrica. In: VITALE. Feudalismo, capitalismo, subdesenvolvimento. Akal Editor, Madrid, 1977. Traduo: Heloisa Guaracy Machado[footnoteRef:2] [2: O texto est fora do padro da ABNT para margens, com o objetivo de diminu-lo e facilitar a sua colocao no SGA. [N. T.]]

(OBS: ver o roteiro de leitura na pgina final)A Baixa Idade Mdia e a Crise do Feudalismo

O feudalismo foi um regime de propriedade privada da terra, de pequena economia agrria e artesanal, baseado primordialmente na troca; um sistema cuja estrutura social se fundamentava em relaes de servido, como vassalagem, homenagem, benefcio, castigo para aquele que abandona o feudo, adstrio gleba, etc. No plano poltico, o feudalismo se caracterizava por apresentar uma realeza dbil e uma nobreza autnoma, possuidora da terra. O trabalho dos servos era base do regime feudal. O sobre produto, no retribuindo o servio prestado, constitua a renda do solo. Esta podia ser renda em trabalho prestado (prestao pessoal ou trabalho obrigatrio que o servo devia efetuar nas terras do senhor), renda em espcie (entrega de determinada quantidade de produtos agrcolas e artesanais) e renda em dinheiro (variante da anterior, aplicada no perodo final da Idade Mdia).Esse regime lanou suas primeiras razes no perodo final do Imprio Romano, alcanou seu ponto culminante entre os sculos IX e XII e entrou em crise irreversvel durante a baixa Idade Mdia (sculos XIII ao XV).O choque da cultura mulumana com a europeia vai minando ao longo de sete sculos, a estrutura feudal. As cruzadas quebraram os estreitos moldes do feudo. Turcos, rabes e judeus recorrem ao mare nostrum, criando feitorias e penetrando no interior dos feudos para vender suas mercadorias. J no basta ao senhor feudal a economia natural de suas terras para adquirir as novidades em tecidos e espcies que os orientais depositam na sua mesa. A economia de subsistncia entra em contradio com as novas relaes de produo e de troca. Os burgos crescem. Uma nova classe social comea a emergir nos limites dos castelos do sculo XII: a burguesia comercial. Os servos iniciam a emigrao do campo para a cidade, incorporando-se nascente indstria de corporao do artesanato. Os banqueiros de Gnova, Veneza e Bltico, surgidos das novas necessidades urbanas, vo transformando, ainda que lentamente, a vida econmica e social do medievo. A economia natural vai se transformando em economia monetria. A contradio entre o regime feudal e o desenvolvimento das novas foras produtivas pe-se em movimento de forma bastante acelerada. A burguesia nascente e os camponeses voltam-se contra os privilgios, que funcionam como travas impostas pelo feudalismo. Os movimentos de rebelio social encobertos sob o manto religioso das seitas como os ctaros, valdenses, albigenses, as jacquerias francesas e, sobretudo a guerra camponesa encabeada por Toms Mnzer, gera nova relao de foras entre classes.No movimento hertico preciso distinguir dois tipos de rebelies: a burguesia e a camponesa plebeia. Enquanto a primeira trata de arrancar algumas concesses aos senhores feudais, sem propor mudanas profundas da sociedade, a segunda aspira transformao substancial do regime. O movimento de Toms Mnzer, que luta pela eliminao da propriedade privada, a nica heresia em que a frao plebeia e camponesa no atua como apndice da oposio burguesa, seno como caudilhos das camadas pobres do campo e da cidade. As lutas dessas pocas nos induzem a considerar como errnea a imagem esttica da Idade Mdia forjada pelos historiadores do sculo XIX. A Idade Mdia uma poca sumamente dinmica e contraditria, porque junto ao feudalismo se desenvolve a nascente burguesia comercial; porque paralelamente ao provincianismo dos feudos, est o esprito aventureiro de um Marco Plo, porque margem do pensamento dogmtico da Igreja, so geradas sigilosamente as primeiras investigaes cientficas; porque junto ao ascetismo de Santa Catarina de Siena, est a nsia transbordante de vida de um Bocaccio; porque so dez sculos de permanentes lutas sociais, de surgimento e cada de reinos, de choque violento entre a civilizao crist e a muulmana. Enfim, a Idade Mdia no a noite negra, da histria, seno um dos perodos mais fecundos e multifacticos da histria universal, apesar da contra corrente obscura da Igreja. Afirmao que se faz mais evidente se considerarmos no o ponto de vista exclusivo do Ocidente, mas da civilizao no seu conjunto. O verdadeiro continuador da tradio greco-romana foi o Imprio Bizantino e, posteriormente o Isl, zonas por onde passa o meridiano da civilizao desde o sculo V ao XII. Entre os sculos XII a XIII tem incio o processo de gestao dos Estados Modernos na Espanha, Inglaterra e Frana. Os reis buscam centralizar o poder, unificando seus domnios e fazendo sentir o peso da monarquia sobre os senhores feudais, que resistiam em reconhecer outra autoridade que no a de seu feudo. As doaes de terra, feitas pelos reis aos seus cavaleiros e as necessidades militares da guerra cortam as tendncias autnomas e autrquicas dos senhores feudais. A monarquia exerce um papel bonapartista, de rbitro ou mediador entre a nobreza e a nascente burguesia comercial, resguardando seus prprios interesses de classe. O fortalecimento dos estados monrquicos vai debitando a sociedade feudal.A civilizao muulmana, que havia herdado a tradio grega atravs do Imprio Bizantino, provoca no Ocidente um impacto no s econmico e poltico, mas tambm cultural. O pensamento de Averris influencia os telogos europeus e entram em crise os sistemas filosficos medievais. Santo Toms de Aquino revisa a concepo agostiniana, baseada no idealismo platnico, adaptando o realismo aristotlico aos novos tempos. Apesar da repreenso violenta da Igreja, a metodologia cientfica comea a abrir-se com Roger Bacon; e os escritos de Boccacio anunciam o nascimento de uma nova sociedade. A crise definitiva do feudalismo ser simbolizada genialmente por Miguel Cervantes Saavedra, o mais talentoso escritor da denominada Espanha feudal.A pennsula Ibrica que se constituiu na liderana dessa sociedade que ansiava por escrever uma nova etapa na historia da humanidade foi testemunha da primeira Revoluo Burguesa, em Portugal, no ano de 1381 (sic),[footnoteRef:3] quatro sculos antes da francesa. A burguesia comercial de Lisboa, ligada ao trfico com Flandres desde final do sculo XII, deslocou aos senhores feudais de seu poder poltico. Sua posterior derrota ser expresso da imaturidade das condies objetivas para o triunfo da burguesia, mas sua ascenso seguir refletindo-se no comrcio do Atlntico Norte, nos planos de Henrique, o Navegador e, sobretudo, nos novos descobrimentos do sculo XV. [3: A data apontada por boa parte dos hispanistas 1383. (N. T.)]

Espanha Feudal

Na Espanha medieval a evoluo da estrutura socioeconmica e poltica seguiram um curso menos tipicamente feudal que na Inglaterra, Frana e Alemanha. A prolongada invaso muulmana do sculo VII ao sculo XIV imprimiu caractersticas especficas ao medievo espanhol, deformando o processo de desenvolvimento feudal que se havia gerado na Espanha visigoda atravs das instituies pr-beneficiarias e anteriores aos cercamentos. O choque da civilizao muulmana com a crist mudou a histria ocidental em um grau no devidamente apreciado por aqueles historiadores acostumados a enfocar a histria do ponto de vista europeu[footnoteRef:4] (1). A influncia rabe se estendeu por toda Europa, mas sua penetrao concreta no campo econmico e social alcanou seu mais alto nvel no sul da Frana, sul da Itlia e, fundamentalmente, Espanha. [4: Importantes sugestes sobre o tema proporcionam: Henri Pirenne em sua Histria de Europa. Fondo de Cultura Econmica, Mxico, 1943; e Levi Provenal, no trabalho Espaa Musulmana, que integra o tomo IV da Historia de Espaa, dirigida por R. Menndez Pidal, Madrid, 1950.]

A civilizao muulmana se instalou em todos os nveis da sociedade hispnica. Os rabes deram um impulso inusitado ao comrcio, sobretudo sob o governo de Abderramn III no sculo X. Enquanto o resto da Europa vivia um regime de economia natural[footnoteRef:5], na Espanha j se praticava um comrcio relativamente ativo. A zona no ocupada pelos mulumanos comercializava com as provncias invadias e com o Oriente, atravs dos morabes, espanhis, fiis ao cristianismo, mas tributrios do Isl. Conservam-se documentos que fixam, no sculo X, a existncia de tendas em Leo e Burgos. Um sculo antes, encontramo-nos com o diploma de Ordoo I, de 20 de abril de 857, pelo qual se concede a So Salvador, a metade da portagem cobrada no mercado de Oviedo, alm de vilas, herdades e mosteiros[footnoteRef:6]. Cludio Sanchez Albornoz, em Estampas de la vida em Len hace 1.000 aos, diz que teria que se admitir a existncia de um comrcio de importao de panos persas nos comeos do sculo XI e talvez antes. [5: Nas ltimas dcadas, a tese de Pirenne sobre economia rural sem mercados da Alta Idade Mdia europeia, refutada por alguns de seus discpulos belgas, por Calmette, Valdeavellanos e Koebner. Mas, a nosso ver, so crticos parciais que no chegam ao fundo da tese. Calmette, por exemplo, menciona os portos onde existiram a atividade comercial, sobre os quais Pirenne j havia advertido (tal o caso de Quentovit e Durstede); outros mencionam portos como Marselha, esquecendo-se que so entrada para o continente controladas pelo comrcio muulmano.] [6: Documento citado por Luiz Valdeavelhanos: El Mercado, Anurio de Histria Del Derecho Espaol, Tomo VIII, p. 227. Os judeus desempenharam um papel importante no comrcio entre Oriente e Europa, fato descrito no relato dos viajantes rabes (Ibrahim Al Tartuahi) e judeus espanhis (Ben Fourion, Gazvini e Ibulakov) do Sculo X.]

A guerra no foi um obstculo para o intercmbio comercial. No apogeu da Reconquista da Espanha, houve um incremento das operaes mercantis. No sculo XIV, a exportao de produtos espanhis para a Itlia, para o Atlntico Norte, para o Oriente prximo e para o Egito, aumentou sensivelmente. Em um contrato de 1347, se destaca o fato de que a exportao de sal at o leste do mediterrneo rendeu 36.000 maravedis para Sevilha[footnoteRef:7] (4). Os muulmanos impulsionaram o avano agrcola e industrial. Introduziram o acar, o algodo e a amoreira para a criao do bicho-da-seda, matria-prima bsica para a manufatura txtil. Mrcia, Valncia e outras cidades colonizadas pelos rabes, arrebataram ao Oriente o monoplio do cultivo da amoreira e a criao do bicho-da-seda. O avano que experimentou a agricultura espanhola se expressa no sistema de regadio, nas obras hidrulicas de Valncia, Andaluzia, Saragosa (aonde chegaram a regar mais de 25.000 acres). O segredo do florescimento industrial da Espanha e de Siclia sob os rabes era precisamente a canalizao[footnoteRef:8]. O progresso agrcola se reflete, tambm, na ateno que lhe prestaram os tericos e os escritos cientficos rabes. No sculo XII, Abu Zacaria escreveu El Libro de la agricultura, no qual se ocupava da agronomia, meteorologia, estudos de insetos e veterinria. Referindo-se ao livro de economia agrcola de outro cientista rabe Ibn Khaldum, um investidor ingls opina que este sobre-passa a qualquer dos tratados da Europa crist durante muitos sculos. [footnoteRef:9](6) [7: Ramn Carande: Sevilha, fortaleza y mercado, no Anurio de Historia Del Derecho Espaol, tomo II, pg. 375, Madrid, 1925.] [8: Karl Marx: El Capital, F.P.E Mxico, tomo I, vol. I. ] [9: Thomson: An economic and Social History of the Middles Ages, citada por Robert Smith: Sociedade Agrria Medieval en su apogeo. Espaa, tomo I, p. 547 de Historia Econmica de Europa, publicada pela Universidade de Cambrige, traduo de Snchez. Revista de Derecho Privado, Madrid., 1948.]

A invaso rabe fez entrar em crise as instituies feudais, obrigando a realeza e a nobreza espanhola a redirecionarem o sistema econmico-social. Os avanos da Reconquista suscitaram a necessidade de defender a terra e reorganizar a mo-de-obra para impulsionar a produo. Nas regies mais afetadas pela guerra, como Leo e Castela, desenvolveu-se uma populao camponesa relativamente livre, que resistiu a reconhecer os antigos vnculos de vassalagem. Durante mais de um sculo disse Smith a fronteira entre a Espanha crist e a muulmana esteve formada por uma ampla zona desabitada ou apenas povoada, que no podia chegar a colonizar-se oferecendo mais que as terras locais em condies vantajosas. Neste territrio, o colonizador tpico foi, durante os sculos nove e dez, o campons livre que possua uma pequena extenso de terras. [footnoteRef:10](7) Da que um dos maiores especialista do tema, Sanchez Albornoz, sustente que este regime peculiar da propriedade e esta considervel massa de homens livres, imprimiram histria medieval da Espanha um selo distintivo. [footnoteRef:11](8) [10: Robert Smith: ibidem, p. 416.] [11: Claudio S Claudio Snchez Albornoz: Las Behetrias, no Anurio de Histria del Derecho Espaol, tomo I, p. 201 e seguintes. ]

O sistema de pressuras[footnoteRef:12] ocupao livre do solo favoreceu a incorporao dos novos colonos. O historiador anteriormente citado assinalou que a cifra de pressuras e arroteamentos realizados pelos servos nos sculos IX e X insignificante comparado com o nmero dos que levaram a cabo as gentes livres. De 51 documentos, somente em sete se fala de pressuras efetuadas por servos. Na monarquia asturleonesa, a maior parte dos camponeses tinha um pedao de terra (9)[footnoteRef:13]. Valdeavellanos afirma que as necessidades dos pequenos proprietrios de Leo e Castela no sculo XI tendiam a quebrar o regime de economia domstica fechada e a promover o intercmbio comercial. [12: Terrenos baldios. (N. T.)] [13: Snchez Albornoz: Espaa y Francia em La Edad Mdia, Causas de su diferencion poltica, Revista Ocidental, vol. II, p. 294. Madrid, 1923.]

A situao destes setores camponeses se agravou nos sculos posteriores, ao verem-se obrigados a buscar proteo ante as lutas intestinas dos fidalgos. Incapazes de derrotar aos muulmanos, apesar dos esforos dos primeiros Alfonsos, de Ramiros e Ordoos, os setores militares, gerados base dos fidalgos, se lanaram ocupao violenta das pequenas propriedades dos camponeses. Ante as incurses dos bandos militares, os colonos no tiveram outra alternativa a no ser a de se colocar nas mos dos senhores, comprometendo-se a pagar a maior parte de suas terras. Snchez Albornoz diz que parte do interesse de eximir-se da carga fiscal ou contratar com proteo, por trs dos pactos de no colaborao ou benfeitoria se adivinha uma ameaa, uma violncia, um drama (10)[footnoteRef:14]. [14: Claudio Snchez Albornoz: Las Behetrias, op. cit, pg. 225]

No obstante, os camponeses espanhis resistiram a entrar em um regime de servido como em outros pases europeus. Font Rius afirma que a concesso de benefcios no estava essencialmente ligada vassalagem. Inclusive as beetrias forma de subordinao parecida com a comendatio romana, na qual os camponeses compravam a proteo do senhor estabeleciam (de acordo com o Becerro ou o Livro das Beetrias de Castela, do sculo XIV) vnculos de vassalagem menos drsticos que os aplicados pelo feudalismo francs e ingls. Segundo Altamina, no final do sculo XII, os servos e colonos haviam conseguido obter o reconhecimento da validade de seus matrimnios celebrados sem o consentimento de seu senhor, como tambm abolir a imposio de serem vendidos com a terra. Esses antecedentes nos conduzem a sustentar que o feudalismo espanhol foi um feudalismo sui generis, comparado com o que se praticava no resto da Europa. A guerra permanente e as necessidades da Reconquista fortaleceram a tendncia centralista dos Estados em formao. Os reis, ainda que rivalizando entre si, concentraram em suas mos os dispersos e anrquicos mandos militares dos nobres, os quais tiveram de se subordinar, ainda que de m vontade, em beneficio do triunfo cristo. A luta contra rabes sustenta Font Rius fortalece ao soberano. Encontramo-nos, pois ante a ausncia dos elementos propcios para o desenvolvimento do feudalismo (grande propriedade, grande nobreza, realeza dbil). E quando, sculos mais tarde se percebem os germes do feudalismo, j tarde, pois surgem os obstculos que preparam suas runas: auge da classe livre, nascimento das municipalidades, recepo do direito romano.(11)[footnoteRef:15] [15: J. M. Fout Rius: Instituciones medievales espaolas, p. 83, Madrid, 1949.]

Seria um exagero sustentar que a Espanha dos primeiros sculos da Reconquista fora um Estado monrquico centralizado do tipo moderno. Existiam vrios reinos que tinham fortes atritos entre si. Ainda que no concordemos com a tese central de Menndez Pidal, de que na Espanha se produzem senhorios feudais similares aos da Frana, podemos admitir que os dois primeiros reinos que surgem na exploso as Reconquista (Navarra, Castela e Arago nos sculos X e XI) tinham em seus comeos certas caractersticas feudais. O soberano se apresentava, s vezes, como senhor, distribua os territrios como se fossem de seu patrimnio pessoal, confundia suas rendas privadas com o imposto pblico e mesclava as obrigaes de seus sditos com as de seus vassalos. Cada um destes reinos tinha seus condados, os quais uma vez ricos e poderosos se constituam independentes, tal foi o caso de Castela sob Fernando Gonzlez; de Portugal, sob Afonso Henriques; da Galcia, em vrias oportunidades, de Navarro, durante a chefatura de Garcia e dos condados da zona pirenaica. Apesar desse mosaico de reinos, que alcanam uma relativa unificao com Fernando e Isabel, em 1479, no se pode desconhecer o fato de que os reis espanhis cumpriram um papel historicamente progressista, exercendo desde o incio da guerra contra os rabes um controle mais ou menos estrito sobre os senhores feudais e legitimando as novas relaes de produo e de troca introduzidas pela burguesia comercial em gesto. As Siete Partidas de Alfonso X, o Sbio, no sculo XIII, construram o mais srio esforo para elevar a um plano jurdico o poderio da realeza e estabelecer as limitaes dos senhores feudais, ainda que algumas expresses senhoriais das Partidas, ao que parece copiadas da terminologia estrangeira, possam conduzir a uma falsa apreciao das verdadeiras relaes sociais. um fato notar que a Espanha onde talvez encontre o mais firme apoio posio dos que, como Von Below, defendem a realidade de um verdadeiro conceito de Estado na Europa medieval frente aos que, como Von Maurer, negam isso para admitir somente um complexo de relaes econmico-senhoriais sem base de direito pblico.[footnoteRef:16] (12) [16: Ibidem, p. 28029]

Durante as primeiras dcadas da Reconquista, o desenvolvimento da nobreza foi lento, j que os reis restringiram a concesso de terras. Quando as tornaram efetivas, tinham por objetivo ganhar adeso dos cavaleiros para a guerra. O rei, grande proprietrio, deu aos infanes terras em benefcio, sujeito obrigao de servir a cavalo (13)[footnoteRef:17]. medida que a Reconquista avanava, os reis se viram obrigados a recompensar em maior grau a nobreza, gerando assim uma camada neofeudal de um poderio respeitvel. Sem dvida, os senhorios da Espanha nunca alcanaram o desenvolvimento autnomo tpico de seus similares da Europa. Os reis espanhis conseguiram, em boa medida, submeter nobreza, ainda que houvesse excees, como a Catalunha, menos afetada pelos embates da guerra, e que conservou durante sculos um regime feudal mais parecido ao francs. [17: Claudio Snchez Albornoz: Espaa y El Islam, p. 176]

Os intentos de consolidao feudal foram neutralizados pelas medidas implantadas sob o governo dos Reis Catlicos, que transformaram a nobreza em cortes, isto , em dependente do trono. Os senhores feudais, j subordinados ao poder real, obtiveram notrias vantagens materiais. Quando nos sculos posteriores, XVI e XVII, se produzem tardios e espordicos ressurgimentos de feudalismo, no existem condies para a estabilizao deste sistema da Espanha, devido ao auge da burguesia comercial, indstria gremial do artesanato, os comeos do perodo da manufatura e o crescimento do setor dos trabalhadores assalariados.Desde o sculo XIII comeou a desenvolver-se um sistema de explorao de gado que, apesar de ser dirigido pela nobreza proprietria, tambm minava as bases do regime feudal. Nos referimentos pecuria transumante que abastecia de l aos centros txteis dos pases Baixos (14)[footnoteRef:18]. Essa explorao de ovelhas que buscavam os pastos de vero no norte e invernaram nos vales do sul (15), no era prpria do feudalismo, pois o produto se destinava ao mercado europeu. Os proprietrios de ovelhas se organizaram em associaes. Os castelhanos, no Honorable Conselho de La Mesta, e os aragoneses, na Casa de los Ganaderos... [18: O melhor tratadista do tema Julio Klein: La Mesta, Revista de Occidente, Madrid, 1936. ]

Uma dupla necessidade da Mesta emprego de escassa mo-de-obra e enormes extenses de terra para a criao do gado langero obrigava os pequenos proprietrios camponeses, violentamente expropriados e expulsos do campo, a emigrarem para as cidades, o que debilitava o regime de servido medieval. Os camponeses eram arrancados em massa das terras ocupadas desde h sculos por suas famlias para que os latifundirios pudessem dedicar-se criao de gado ovino. A rigor, o critrio de considerar a Mesta como um sistema feudal de explorao da terra provm daqueles que confundem feudalismo com latifndio. Na poca moderna, por exemplo, se registram grandes latifndios que no so feudais, seno empresas altamente capitalistas. O que caracteriza uma categoria econmica seja esta agrria, mineira ou industrial no o aspecto exterior ou formal, seno seu contedo: o regime de produo e de troca, e a relao entre as classes. No nosso entendimento, o trao essencial do feudalismo no a extenso do terreno que durante o perodo medieval abarcou tanto grandes concentraes quanto pequenas parcelas disseminadas mas o regime de propriedade privada da terra, da pequena produo agrria e artesanal, onde a troca e no sistema monetrio a base do escasso intercambio.A Mesta era aparentemente feudal, mas o tipo de explorao, dirigido ao mercado externo, minava a estrutura do feudalismo. No momento do apogeu da Mesta, sculos XVI, as ls espanholas j no abasteciam somente os centros manufaturados dos Pases Baixos, seno prpria indstria peninsular que comeava produzir para o novo mercado hispano-americano.O ressurgimento das cidades, desde o sculo XI, contribuiu para solapar as bases do feudalismo, A organizao municipal romana havia decado lentamente at desaparecer por completo, em meados do sculo VII. A invaso muulmana e as necessidades da guerra impulsionaram criao das cidades muitos anos antes do que no restante da Europa. As cidades espanholas, mais lentas no desenvolvimento de sua economia que a de outros povos, contam, em troca, com uma histria mais extensa, uma vez que estiveram entre as primeiras que apareceram na paisagem da civilizao ocidental... Diferentemente de outros tipos de colonizao medieval, como a da Alemanha, direcionada para o Oriente, os reis de Castela ao avanarem para o sul recolhiam terras que antes haviam sido espanhoas e, por isso, era inevitvel a continuidade da histria peninsular. A imensa maioria das cidades castelhanas no so, por isso, cidades de nova fundao. Isto determina que o problema da origem das cidades, com tantas variantes que escapam a este texto, tenha sido aqui consideravelmente simplificado (16)[footnoteRef:19]. Os municpios comearam a aparecer no sculo XI, no centro da Pennsula e, nos vales do Douro, especialmente. Durante o reinado de Fernando I, o Conclio de Coyanza, em 1050, confirmava os acordos sobre os foros concedidos s vilas. Os reis ao separarem o regime territorial de seus reinos favoreciam a estas corporaes privilegiadas (as cidades) com garantias de toda espcie, tanto na declarao de seu direito prprio, constituio de seus tribunais e nomeao de seus procuradores, como uma aparente renncia ou diminuio de suas prprias regalias. Assim atraam povoadores e possibilitavam a aquisio de imveis aos seus mais bravos e leais servidores e vassalos; fomentavam o rendimento agrcola e como consequncia imediata de sua poltica erguiam, com cada cidade, uma nova fortaleza, com seus habitantes uma nova milcia e com suas riquezas um novo tesouro para manter o que fora conquistado e para prosseguir a acometida contra os rabes, inimigos por vrias razes, sendo uma das mais fortes o fato de que ocuparam, ainda no ltimo perodo de vida da Idade Mdia, as comarcas mais fecundas da Pennsula (17)[footnoteRef:20]. [19: Ramn Carande: Sevilha... op. cit. p. 243-270. ] [20: Ibidem, p.266.]

A tendncia centralizadora da realeza e as imposies militares da guerra determinaram que as cidades espanholas no contassem com a autonomia que gozaram as cidades italianas, alems e flamencas. Muitas das vilas da pennsula Ibrica criaram-se ao principio com fins estratgico-militares, mas, medida que se consolidava a Reconquista, as cidades comearam a obter maiores prerrogativas.A prova mais conclusiva de que a Espanha avanava rumo a um sistema scio-econmico distinto do feudalismo, reside no incremento e consolidao de uma nova classe social: a burguesia comercial. A Espanha, criticada como feudal, foi propulsora, junto a Portugal, da revoluo comercial que acelerou precisamente a crise geral do feudalismo europeu. certo que a Liga Hansetica e os comerciantes venezianos, genoveses, turcos e muulmanos, contriburam para esse processo de crise, mas o golpe decisivo foi dado pela burguesia comercial ibrica com os frutos dos novos descobrimentos transocenicos. O comrcio dos mercadores espanhis com os muulmanos, o Atlntico Norte, a Itlia, a Provena e outros portos do mediterrneo, haviam criado na Espanha uma forte camada comercial. Em 1143, os genoveses tinham grandes interesses na Almria, a zona mais rica de Andaluzia[footnoteRef:21] (18). Desde o sculo XII, Barcelona se destacava pela audcia e o esprito de empresa de seus marinheiros e comerciantes que chegavam s ilhas do mar Egeu, ao levante, Sria e Egito, onde existia um considervel comrcio desde o Sculo IX. Com a interveno dos reis de Arago na Siclia, iniciou-se o processo de expanso ibrica no Mediterrneo, num ritmo superior ao de Veneza, segundo Henri Pirenne. No fim do sculo XIII, Alfonso III conquistou o arquiplago das Baleares. Sob o impulso da burguesia comercial no sculo seguinte, Alfonso IV disputava com Gnova o controle de Crsega e Sardenha. No ano de 1443, Alfonso V culminaria essa expanso (caracterstica alheia ao feudalismo) com a conquista do reino de Npoles. O comrcio com Atlntico Norte se efetuava desde os portos do Golfo de Gasconha. Em direo a Bruges, onde j em 1280, os comerciantes espanhis haviam obtido uma carta de privilgio eram exportados metais (ferro de Bilbao), azeite de Olivia, laranja, roms e, especialmente ls, que no final da Idade Mdia substituram as inglesas na indstria txtil dos Pases Baixos. Os comerciantes, enriquecidos com o intercmbio anteriormente assinalado, no s reativam o comrcio, mas financiaram a frota para dar combate aos rabes. Como demonstrao de seu poderio, a burguesia comercial espanhola logrou, em meados do sculo XV, impor liga Hansetica um tratado que lhe assegurava seu comrcio no Atlntico Norte. [21: De todas as colnias estrangeiras disse Carande a genovesa a que mais deixou a sua contribuio no comrcio e no geral da vida da cidade (Sevilha)... O que explica em grande parte a proteo dispensada aos genoveses a comprovao de que fomentaram o crdito pblico e de que trouxeram a Sevilha ofcios imprescindveis para equipar armas e outros meios de defesa aos combatentes. Os azeites, as frutas, a compra de ls so os produtos que mais interessam aos genoveses. Estes, como grandes navegantes, armadores e ainda almirantes, tomaram parte decisivamente na histria de Castela e na construo e arrendamento de navios. ]

O capital comercial comeou a financiar empresas, cuja variedade ia desde as pequenas oficinas de trabalho manual e artesanal at os primeiros centros manufatureiros. Altamira registra que em Toledo, no sculo XV, trabalhavam 50.000 operrios na confeco de telas e que Sevilha, sob Carlos V, chegou a ter 15.000 teares que ocupavam 130.000 operrios [footnoteRef:22](19). Segvia chegou a ter mais de 130.000 operrios Essas cidades e outras, como Barcelona, Valncia e Saragoa, abasteceram grande parte das necessidades internas e, sobretudo, as demandas dos novos mercados de ultramar. [22: Rafael Altamira: Histria de Espaa, tomo III, p. 438. Ed Gili, Barcelona, 1913. ]

No seio dessas cidades se desenvolvia um novo setor social de trabalhadores com caractersticas similares s de Bruges e Gante.[footnoteRef:23] O surgimento do setor de um proletariado embrionrio, que no era propriamente o arteso das corporaes medievais, nem tampouco o trabalhador assalariado moderno, constitua um sintoma eloquente do grau de afrouxamento do regime feudal e do lento desaparecimento de sua pequena indstria domstica[footnoteRef:24] (20). [23: Na Blgica atual (N. T.).] [24: R. Smith: op. cit. anota: uma classe numerosa de assalariados supunha a existncia de dinheiro abundante e maior grau de especializao que o perodo anterior. No existiam dados satisfatrios a respeito de jornais em Arago, Navarra ou Valncia antes da segunda metade do sculo XIV. Esses trabalhadores beneficiaram-se com o aumento alcanado pelos salrios reais que parece ter sido de muita importncia na ltima metade do sculo XIV. As Cortes de Castela de 1351 aprovaram um estatuto para os trabalhadores, no qual foram determinados salrios mximos com o objetivo de fazer frente demanda dos que, ao oferecer seu trabalho no campo, pedem salrios to elevados que no podem ser pagos pelos proprietrios. ]

O auge econmico da burguesia comercial no tardou a expressar-se no plano poltico. Reis e nobres, endividados com os emprstimos outorgados pela florescente classe social, regente do novo regime de economia monetria, viram-se obrigados a dar-lhe uma progressiva participao, ainda que no decisiva, nos assuntos do Estado. Muitos anos antes que a burguesia francesa ou inglesa desempenhasse tarefas polticas de importncia, nos encontramos na Espanha com uma burguesia reconhecida nas Cortes (ano1238) e no governo municipal (ano1257). Em meados do sculo XII se reuniram assembleias de cidados que receberam o nome de Cortes. Altamira assinala que Leo foi o primeiro pas da Pennsula (e da Europa tambm) em que os representantes dos municpios se reuniram ante ao rei em forma de assembleia (21)[footnoteRef:25]. As Cortes eram convocadas pelo rei; no legislavam, mas podiam fazer peties ao monarca e votar impostos. Em data to remota quando o sculo XIV, as cidades constituam j a parte mais potente das Cortes... Na poca de Fernando IV, por exemplo, o rei se encontrava sempre rodeado de doze comuneiros, designados pela cidade de Castela, que exercia as funes de conselho privado (22)[footnoteRef:26]. A burguesia comercial espanhola obteve esses direitos devido ao papel preponderante que deteve durante a Reconquista (23)[footnoteRef:27]. [25: R. Altamira: op. cit., p. 431.] [26: Marx Engels: La revolucin Espaola, p. 8 e 48. Ed. Lnguas Estrangeiras, Moscou.] [27: A necessidade de manter exrcitos grandes e o prematuro aparecimento do poder monrquico fez sentir em ambos os pases ibricos, antes que em outras partes da Europa, a necessidade de uma organizao financeira que respaldasse as empresas monrquico-militares. Essa organizao, que esteve em mos de capitalistas privados, adquiriu grande desenvolvimento e foi aceita pelos monarcas como uma necessidade poltica e militar inadivel. Os capitalistas adiantavam aos monarcas fortes somas de dinheiro e, em pagamento, organizavam a cobrana de certos impostos... Foram numerosos os casos de monarcas medievais que puseram em mos usurrias a administrao de suas finanas e que dependeram delas eternamente, para financiar suas guerras. Sabe-se disso com certeza em relao a Alfonso VI (1072 1109), Alfonso VII (1126 1157) e Fernando III, o Santo (1217 1252), de Castela e Leon; e de Jaime I de Arago (sculo 13 Srgio Bag: Economia de la sociedad Colonial, p. 36 e 38. Ateneo, Buenos Aires, 1949). ]

A literatura espanhola da poca desde o proco de Hita at Fuenteovejuna e o alcaide de Zalamea[footnoteRef:28] reflete, com maior riqueza que os documentos oficiais, a influncia que exercia a burguesia nascente sobre os costumes e a cultura da Espanha do sculo da conquista americana. [28: Cidades da Espanha atual, as duas primeiras em Castela la Mancha, e a ltima, em Andaluzia. (N.T.) ]

Caracterizao geral da Espanha do sculo XV

O impacto da prolongada invaso muulmana, o prematuro e acelerado fortalecimento da realeza, a evoluo peculiar de um campesinato semi-livre, a explorao do gado para o mercado externo, o surgimento das cidades, de um novo setor de trabalhadores e de uma burguesia comercial relativamente poderosa, condicionaram uma Espanha que se abria ao capitalismo.Essa generalizao no significa desconhecer a existncia de remanescentes feudais ativos. Se nos atravessemos a afirmar que a Espanha do sculo da conquista americana era j uma nao tipicamente capitalista, cometeramos a mesma apreciao unilateral que os defensores da tese da Espanha feudal. Na pennsula Ibrica mantiveram-se, durante sculos, instituies feudais, ttulos de nobreza e senhores da terra que trataram de consolidar uma relao feudal com os camponeses.Apesar dessas travas feudais, a Espanha evoluiu rumo ao sistema capitalista. No sculo XVI a monarquia decretou a extino da servido. Os reis impuseram seu poderio sobre a tendncia autonomista dos senhores feudais e a nobreza tornou-se dependente da monarquia. Na guerra contra Dona Joana (a Beltraneja)[footnoteRef:29] pela posse do trono, Isabel se apoiou na burguesia e nas comunidades urbanas contra a aristocracia latifundiria. Os monarcas espanhis revelaram sua tendncia em conseguir a unidade nacional, caracterstica dos Estados modernos. No por acaso, Maquiavel, no Prncipe, elogiava os esforos de Fernando em alcanar a unidade nacional da Espanha no Sculo XV. Frana e Inglaterra conquistaram a sua unidade em fins do mesmo sculo, durante os reinados de Lus XI e Henrique VII, respectivamente [29: Assim chamada pelos seus inimigos e os de sua me, desde o seu nascimento, querendo assim afirmar no ser a princesa filha do rei Henrique IV, mas deBeltrn de la Cueva, amante da rainha sua mulher,Dona Joana.]

As limitaes dessa evoluo afloraram depois da conquista da Amrica. Veremos os fracos alicerces da unidade nacional espanhola, o regionalismo estreito das cidades, a incapacidade da burguesia para desenvolver a indstria manufatureira, as medidas repressoras de Valncia e a expulso dos judeus e rabes, baluartes do artesanato e do comrcio; a crise dos preos que provoca a torrente de prata e ouro do novo Mundo e a persistncia em aplicar uma poltica metalista em vez de impulsionar o mercantilismo baseado nos produtos da prpria indstria nacional.Conclusivamente, podemos caracterizar a Espanha do sculo da conquista americana como um pas em transio do feudalismo ao capitalismo; uma nao de desenvolvimento desigual e combinado na qual junto s instituies feudais coexiste uma burguesia relativamente poderosa que trabalha para o mercado externo. Este capitalismo espanhol no o capitalismo industrial moderno, seno um capitalismo incipiente, primitivo e essencialmente comercial.

O descobrimento da Amrica

O desenvolvimento das foras produtivas, que havia esboado um auge relativo durante os sculos XII e XIII, vivendo posteriormente a prolongada estagnao da Idade Mdia tempor, viu-se constrangido, na sua marcha para o sculo XV, pelas atrasadas relaes de produo. As foras produtivas, fundamentalmente a tecnologia e os instrumentos de produo, frutos do trabalho humano, constituem o fator dinmico e revolucionrio da sociedade que, num momento do processo, entra irreversivelmente em contradio com as relaes de produo, cujo substrato resistente ao avano so as formas de propriedade.Ainda que em fins da Baixa Idade Mdia no se manifeste um estancamento das foras produtivas, o impetuoso avano iniciado no sculo XIII era travado pelo regime feudal agrrio artesanal. Segundo Pirenne, observa-se durante os primeiros anos do sculo XIV, no diremos uma decadncia, mas sim uma suspenso do desenvolvimento econmico... o comrcio deixa de estender a rea de sua expanso. No exceder antes da poca dos grandes descobrimentos da primeira metade do sculo XV, os limites que possua... o particularismo urbano impulsionou as vilas a colocar restrio ao grande comrcio, como j havia feito a respeito da grande indstria... no XIV, a economia urbana levou at o extremo o esprito do exclusivismo local que era inerente a sua natureza[footnoteRef:30] (24). [30: Henry Pirenne: Historia econmica y social de la Edad Media, p. 192, 193, 211. Ed FCE, Mxico, 1947.]

Nos umbrais da poca moderna, vemos agudizar a contradio entre o particularismo das cidades medievais e a necessidade de expanso do incipiente capitalismo. A burguesia estava se transformando em mera intermediria e penhorista de dinheiro, quer dizer, financista de empresas comerciais e manufatureiras. No era ainda a burguesia industrial moderna, mas j galopava na garupa do proletariado embrionrio sugando o oxignio da mais valia. Abraham Lon num livro cheio de insinuaes, afirma: O dinheiro emprestado pelo usurrio no criava mais valia: permitia-lhe somente apropriar-se de uma parte do sobreproduto j existente. A funo do banqueiro diferente. Contribuiu diretamente produo da mais valia. produtivo. Enquanto na poca o crdito essencialmente um crdito de consumo, no perodo do desenvolvimento comercial e industrial transforma-se num crdito de produo e de circulao. H, pois, uma diferena essencial entre o usurrio e o banqueiro. O primeiro o rgo de crdito da poca da economia feudal, enquanto que o segundo o rgo de crdito da poca da economia de troca. O fato de ignorar esta distino fundamental induziu ao erro quase todos os historiadores. Eles no vm nenhuma diferena entre o banqueiro judeu da Inglaterra no sculo XI e Rotschild ou mesmo, o Fugger (25).[footnoteRef:31] [31: A. Lon: Concepcin materialist de la question juive, p. 66, Ed. Pionniers, Paris, 1946.]

Esse processo de transformao da burguesia comeou a modelar-se no sculo XV com a criao de grandes sociedades comerciais, que aperfeioaram o crdito e o sistema de letras de cambio. Bancos, como a Casa de So George de Gnova, em 1407, (o primeiro dos bancos modernos), o de Soranzo de Veneza e o dos Mdicis em Florena, combinavam o comrcio de dinheiro com o das mercadorias e o financiamento de novas empresas. Grande parte dos banqueiros como Jacques Coeur fizeram-se poderosos atuando tambm como provedores das cortes e os exrcitos reais. Mediante os apoios dos reis, os banqueiros e comerciantes trataram de quebrar o particularismo fechado das cidades medievais A burguesia comercial espanhola do sculo XV era parte integrante desse processo, como fica demonstrado pelas suas relaes com os banqueiros alemes e genoveses. As numerosas empresas de ultramar no poderiam explicar-se sem a participao ativa dos banqueiros. Outro fator que impulsionou a burguesia a aventurar se rumo a novas zonas geogrficas, foram a escassez de meios de troca, de ouro e prata. Em carta de 27-10-1890, Engels chamava a ateno de C. Schimidt: O descobrimento da Amrica deveu-se sede de ouro que anteriormente havia lanado os portugueses frica, porque a indstria europeia enormemente desenvolvida nos sculos XIV e XV, e o comrcio correspondente, reclamavam mais meios de troca do que podia prover a Alemanha, a grande produtora de prata de 1450 a 1550. No final da Idade Mdia, a minerao e a metalurgia europeia estavam, entretanto, muito atrasadas. Pirenne afirma que a metalurgia da Idade Mdia e talvez este seja o ponto em que a economia daquela poca oferece o maior contraste com a moderna conheceu unicamente uma explorao sumamente rudimentar. Os mineiros de Tirol, da Bomia e de Corntia parecem ter sido uma variedade de camponeses dedicados em comum perfurao de uma montanha, por meio dos procedimentos mais primitivos. Ser preciso esperar at o sculo XV para que os capitalistas das vilas vizinhas os submetam a sua influncia e intensifiquem a extrao que por enquanto seguir sendo bastante insignificante (26)[footnoteRef:32]. No sculo XIV comeou a empregar-se a roda hidrulica para mover foles e martelos que trituravam o metal; logo se obteve ferro fundido. Mais recentemente, no sculo XV apareceram os altos fornos; o descobrimento da extrao de metais preciosos por meio da amlgama data da segunda metade do sculo XVI. O investigador europeu E. Nordenskiold sustentou que a minerao e a metalurgia europeia de fins da Idade no eram muito mais adiantadas que a dos indgenas das altas culturas americanas. [32: Henry Pirenne: Histria econmica y..., op. cit.]

A Alemanha, apesar de ser a principal produtora de metais da poca, de possuir os melhores especialistas e de monopolizar o trgico de cobre da Hungria no conseguia abastecer as necessidades de prata e ouro que exigiam o desenvolvimento comercial e cambial de uma burguesia em pleno processo de transformao. A necessidade de expanso do nascente capitalista conduziu tentativa da aventura transocenica. Ela foi possibilitada pelos avanos cientficos da navegao (bssola, cartas marinhas, astrolbio para medir a latitude, etc.), pelos novos conceitos sobre a esfericidade da terra, pelos progressos da tcnica naval na construo de barcos e pela capacidade da florescente burguesia para financiar as perigosas viagens de uma envergadura desconhecida at ento.A burguesia ibrica buscava, na segunda metade do sculo XV, uma nova rota para as ndias com a finalidade de quebrar o monoplio que rabes e turcos exerciam sobre o Mediterrneo depois da tomada de Bizncio em 1453.A expedio de Colombo foi custeada pelos comerciantes espanhis e genoveses. Os primeiros investiram cerca de dois milhes de marevedis, dos quais mais da metade era proveniente de um emprstimo dos mercadores da Santa Irmandade. O resto foi coberto por Martin Alonso de Pinzn, o comerciante mais rico de Palos, a quem Colombo havia prometido a metade de seus ganhos. Alguns autores subtenderam que Colombo foi ajudado pelos mercadores genoveses Di Negro e Doria e o banqueiro florentino De Juanoto Berardi (27). [footnoteRef:33] [33: Velodia Teitelboem: El almanecer del capitalismo y la conquista de Amrica, Santiago, 1943. ]

O descobrimento da Amrica foi um triunfo no s da burguesia comercial espanhola, mas tambm dos banqueiros genoveses, flamengos e alemes. Esse sucesso de importncia fundamental permitiu burguesia europeia no seu conjunto, dar um salto progressivo nas empresas bancrias e manufatureiras. O descobrimento do Novo Mundo possibilitou o avano industrial, solapou as bases estruturais do feudalismo e contribuiu, numa medida no devidamente apreciada pelos historiadores europeus, ao desenvolvimento do capitalismo moderno interessante notar que o auge manufatureiro, produzido pela colonizao das novas zonas geogrficas, foi promovido pelos interesses comerciais. Ainda que o comrcio seja uma atividade secundria, que no engendra riquezas, seus interesses imediatos conduziram ao descobrimento e colonizao de regies que tiveram um papel decisivo no auge da manufatura e o posterior advento da revoluo industrial. Os descobrimentos do sculo XV deram origem formao do mercado mundial capitalista, inaugurando uma nova etapa na histria. A biografia moderna do capital se abre no sculo XVI, com o comrcio e o mercado mundial (28). [footnoteRef:34] [34: Karl Marx: El capital, I, 163, edicin citada.]

O mercado mundial quebrou ao particularismo fechado das cidades medievais. As torrentes de ouro e prata indianos liquidaram definitivamente com a economia natural que ainda subsistia em grande parte da Europa Feudal. As pequenas oficinas artesanais, insuficientes para atender demanda de novos mercados, foram substitudas pela indstria manufatureira, financiada pela prpria burguesia comercial e bancria, que assim modificaram seu carter histrico. A incapacidade da burguesia espanhola para integrar-se a esse processo de industrializao, ao qual ela havia contribudo de forma decisiva com o descobrimento da Amrica, um dos paradoxos mais notveis da histria. Alguns escritores trataram de explicar este fenmeno com a teoria da grandeza e decadncia da Espanha. No dizer destes autores, a Espanha teve um perodo de extraordinrio esplendor at o sculo XV; depois da conquista da Amrica sucedeu-lhe a decadncia. Assim os escritores alemes ampliaram a magnitude do colapso com a finalidade de glorificar por contraste ao imperador Carlos V, de razes germnicas; os italianos procederam da mesma forma pelo desejo de colocar em conta alheia o afundamento de seu pas; os autores franceses e espanhis o fizeram com o intento de exaltar a poltica econmica dos Bourbons; finalmente os liberais e protestantes de todos os pases, para estigmatizar a Inquisio e a perseguio s minorias raciais (29).[footnoteRef:35] [35: Jaime Vicens Vives: Historia social y econmica de Espana, tomo III, p. 250, Ed. Teide, Barcelona, 1958.]

Ao finalizar o captulo anterior no havamos advertido acerca das limitaes da Espanha do sculo XV. Sua evoluo rumo ao capitalismo significava grandeza, mas no sentido de um processo de transformao que podia ou no culminar numa nao capitalista moderna. Este processo foi cortado no sculo XVI pelas contradies internas da Espanha, que conduziram seus monarcas a praticar uma poltica econmica basicamente comercial e metalista em vez de alentar o desenvolvimento manufatureiro. O fato de a Espanha ter tido uma burguesia comercial em condies de financiar, em comum com banqueiros genoveses, as empresas de ultramar, no significa exagerar sua grandeza, mas registrar uma etapa de transio progressiva do feudalismo rumo ao capitalismo. A decadncia da Espanha no ser produto do desgaste da colonizao americana, mas da incapacidade das classes dominantes, para empreender a tarefa da industrializao. No compartilhamos do critrio racista e psicolgico de Encina de que a Espanha entrou em crise porque foi governada por uma famlia de neurticos, ablicos e discrepantes cerebrais; ou porque nas guerras do sculo XVI a nao perdeu os ltimos restos de sangue nrdicos que corria em suas veias[footnoteRef:36] (30). Tampouco compartilhamos da tese de Jaime Eyzaguirre, segundo a qual a decadncia da Espanha se produziu pela carncia de sentido econmico e o escrpulo tico frente ao uso das riquezas (31). [footnoteRef:37] [36: Francisco Encina: Historia... op.cit. II, 468, 502.] [37: Jaime Eyzaguierre: Historia de Chile, op. cit. p. 146.]

No certo que a causa do fracasso da Espanha foi sua falta de esprito de lucro; inspirado por uma religio catlica alheira ao materialismo dos protestantes. Como prova, temos exemplos da Frana, que dirigia por frreas mos catlicas, alcanou um notvel desenvolvimento capitalista. Em contraste, pases governados pelo protestantismo, como a Alemanha, fracassaram estrondosamente no seu desenvolvimento burgus durante os sculos XVI, XVII e XVIII. Jamais a superestrutura religiosa foi fator condicionante do desenvolvimento da sociedade, ainda quando em algumas ocasies tenha contribudo na sua manifestao histrica. A crise da Espanha no foi produto do catolicismo inerente ao espanhol como dizem alguns autores (Robertson), nem de seu antiprotestantismo e menos de uma suposta falta de lucro material de suas classes dominantes. Tampouco foi o resultado da ociosidade do espanhol como foi dito, ou de seu desprezo pelo trabalho manual, imagem transmitida pelos escritores e viajantes ingleses. A literatura clssica espanhola, em especial Cervantes, Quevedo e os cultivadores do gnero satrico, descrevem tipos humanos como o Buscn, o Hidalgo, etc, que efetivamente existiram, mas eram no a causa da crise espanhoa e sim sua consequncia. A Espanha era, no sculo XV, uma nao de desenvolvimento desigual e combinado, de notvel avano comercial, mas de particular atraso no desenvolvimento das foras produtivas. O processo comercial e monetrio no fator essencial na sociedade capitalista. Teve importncia durante a Baixa Idade Mdia, acelerando a crise do feudalismo. Mas na poca moderna, o ndice para medir o progresso de uma nao o grau de desenvolvimento das foras produtivas no campo da manufatura, ante-sala da grande indstria. A burguesia espanhola foi incapaz de superar sua etapa comercial, manteve-se durante quase todo o perodo da colonizao como intermediria dos produtos manufaturados ingleses e franceses. A lei segundo a qual o desenvolvimento da produo capitalista, se verifica mais claramente nos povos nos quais o comrcio era um comrcio de intermedirios (32). [footnoteRef:38] [38: Karl Marx: El Capital, tomo III, edicin citada.]

diferena da Frana e da Inglaterra, a Espanha no pode obter uma real unidade nacional. A unificao alcanada pro Fernando e Isabel no foi o resultado de uma evoluo capitalista e de uma integrao homognea dos reinos, mas uma fuso por cima, imposta formalmente. As rebelies provinciais posteriores e a continuidade do movimento separatista da Catalunha e Arago foram sinais eloquentes das frgeis bases em que descansava a unidade nacional. Em contraste com a Inglaterra e a Frana, o reino espanhol no teve uma burguesia nacional integrada, mas diferentes burguesias locais, com um mesquinho sentido provinciano. Depois de um perodo de apoio burguesia, os reis da Espanha, comprometidos com a Igreja e os grandes proprietrios de terra, deixaram de alentar medidas em favor da nova classe social que reclamava saneamento de tributos, anulao de encargos feudais, franquias na circulao de mercadorias, etc. A burguesia iniciou um movimento urgente, mas foi esmagada por Carlos V na guerra dos habitantes das comunas de Castela e das Irmandades de Valencia em 1520. A guerra das comunas castelhanas contra o rei e a nobreza assinala Maurin foi uma revoluo burguesa vencida. A burguesia no havia adquirido ainda um desenvolvimento suficiente para tomar o poder. Teve a vitria militar s vezes o alcance da mo, mas no sabia o que fazer. Assustava-lhe o xito. Todavia considerava o rei como indispensvel. Somente Acua, o bispo rebelde de Zamora, falava, ainda que vagamente, de uma repblica como as de Gnova e Veneza. Nessa primeira grande batalha da burguesia espanhola, os campos estiveram bem delimitados: de um lado, os artfices, os procuradores, quer dizer, toda a burguesia urbana de Castela; de outro, o rei, o alto clero e a nobreza... A burguesia espanhola, mais de um sculo antes que a inglesa, mais de um sculo e meio antes que a francesa, quis levar a cabo sua misso histrica. Fracassou (33). [footnoteRef:39] [39: Joaquin Maurin: La Revolucin Espaola, p. 1 Jaime Eyzaguierre: Historia de Chile, op. cit. p. 146.]

Sob a presso dos senhores feudais, da Igreja e dos banqueiros genoveses e alemes, dos quais eram devedores morosos, Carlos V e Felipe II expulsaram aos judeus e rabes. A burguesia, ferida em aparte pelas medidas agressivas dos Habsburgos, viu-se obrigada a se retirar em ordem durante sculos at o advento dos Bourbons. Neste nterim, seguiu financiando as empresas de ultramar, ainda que no tivesse foras para impor medidas protecionistas que permitissem entrar na etapa manufatureira. As monarquias inglesas e francesas, impulsionadas pelo peso de seus proprietrios burgueses, seguiram uma poltica diametralmente oposta. A Inglaterra iniciou no sculo XVI a era protecionismo quando Eduardo II proibiu a importao de panos estrangeiros. Em 1381, uma ata governamental reservava a navegao do pas aos barcos ingleses. Em 1455 impedia-se a penetrao de tecidos de seda que faziam concorrncia aos nacionais. Em 1464 a poltica protecionista e mercantilista de Henrique VII, o realizador da unidade nacional, proibia a entrada de panos da Europa. De sua parte a Frana, sob Luiz XI, inaugurava o protecionismo assegurando o domnio da feira de Lyon sobre a de Gnova, tratando de aclimatar os bichos-da-seda e protegendo a indstria mineira em Dauphin. Estas medidas de protecionismo constituram a chave do xito para o desenvolvimento industrial da Inglaterra e Frana O protecionismo manufatureiro, baseado no desenvolvimento das foras produtivas deu um novo carter ao mercantilismo. corrente o uso do termo mercantilista para expressar uma poltica econmica essencialmente cambial. Na realidade, o mercantilismo atravessou diversas etapas. O comeo do sculo XVI outorgava ateno preferentemente aos fenmenos da circulao monetria, sem preocupar-se do processo da produo. O Estado deveria intervir diretamente para assegurar uma entrada maior de ouro e prata e uma sada mnima dos mesmos. Este mercantilismo primrio foi se transformando a medida que o mercado mundial se ampliava. No sculo XVII j no se tratava somente de aambarcar metais preciosos, mas de exportar produtos manufaturados. O mercantilismo converteu-se, ento, em uma poltica econmica tendente a exportar manufaturas nacionais em maio quantidade que a importao de artigos elaborados. Para isso, era necessrio que o Estado fomentasse e protegesse a indstria nacional diante da competncia de artigos estrangeiros manufaturados. Colbert, ministro de Lus XIV, foi o melhor expoente desta poltica econmico/protecionista, inspirada nas idias do novo mercantilismo.A Alemanha dos sculos XVI e XVII sofreu uma crise similar da Espanha. A indstria do artesanato e o comrcio alemo (Liga Hansetica) haviam atingido um avano to notvel quanto aquele dos ibricos durante a Baixa Idade Mdia. Mas, enquanto na Frana o desenvolvimento do comrcio e da indstria teve como resultado o surgimento de lucros gerais no pas inteiro e com eles a centralizao poltica, a Alemanha no passou de um agrupamento de interesses provinciais, em torno de centros puramente locais, o que levou junto a fragmentao poltica.[footnoteRef:40] [40: Frederico Engels: La guerra de los campesinos en Alemania, p. 9. Ed. Problemas, Buenos Aires, 1941.]

A principal causa da crise espanhola repousa na poltica fundamentalmente comercial e metalista praticada pelos Habsburgos, em detrimento de uma orientao mercantilista, de protecionismo indstria nacional. A classe dominante da Espanha limitou-se a ser intermediria das manufaturas dos pases europeus. Detentora de grandes valores de cmbio, de ouro e de prata, que resultava da conquista americana, percorreu o caminho fcil da compra de artigos produzidos em outras naes. Paradoxalmente, a Espanha converteu-se na principal propulsora da indstria dos pases que foram seus inimigos seculares: Inglaterra e Frana. Um dos estudos importantes sobre essa poca, afirma: Reiteradamente se tem dito, dando por acabado, que o mercantilismo imperou ento na Espanha, que a esta poltica se devem muitos dos descalabros que Espanha padeceu... A afirmativa sumamente arriscada. O que se sabe de nossa poltica sob os ustrias no deixa dvidas: nem como reprovao nem como defesa de ser denominado mercantilismo ... Quando muito mais tarde, em 1742, Ustariz apresenta a nova poltica, ou seja, o mercantilismo de Colbert, os espanhis quando julgam a poltica praticada durante os sculos precedentes, no vislumbra vestgio algum de mercantilismo.[footnoteRef:41] [41: Ramn Carande: Carlos V y sus banqueros, p. 89, Ed. Revista de Occidente, Madrid, 1943.]

Os carregamentos de ouro e prata americanos produziram a revoluo dos preos na Europa e um inusitado processo inflacionrio na Espanha. De acordo com as estatsticas confeccionadas pelo especialista Earl Hamilton, o ndice dos preos flutuou de 33.3 em 1501, a 69 em 1550, para dar um salto extraordinrio para 137 em 1600.[footnoteRef:42] Houve uma baixa sensvel do valor da moeda e um aumento da demanda de artigos manufaturados. A fanega[footnoteRef:43] de trigo que custava 110 maraveds sob os Reis Catlicos subiu at 952 em fins do sculo XVI. Os preos dos veludos, panos, chapus e txteis em geral aumentaram seu valor mais de trs vezes. O comrcio segundo J. Larraz era afetado pelas crescentes e minguantes da moeda. [42: Earl Hamilton: The American Treasure and the Prices Revolution in Spain, 1501- 1650, Harvard, 1943.] [43: Antiga medida com capacidade de cinquenta e cinco litros e meio. (N. T.).]

Expandiu-se a crise agrcola decorrente do rebanho transumante da Mesta, cujo nico interesse era exportar l para os teares de Lyon e Flandres, em detrimento do mercado interno. Em meados do sculo XVI, a Mesta possua sete milhes de ovelhas e exportava mais de 1000.000 quintais de l. Os pequenos proprietrios e jornaleiros foram expulsos dos campos, restando-lhes como alternativas a vagabundagem, o ingresso nas ordens religiosas pobres ou a aventura do Novo Mundo. O aumento do preo das terras levou alguns grupos de pequenos e mdios proprietrios a venderem seus terrenos. A especulao econmica das classes dominantes terminava por expressar-se na compra dessas terras, bens imveis, que se valorizavam diante da inflao galopante. Poderamos afirmar que esta crise contribuiu de forma decisiva para a consolidao do latifndio espanhol.Paralelamente, a monarquia elevou os impostos de capital e compra e venda, onerando dzimos e alcavalas. A partir de 1575 diz Larraz a curva do ndice tributrio sobe consideravelmente sobre a curva do ndice geral de preos; desde este ano, o Fisco no s se compensa da perda do poder aquisitivo do dinheiro, como tambm aumenta de forma expressiva a presso tributria. Este aumento de presso fiscal adquire maior significado se levarmos em conta que a indstria e a agricultura castelhanas trabalharam menos intensamente no ltimo quartel do sculo XVI.[footnoteRef:44] [44: Jos Larraz; La poca Del mercantilismo em Castilla (1500-1700), p. 79, Ed. Atlas, Madrid, 1943.]

Larraz afirma que existiram duas etapas na Espanha da conquista Amrica. Uma, de 1500 a 1550, caracterizada pelo estmulo dos metais indianos que obstaculizaram a economia castelhana e outra, de 1550 a 1600, presidida por um esgotamento da conjuntura de alta [dos preos]. certo que as primeiras dcadas do governo de Carlos V atingiram o auge nas vendas da indstria manufatureira, mas esta prosperidade repousava sobre uma dbil estrutura scio-econmica. A nosso ver, o erro de Larraz como o de tantos outros economistas fazer cortes transversais em detrimento de todo o processo global da sociedade. A crise espanhola de fins do sculo XVI tinha razes muito profundas. Sua calara manifestao durante a morte de Felipe II, em 1598, seria o resultado de um processo que vinha se generalizando havia mais de um sculo: problemas no resolvidos sobre a unidade nacional, a consolidao do latifndio e a incapacidade dos monarcas e da burguesia para desenvolver a industrializao e criar seu prprio mercado interno. No momento de maior auge primeira metade do sculo XVI a indstria manufatureira, no seu af de abastecer a crescente demanda, baixou a qualidade dos produtos. A poltica econmica da monarquia, imobilizada pelas necessidades do mercado mundial em formao, foi to mope, que em 1552 proibia exportar panos, seda e couros curtidos para a Amrica. Outro documento real permitia exportar l sob a condio de que trouxessem fardos de linho produzidos por indstrias estrangeiras. Esta poltica suicida provocou a bancarrota da indstria manufatureira espanhola. Em 1558 haviam parado de funcionar quase todos os teares em Toledo. Os de Catalunha, Valncia e Granada diminuram cerca de dez vezes. Em 1594 as cortes manifestaram-se ao rei: Nos lugares de fabricao de ls onde se costumava lavrar vinte e trinta mil arrobas, no se lavram hoje nem seis.Os comerciantes estrangeiros invadiram os mercados espanhis com produtos de melhor qualidade e mais baratos, j que o valor da moeda na Espanha era inferior ao de qualquer outro pas europeu. As manufaturas espanholas, perderam continuamente rentabilidade e, em lugar de desenvolver-se, entraram em declnio, o que levou ao seu desaparecimento quase completo. Converter-se em intermedirio, em cmplice dos comerciantes estrangeiros, chegou a ser mais lucrativo do que produzir e vender diretamente.[footnoteRef:45] [45: G. Munis: Jalones de derrota: promessas de Victorio, p.17, Edit. Lucha Obrera, Mxico, 1948. ]

Os metais preciosos da Amrica entravam pela Espanha e depois se espalhavam pelas principais praas comerciais europeias. Quevedo expressava poeticamente o destino do ouro indgena:

Nasce nas ndias honrado,de onde o mundo o acompanha,vem morrer em Espanhae em Gnova enterrado.

Um viajante francs do sculo XVII comentava: Quando considero esta estranha mistura de gente em Cdiz, em dia de mercado no posso deixar de recordar um quadro que vi na Holanda. Aparecia o rei de Espanha apoiado em uma mesa repleta de peas de a ocho; [footnoteRef:46] de cada um dos lados, o rei da Inglaterra e dos Estados Gerais deslizavam suas mos por debaixo dos braos do monarca espanhol para pegar o brilhante metal. Atrs de sua cadeira, bem prximo dele, os genoveses faziam caretas e, sem qualquer cerimnia, o rei da Frana pegava o ouro para si.[footnoteRef:47] [46: Moeda de prata com valor de oito reais, cunhada pelo Imprio espanhol depois da reforma monetria de 1497.] [47: Citado por Vincens, op. cit. Tomo III, p. 338.]

Os banqueiros e comerciantes alemes e italianos se apoderaram dos ramos bsicos da economia espanhola. O comrcio monopolista de Sevilha ficou em mos estrangeiras. Em 1528, as Cortes denunciavam que os genoveses eram donos da maioria das empresas comerciais e dominavam por completo a indstria do sabo e o trfico da seda granadina. Em 1542, denunciavam tambm que os genoveses monopolizavam o comrcio dos cereais, seda e muitos outros artigos... No nos deixemos enganar pelas vultosas riquezas que os comerciantes monopolistas de Sevilha esto acumulando sob Carlos I. Muitos deles no so espanhis e os dividendos no se fixam em territrio nacional. Uma comunicao das Cortes de Valladolid ao rei em 1548 dizia: Que tendo sido socorrido V. M. na Alemanha e na Itlia, tenha sido causa de que venha to grande nmero de estrangeiros que, no satisfeitos com os negcios de V. M. com o cmbio e consignaes, e no contentes que no haja dignitrios nem bispos, nem Estados que no arrendem e desfrutem, compram todas as ls, sedas, ferro e couro, alm de outras mercadorias e mantimento, que o que havia restado aos nativos para cuidar e viver.[footnoteRef:48] [48: Citado por R. Carande: Carlos V, op. cit. 168. ]

Os Fugger e Fcar, que chegaram da Alemanha e Pases Baixos com o squito de Carlos V, apoderaram-se em poucos anos dos principais ramos da economia ibrica. Como pagamento da ajuda que os banqueiros lhes haviam proporcionado para ser eleito imperador, Carlos V lhes concedeu inumerveis franquias. Os Fcar abasteceram as expedies de ultramar, como a das Molucas e as viagens de Garcia de Loaissa e Sebastin Cabot. A tendncia expansionista dos banqueiros alemes levou os Fcar a tentar a conquista do Chile, operao similar empresa dos Weslser na Venezuela. Em 1534 efetuaram tambm um respeitvel investimento armando a flotilha de Simn de Alcazava quem, com ttulo reais, lanou-se ao mar para levar a cabo a conquista do Chile, com to maldita fortuna que foi assassinado pelos seus subordinados, fazendo com que os Fugger perdessem os capitais nos quais haviam depositado esperanas de lucro.[footnoteRef:49] [49: Volodai Teitelboim: op. cit. p. 206-207.]

Posteriormente, a monarquia espanhola props aos Fcar a colonizao das terras compreendidas entre o povo de Chinchas, plano que depois de longas tramitaes no foi levado a cabo, apesar das grandes concesses que o rei de Espanha outorgava aos banqueiros alemes. Os Fcar obtiveram o vantajoso arrendamentos dos maestrazgos [footnoteRef:50] (ordens militares de Santiago, Alcntara e Calatrava) que lhes transferiam a arrecadao de taxas em metais, centenas de milhares de fanegadas de trigo e cevada, que durante o perodo de 1538-1542 renderam, segundo os prprios banqueiros, a mdia anual de 224.000 ducados. A despeito disso, os Fcar apoderaram-se das minas de mercrio de Almadn, mineral que na segunda metade do sculo XVI se tronou indispensvel devido amlgama que perimia aumentar a extrao de metais preciosos. De 1572 a 1582, a produo de mercrio ascendeu a 700.000 ducados. Em 1553, os Fcar comearam a exportar os ricos jazigos de prata de Guadalcanal, cuja produo nos primeiros anos alcanou mais de 50.000 marcos. Um dos melhores pesquisadores da vida dos banqueiros alemes afirma: Aqueles que at meados dos sculos XVI desejassem empreender uma viagem Espanha costumavam servir-se do banco dos Fcar levando consigo todo seu dinheiro em forma de cartas de crdito pagadoras pela casa Fcar. E durante aqueles anos, a companhia Fcar desempenhava, de maneira geral, um papel muito parecido ao de uma instituio de crdito moderna do tipo dos bancos pblicos. Os funcionrios de estado recebiam atravs dos Fcar penses recebidas de prncipes estrangeiros; os grandes senhores de terras se serviam da casa Fcar para a administrao de seus investimentos; e os capitalistas, ao especular com seus fundos, costumavam investi-los nas empresas dos Fcar ou em negcios domsticos ou estrangeiros, nos quais os Fcar atuavam em seu nome. [50: Dignidade ou territrio do mestre de uma ordem militar. (N. T.).]

Estes prncipes do comrcio bancrio de maior prestgio na Europa continuavam mantendo sua brilhante posio de primeiro banco em todas as bolsas do continente.[footnoteRef:51] Em 1560, os crditos espanhis dos Fcar haviam atingido a fabulosa cifra de quatro milhes de florins. [51: Ernesto Hering: Los Fcar, p. 339-340. Ed. FCE. Mxico, 1944 ]

A condio de credores do tesouro, no s de Carlos V, mas tambm de Felipe II, que vendia com antecipao os carregamentos de ouro das ndias para sustentar aventura militares e religiosas, permitiu aos banqueiros e comerciantes estrangeiros controlar os carregamentos indgenas de metais preciosos e converter-se nos regentes da economia espanhola. Era um dos vrios tributos que o povo espanhol pagava pela incapacidade de suas classes dominantes para conseguir a unidade nacional, o desenvolvimento da indstria e a criao do mercado interno.

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Roteiro de Estudo - Identificar no texto:

1. As diferenas da estrutura scio-econmica da Espanha comparada ao mundo de alm-Pireneus, no perodo medieval2. A ao dos reis espanhis na Espanha, comparado ao seu papel no processo de transformao europeu rumo modernidade3. A distino que o autor faz entre feudalismo e latifndio4. De um lado, os aspectos favorveis, de outro, as limitaes da Espanha em direo ao capitalismo, nos sculos XIV e XV5. Como o descobrimento da Amrica permitiu o avano da burguesia europeia, solapando as bases feudais6. A(s) causa(s) da decadncia da Espanha aps o descobrimento da America7. As razes da crise profunda da Espanha no sculo XVI

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